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Niilismo Penal

Opinião Pública | 13/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nessa fase da história brasileira, em que a exceção virou regra e, a regra, exceção, a pauta congressista, entre o impedimento aqui e a eleição indireta ali, continua a todo vapor. Pelo menos nas comissões temáticas. Nessa bacia de salvação política das almas, está o projeto de reforma do nosso idoso código penal, repleto de bengalas e andadores decorrentes das inúmeras alterações pontuais legislativas que foram sendo feitas nos últimos trinta anos.

Tais alterações, em regra, foram sempre conduzidas em “regime de urgência”, depois que algum crime grave deixou as páginas policiais para virar manchete dos jornais. Não dá para esperar um direito penal sério e eficaz quando o legislador só resolve agir sob os influxos das emoções sociais.

Qualquer pauta para a reforma de um importante código, como o de direito penal, deve ser fruto de uma política criminal que indique um propósito definido aos atores sociais, algo que passa, necessariamente, pelas ideias de mundividência societária das questões penais, justiça distributiva e bem comum.

No projeto de código penal em trâmite legislativo, a tipificação dos crimes parecem privilegiar uma série de omissões que poderiam ser protegidas eficazmente por outras esferas de juridicidade ou encampar o ideário do politicamente correto.

Vejamos. A pena para o autor de um crime de aborto foi diminuída e as hipóteses de licitude desta prática foram consideravelmente ampliadas, sob o pretexto de que esse tema é uma questão de “saúde pública”. A pena para o abandono de animais é maior que aquela fixada no caso de abandono de incapaz. Talvez o legislador ache que uma uma criança valha menos do que um filhote de vira-lata.

Os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade foram esquecidos em muitos pontos. A incidência da lei penal no campo do bullying tomou uma proporção sem precedentes, como se não existisse a opção por ações afirmativas ou mesmo pela educação familiar. No crime de racismo, ainda se insiste na imprescritibilidade, que não alcança as hipóteses mais graves de homicídio simples ou qualificado, como se esfera indenizatória não fosse muito mais pedagógica.

O quadro geral lembra uma espécie de niilismo penal. Mas não é só. O já citado princípio da proporcionalidade, segundo o qual a qualidade e a quantidade da pena são ajustadas segundo a gravidade da infração, é modificado em prol de outros ícones politicamente em voga.

Nos crimes que envolvem violência ou atentado à vida ou à integridade física da vítima, a pena privativa de liberdade, essa velha senhora, é reduzida, porque despojada de suas virtudes expurgatória e intimidativa, a instrumentalizar fins exclusivamente regenerativos, a serem cumpridos em estabelecimentos que não penitenciários.

A proposta de um novo código penal, sempre pautada por uma política criminal mais abrangente e com a qual guarde coerência, não só é uma pauta social útil, porém, necessária. Afinal, se Rousseau tivessse razão quanto à natureza do homem, as leis penais nunca teriam feito falta.

A aceitação racional da realidade das coisas sociais e de seus problemas exige uma meditação prudente, por parte de nosso legislador, que abarque a totalidade do mundo e a existência humana, e não um ímpeto niilista numa área tão sensível para o cidadão, que já sofre pelo clima generalizado de insegurança e de impunidade.

O niilismo tem em Nietzsche uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações existenciais. Um de seus fragmentos esclarece qualquer dúvida: “o niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína. Pondo mãos à obra, manda-as para a ruína (…). A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo”.

Palavras duras. Palavras proféticas. Não dá para a sociedade afundar a cabeça nesse buraco do niilismo penal, porque, quem esconde a cabeça, um dia, acaba por perdê-la. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/09/2017, Página A-2, Opinião.

Avançar aos clássicos

Opinião Pública | 03/06/2015 | | IFE CAMPINAS

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Abro o jornal enquanto estava a aparar as madeixas laterais e deparo-me com uma longa reportagem sobre a Coreia do Norte, uma espécie de museu social das obsolescências políticas do século XX. Enquanto meu barbeiro fazia piada sobre a proibição do uso do biquíni e do nome do mesmo líder supremo da nação, minhas risadas externas alimentavam minhas risadas internas acerca do ridículo fim para o qual os humanismos utópicos conduziram-nos ao longo do século passado, o mais curto deles, na bela sacada de Hobsbawn.

Se existe algo patente no início deste século é a dissecação dos resultados desses humanismos que, há pelo menos duzentos anos, prometiam a definitiva consagração do homem como o centro e o cume do mundo e da vida. A mais grave carência dessas ideologias humanas, demasiadamente humanas, era precisamente o fato de que, no seio de cada uma delas, não se confiava na atuação de mulheres e de homens reais e concretos para se levar adiante a grande mudança revolucionária que deveria trazer consigo a paz e a abundância material para todos os povos.

Todo o processo de mudança fiava-se em forças mecânicas e anônimas, como o progresso científico, a luta de classes e a tal mão invisível do mercado, as quais tinham, em comum, uma escassa consideração por cada uma das pessoas humanas, vistas, em regra, como uma variável matemática da equação social. Recordo-me de Stalin quando disse que a morte de millhões era uma estatística. Hoje, chegado o momento de  despertar do ”sonho humanista”, estamos mais desamparados ainda, porque muitos desses humanismos, fundados numa postura de constante suspeita, corroeram nossa confiança nas possibilidades de aperfeiçoamento interior do ser humano.

Em certo sentido, os humanismos utópicos esfumaçaram-se, pois seus projetos cumpriram-se: não porque realizaram suas propostas de uma Sion terreste, mas por terem esvaziado o ser humano de sua essência, reduzindo-o à matéria e ao entrecruzar-se de forças puramente cegas e fáticas. Curioso notar que o desmascaramento de toda a ”velharia bolorenta” da tradição filosófica seria a condição necessária para o advento da emancipação definitiva da humanidade.

Tanto Schelling, como Kierkegaard ou Dostoievski e mesmo Nietzsche, cada qual a seu modo, descobriram que o resultado concreto dessa transmutação humanista, provocada pela maneira própria de se pensar na modernidade, foi o niilismo. O marxismo duro, o liberalismo economicista e o darwinismo social converteram-nos em homens ocos com a cabeça recheada de palha, no dizer de Eliot.

É hora de encaminhar esse novo milênio, ameaçado pelo esgotamento do modernismo e pela confusão do pós-modernismo, rumo ao resgate daquela essência perdida, dando-nos conta de que o parâmetro decisivo da vida social não oscila mais no eixo estado/mercado. Mas no eixo humano/não humano, isto é, na busca de um aclaramento intelectual daquilo que é bom e melhor para o homem, como contraposto àquilo que o desumaniza, esvazia seu ser e o reifica como mais uma coisa entre tantas outras. O ser humano está nauseantemente cheio de se sentir vazio.

Se Skinner queria situar o ser humano para além da dignidade e da liberdade, podemos dizer, com Spaemann, que, para o verdadeiro humanista, é suficiente não precisar ir além do bem ou do mal. Onde podemos encontrar, nesses tempos nebulosos, a luz que nos devolva a nós mesmos? Onde podemos descobrir um aguilhão espiritual que nos desperte do conformismo existencial e da anorexia reflexiva de uma época em que o consumismo massivo nos cega para a percepção daquilo que constitui o florescimento do homem enquanto tal?

Eis um bom começo de resposta: os clássicos. Mais do que simplesmente a eles retornar, numa espécie de resgate nostálgico de um passado perdido, devemos avançar em sua direção. Tentar, a partir de nossa própria condição, pensar seus ensinamentos com o rigor, a magnamidade e a beleza com que foram refletidos um dia. Sem uma postura neo-romântica, porém com a sede de se voltar a injetar um fluxo de vida que nunca se esgotou totalmente e do qual brotaram os melhores frutos de uma civilização que, hoje, esqueceu-se da seiva que sempre a nutriu.

O avanço aos clássicos em sentido estrito – a cultura greco-latina – será um empenho, para uns, de regeneração; para outros, de descobrimento; e, para todos, de deslumbramento da dimensão mais original e originária para mulheres e homens de todas as épocas. Até mesmo para o ditador do cabelo escovinha que não gosta de biquini e que cultua sua personalidade ao vetar a homonímia em sua nação. Afinal, como afirmava Strauss, o clássico caracteriza-se por sua incrível perenidade, nobre simplicidade e serena grandeza. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 3/6/2015, Opinião, Página A-2.

Educação ou Barbárie?

Sem Categoria | 20/12/2014 | |

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Manifestacao-2013-SP-Marcelo Camargo-ABr-Agência Brasil

Crédito da foto: Marcelo Camargo/ABr – Agência Brasil

 

As manifestações populares de junho e julho do ano passado, sucedidas do vandalismo gratuito e niilista do movimento black blocs, levam-nos a inúmeras conclusões acerca do estado das coisas. Fomos habituados, em nossa formação ocidental, com uns laivos de hybris grega, a procurar a culpa. Então, cada um que faça seu exame de consciência.

Nossas sociedades pluralistas, sendo as melhores que a humanidade já produziu até hoje, têm errado em dois terrenos, aliás conexos, por uma espécie de demissão do Estado, preocupantemente economicista, e pela omissão social, crescentemente alienadora e desencadeadora de uma visão pragmática e utilitarista.

O primeiro equívoco é a incapacidade de integração social. Apesar das tentativas, ainda não conseguimos uma sucedida fórmula de integração de todos os estamentos sociais e muitas minorias têm sido excluídas do acesso aos efeitos positivos da globalização política, econômica e cultural. Tais minorias sofrem de uma espécie de morte civil antes de se alcançar a cidadania: terminam sua existência pobres e alheados de saber e de poder. Tão ou mais importante que a redistribuição da riqueza estão a redistribuição da cultura, da educação e da participação política.

O segundo equívoco reside na falência cultural e educacional. Na esfera pública e mesmo na privada, ainda não adotamos um modelo educativo capaz de criar cidadãos conscientes e politicamente atuantes, além de culturalmente formados. Do contrário, haveria bem menos processos sociais alienantes na realidade humana: desemprego, desencanto, drogas e violência.

Temos a sensação, sobretudo no ensino superior, de que a educação – e, mais agudamente em minha área, a educação jurídica – serve para muito pouco. Então, logo aparece um economista ou um burocrata para dizer que a educação é muito cara: sem dúvida, é cara para quem a alcança e para as portas que ela abre para quem se tornou educado, o que não quer dizer que não se deva gastar bem, ainda mais se for para conseguir mais e melhor.

Mas muitos economistas e quase todos os burocratas esquecem-se de um dado muito “caro”: o fenômeno educativo decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, educadores, mestres e docentes, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial.

Quando essa dimensão é menosprezada, o resultado, somado a outros fatores, é a sensação social de perda, em muitos campos, da noção de proporção ou de limites: mata-se por nada, cobra-se por algo que não se provocou, ignora-se quando deveria acolher-se e consome-se o supérfluo ao invés do necessário ou do útil. Em outras palavras, os bárbaros modernos já estão aí: mas fomos nós que os criamos e os deixamos proliferar. Nós já fomos educados e adquirimos as excelências que nos tornam responsáveis pelos destinos da cidade. Em suma, crescemos. Mas, muitas vezes, tenho a impressão de que, na prática, desaparecemos.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).

Éticas ‘Light’, ‘Diet’ e New Age: o eu, o outro e a solidão

Sem Categoria | 16/12/2014 | |

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Pintor: Hans Thoma (1839–1924). Títlo: Loneliness (“Solidão”). Local:  [show]National Museum in Warsaw (NMW). A imagem está em domínio público.Hans Thoma (1839–1924), “Loneliness” (“Solidão”), National Museum in Warsaw (NMW)

Hoje, nossa cultura tem sido influenciada por dois extremos que, a meu ver, não ajudam a bem compreendê-la: de um lado, o discurso social alarmista que lamenta o fim da moral e, de outro, a manifestação festiva e cínica deste fato.

Não faz muito tempo, a sociedade buscava incessantemente sua libertação de tudo que representasse um passado moralista, porquanto se tratava de puro farisaísmo, efeito colateral da repressão burguesa reinante. De repente, por toda parte, assiste-se a uma louvável onda de imperativos éticos: luta contra a corrupção, proteção ao meio ambiente, ações humanitárias, códigos de linguagem não discriminatórios, chamamentos à responsabilidade e ética corporativa.

Os cantores de música oferecem seus decibéis aos mais necessitados e os artistas partem para ações de generosidade. Tal efervescência ética é tão plural que permitiu a restauração de antigos deveres, porque “já não é obrigatório ser liberal em tudo”. No entanto, causa-me a impressão de que a noção de dever absoluto e toda construção teórica que a cortejava desapareceu completamente. Ninguém quer mudar as coisas substancialmente, mas todos estão dispostos a corrigir a superfície.

Do mesmo modo que a sociedade moderna erradicou os matizes arbitrários do poder político, também desqualificou de vez a imposição de normas austeras e disciplinadoras sobre o comportamento dos indivíduos. A era pós-moralista não é transgressiva nem acanhada, é apenas “correta”. Ou melhor, politicamente “correta”.

A nova moral, uma espécie de ética light, é uma ocupação privada justificada desde o momento em que não existam causas públicas que demandem algum holocausto pessoal. Trata-se de um cosmético que ao menos torna mais gratificante sua apresentação externa, de sorte que todos os novos imperativos categóricos morais devem ter o mesmo padrão estético. A dúvida reside na sustentabilidade dessa versão light da ética social.

Aí está o berço da nova moral doméstica, do hedonismo ecológico, da obsessão pelo visual externo. No lugar de uma teia de relações e dependências inerentes às sociedades tradicionais ou até mesmo revolucionárias, existe, hoje, uma justaposição de indivíduos soberanos ocupados diuturnamente com a administração de sua qualidade de vida e com a otimização da gestão do eu.

Nessa ótica, é importante não depender do outro, a fim de se construir um ethos de autossuficiência e de autotutela, típico de uma época em que o próximo é muito mais um perigo ou uma moléstia do que um elo de atração. E o próximo tornou-se uma ameaça, porque, quando se perde a noção de transcendência vertical, fundamento último dos valores, o esfacelamento da transcendência horizontal é só uma questão de tempo. E de espaço.

Na era moderna, de várias maneiras procedeu-se à redução da ideia de Deus e do alcance desta, até sua eliminação implícita ou explícita, provocado por um secularismo dessacralizante da existência. De várias formas, as inúmeras correntes filosóficas indicaram valores objetivos determinados, na maioria das vezes, desligando-os de um vínculo divino. O Iluminismo, pai de todos os racionalismos, é um exemplo significativo desse eclipse transcendental, em razão do princípio de que os valores podem provir unicamente da razão humana.

De lá para cá, todos os valores proclamados pelo Iluminismo foram minguando-se aos poucos, justamente por estarem desvinculados daquele vínculo capaz de sustentá-los e de lhes conferir consistência ontológica. Hoje, como nenhum deles restou de pé, vivemos sob o império do niilismo, da completa ausência de juízos de valor e a máxima nietzschiana “Deus está morto” é uma expressão teórica extremamente lúcida, pois significa exatamente a separação dos valores de seu fundamento ontológico.

Privada de uma âncora de valores, a barca da humanidade está à deriva no oceano da realidade. Buscar uma tábua de salvação na ética light não resolverá a situação, porque os valores desta ética são como castelos de areia, que não têm solidez, desmoronam-se e, logo em seguida, a primazia do eu é restabelecida. A ética light é uma filosofia romântica e vaga: filosofia que serve de pouco quando nos deparamos com a inexorável realidade do outro.

Por outro lado, a cultura da autodeterminação narcisista, efeito atual de um processo de individualismo que culminou com o niilismo existencialista, não submeteu a esfera da moral às forças de um egoísmo impetuoso, mas a deslocou para uma variante muito sutil, a de uma moral sem deveres: a ética diet. Em voga, estão a caridade sem obrigação, o altruísmo brando e a ética mínima da solidariedade compatíveis, é claro, com a primazia do eu.

Nessa ótica, é importante não estar preso ao outro, sobretudo numa época em que o próximo é fonte de desejos inconfessados, mas também de receio ou de perigo. Por isso, o preservativo tem um valor simbólico muito grande e, porque não dizer, paradoxal. Trata-se de um envoltório que protege o indivíduo que não quer se comprometer com nada, porém deseja relacionar-se com o todo.

É um dos símbolos de uma cultura que, sob o manto de uma simpatia universal, esconde uma sensação de incômodo ante a presença ameaçadora dos outros. Equivale a uma situação de guerra de todos contra todos onde os combatentes foram privados de uma arma mortífera e só podem agir defensivamente. Só que, agora, não dá mais para ouvir Hobbes dizer que auctoritas non veritas facit legem (Leviatã, p.2, c.26), porque, afinal, cada um tornou-se a autoridade de si próprio.

Essa é a imagem do outro que fica no subconsciente das pessoas. Como exemplo, tome-se o bombardeio de propaganda contra a indústria do tabaco e do combate à AIDS, ações que, por si só, são louváveis. Quem é o próximo? O próximo reduz-se a um ser fumante e contagioso. O que é a sociedade? Um mero sistema de compartimentos estanques que permite somente o trato e a comunicação impessoais.

E o outro? Fica relegado ao ostracismo? O outro merece a devida atenção sempre e quando não se pretenda ir mais além de um altruísmo indolor, num altruísmo que não muda as pessoas substancialmente. Aliás, substância lembra robustez e, certamente, hoje, é o que menos se vê na aparência física das pessoas, principalmente no mundo da moda.

Assim, pode-se afirmar que esse afã estético acaba por refletir no agir ético de cada um: surge uma ética diet, uma ética sem robustez. Sem substância.Não é à toa que nunca se exibiram tantas realidades inadmissíveis, numa espécie de convocação à solidariedade, acompanhada de uma linguagem de reprovação.

Entretanto, tal êxtase de alteridade é epidérmico e pontual, pois é somente uma identificação superficial com o outro, devido à repugnância do espetáculo do sofrimento alheio. Um compromisso moderado e distante, sendo suficiente um gesto de indignação para que a consciência não fique dolorida.

Se todo um discurso moral limita-se à ótica narcisista, não há como se justificar o menor sacrifício. O problema do sacrifício (decorrente do dever) é um dos temas centrais da ética. O sacrifício é razoável, ainda que soe como um profundo mistério.

É uma ingenuidade pensar que se pode amar alguém, repartir os recursos escassos, tolerar as ideias contrárias ou proteger o meio ambiente sem carregar sobre si toda uma série de inconvenientes presentes e futuros, entenda-se, sem algum gênero de sacrifício.

Os homens ouvem as vozes dos seres que o rodeiam e é próprio do ser humano sentir-se obrigado por essas vozes. Elas são ouvidas, porque o homem é dotado de inteligência, a qual rompe o cerco da psicologia instintiva. Surge o dever de respeito por tais vozes e descobre-se que elas não existem apenas em função das necessidades do outro, mas subsistem por si mesmas e também têm necessidades profundas e não meramente superficiais. Eis o sentido do dever.

A ética diet exige muito do homem e, ao mesmo tempo, muito pouco: muito pouco, porque não o obriga a encarar as contingências da vida, nem o exorta ao dever e à responsabilidade; muito, pois o abandona em seus medos e o deixa sozinho ante a necessidade de orientação, desconhecendo a debilidade de sua natureza.

Não podemos esquecer o fato de que o ser humano tem o particular atributo de ser incapaz de viver sem deveres, os quais são, por sua vez, necessárias limitações de sua liberdade e protetores de sua fragilidade. Por isso, a apoteose do eu não causa uma eliminação da moral, mas apenas sua modificação.

Como a energia, os deveres não se eliminam, transformam-se. Motivo pelo qual o assento dos deveres nunca está vacante. Mas nem sempre está ocupado pelos mais razoáveis, principalmente quando o homem converte-se num ser egocêntrico: eis o principal efeito da ética diet.

Contemporaneamente, um dos males mais gritantes está na diminuição da estatura ontológica do homem a uma única dimensão, a dimensão física. Trata-se do resultado tardio do materialismo ontológico que, a partir do século XVII, formulou que tudo aquilo que existe é realidade física ou epifenômeno desta e, logo, o ser em todas suas manifestações possíveis, é reduzido ao plano físico.

 

No âmbito antropológico, negada a existência de qualquer outra dimensão que não seja a física, todas as características psicológicas do homem (no sentido etimológico do termo), segundo essa visão abrangente, seriam apenas epifenômenos do físico. Ou seja, um fenômeno secundário, que acompanha o principal e é por ele causado: em suma, sem existência própria.

A imagem do homem seria, então, aquela que nos é dada pelas ciências humanas, que têm, como modelo, as ciências da natureza. O homem é, assim, reduzido a uma mera peça da realidade material, subsistente por si mesma e sem referência ao transcendente, um elo da cadeia que se articula na dinâmica social, sobretudo da produção e do consumo, sujeito e objeto ao mesmo tempo de conflitos de natureza vária.

Um bom exemplo disto está na questão do belo, infectado pelo relativismo decorrente deste vazio transcendente, onde se supunha já haver alcançado um nível abissal: compara-se o concerto nº5 para piano de Beethoven com o batuque do Timbalada, uma poesia de Drummond com uma letra do MV Bill, os afrescos de Michelangelo com grafites de viaduto e “O Pensador” de Rodin com o urinol de Duchamp. Como dizia Leo Strauss, se todos os valores são relativos, o canibalismo é só uma questão de gosto…

Nessa imagem, a antiga máxima “o homem é um fim em si mesmo” perde todo significado e é substituída por outra “o homem é um meio”, isto é, um instrumento, um objeto, qualificativo atribuído aos escravos nas sociedades da História Antiga. E, assim, nessa ótica ética new age, todos os homens seriam, principalmente, instrumentos vivos de produção e de consumo, inseridos nas engrenagens de um sistema social cuja lógica lhes escapa. Não é à toa que, acerca da atual crise da razão, sentencia-se a morte do homem, o falecimento de sua dimensão metafísica.

No fundo, o homem perdeu a fé em seu valor, conforme dizia Nietzsche em seus Fragmentos Póstumos. Engendrado numa teia de relações sociais em que atua mais como objeto do que como sujeito, sem qualquer abertura ao transcendente, o homem só tem um refúgio a buscar, a saber, o próprio homem. E o individualismo que lhe resta nesta situação acaba por influenciar seu agir frente à ordem moral e reforçar o império das éticas light e diet.

As notícias da imprensa estão repletas de exemplos que fizeram do amor pelos seus apenas um meio de satisfazer seus próprios desejos. São políticos, empresários, cantores, artistas, atores que sacrificaram a plenitude de sua vida em nome da respectiva carreira, submetendo as necessidades alheias a seus próprios interesses e abraçando a ambição privada.

Depois, quando vem a fatura – o insucesso, o ostracismo, a doença, a velhice – descobrem-se como estranhos num mundo de estranhos mais excêntricos ainda, mas, ainda, desejosos de uma “nova” vida, algo que provavelmente não sucederá, porque a existência tão esperada se revelará uma trama de fracassos e desilusões latentes na memória.

Os homens do século XX trocaram o amor de doação, tão bem ilustrado na literatura, na pintura, na escultura, enfim, na história da arte, depositária das experiências mais ricas da humanidade, por um amor de aquisição, verdadeira máscara, bonita por fora, como as de Veneza, mas que, na face interna, a face oculta, representa o individualismo levado ao extremo.

Tais máscaras, vistas nas tragédias diárias das revistas especializadas, digamos, em retratar as amenidades alheias em pormenores (na falta de uma expressão melhor), escondem o progressivo esquecimento do sentido de doação, de serviço gratuito e de oferta sem pedir nada em troca. As miragens dos interesses individuais provocam um deslumbramento interior que, aos poucos, vai minando o rol cada vez mais diminuto de valores que a pessoa carrega consigo.

Um autor estrangeiro diagnosticou bem esse problema ao ter dito que “(…) as paixões que consomem se consomem velozmente; o amor se enfraquece multiplicando-se, e com o tempo se torna frágil. Os encontros que fazem nascer um novo amor matam o antigo amor. Os casais se desfazem, outros casais se formam e depois novamente se afastam. No amor entre o mal da instabilidade, da pressa, da superficialidade, que reintroduz o mal da civilização esmagado pelo amor”.

O individualismo exacerbado conduz a sociedade à atomização total dos indivíduos e, consequentemente, à inevitável solidão, seu efeito mais nefasto, e a resultante final das três éticas aqui abordadas: a light, a diet e a new age.

A solidão sempre nos conduz à uma reflexão pretérita, mas de nada adianta olhar para trás, pois o tempo cobriu nosso passado existencial com invisíveis mortalhas. Esse mesmo passado é o porto de onde a nossa embarcação já se afastou há muito. Vemo-lo ao longe, por entre as brumas. Mas, certamente, não há mais chance de regresso. Só de inconfessáveis lamentos.

por André Fernandes (IFE Campinas)