Dentre os males do homem atual, sobressai a sistemática elevação da violência como método particular e privilegiado para a resolução de conflitos. Basta abrir o jornal ou ouvir o noticiário. Na raiz de um verdadeiro flagelo que o homem conhece desde que é homem e que, hoje, tomou uma proporção tal que ameaça a sobrevivência social, localizamos, dentre várias causas, a perda do sentido do valor, tanto do homem quanto das coisas que nos cercam.
Parece que a humanidade dividiu-se entre a minoria que acredita no mito prometeico da onipotência humana e a maioria que conhece a falta de qualquer poder como a principal experiência de vida, relegada à massa de manobra daquela minoria.
Some-se a isso aquele vazio de valor do homem e das coisas e, assim, entramos num momento de ruptura da estrutura essencial de nossa civilização. Seus elementos constitutivos transformaram-se num amálgama existencial, no qual não se consegue mais distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso, o certo do errado e assim por diante. Efeito prático: o poder constituído descamba para o arbítrio e o arbítrio para o totalitarismo.
Boa parte dessa confusão de línguas é fruto do niilismo, que tem em Nietzsche uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações existenciais. Um de seus fragmentos esclarece qualquer dúvida: “o niilismo não é apenas uma contemplação da inutilidade de tudo, nem apenas a convicção de que todas as coisas merecem cair em ruína. Pondo mãos à obra, manda-as para a ruína (…). A aniquilação com a mão acompanha a aniquilação com o juízo”.
Palavras duras. Palavras proféticas. Como já disse para um fiel leitor, é impossível não ter uma certa afeição do Nietzsche que questiona o Estado tentacular, denuncia os graves problemas e as limitações teóricas das ideologias, ridiculariza a sede de dinheiro e o conforto material desmedido.
A confusão nos conceitos que construíram nossa existência ao longo de séculos – bem, mal, verdade, mentira, certo, errado – gera justamente a perda do valor específico de cada um deles, escapando de nossa capacidade de compreensão e tornando-se inútil para qualquer fim.
Aqui está um ponto-chave. Saber compreender a realidade da existência atual. Não podemos nos satisfazer com uma espécie de determinismo existencial, que assume a aparência espúria de “necessidade histórica” ou de qualquer outro nome pomposo. Tampouco por explicações que retiram a noção de livre vontade do indivíduo no agir social, reduzindo-a a um mero efeito de uma ação bioquímica de uns neurotransmissores cerebrais.
Compreender não significa diminuir o choque da experiência, mas, segundo Arendt, saber examinar e suportar conscientemente o fardo que nosso século colocou sobre nossos ombros e interpretar a realidade sem preconceitos, ao custo que for.
Dessa maneira, no âmbito social, o crescente número de leis em defesa da mulher é causado, em última análise, pela ausência do exercício de virtudes sociais no seio da família, como a solidariedade e a generosidade, e não por causa da estrutura do patriarcalismo familiar, que, apenas, pode potencializar aquela ausência. A falta de compromisso nas relações sociais não é decorrente de um “imperativo do homem pós-humano que vive no seio da modernidade líquida”, mas porque se perdeu a ideia do outro como uma dimensão irradiadora de valores.
Em todas as épocas, a humanidade sempre se viu diante de desafios. Hoje, a história oferece-nos um outro, mais complexo: o desafio de compreender o real poderio do homem atual e a nossa incapacidade de viver um sentido desse mundo criado por esse poderio. Nosso futuro depende do caminho pelo qual esse desafio será levado, mas também do resgate do valor transcendente do homem e das coisas. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras
Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 11/04/2018, Página A-2, Opinião.