Arquivos da categoria: Direito

Pais ausentes, famílias desestabilizadas

Direito | 15/11/2018 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

“Órfãos”, de Thomas Kennington.

 

RESUMO

Uma das maiores descobertas antropológicas do século XX foi a de que tanto o homem quanto a mulher devem contribuir conjuntamente na construção familiar e cultural de uma sociedade. Ambos estão chamados a um sadio protagonismo nessas tarefas.

Contudo, na dimensão familiar, muitas vezes os filhos veem-se privados da presença de um modelo paterno que lhes proporcione um marco para a determinação de sua identidade existencial e uma integração equilibrada das estruturas emocionais e sociais. A paternidade é a figura familiar que ajuda o filho na descoberta de sua masculinidade e a filha na afirmação de sua feminilidade. A ausência do pai tem provocado graves dificuldades e conflitos que desembocam na perda de uma importante referência fundacional e, ao cabo, na própria desestabilização familiar.

ABSTRACT

One of the biggest anthropological discoveries of the twentieth century was that both man and woman must contribute jointly in the family and cultural construction of a society. Both are called to a healthy role in these tasks.

However, in the family range, the children are frequently deprived of the presence of a paternal model that provides them a framework for determining its existential identity as well as the balanced integration of emotional and social structures. Fatherhood is the family figure that helps the son discover his manhood and the daughter affirm her femininity. The absence of a father is causing serious issues and conflicts that lead to the loss of an important foundational reference and to family destabilization.

Palavras-Chave: Paternidade, Maternidade, Família, Desenvolvimento, Esfera Pública e Privada.

Keywords: Paternity, Maternity, Family, Development, Public and Private Sphere.

 

PAIS AUSENTES, FAMÍLIAS DESESTABILIZADAS
ABSENT FATHERS, DESTABILIZED FAMILIES

André Gonçalves Fernandes

 

INTRODUÇÃO

A situação histórica em que a família vive apresenta-se como um quadro de Goya: um conjunto de luzes e sombras, com a diferença de que projeta, para o estudioso, uma imagem confusa, como as tramas do avesso de uma colcha de patchwork. No que toca à tarefa de educação da prole, a família, sociologicamente, nos últimos cinquenta anos, passou a confiar o conjunto dessa missão ao Estado, quase como se fosse uma espécie de babá, sempre disposta a lhe delegar muitas das facetas desse conjunto. Assim, com a assunção do “Estado-babá”, a família deixou de ser o locus socialmente privilegiado para o exercício da competência educativa.

Contemporaneamente, esta competência corresponde a sete relações indispensáveis (FAMÍLIA, 2007:243), as quais tomam parte tanto do desenvolvimento biopsicológico da criança, quanto de sua educação. São elas:

Relação de identidade: permite à criança ser nomeada e inserida numa dada descendência genealógica e num certo vínculo geracional, essencial numa sociedade cada vez mais atomizada;

Relação de origem: concede à criança um termo inicial existencial, numa sociedade cada vez mais massificada, despersonalizada e individualista;

Relação de escuta: constitutiva do papel que a família concede à criança e, por isso, permite seu posterior reconhecimento nas engrenagens sociais por ocasião de sua maturidade;

Relação de espaço e tempo: ambiente simbólico e de estímulo para a vivência dos acontecimentos específicos da existência da criança e de seu ritmo vital, numa sociedade em que, crescentemente, o espaço é funcional e o tempo fragmentário;

Relação de fraternidade: permite a abertura do círculo familiar à compaixão, ao espírito de serviço e à face bem concreta do outro, numa sociedade do império da competitividade e da concorrência;

Relação de fecundidade: exprime o dom de si e estabelece o significado, o sentido e o alcance das responsabilidades pessoais e sociais, diante do hedonismo utilitarista que dá a notação no bojo das relações sociais;

Relação de separação: em razão da relação mãe-pai, permite à criança não se enclausurar numa relação exclusivamente dual, sobretudo com a mãe, atuando o pai como agente limitador da potência do elemento materno, a fim de que seja indicado simbolicamente para a criança o sentido da fronteira ética.

As relações especificadas dão bem o tom da especificidade única do locus familiar. Trata-se de uma órbita existencial onde se tece, por intermédio de cada pessoa, um conjunto de relações interpessoais – relações dos cônjuges entre si, destes com os filhos e destes entre si – propícias à comunicação do amor num mundo de ódio, de violência e de colonização do mundo da vida pelo cálculo sistêmico do custo/benefício típico das estruturas do poder e do dinheiro.

Em virtude desse telos peculiar do ente familiar, a sociedade e o Estado têm o dever de oferecer às famílias um adequado ambiente material, econômico, político, jurídico e social, mas também afetivo e educativo. Não é bem a realidade a que assistimos. Pelo contrário, vemos famílias fragmentadas. Em todos os sentidos e por um universo de razões. Sem dúvida, dentre todos esses fatores, um deles goza de nossa preocupação em nossa experiência nas lides familiares do mundo forense: a ausência do pai e os efeitos nefastos de perda de referência que isso provoca na criança.

A função paternal foi desvalorizada. Causa impressão de que a sociedade não está mais disposta a permitir que essa dimensão simbólica funcione. O ícone sociocultural que o homem, até algumas décadas atrás, representava, por meio de suas atribuições, valores e atitudes e que nossa sociedade tinha como atributo específico seu, foi bastante alterado, em razão da mudança de imagem que a masculinidade vem sofrendo.

Tal mudança poderia ser tida como irrelevante, se vista sob a ótica historicista. Mas não. Popper já mostrou a “miséria do historicismo” e, nessa onda histórica, algumas contribuições positivas para a masculinidade – por exemplo, a divisão das tarefas domésticas – vêm acompanhadas de outras que não beneficiam em absoluto aquilo que é próprio da masculinidade, como a desconstrução do homem feita pelo feminismo de segunda geração.

Diante disso, o homem não só está mudando o núcleo de um comportamento comum a todos os machos da espécie humana, mas também o da família a que pertence e, mais precisamente, por meio do vínculo relacional paterno, os padrões de conduta dos filhos varões[1]. E, sob certo ponto de vista, acreditamos que esse fenômeno traz consigo uma forma bem concreta de pai ausente: pais fisicamente presentes, mas relacionalmente faltantes, em virtude da desvalorização da função paternal.

Convém lembrar que, quando nos referimos à paternidade, resulta inevitável referir-se à maternidade, já que ambas as realidades estão tão ligadas entre si, atuando reciprocamente de maneira a formar um único tecido no núcleo vital das relações familiares. Queremos dizer que toda mudança nestes papéis projeta-se sobre o outro, a ponto de alterá-lo. São dois lados de uma mesma moeda.

A masculinidade e, mais concretamente, a paternidade converteram-se hoje num problema e num desafio. Num problema, porque a intenção de unificação das características do homem e da mulher criou uma certa confusão no que diz respeito à identidade sexual. Num desafio, porque há muito por fazer diante da reinante fragilidade da masculinidade frente ao atual estágio da feminilidade.

A equiparação sexual é muito bem-vinda em diversos campos de atuação do homem e da mulher, mormente na órbita dos direitos civis e trabalhistas. Todavia, na tarefa educativa, esse fenômeno, levado às últimas consequências, por intermédio da absolutização desta equiparação, acaba por provocar uma debilitação dos espíritos envolvidos, inclusive dos filhos, abrindo-se espaço para a confusão e a ignorância. Assistir a uma audiência de instrução e julgamento em matéria de guarda familiar é um verdadeiro doutorado no assunto.

Intuímos que a nova imagem do homem que se busca, no mais das vezes, estimula as velhas e recíprocas hostilidades que existiam entre os sexos e, ao invés de abrir novas portas, parecem cerrar ainda mais aquelas que já estavam trancadas. Some-se, ainda, o fato de as linhas divisórias entre o masculino e o feminino estarem demasiado desalinhadas na realidade, como efeito nefasto da ideologia de gênero, e constituírem um novo obstáculo na busca de uma via necessária de colaboração e complementariedade entres os dois sexos.

Se alguns papéis masculinos e femininos estavam mal assentados no seio da realidade familiar – por exemplo, o confinamento da mulher no lar e a distância entre pai e filhos que inviabilizava a confiança recíproca – o que justifica uma mudança, por outro, isso não importa concluir ser necessária uma completa reconstrução de cada papel ex nihilo. Tanto um como outro têm sua atuação concreta em dimensões e atributos irrenunciáveis, porquanto constituem os fundamentos inalienáveis da identidade pessoal.

A incorporação definitiva da mulher no mercado de trabalho provocou boa parte das mudanças familiares que hoje vemos, influenciando o varão na revisão do papel da masculinidade. Entretanto, como a revisão transformou-se numa desconstrução, assistimos ao fim da história do patriarcado que, em muitos aspectos, já vai tarde: o autoritarismo tradicional, que se modificara para coragem, hoje, transformou-se em covardia; o distanciamento, que fora substituído pela amabilidade, hoje, virou permissividade. E assim por diante.

Crise de autoridade, insatisfação com a nova masculinidade do varão nas relações familiares, multiplicação dos conflitos conjugais, ausência de vitalidade paterna refletida de forma patente na abstenção das responsabilidades familiares, ansiedade e sofrimento ante a perda da identidade masculina e rebaixamento da maturidade paterna ante a mimetização dos hábitos dos filhos. São os campos de batalha que estão nas entrelinhas dos processos de família que julgo diariamente. E cada um trava as batalhas que merece. Nessas linhas, faremos uma pausa nessa jornada para refletirmos sobre um fenômeno bem presente: o fenômeno do pai ausente.

 

DESENVOLVIMENTO

Historicamente, os papéis sociais foram divididos entre femininos e masculinos. O homem ocupou-se da esfera pública, ao que passo que o peso do espaço privado, do qual se proibia de sair, recaiu exclusivamente sobre a mulher. Os resultados dessa distribuição são patentes (ELSHTAIN, 1993:120): ambas esferas – pública e privada – resultaram prejudicadas, por estarem incompletas.

A esfera pública, aqui entendida como o mundo da política, da economia e do trabalho, é colonizada[2] pelos atributos da competitividade, do cálculo eficienticista (meios ajustados a fins autojustificados), do poder e do dinheiro (mecanismos de integração sistêmica), e da razão instrumental. É um mundo inóspito, porque faltam os influxos da feminilidade, principalmente aquele voltado para o zelo prioritário das pessoas.

Parece que as estruturas laborativas e sociais aguardam o aporte feminino para que cada pessoa possa, em cada circunstância profissional, o melhor de si. Em outras palavras, a esfera pública reclama a presença da mulher-mãe, a fim de que esta esfera esteja em função da pessoa e da família e não ao contrário.

Sob outro ângulo, na esfera privada do mundo familiar, os filhos veem-se privados da presença efetiva de um modelo paterno que os integre equilibradamente em suas estruturas emocionais e sociais. Essa abstenção tem provocado graves dificuldades e conflitos, diagnosticados pela psicologia[3] e pela sociologia[4] atual.

Ambos desequilíbrios, presentes ao longo de toda a história da humanidade, agravaram-se nas últimas décadas, como efeito da influência dos postulados filosóficos da modernidade. De fato, uma sociedade, historicamente, pode privilegiar o código simbólico feminino ou o masculino, intentar uma sinergia entre ambos, mas não pode anular as diferenças intrínsecas: desde uma perspectiva normativa, o que mais conta é o processo interpretativo peculiar que cada cultura histórica confere aos códigos simbólicos. Tanto o masculino como o feminino.

Nesse diapasão, a modernidade privilegiou uma leitura induvidosamente masculina de diferença sexual e de família como vínculo sexuado e relacional. Mirou com lentes masculinas: privilegiou a racionalidade, a aquisição, a competição, a força e o domínio sobre a natureza. Com a crise da modernidade, a mulher converte-se em sujeito e objeto de um novo interesse filosófico e político, a privilegiar seu código, mas não necessariamente a dimensão materna desse código, o que, justamente, é o fator distintivo em relação ao homem e seu código masculino.

O discurso de construção da mulher é um dos fatores mais importantes na desconstrução do sujeito racional moderno. Exalta-se o feminino como categoria abstrata ou como sujeito histórico concreto. Todo pensamento ocidental está empenhado em revisar a modernidade como leitura sexuada masculina do mundo, inaugurado com Kant. O projeto desconstrucionista é elaborado a partir da evocação do self feminino, mas um self que não passa pela noção de mulher e é reputada como totalizante e emancipatória. Esse self passa pela ideia de uma mulher que vem antes do homem, não é dele derivada e é ontologicamente independente.

Mas, sociologicamente, os sexos sempre pertenceram ao gênero comum, o humano, embora masculino e feminino fossem duas dimensões autônomas e coexistentes nas pessoas de ambos os sexos. Os estudos empíricos, sociológicos e psicológicos sobre a percepção do self atestam que indivíduos concretos singulares, apesar de estarem localizados num dado sexo, são capazes de desenvolver atributos do sexo oposto. Em outros termos, o humano distingue-se em masculino e feminino, sem que possa ser repartido entre ambos. É de um e de outro, ainda que de formas existencialmente diferentes. Os papéis sociais, tomados a partir dos respectivos códigos, são complementares e não opostos.

Some-se, a esse quadro de um mundo dividido entre o materno afetivo doméstico e o paterno racional laboral, os influxos da teoria de gênero[5], a qual radicaliza a reflexão ao questionar as realidades psíquicas e simbólicas de cada sexo, derivadas da constituição da corporalidade, e denuncia a manipulação social do poder masculino. A influência desse panorama pouco aberto à paternidade na constituição familiar e no agir concreto dos pais é enorme, a julgar pelas modalidades parentais já observadas em nossa sociedade.

Não seria, assim, necessário, construir (CASTILLA DE CORTÁZAR, 2005:15) uma família com um pai e uma sociedade com uma mãe, sendo ambos pais e trabalhadores? Acreditamos que a paternidade e a maternidade podem dar notáveis aportações ao bem comum, cada qual a partir de recursos distintos. Servindo-se da analogia das mãos, podemos afirmar que (MARÍAS, 1980:54) ser varão ou ser mulher consiste numa referência recíproca intrínseca: ser varão é estar referido à mulher e ser mulher significa estar referida ao varão, como na relação entre as mãos esquerda e direita.

Se só existisse a mão esquerda, ela não seria chamada de esquerdas. Ela é assim denominada em referência à mão direita. As diferenças, portanto, são relacionais. Homens são de Marte e mulheres são de Vênus, mas, como os planetas colaboram, nas trajetórias celestes entre si, para um equilíbrio universal no sistema solar, mulheres e homens atuam recíproca e complementarmente nos sistemas familiar e social. E, porque suas peculiaridades são relacionais, complementares e recíprocas, cada um se apoia no outro, cada um encontra sua possibilidade no outro.

A maternidade tem, entre outras uma nítida função: prover a sociedade de novos descendentes. Esse dado existencial e sociológico, que se dá no seio de uma família, com a cooperação de um pai, recai, em grande parte, sobre a mulher. Frente a ela, o varão está em dívida, porque ela aporta mais num dado que consiste num bem para todos: muitas mães suportam quase todo o peso e dedicação a seus filhos pequenos, depois de já terem resistido a toda uma gestação, nem sempre isenta de complicações médicas.

Se o homem-trabalhador fosse realmente um pai, a mãe-trabalhadora poderia ser felizmente uma realidade. Mas isso requer que o homem não se esqueça de ser pai. Quando está em casa, mas também enquanto trabalha. Eis um atualíssimo desafio para nossa sociedade: a maternidade agredida busca homens que tenham superado sua paternidade ausente. Paternidade que compartilha as cargas do lar e a atenção dos filhos. Paternidade que apoia os planos profissionais da mãe de seus filhos. Paternidade que crie condições para que outras mulheres possam exercer sua maternidade.

Trazer filhos ao mundo é uma tarefa de primeiríssima importância social que plenifica a mulher em muitos valores, os quais ela pode transmitir, por meio de seu trabalho profissional, para toda a sociedade. A maternidade, exemplo universal e perene de amor incondicionado, pode e deve ser valorizada por homens que descubram modos acertados de viver a paternidade, presentificando-a. Dessa forma, conseguirão superar a síndrome de abstenção que a caracteriza. Onde e como podemos visualizar essa ausência da figura paterna?

Com anos e anos de trabalho em matéria de direito de família, podemos notar uma série de transformações na noção de paternidade, nuances naturais antes pouco valorizadas e agora incorporadas pelas leis e pela mudança do sentido e do alcance da noção de família.

No terreno da educação familiar, a ausência do pai sempre foi uma constante. Hoje, a julgar pela tônica dos processos de família, em muitos casos, a falta do pai virou desterro: ele foi expulso do âmbito familiar e esta carência, que não se resume à ausência meramente física, adentra em outros setores que resultam irrenunciáveis para a formação dos filhos. Muitos dos relatórios psicossociais lidos nos processos são sempre uma desventura e a decisão do juiz acaba por ser uma espécie de assinalação de uma certa prudência judicial familiar de redução de danos ao caso concreto.

Hoje, na leitura judicial dos casos de família, a falta do pai é, além de física, sobretudo emotiva, cognitiva e espiritual. Tais privações influem em todos os filhos. No entanto, as consequências repercutem mais nos filhos varões. O eclipse da paternidade gera uma relação mais empobrecida entre pai e filho, pois a vida de ambos não mais se compartilha e, logo, não há convivência. A paternidade tem uma dívida de responsabilidade ad intra familiar.

A mãe, até alguns anos atrás, era considerada a principal educadora da prole, por uma série de razões sociológicas, culturais e sociais, mas que, no fundo, levavam em conta certas peculiaridades e características psicológicas diferenciadas em razão de sua identidade sexual. Como efeito, entendia-se que a educação da prole era uma tarefa tipicamente feminina, por ter mais conta o concreto e os detalhes e em virtude de seu instinto maternal, realismo e especial sensibilidade à unidade de vida que se manifesta nos filhos.

Por outro lado, a revelia paterna justificava-se pela incapacidade do pai em ter aquelas qualidades maternas, agravado pela exacerbada competitividade profissional e pela natural tendência à abstração. Sua imagem era pouco útil para a educação do filho varão. Para essa lógica monolítica, o filho não precisava integrar ambos os mundos – paterno e materno – para, depois, na maturidade, assumir e responder adequadamente às complexas contradições que estamos expostos socialmente. Pais e mães, nessa mesma lógica, não tinham parecidas habilidades educativas, matizadas por um rico contraste e, ao cabo, acabavam por justificar a exclusão de um ou de outro.

Nessa visão, o filho varão não precisava se relacionar com ambos, de maneira isolada e conjunta, pois a mãe substituía o pai completamente, donde sequer se cogitava a necessidade de um equilíbrio quantitativo e qualitativo nas maneiras pelas quais pai e mãe deveriam relacionar-se com os filhos em seus respectivos papéis pedagógicos.

Nos dias atuais, seguramente, a maioria dos estudiosos de família está de acordo com a gravidade deste problema, que afeta toda a sociedade e, mais especialmente, aqueles que se ocupam do ente familiar, como pais, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e educadores, na tarefa de zelar pela formação das futuras gerações.

As soluções divergem num sentido ou noutro para a resolução de boa parte dos problemas que os filhos enfrentam em casa, na escola ou na sociedade e que são, em grande parte, reflexo da síndrome do pai ausente, definida a partir de duas perspectivas bem diversas: do filho varão, que sofre o efeito dessa falta, e pela do pai que a causa, ainda que também sofra as consequências dessa privação.

Pela primeira, a síndrome compreende um rol de privações afetivas, cognitivas, físicas e espirituais que sobrevivem ao filho como consequência do vazio que existe nas relações entre ele e o pai. Pela segunda, a ausência do pai significa sua falta de empenho na educação do filho varão, qualquer que seja o tempo presencial no lar familiar, normalmente mitigado por pendor demasiado ao ócio ou mesmo ao trabalho profissional. Vários são os exemplos.

Vários são os exemplos em ambas as perspectivas. Pai ausente corresponde àquela figura paterna que, embora divida o mesmo teto dos filhos, oscila entre um comportamento apropriado à sua condição e outro pouco condizente. Nesse caso, tomo uma realidade muito constante: o pai que mimetiza os hábitos do filho varão, acreditando, firmemente, que, dessa forma, aproxima-se dele. Ele veste-se como o filho varão, fala como o filho varão e participa ativamente dos divertimentos do filho varão. Em essência, é uma caricatura de pai, formada pelo vazio na relação paterno-filial.

Pai ausente é o pai que se tornou uma espécie de espectro caseiro, dado o escasso tempo que passa no lar ou pelo abandono de seus deveres familiares, quando não se vale de evasivas ou, passivamente, assiste a esposa fazendo o que lhe devia. Pai ausente é o pai que cria uma redoma incomunicável quando está em casa, é incapaz de mostrar aos filhos manifestações naturais de afeto, encouraça-se nas estritas exigências de rendimento escolar e de competitividade profissional ou, em casos extremos, sobrepõe-se pelo estéril despotismo viril.

Pai ausente é aquele pai não realiza os valores masculinos verificados sociologicamente ou mesmo os rechaça, quando não acomoda sua conduta conforme os valores femininos reinantes segundo o modismo social vigente. Em casos mais exóticos, transforma-se numa figura feminilizada, tal é o grau de adoção de hábitos consagrados pelo uso das mulheres.

Pai ausente é o pai que desnaturaliza seu comportamento propositadamente e por completo, a fim de ser bem quisto pelos filhos. Nesse caso, reprime sua personalidade e frustra a possibilidade de identidade do filho, pois impede o fato de poder ser imitado ou respeitado no lar, na ótica do filho ou da filha respectivamente. Esses e outros exemplos tirados de nossa experiência profissional, como magistrado que assinala e distribui o justo concreto nas lides familiares, demonstram que esse pais não têm nada para oferecer aos filhos, principalmente os varões, e, em todo caso, oferecem uma masculinidade desvertebrada, multiplicando e estendendo uma série de modelos úteis apenas para o desamparo filial, já que nenhum deles consegue transmitir uma imagem positiva de paternidade, pela qual esperam e precisam os filhos.

O pai que falta em casa gera um filho falto de pai. Diante da figura ausente do pai, os filhos vão buscar um substituto. Surge a imagem indireta da paternidade. O filho sem pai foca sua atenção numa outra figura masculina frequente em sua vida: um tio, um professor, um avô e mesmo a mãe que, por melhores que sejam como pessoas, não são capazes de transmitir uma identidade paterna consolidada.

Inconscientemente, tais figuras substitutas são heróis varonis provisórios, pois apenas oferecem aos filhos sem pai um apoio transitório muitas vezes ambíguo e sempre circunstancial, já que serviram somente de bálsamo para aliviar a dolorosa ferida gerada pela revelia paterna, para a qual a melhor solução seria a cura. Uma cura que passa pelo desafio de uma ressignificação da paternidade, a fim de que o pai ausente não se faça mais presente e, como efeito, devolva aos filhos sua verdadeira pátria filial.

Em quais âmbitos, então, poderíamos desencadear esse desafio? É uma realidade que ainda está, em grande parte, por definir e realizar. O terceiro milênio está chamado a reconfigurar os papéis da mãe e do pai no seio familiar sem apelos nostálgicos e, à luz de uma antropologia filosófica que respeite a ontologia do ser familiar, descobrir os âmbitos de desenvolvimento próprio do varão, sem se olvidar de suas dimensões esponsal e paternal que, até o século passado, eram tidas como acidentais em sua personalidade social.

Por outro lado, convém superar um dado sociológico marcante em favor da mulher: a preponderância da maternidade frente à paternidade, porque, durante séculos, podemos dizer que a alma feminina sempre foi trespassada pela maternidade. Superar no sentido de que, apesar dessa constatação empírica confirmada sociologicamente, num órbita maior, a antropológica, paternidade e maternidade equivalem-se, porque pertencem à mesma categoria ontológica, ainda que essas dimensões dialoguem com seus respectivos sexos de maneira diversa.

A maternidade é mais inata à mulher que a paternidade ao varão. Quando uma mulher dá a luz a um novo ser, sabe, quase sem necessidade de aprendizagem, o que deve fazer com seu filho em tenra idade. Em virtude de sua peculiar intuição para conhecer as pessoas, uma mãe sabe o que se passa com seu filho nessa fase, ainda que, nos primeiros anos de vida, ele não saiba falar.

Depois, na medida do desenvolvimento do filho, chegará o momento em que ele deverá ser educado formalmente e, então, sua maternidade terá que se sujeitar à uma aprendizagem. Tal como a paternidade, com a diferença de que o varão deve aprender a paternidade desde o início: ele se sabe pai por meio da maternidade. A mulher não só ensina a seus filhos quem é seu pai como ensina ao pai quem são seus filhos.

No último modelo familiar sociologicamente marcante, o da sociedade patriarcal, considerava-se que a tarefa do pai encerrava-se por completo ao chegar, depois de um dia exaustivo de trabalho, no reconfortante lar familiar, já que havia assegurado à família os bens materiais necessários para um digno sustento. Nessa ótica, o marido já dava por encerrada sua tarefa conjugal e paternal: esse concerto de posturas materna e paterna devia-se, entre outras razões, à organização econômica das sociedades ocidentais, nas quais a solução do salário familiar ficava a cargo da paternidade.

Sob o ângulo dos valores atuais, reduzir a paternidade à função estritamente econômica parece ser não só um reducionismo do papel do pai, mas um reducionismo da pessoa humana. Hoje, vemos com acuidade a importância do pai na tarefa de imprescindível de formação do lar, na vivificação de seu ambiente, na dedicação aos seus filhos e filhas.

Num e noutro caso, na insubstituível missão de construção de suas identidades e de abertura de perspectiva de um futuro digno para cada um deles. No limite, o papel paterno é, sobretudo, crucial para a mãe, mormente sob a dimensão relacional. Podemos afirmar que a família funciona com base num vínculo relacional tripartite, donde intervêm sempre três lados, fato que, na atualidade, emerge com força cada vez maior nos estudos filosóficos e psicológicos da família.

Assim, a paternidade não pode descobrir todos os aspectos de sua missão por si mesma, em razão daquele vínculo citado: a paternidade desvela-se a partir da maternidade e sua profundidade vai sendo explorada na exata proporção com que o vínculo relacional é cultivado pelas partes envolvidas. E, no que toca ao pai, isso passa pelo descobrimento de sua específica dimensão existencial, a dimensão paterna.

Nesse afã, o varão deve recordar-se de um princípio básico nesse vínculo relacional com a mulher: a reciprocidade. Trata-se de uma relação tipicamente esponsalícia, ainda que o grau de intimidade ou de compromisso diversifique-se em cada caso. A relação paternidade-maternidade no bojo familiar e na relação com o filho tem uma base dual – a conjugal – e com vistas à abertura geracional. Paternidade e maternidade dizem-se ambas em relação ao filho, mas referem-se também à relação dual já citada.

Neste caso, é significativo que, para o desenvolvimento harmônico da afetividade e da personalidade do filho, é necessário o aporte de sentimentos de amor da parte do pai e da mãe, mas é importante que os pais queiram-se muito. Daí brota uma sadia fecundidade e que não é um mero resultado biológico e esporádico, pois consiste num efeito permanente da relação mútua varão/mulher, fundada na reciprocidade e na complementaridade.

A reciprocidade instaura um trato entre iguais que dependem um do outro, cujas decisões são tomadas por consenso. Se a maternidade torna possível a paternidade, a missão da paternidade está, em última análise, fazer possível a maternidade. Dessa forma, não há espaço para o paternalismo, onde se decide pelo outro em virtude de uma incapacidade intrínseca, e que, em regra, rompe o equilíbrio da reciprocidade. A reciprocidade pressupõe uma fundamental igualdade que leva cada um estar ao serviço do outro, a partir da qual exsurge o exercício da paternidade.

Delimitados os marcos da relação esponsal, no plano familiar, a paternidade deve se fazer atuante e, não raro, com a ajuda da mulher, porque ela leva o maior peso de ser pais em comum. Uma espécie de dívida que o marido deve quitar ao longo da relação temporal entre ambos.  Dessa maneira (JOÃO PAULO II, 1998:18),

“a maternidade da mulher constitui uma parte especial de ser pais em comum, assim como a parte mais qualificada. Ainda que o fato de ser pais pertença aos dois, trata-se de uma realidade mais arraigada na mulher, especialmente no período pré-natal. A mulher é quem paga diretamente a conta deste comum engendrar, a ponto de absorver as energias de seu corpo e de sua alma. Por conseguinte, é necessário que o varão seja plenamente consciente de que neste ser pais em comum, ele contrai uma dívida especial com a mulher. Nenhum programa de igualdade de direitos do varão e da mulher é válido se não tem em conta esse dado de um modo totalmente essencial”.

A reciprocidade no lar deve conduzir o varão a compartilhar as cargas que supõe o cuidado com o lar e com os filhos pequenos, sobretudo se a mulher suporta uma dupla jornada laboral, formada pelo trabalho profissional e pelas tarefas domésticas. E, outrossim, ajudá-la indiretamente em seu trabalho profissional. Sabemos que as legislações trabalhistas e sociais de muitos países atuam em detrimento da maternidade, principalmente nos primeiros anos de vida dos filhos.

Nesse quadro, o varão pode assumir encargos que sejam domesticamente fungíveis e mesmo outros infungíveis, por motivos temporariamente profissionais dela, como uma viagem de negócios ou para um congresso internacional ou um curso intensivo de altos estudos. Com efeito, nota-se que o papel paterno na órbita familiar é bem mais rico e interessante do que o de mero responsável pelo aporte de recursos econômicos ou o de protagonista de papéis típicos do pai ausente, já descritos e criticados nas linhas anteriores.

Entretanto, o exercício da paternidade não se reduz à esfera familiar. O varão deve estar “à serviço” da maternidade também no âmbito em que atua profissionalmente, reino das dimensões da eficácia utilitarista, da competência instrumental e da concorrência muitas vezes desleal, por meio de uma legislação trabalhista e social que crie as condições necessárias para tanto. Explica-se. Se esse arcabouço legal favorece o gozo da maternidade de uma forma plena, desde a gestação até os primeiros anos de vida e por meio criteriosas licenças remuneradas ou instrumentos similares, evidente que a carga maior recairá sobre a porção masculina dos trabalhadores e, assim, essa faixa estará à serviço daquela dimensão familiar.

Contudo, por outro lado, se o varão está mais inclinado ao domínio das coisas, à técnica e à produtividade, ao se colocar à serviço da maternidade, ele estará mais aberto ao outro, à cooperação e à afetividade. A cosmovisão que propomos acarretará uma consequência prática, ainda que pareça, num primeiro momento, impossível: a reestruturação do mundo do trabalho a fim de que a relação entre labor profissional e família seja compatível não só para a mulher, mas também para o varão em sua pessoa, porque, atualmente, em que pesem os esforços políticos para o melhoramento dessa relação, o trabalho parece organizado como se a família não existisse.

A reestruturação que propomos passa por uma reforma profunda nas estruturas econômicas, políticas e sociais. Para que o trabalho esteja em função da família, não é possível, ao que parece, um desenho simples e linear do mundo do trabalho. É necessária uma análise dos casos concretos, sem cair em generalizações, a fim de se dar a cada situação aquilo de que se necessita: algumas vezes, haverá revés econômico para os agentes envolvidos, com licenças não remuneradas, que podem ser compensadas com auxílios estatais; outras vezes, será necessária a contratação temporária de outros trabalhadores ou a perda de eficácia laborativa, quando a substituição for de pessoas experientes por outras jejunas no ofício.

A dimensão da paternidade ad extra familiar está em, precisamente, superar todos estes inconvenientes para que, no âmbito em que se trabalha, outras mulheres possam fazer compatível trabalho e família. A paternidade, assim, estará à serviço da maternidade precisamente fazendo-a possível. Esse esforço que, indubitavelmente, é uma fonte de sacrifícios, num terreno caracterizado pelos influxos do poder e do dinheiro, mas, a longo prazo, abriremos as perspectivas para uma sociedade mais humana.

Significa que devemos refletir com criatividade e realismo. Nem todas as pessoas têm a mesma capacidade ou o mesmo empenho: ainda que seja mais cômodo para uma empresa adotar um padrão de trabalhador jovem, forte e solteiro e pedir para ele trabalhar de sol a sol sob incentivo de mais dinheiro e ascensão profissional, pode-se pensar numa maior flexibilidade desse padrão, como meia jornada de trabalho, jornada consecutiva com descanso, day off, jornada semanal reduzida, home office, entre outras modalidades já presentes entre nós.

Facilitar a aportação da maternidade na sociedade não só é um ato de justiça social, mas também uma necessidade. Boa parte dos graves problemas vividos pelas sociedades contemporâneas demandará uma resposta tomada a partir de uma maior presença social da mulher, porque ela, ao contrário do homem, está mais apta a manifestar as contradições de uma sociedade organizada sobre puros critérios de eficácia e produtividade e a indicar os caminhos para uma abordagem humana dos sistemas sociais.

O peso da maternidade não pode recair exclusivamente sobre a mulher e a família. Não basta tampouco que o varão exerça a paternidade ad intra de sua família. Facilitar os canais da maternidade dentro e fora do lar requer muitos câmbios sociais: flexibilidade organizacional, projeção dos recursos humanos e das matrizes de responsabilidade, ao longo do ciclo vital, de programas, métodos e projetos em função da disponibilidade real dos recursos como varões, mulheres, solteiros, casados, pais e mães, sãos e enfermos. É uma conta que não será só assumida pela iniciativa privada, mas também pela subsidiariedade estatal.

 

Considerações finais

Na atualidade, assistimos ao debate teórico sobre a fragmentação da família. Não é propriamente uma novidade, porque este tema tem estado presente em todas as épocas desde o início de nossa era. Sem embargo, o quadro parece hoje mais crucial e dramático, pois as bases que deveriam ser suas funções insubstituíveis, como a educação dos filhos e a reciprocidade entre adultos unidos por vínculos de amor, parecem corroer-se, ainda que, em muitas dimensões, a família pareça regenerar-se a partir da descoberta da dinâmica relacional, por meio dos eixos de estruturação sexual e de pertença geracional.

A par do debate teórico, empiricamente, o universo de famílias desestabilizadas cresce a cada dia em nossa realidade social pelos mais diversos fatores. Mas um deles exerce uma certa preponderância sobre os demais e diz respeito à ausência do pai, no sentido assinalado na introdução deste trabalho. Esse estado crescente de negação da função paternal produz consequências que põem em risco toda a sociedade.

Caso a família não possa mais gozar de estabilidade a fim de existir como uma microssociedade em que se vive a experiência da paternidade – pelos filhos e pelas filhas, cada qual com as especificidades que já tratamos –, ela  corre o risco de se tornar um ambiente indiferenciado com parceiros adultos de papéis mutáveis ou desequilibrados, incapazes de transmitir uma representação das funções paterna e materna sob os influxos da reciprocidade e da complementariedade, os quais devem tomar assento no âmago da relação esponsal que une o marido à sua mulher. E em prejuízo da relação do casal para com a prole.

Uma fecunda relação entre maternidade e paternidade é um desafio para os protagonistas desses papéis. A paternidade não pode mais ser prejudicada pela síndrome do pai ausente e, no que concerne ao seu vínculo com a maternidade, não pode mais insistir na ideia de que esta dimensão é um problema afeto à mulher. Organizar uma sociedade, onde possam bem conviver ambos os papéis, demanda a tomada de consciência, pelo homem, de que essa decisão deve feita em conjunto com a mulher, a fim de assumir sua responsabilidade na promoção social da maternidade.

Uma sociedade que a mulher não tem espaço – mãe e trabalhadora – está mal desenhada. Ao pai, além de solucionar a questão da paternidade ad intra família, deve promovê-la ad extra família, por meio de medidas políticas, econômicas e sociais que valorizem as dimensões sociais da maternidade. Assim, por meio da revalorização plena da maternidade, a dimensão simbólica da paternidade será resgatada, superando-se a síndrome do pai ausente, tanto na esfera privada quanto na pública, e a família voltará a se constituir num projeto pleno de expectativas, a contemplar tanto os destinos do indivíduo como o de toda uma comunidade.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANATRELLA, Tony. Famílias fragmentadas. Rio de Janeiro: Revista Communio, Vol. XXVIIII, nº4, edição 104, 2009.

CASTILLA DE CORTÁZAR, Blanca. La Complementariedad varón mujer. Nuevas hipótesis. Madrid: Revista del Instituto de Ciencias para la Familia, Rialp, 2005.

DONATI, Pierpaolo. Manual de sociología de la família. Pamplona: EUNSA, 2003.

ELSHTAIN, Jean Bethke. Public man, private woman. Women in social and political thought. New Jersey: Princeton University Press, 1993.

FAMÍLIA, Pontifício Conselho para. Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas. Brasília: CNBB, 2007.

FERNANDES, André Gonçalves. Tapetão, Ideologia e Totalitarismo. Disponível em: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2015/06/colunistas/andre_fernandes/292399-tapetao-ideologia-e-totalitarismo.html. Acesso em 03.07.15.

HABERMAS, Jürgen. Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des Kommunikativen Handelns. München: Hueber Verlag, 2011.

JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Mulieris dignitatem. São Paulo: Vozes, 1998.

 

NOTAS

[1] A educação, em geral, e a vida familiar, mais particularmente (ANATRELLA, 2009:977) determinam com bastante clareza o comportamento futuro dos indivíduos. Portanto, não é de surpreender que o psicanalista ouça amiúde os pacientes lhe falarem das relações familiares. Evocam, sobretudo, a experiência subjetiva do pai e de mãe que tiveram, assim como a de irmãos e irmãs: todas elas personalidades que moldam os indivíduos. Para uma criança, a vida familiar é o fundamento da realidade e o lugar donde brotará a maneira pela qual ela estabelecerá, mais tarde, os vínculos sociais. Quando um indivíduo experimenta dificuldades para viver é necessário, então, retornar a esse momento fundacional.

[2] A colonização (Kolonialisierung) é um fenômeno típico da modernidade e que (HABERMAS, 2011:380), na medida em que se fortalece, passa a impor sua própria lógica e suas regras do jogo, a saber, o dinheiro e o poder, a todo o corpo social, mediante mecanismos de racionalidade instrumental (custo/benefício).

[3] A sociedade (BLANKENHORN, 1995:03) em que vivemos padece de um grande déficit de paternidade, fruto de uma equivocada e desiquilibrada interação entre trabalho, família e desenvolvimento social.

[4] A Sociologia mostra que (DONATI, 2003:15) a crise que afetou a família no mundo moderno tem, como efeito, a emergência de novos tipos familiares, muitos carentes da figura paterna, e, portanto, isso gera novas reflexões sobre a família. (…) a família tem sido objeto de uma nova e ampla reflexão teórica.

[5] A respeito da dita teoria, escrevemos (FERNANDES, 2015:2), a propósito dos Planos Municipais de Educação, que “segundo o MEC, a ‘teoria de gênero’ seria uma forma bem concreta de tutela das minorias e sua adoção, como proposta pedagógica, seria um avanço civilizacional em respeito aos direitos humanos. Contudo, a ‘teoria de gênero’ é tão arbitrária quanto a chicana que procura favorecê-la. A ‘teoria de gênero’ defende a total irrelevância do dado biológico, com seus componentes fisiológicos, psíquicos e psicossomáticos, na constituição da identidade sexual do indivíduo. Ela simplesmente elimina, sem qualquer critério científico sustentável, esse dado como premissa epistemológica no estudo da sexualidade humana. Nesse sentido, não existiria um gênero só (humano), fundado em dois sexos (feminino e masculino). Agora, seriam dois sexos, determinados naturalmente (masculino e feminino), com uma infinidade de gênero, entendido como os papéis sexuais exercidos pelos indivíduos na sociedade no curso da história (heterossexual, homossexual, bissexual, transsexual e outros).  O gênero do indivíduo seria uma elaboração estritamente pessoal e cambiável ao longo de sua existência, toda vez que ele ˜descobrisse-se” pertencente a esse ou àquele papel sexual. Então, como efeito, o dado biológico seria uma dimensão aprisionante, da qual o indivíduo deveria libertar-se histórica e culturalmente em prol de sua emancipação sexual.  Ao ignorar, solenemente, o dado biológico e, somado a isso, transformado o CNE numa espécie de um tapetão para chamar de seu, a aludida teoria começa a deixar a cair a máscara pedagógica para mostrar sua faceta ideológica, porque, além de carecer de cientificidade, ainda atua em favor do proselitismo de uma concepção única da sexualidade, tomada a partir das premissas do movimento feminista de gênero. Percebemos claramente que, se o combate à toda forma de injusta discriminação impõe-se em nossa realidade social, por outro lado, não é por intermédio da instituição governamental de um único modo de pensar, ver ou sentir à sociedade que isso será superado. Essa postura tem o nítido aroma da intolerância, tal como tudo que namora com o totalitarismo político: as notações desse aroma são a mordaça ao pensamento divergente, a mobilização do patrulhamento inquisitório e a ridicularização do adversário na arena dialógica. No meio desse cenário composto por tapetão, ideologia e pendor totalitário, notamos que seus artífices são incapazes de lidar com nossa rica diversidade democrática, bem avessa à canga da prosápia que sustentam, porque um verdadeiro e próprio democrata deveria apenas pensar que posicionamentos opostos nada mais são que outros modos de pensar de outros cidadãos, os quais têm tantos direitos quanto ele”.

 

[RESENHA] Liberdade Religiosa e Discriminação

Direito | 13/08/2018 | | IFE SÃO PAULO

image_pdfimage_print

Debating Religious Liberty and Discrimination (John Corvino, Ryan T. Anderson e Sherif Girgis, USA, Oxford University Press, 2017)

As sociedades atuais apresentam relevantes conflitos de visões. Alguns dos mais complexos relacionam-se com discriminação e liberdade religiosa. Ainda que não seja novidade a existência de debates sobre estes assuntos, com as mudanças na concepção sobre família e casamento novas polêmicas surgiram e ainda irão emergir, não raro afetando a vida e o cotidiano de pessoas.

O livro Debating Religious Liberty and Discrimination merece atenção daqueles que refletem e se engajam nestas questões, mesmo que baseado na experiência concreta americana.

Inclusive, considerando que tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo se deu de forma similar, por meio das Cortes Constitucionais (Obegerfell v Hodges, e ADI 4277 e ADPF 132), o pano de fundo dos novos debates é similar nos dois países.

A obra não trata diretamente do casamento entre homossexuais, mas é a partir do reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo que surgem novos conflitos relativos à tolerância, liberdade religiosa e discriminação.

O livro foi escrito em forma de debate. John Corvino militou pela legalização do casamento gay. Ryan T. Anderson e Sherif Girgis advogaram pela manutenção da visão tradicional do casamento.

Nesse novo debate, porém, não existem apenas dois lados. Os três jovens autores concordam em diversos pontos, mas divergem em questões essenciais. Todos são favoráveis à garantia da liberdade religiosa e contrários à discriminação. A controvérsia está na definição e nos limites destes conceitos.

Corvino destaca que as tentativas de se garantir objeções de consciência para indivíduos e grupos religiosos que se opõem ao matrimônio de pessoas do mesmo sexo não raro configuram privilégios, implicando a legalização da liberdade para discriminar homossexuais. No mais, em um país plural como os Estados Unidos, se todas as acomodações morais e religiosas fossem admitidas, as pessoas se tornariam “leis para si próprias”, impondo inúmeros danos e ônus a terceiros, e a própria força de normas que deveriam se aplicar a todos acabaria enfraquecida.

Anderson e Girgis, por sua vez, defendem que os direitos de consciência e a integridade moral dos cidadãos são valores intrínsecos e fundamentais a serem tutelados pelo Estado. A liberdade religiosa corre risco de ser anulada a partir de leis anti-discriminação, que, na verdade, representariam um “novo puritanismo”, perseguindo aqueles que moral ou religiosamente se opõem ao novo modelo familiar.

As visões opostas dos autores são ilustradas ao longo do livro por diversos conflitos que têm surgido nos Estados Unidos, a maioria após o caso Obegerfell. Estas situações trazem ao debate de temas como: um oficial de registro ou um juiz poderia se recusar, por razões religiosas, a reconhecer um casamento entre pessoas do mesmo sexo? Confeitarias e floriculturas que, por objeção de consciência, se recusem a fazer bolos ou arranjos de flores para casamentos entre homossexuais devem ser multados? O Estado deve permitir a existência de agências de adoção católicas que somente atendem casais heterossexuais, garantindo maiores chances de adoção a crianças, ou estas devem ser proibidas de atuar?

Um dos casos apresentados no livro e que ilustra a complexidade do debate é o de Barronelle Stutzman. Stutzman empregava gays e lésbicas em sua floricultura e por 10 anos vendeu arranjos de flores para um casal homossexual que posteriormente a processou. Ela não tinha objeções a pessoas homossexuais[1], faria arranjos para o aniversário de seus clientes ou mesmo para que um presenteasse ao outro, mas acreditava, por motivos religiosos, que o casamento somente era possível entre pessoas de sexos opostos. Quando seus clientes lhe pediram para fazer o arranjo de flores para seu casamento, ela se recusou e foi processada.

Em uma sociedade plural, com diversas opções de floriculturas disponíveis, Stutzman deveria ter garantido seu direito de atuar conforme sua visão cristã? A recusa dela é discriminatória? Nesses novos casos a objeção de consciência deve ser garantida, como se fez com a questão do aborto, ou estes comportamentos são equiparados à discriminação por racismo? São questões como esta que têm emergido nos Estados Unidos, sendo que a Suprema Corte recentemente se pronunciou em um caso envolvendo um confeiteiro cristão que se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal de homens (Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission). A decisão foi favorável ao confeiteiro, mas, em razão de peculiaridades do caso, não solucionou de forma geral os debates tratados no livro, que provavelmente retornarão à Corte.

O mesmo debate deve ganhar volume no Brasil nos próximos anos, afetando diretamente indivíduos, igrejas, clubes, escolas e empresas. Contudo, não deixa de chamar a atenção de quem lê o livro que a intensidade dos conflitos surgiu de forma muito mais rápida e extrema nos Estados Unidos, quando no Brasil também existe relevante divisão quanto a estes assuntos[2]. O brasileiro seria mais tolerante e dialogaria melhor, criando consensos e acomodações? Ou será que não nos levamos tão a sério como os americanos?

De qualquer forma, outro ponto de destaque do livro é a capacidade de seus autores de manterem um diálogo civilizado mesmo divergindo em diversos temas sensíveis. O próprio livro, como um exercício de tolerância – no sentido verdadeiro de respeito àqueles que discordam de nossas crenças mais importantes – parece ser um dos caminhos para se buscar soluções possíveis e não excludentes em nossas sociedades divididas.

[1] https://www.seattletimes.com/opinion/why-a-good-friend-is-suing-me-the-arlenes-flowers-story/

[2] http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/noticia/2014/09/maioria-e-contra-legalizar-maconha-aborto-e-casamento-gay-diz-ibope.html

Editores IFE São Paulo

Ativismo, aborto e Estado de Direito

Direito | 06/08/2018 | | IFE SÃO PAULO

image_pdfimage_print

O STF irá apreciar uma ação que discute a criminalização do aborto. É notória a polêmica que envolve o tema no Brasil e no mundo. Em consequência, os lados pró-vida e pró-escolha estão se movimentando, manifestando e debatendo.

O problema é que novamente a sociedade entra em conflito em razão do mérito de processos que chegam ao Supremo, esquecendo-se de um problema preliminar.

Caso o aborto seja legalizado pela via judicial, muitos dos que se alinham ao lado pró-escolha irão comemorar. Mas faz sentido comemorar uma decisão nesse sentido?

A questão é que a legalização através do STF representaria mais uma lamentável manifestação de ativismo judicial. A Constituição Federal protege a vida como direito fundamental, não fazendo qualquer permissão ao aborto (como o faz em relação à possibilidade de pena de morte nos casos de guerra). Ainda, o Pacto de San José da Costa Rica, norma de status supralegal, prevê expressamente que a vida deve ser protegida desde a concepção. O legislador ordinário, no Código Penal, regulamentou a proteção à vida, prevendo como crimes o homicídio, o infanticídio e o aborto – permitindo sua prática em apenas duas hipóteses: risco de vida para a mãe e gravidez decorrente de estupro.

Considerando as normas acima expostas, é evidente que somente “saltos triplos carpados hermenêuticos” poderiam justificar a ampliação, à revelia do Congresso, da permissão do aborto no país. Qualquer exercício honesto de interpretação das normas vigentes confirma que não há nenhuma inconstitucionalidade na criminalização da conduta, tanto que eventual decisão nesse sentido necessariamente se baseará somente em uma mistura confusa de princípios abstratos.

Uma decisão com estes fundamentos poderia ser traduzida da seguinte forma: a Constituição é aquilo que os Ministros dizem que ela é.

Quantas decisões semelhantes não temos visto nos últimos anos? Financiamento público de campanha, casamento entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão criminal etc.

A Corte se inclina, por vezes, para um ativismo progressista, outras para um ativismo conservador. A sociedade, impotente frente a este poder ilimitado, aplaude ou vaia conforme as preferências pessoais. Até quando?

Enquanto não percebermos que o papel do STF é interpretar a Constituição – e não criar uma nova -, estaremos endossando um sistema político que se distancia da Democracia e do Estado de Direito (com seus procedimentos e limitações a poderes). Em um de seus famosos votos, o falecido juiz da Suprema Corte americana, Antonin Scalia, resumiu de forma brilhante a gravidade de nos submetermos a um regime em que alguns juízes não eleitos decidem, de forma ilimitada, o que é constitucional ou não: “A decisão de hoje diz que meu governante, e o governante de 320 milhões de americanos costa-a-costa, é uma maioria dos nove juízes da Suprema Corte. (…) Essa prática de revisão constitucional por um comitê não eleito de nove, sempre acompanhada (como hoje) por um extravagante louvor à liberdade, rouba do povo a mais importante liberdade afirmada na Declaração de Independência e conquistada na Revolução de 1776, a liberdade para se autogovernar”.

Salvo em situações excepcionais, é dever de todos respeitar as leis que existem em nosso país, bem como os trâmites legais para alterações e mudanças normativas. Não se olvida que a vida, a saúde, a liberdade e a intimidade são direitos fundamentais.
Mas também é fundamental para a vida em sociedade que os procedimentos sejam respeitados, que as decisões tomadas pelo povo sejam observadas, que estas se deem de acordo com uma Constituição que, apesar de defeituosa, não estabelece um regime totalitário ou injusto e, por fim, que nenhum poder torne-se ilimitado.

Editores IFE São Paulo

Tem valor os nossos votos?

Direito| Opinião Pública | 03/01/2018 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Nas mensagens de fim de ano é comum desejarmos votos de paz, saúde, alegria, amor, sucesso. Esses desejos podem ser mais ou menos conscientes, mas a verdade é que ninguém está muito preocupado com isso em meio à euforia do réveillon. Passada a festa, no entanto, se queremos concretizar esses bens em nossas vidas, sem que se percam apenas no efeito emotivo que provocam, nos vemos diante desse desafio: o que de fato cada uma dessas palavras significam? Que paz pretendo buscar, que alegria desejo, que amor anseio, qual sucesso devo alcançar? Por outro lado, essas questões nos remetem ao campo dos valores, pois são eles que nos indicam o caminho a seguir para alcançar os bens que desejamos.

Encontrar essas respostas nunca é um exercício meramente individual, pois não é possível alcançar esses bens sozinho. Mesmo o efeito emocional que essas palavras provocam pressupõe um mínimo entendimento entre os interlocutores sobre os bens verdadeiros que elas designam. E na medida em que avançamos na busca da realização desses mesmos bens, a exigência de compreensão também se torna maior. Aqui transparece, justamente, uma das maiores fragilidades da sociedade plural em que vivemos, onde é cada vez mais raro encontrar esses consensos.

Em um contexto em que já não cultivamos valores comuns, torna-se difícil construir um caminho de comunhão, pois já não reconhecemos o outro, não compreendemos o seu mundo, suas escolhas e atitudes. Por isso, o pluralismo tão festejado em nossas democracias mostra, na verdade, uma face cruel, pois, levado às últimas consequências, dissolve os vínculos reais que dão alicerce às nossas comunidades.

De fato, se “os valores são subjetivos”, se “todos os valores são iguais”, se “não há certo e errado”, então cada indivíduo se converte na instância máxima de seu próprio sistema, onde encontrará por si mesmo as respostas a que nos referimos, protegido de qualquer enfrentamento e isolado em seu mundo de referências pessoais. Se já não há uma verdade a ser buscada, com humildade e esforço comum, então resta-nos conviver sob o critério da tolerância, imposto por um relativismo que pretende igualar desde cima todas as “verdades”, sem qualquer oportunidade de diálogo.

Em outras palavras, sem a construção de um espaço comum de convivência, assentado sobre uma base de valores firmes e reconhecidos como verdadeiros, palavras como paz, alegria, justiça, amor ficam reduzidas a meras exortações, sem uma densidade real que possa guiar nossas condutas no dia-a-dia, restando-nos suportar uns aos outros, como estranhos obrigados a dividir o mesmo teto.

Portanto, se pretendemos de fato que os votos de Ano Novo não se percam no vazio das boas intenções e das emoções fugazes, precisamos ter a coragem de resistir à chamada “ditadura do relativismo” e reafirmar o compromisso com determinados valores, abrindo espaço à sua realização comum na esfera pública. Pluralidade e tolerância são maus necessários, mas estão muito longe de se constituírem num ideal de convivência.

Acredito que a nossa maior esperança reside em um paradoxo, pois o anseio por um bem é tanto maior quanto menos o possuímos. Ninguém conhece mais o valor da paz, do que aqueles que estão imersos na guerra. Aprendemos muito mais sobre o sucesso, quando experimentamos o fracasso. Zelamos mais por nossa saúde, quando estamos doentes. Diante das enormidades que temos presenciado em nosso país nos últimos tempos, em grande parte fruto da dissolução dos valores que sempre nos guiaram, ao menos podemos esperar que a carência dos bens que tanto desejamos nas saudações de Ano Novo se converterá, pouco a pouco, em um empenho sério e determinado, sem espaço para as velhas desculpas e comodismos, sem chance para as conhecidas mancomunações. Nossos votos é que o despertar dessa consciência não tarde demais.

João Marcelo Sarkis, analista jurídico, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas (joaosarkis@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 03/01/2018, Página A-2, Opinião.

Transformando com Direito – por Isabela Castro

Direito | 01/09/2017 | | IFE CAMPINAS

image_pdfimage_print

Há três anos tive a oportunidade de compartilhar as angustias vividas por mim na escolha de curso universitário. À época, com 17 anos, me vi obrigada tomar a difícil decisão de direcionar meu futuro profissional, optei pelo direito. É claro que a decisão veio precedida de reflexão, contudo, tão nova e sem referências familiares na área, não sabia ao certo o que me esperava pela frente. Atualmente, no quarto ano do curso, já começo a me despedir da vida universitária, saudosista, mas convicta de que fiz a escolha certa.

Esta certeza nasce do fato de que, pessoalmente, para me sentir realizada, preciso contribuir de alguma maneira para transformação positiva do mundo que me cerca e no direito encontro esta possibilidade.

Prova disto é que o objeto primordial da vida do jurista é a Constituição. Para os leigos, peço licença para elaborar analogia: nossa Constituição arrola uma série de valores a serem concretizados para formação de um Brasil ideal, em outras palavras, significa dizer que a Constituição é a despensa dos juristas (cozinheiros), lá encontram-se os ingredientes disponíveis para preparação de um prato sublime (estado democrático e social). Entretanto, os operadores do direito por muito tempo limitaram-se a reproduzir receitas prontas, muitas vezes até ignorando ingredientes; sem compreender que todos aqueles ingredientes, sem exceção, deveriam ser harmonizados da melhor forma possível.

Tenho sorte de vivenciar um novo tempo, em que o dogmatismo linear vem sendo oxigenado pela releitura do Direito à luz da Constituição Federal. E, em tempos de crise, vislumbro no direito um proveitoso instrumento de transformação social, que precisa ser usado com responsabilidade, mas também com coragem, coragem para rejeitar receitas prontas e perseguir o “prato ideal”. Isto é, o legislador e o operador do direito não podem ser acomodados, precisam ser conscientes da aptidão do direito para modificar a realidade social e a partir disto inovar, valendo-se sempre de sensibilidade ética e cumprindo a função promocional do direito.

Em tese, o discurso é muito belo e aparentemente fácil, na prática, não é tão simples como aparenta. De fato, o direito é um poderoso instrumento e de fato, é possível construir um novo futuro quando não se ignora sua capacidade de transformação. Entretanto, para inovar e transformar com o direito é indispensável responsabilidade e conhecimento, sob pena de desvirtuamento de sua função promocional de valores. Não podemos perder de vista que o mesmo direito que sustenta o Estado Democrático já foi usado no passado como pretexto para legitimar atrocidades e regimes autoritários. Por este motivo que afirmo que a transformação da realidade a partir do direito requer responsabilidade, para que não desacreditemos nas instituições democráticas.

Por outro lado, para transformar é necessário também inovar e para inovar é indispensável conhecimento. Neste ponto as Universidades cumprem um importante papel, papel de produtoras de conhecimento, conhecimento para subsidiar a inovação e, portanto, promover a transformação.

As Universidades são fonte de esperança! Vejo esperança nas Universidades que formam não reprodutores de “receitas”, mas genuínos “chefes de cozinha”, Universidades comprometidas, que estimulam a produção de conhecimento e a autonomia intelectual a partir da pesquisa.

Em suma, me realizei no direito porque sinto que com ele posso transformar, como ele posso contribuir para formação de um Brasil melhor, seja com a produção de conhecimento ou com a operação do direito. Em tempos de crise, me conforta saber que poderei canalizar meus inconformismos lidando profissionalmente com um instrumento capaz de modificar a realidade que me inquieta. Mesmo que minha futura atuação, considerada individualmente, pareça ter baixo poder de transformação, sei que cresce o número de juristas conscientes e, sobretudo, corajosos. Alem disso, como disse Maria Teresa de Calcuta: “sei que meu trabalho é uma gota no oceano, mas sem ele o oceano seria menor.

Isabella Castro é graduanda em Direito e colaboradora do IFE Campinas.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, Página A-2, Edição de 29/08/2017.

 

Fonte da imagem: https://static1.squarespace.com/static/54ff85f4e4b0a53deccc814b/55072afee4b06ae7c74ed7ea/55072b00e4b0bbbce63cc6bf/1426617573112/Wrongful+Death+Palm+Beach+Nursing+Home.jpg?format=500w