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Niilismo Penal

Opinião Pública | 13/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nessa fase da história brasileira, em que a exceção virou regra e, a regra, exceção, a pauta congressista, entre o impedimento aqui e a eleição indireta ali, continua a todo vapor. Pelo menos nas comissões temáticas. Nessa bacia de salvação política das almas, está o projeto de reforma do nosso idoso código penal, repleto de bengalas e andadores decorrentes das inúmeras alterações pontuais legislativas que foram sendo feitas nos últimos trinta anos.

Tais alterações, em regra, foram sempre conduzidas em “regime de urgência”, depois que algum crime grave deixou as páginas policiais para virar manchete dos jornais. Não dá para esperar um direito penal sério e eficaz quando o legislador só resolve agir sob os influxos das emoções sociais.

Qualquer pauta para a reforma de um importante código, como o de direito penal, deve ser fruto de uma política criminal que indique um propósito definido aos atores sociais, algo que passa, necessariamente, pelas ideias de mundividência societária das questões penais, justiça distributiva e bem comum.

No projeto de código penal em trâmite legislativo, a tipificação dos crimes parecem privilegiar uma série de omissões que poderiam ser protegidas eficazmente por outras esferas de juridicidade ou encampar o ideário do politicamente correto.

Vejamos. A pena para o autor de um crime de aborto foi diminuída e as hipóteses de licitude desta prática foram consideravelmente ampliadas, sob o pretexto de que esse tema é uma questão de “saúde pública”. A pena para o abandono de animais é maior que aquela fixada no caso de abandono de incapaz. Talvez o legislador ache que uma uma criança valha menos do que um filhote de vira-lata.

Os princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade foram esquecidos em muitos pontos. A incidência da lei penal no campo do bullying tomou uma proporção sem precedentes, como se não existisse a opção por ações afirmativas ou mesmo pela educação familiar. No crime de racismo, ainda se insiste na imprescritibilidade, que não alcança as hipóteses mais graves de homicídio simples ou qualificado, como se esfera indenizatória não fosse muito mais pedagógica.

O quadro geral lembra uma espécie de niilismo penal. Mas não é só. O já citado princípio da proporcionalidade, segundo o qual a qualidade e a quantidade da pena são ajustadas segundo a gravidade da infração, é modificado em prol de outros ícones politicamente em voga.

Nos crimes que envolvem violência ou atentado à vida ou à integridade física da vítima, a pena privativa de liberdade, essa velha senhora, é reduzida, porque despojada de suas virtudes expurgatória e intimidativa, a instrumentalizar fins exclusivamente regenerativos, a serem cumpridos em estabelecimentos que não penitenciários.

A proposta de um novo código penal, sempre pautada por uma política criminal mais abrangente e com a qual guarde coerência, não só é uma pauta social útil, porém, necessária. Afinal, se Rousseau tivessse razão quanto à natureza do homem, as leis penais nunca teriam feito falta.

A aceitação racional da realidade das coisas sociais e de seus problemas exige uma meditação prudente, por parte de nosso legislador, que abarque a totalidade do mundo e a existência humana, e não um ímpeto niilista numa área tão sensível para o cidadão, que já sofre pelo clima generalizado de insegurança e de impunidade.

O niilismo tem em Nietzsche uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações existenciais. Um de seus fragmentos esclarece qualquer dúvida: “o niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína. Pondo mãos à obra, manda-as para a ruína (…). A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo”.

Palavras duras. Palavras proféticas. Não dá para a sociedade afundar a cabeça nesse buraco do niilismo penal, porque, quem esconde a cabeça, um dia, acaba por perdê-la. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/09/2017, Página A-2, Opinião.

Otimistas Sem Escrúpulos

Opinião Pública | 21/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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Há algum tempo, tive a rara oportunidade de, na carreira, enfrentar uma turma bem engajada na defesa da posse de uma terra que não lhe pertencia. Foi criado até um concerto conciliatório institucional e judicializado, formado por trinta e cinco membros pertencentes dos poderes públicos das três esferas governamentais, além de advogados, defensores, promotores e representantes dos movimentos sociais.

Um verdadeiro soviete bolchevique pós-moderno, cuja palavra de ordem, a indicar bem o tom de seu propósito, era o de buscar a “justiça social” no caso concreto, nem que, para isso, a conciliação fosse consumada a foice e martelo: uma conciliação coativa ou uma “concilicoação”.

Nesse concerto “concilicoativo”, chamado de “Grupo de Apoio às Ordens de Reintegração de Posse”, constatei que, se o movimento de Maio de 68 foi um fracasso em termos políticos, sua mensagem emancipatória cravou a fundo o corpo social, porque, de lá para cá, a cultura e os valores foram alarmantemente politizados em prol de uma espécie de utopia reformista.

O problema das utopias reformistas, desde os jacobinos, é o de se pretender reconfigurar a convivência política a partir do zero, um verdadeiro mito ilustrado, sem qualquer referência a um rol de bases morais pré-políticas das instituições de uma sociedade, sem o qual uma comunidade não se funda e, pior, não se perpetua.

Para os defensores das utopias reformistas, esses bravos “otimistas sem escrúpulos”, as instituições são completamente falhas em sabedoria e justiça e essa falha não advém da natureza humana de seus membros, mas é intrínseca ao sistema de poder estabelecido. Por isso, eles se opõem a esse sistema e, como paladinos da “justiça social”, emanciparão a antiga queixa dos oprimidos por aquelas instituições.

Ao unir o clamor emancipatório aos pressupostos da dita “justiça social”, nosso jacobino contemporâneo passa a defender os interesses da humanidade, mesmo quando se inclina de forma contundente aos seus propósitos reformistas, já que esses objetivos são tão superiores aos interesses estabelecidos, a redimir toda ação feita em prol daqueles propósitos. É por isso que a violência escarlate, que costuma, na prática, seguir esses discursos róseos, torna-se justificada sem nenhum pudor, quando não é objeto de regozijo coletivo e “virtuoso”.

Nenhuma escatologia histórica liberta. Pelo contrário, costuma atrair os bons espíritos para o erro e, logo, acaba por aliená-los da realidade. O ideario do jacobino contemporâneo, ao projetar um messianismo político redentor das iniquidades sociais, a ser implementado a partir de um novo marco primordial, resulta frívolo e falacioso, porquanto reflete a realidade equivocadamente, ao ignorar os efeitos despersonalizadores que tais utopias provocam nos indivíduos, sobretudo em termos de responsabilidade moral.

Minha sensação, no seio daquele grupo formado, em boa parte, por “otimistas sem escrúpulos”, era a de que se pretendia melhorar a sorte habitacional dos invasores por intermédio de políticas públicas abstratas sem apelar à responsabilidade destes. Toda proposta conciliatória levantada, se fantasiosa, era respondida, por mim, socraticamente, com uma indagação cética. Até o momento em que, esgotadas todas as ideias quiméricas, impus um fim realista àquela pantomima imaginária: com prudência judicial, determinei a expedição do mandado de reintegração de posse, cujo efeito veio a ser sustado, por meio de um obtuso recurso, pela pena de um ministro. Otimista e sem escrúpulos.

Jacobinismos contemporâneos à parte, a grande lição desse episódio profissional foi a de que nossa tarefa consiste em lutar, no presente, por uma constituição relativamente melhor da existência comunitária e fazê-lo de maneira a preservar o bem já obtido, superando os males pendentes e resistindo à irrupção das forças destrutivas. No fundo, ser um otimista. Mas com escrúpulos. Em respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicano no jornal Correio Popular, edição 21/09/2016, Página A-2, Opinião.