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Diretas já?

Direito| Opinião Pública | 31/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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Crise (econômica, política, ética) é a palavra que vem definindo o Brasil de alguns anos pra cá. Os irmãos Joesley e Wesley Batista, que antes tivessem feito fama como dupla sertaneja, são a cereja da vez deste bolo chamado crise, na medida em que suas delações comprometem seriamente Michel Temer. Milhões de pessoas e diversas instituições importantes, em todo o Brasil, voltaram a pedir o mesmo de pouco tempo atrás, a renúncia do presidente ou seu afastamento compulsório, via impeachment.

É no meio deste cenário turbulento que um estranho clamor começa a surgir, pedindo eleições diretas já. O clamor é estranho, pois nossa Constituição, de 1988, traz dois dispositivos, os artigos 80 e 81, os quais expressamente estabelecem que, se a vacância dos cargos de presidente e vice-presidente ocorrer nos últimos dois anos do período presidencial (que é o caso), a eleição para ambos será realizada pelo Congresso Nacional.

Em termos práticos, isso quer dizer que caso Temer renuncie ou sofra o impeachment, o presidente da Câmara dos Deputados, cargo atualmente preenchido por Rodrigo Maia, assumirá o exercício da presidência temporariamente para que, em trinta dias, realize eleições indiretas, cujos eleitores votantes serão unicamente os membros do Congresso.

A primeira consideração que se faz diante do atual pedido de eleições diretas é a mais óbvia, de que é flagrantemente inconstitucional. Caso esse clamor fosse ouvido e de fato os brasileiros fossem convocados para votarem diretamente, antes do período eleitoral de 2018, não haveria dúvidas de que se estaria diante de um autêntico golpe.

Por mais que soe democrático o grito pelas diretas já, a verdade é que não há nada de democrático em defender que se viole a Constituição. Alegar que eleições diretas seriam o melhor para o país neste momento, além de seriamente duvidoso, tendo em vista a ausência de candidatos minimamente razoáveis no atual cenário, não pode ser argumento para que se passe por cima do texto constitucional.

A saída mais coerente para os defensores das diretas já encontra suporte em dois mecanismos. O primeiro seria utilizar o texto do parágrafo único, do artigo primeiro da Constituição, que diz que “todo poder emana do povo”, como fundamento principiológico da tese de que, se o povo quiser, pode-se, então, realizar as eleições diretas. O segundo mecanismo é via emenda constitucional, ou seja, se a Constituição diz que não pode, basta mudá-la para que diga que possa.

O primeiro expediente é, data vênia, absurdo. Utilizar do texto constitucional pra violar completamente o texto constitucional é, no mínimo, contraditório. Ademais, a expressão “todo poder emana do povo” não está isolada na Constituição, pois seu complemento esclarece que esse poder é exercido “por meio de seus representantes eleitos”. A eleição indireta prevista no artigo 81 é o perfeito exemplo desse poder do povo sendo exercido por seus representantes, seja isso o melhor ou não. Aliás, e apenas a título de argumentação, é através da interpretação desmedida de um argumento como “todo poder emana do povo”, que se poderia aprovar, mesmo sem previsão constitucional para tanto, por exemplo, a pena de morte, o uso de torturas, a discriminação de pessoas…

O segundo mecanismo transformaria o pedido de diretas já em formalmente válido e possível, mas seriamente dúbio e discutível se bem refletido, além de oportunista. Afinal, alcançar-se-ia a mudança de um dispositivo da Constituição (artigo 81) que foi propositalmente alterado na primeira oportunidade em que teria sua efetiva aplicação, tendo em vista que nunca ocorreram eleições indiretas, desde a Constituição de 1988. E pior, teria que ser alterado pelo mesmo Congresso em crise de legitimidade que realizaria as eleições indiretas. Essa troca de seis por meia dúzia evidencia como o argumento das diretas já é falacioso quando utilizado como salvação para a superação dos entraves políticos e institucionais que os brasileiros estão passando.

Quer solução para os dilemas e crises atuais? Então que se comece por respeitar e preservar a Constituição. Qualquer caminho ou atalho que fuja disso é democraticamente suspeito. Continua defendendo as diretas já? Paciência! Espere 2018. Esse é o ônus de quando se observa as regras do jogo democrático. Afinal, já se dizia que “a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas” (Winston Churchill).

Marcos José Iorio de Moraes é bacharel em Direito pela PUC-Campinas, bacharel em História pela Unicamp e membro do IFE Campinas. (marcos.jimoraes@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 31/05/2017, Página A-2, Opinião.

Adultos adolescentes, família fragilizada e sociedade esfacelada

Direito | 12/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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RESUMO

Assistimos, neste começo de século, à interdição das diferenças: tudo parece organizar-se para que o indivíduo, no afã de buscar a igualdade entre os sexos, acabe por achar que somos todos parecidos. A sociedade, fascinada por si mesma, olha-se num espelho quebrado pela ausência de alteridade. Nessa realidade despedaçada, reconhecer a diferença torna-se inaceitável, porque se induz a encerrar o outro na representação de si para fazê-lo existir socialmente no prolongamento da própria imagem.

No seio familiar, esse fenômeno provoca o enfraquecimento ou a negação de uma série de funções simbólicas que permitem ao indivíduo vincular-se socialmente com os outros e, como efeito, o indivíduo dessocializa-se até tornar-se desinstitucionalizado. Uma vez fragilizada, a família perde sua insubstituível aptidão de formar indivíduos socializados, criando as bases para uma sociedade esfacelada.

Palavras-Chave: Família, Sociedade, Diferença, Ruptura, Crise.

ABSTRACT

TEENAGERS ADULTS, WEAKENED FAMILY AND SHATTERED SOCIETY

In the beginning of this century, we have witnessed an interdiction of differences: everything seems to be disposed in order to lead the individual, in his eagerness to seek gender equality, to believe that we are all alike. Fascinated by itself, society looks into a mirror broken by the lack of otherness. In this scattered reality, the acknowledgement of differences becomes unacceptable, because the individual is lead to believe that the recognition of others is limited to its own reflection, in order for them to socially exist only as an extended image of one’s self.

Within the family, these events cause the weakening or denial of numerous symbolic functions that allow an individual to socially relate with others and as a result the individual dissocializes until he becomes noninstitutionalized. Once it’s weakened, the family loses its irreplaceable faculty to form socialized individuals, creating the foundation of a scattered society.

Keywords: Family, Society, Difference, Break, Crisis.

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais, a palavra-chave nas relações sociais é a diversidade. A reivindicação das identidades próprias que, no fundo, definem as diferenças, nunca foi tão significativa: desde as relações entre nações e a autodeterminação dos povos até a adoção de novos papéis sexuais tomados a partir de novas visões da sexualidade.

Embora a reivindicação das diferenças não seja um fenômeno estritamente novo, é inquietante observar que, paralelamente a partir dos anos sessenta, mas, sobretudo, depois de Maio de 1968, fala-se, cada vez mais, de “comunidades”, sejam elas locais, periféricas, sexuais, etnográficas, de estilos de vida, tanto mais quanto se enfatiza o rompimento com o vínculo social.

Ao se multiplicarem os grupos minoritários, muitos por intermédio de ficções identitárias, nossa sociedade dá a ilusão de tolerar a diferença, quando, na verdade, acaba por anulá-la: ser idêntico na tribo social e não se sentir ligado socialmente ao conjunto da sociedade. A diferença exaltada no parágrafo anterior resta aqui ofuscada justamente por sua negação.

Nesse amálgama estandartizante proporcionado pela interdição da diferença, o indivíduo tem dificuldade em se socializar e, em muitos casos, recorre à solidariedade ou prefere ser assistido e, se puder, até ser desresponsabilizado socialmente.

O indivíduo só é capaz de apreender, de forma narcisista, aquilo que se assemelha a ele e, sem possibilidade de inscrever-se numa história de vida, prefere viver o aqui e o agora, o imediato, sem se preocupar com as consequências, em relação aos outros e à sociedade, de suas ações e omissões.

Os efeitos dessa onda desinstitucionalizante estão em oferecer para a sociedade modelos incompletos nas dimensões socializantes da família. O casal, a sexualidade, a família propriamente dita, a educação familiar e os quadros simbólicos que acompanham tais dimensões são particularmente atingidos pelos influxos desse mundo indiferenciado.

Como se dão os efeitos da interdição da diferença na órbita familiar? Essa indiferenciação porta nuances negativas para o ente familiar? Caso afirmativo, como superar esse quadro fático, a fim de que não criemos as condições para o advento de um sociedade esfacelada?

A partir dos detalhes do cotidiano familiar, veremos que brota o implícito que estrutura o comportamento familiar, onde são vincadas muitas das representações sociais e das linguagens discursivas que circulam atualmente. Nosso caminho desenvolve-se desde este ponto de partida empírico.

DESENVOLVIMENTO

Historicamente, os anos sessenta foram tempos de questionamento social, cujo ápice deu-se em Maio de 1968. Nesta data, aquilo que começou com uma greve geral de trabalhadores acabou por se transformar numa revolta popular, liderada por estudantes universitários, ocasião em que, nesse barril de pólvora político, novas barreiras étnicas, culturais, etárias e classistas procuraram-se impor, como efeito de ideias inspiradas por postulados marxistas e anarquistas.

Muitos estudantes viram o evento como uma oportunidade para sacudir os valores da “velha sociedade”, contrapondo ideias progressistas sobre a educação, a sexualidade e o prazer. No campo pedagógico, Maio de 1968 pretendeu emancipar-se do sistema educativo instaurado no século anterior que, de fato, já havia se esgotado em muitos de seus postulados epistemológicos. Contudo, Maio de 1968 foi além: era preciso destruir e negar o passado, a fim de surgir um admirável mundo novo. Aliás, como tudo na retórica progressista, cuja beleza consiste em sabermos como começa e ignorarmos como termina.

Nesse caso, já não mais: um movimento formado por adolescentes significou a expressão da recusa da entrada na sociedade dos adultos. De lá para cá, as ditas ideias progressistas permaneceram no mundo juvenil e, indiretamente, influenciaram outras dimensões da realidade, mormente a familiar. Sem que seus defensores sequer desconfiassem disso.

Maio de 1968 consagrou, sob o manto do posteriormente denominado pós-modernismo, o indivíduo-rei em prejuízo do senso social, a sexualidade divorciada da afetividade, a confusão entre sexo e gênero, a recusa do dado parental, o império da subjetividade, a abolição do sentido da lei de Édipo, o eclipse ou a indiferença da função paterna no seio familiar e o declínio da racionalidade em prol da irracionalidade no pensamento.

Jean-François Lyotard destacou, no âmago dessa visão de mundo pós-modernista, o abandono das precedentes metanarrativas fundacionais e a deserção de concepções genéricas, no dizer de Giddens (2005:536), idôneas a dar uma vazão de sentido universal ao homem, à história e à sociedade. “Numa excessiva simplificação, tem-se por ‘pós-moderno’, a incredulidade quanto às metanarrativas”1 (LYOTARD, 1994:7).

Em outras palavras, equivale dizer que a pós-modernidade consiste na falta de crença em fundamentos reais para o mundo e para os discursos humanos. É uma espécie de contrafundacionismo ou antiessencialismo e nisso repousa seu traço distintivo em relação às visões de mundo que a antecederam.

Poderia ser dito que, se para o modernismo, a verdade é relativa, para o pós-modernismo, a verdade é irrelevante. O abandono das metanarrativas propiciou a avulsão de uma série de grandes teorias (pós-estruturalismo, teoria crítica, teoria do discurso, holística), com a diferença de que estas, em relação às metanarrativas pretéritas, buscam uma autoafirmação resignada à autorreferencialidade: a regressão infinita de enunciados nada mais é o tributo que se presta à abdicação do amparo numa verdade ou bem fundacionais.

A circularidade interna de tais teorias é, ao cabo, sua fonte de “legitimação epistemológica”. Seus defensores são presas de sua própria armadilha intelectual. Na carona de tais teorias, assistimos, quarenta anos depois de Maio de 1968, ao crescente império do “cada qual faça o que quiser”, perfeitamente legítimo, porém, no mais das vezes, sem qualquer interesse pelas consequências desse postulado sobre o tecido social, como se fosse possível atacar a estrutura do quadro simbólico questionado pelo movimento em foco dessa maneira. Salvo se, conforme já dissemos, suas ideias tiverem permanecido aprisionadas na primavera da vida. Então, a ingenuidade dessa postura explica-se por completo.

A atual atomização social já esgarça os poucos vínculos sociais ainda resistentes. O pensamento débil dá livre curso às mais arcaicas representações do ente familiar, tratando seus principais protagonistas – sobretudo a figura paterna – como se fossem crianças adultas: indivíduos que recusam viver a realidade, em nome de um imaginário social, preferencialmente desligado das correlatas responsabilidades que as tarefas familiares sempre demandaram em qualquer época histórica.

Cada um faça o que quiser!” é um lema que solapa as bases de qualquer tentativa de uma sólida constituição do ente familiar, cujos reflexos são sentidos na órbita comunitária em termos de sociabilidade. Ou melhor, da falta desta. Como efeito prático desse lema, as questões familiares vêm cada vez mais solicitar a proteção do juiz ou mesmo do médico. O lema de Maio de 1968 pretendeu ignorar, a partir de suas próprias visões sobre educação, sexualidade e prazer, uma certa estrutura antropológica objetiva do ente familiar.

A operação teve sucesso, mas sobre as ruínas que restaram constrói-se muito pouco ou mesmo nada, porque muitas das propostas do movimento de Maio de 1968 representam o testemunho de carências de uma sociedade esfacelada por não saber articular a dimensão conjugal com a pessoal e mesmo demonstrar algum apreço pelo sentido de sociabilidade do ente familiar.

Essa dissonância é uma das razões que explicam muitas das dificuldades com as quais se confronta a família contemporânea. Com efeito, a família, na imensa maioria das pesquisas de opinião, ainda representa um valor muito caro para os indivíduos, prova das várias expectativas que o ente familiar suscita entre nós.

Entretanto, a família parece trilhar por sendas experimentais que podem levar a precipícios existenciais e vivencia fortes tensões que, longe de serem sequer abordadas, são reiteradamente negadas, em prejuízo da solidez estrutural desta instituição natural, anterior mesmo à qualquer religião monoteísta: correspondem, a partir de nossa experiência forense no direito de família, à banalização das rupturas conjugais pela mentalidade divorcista, à desvalorização do matrimônio em prol de outras conformações conjugais , à estandardização dos novos arranjos familiares e à aversão ao recâmbio geracional. Trataremos de cada uma dessas sendas e tensões daqui por diante.

Banalização das rupturas conjugais

Desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66/10, que possibilitou o divórcio direto, sem necessidade de separação judicial prévia, o número de divórcios nos tribunais tem aumentado vertiginosamente2. Desnecessário concluir que, a longo prazo, os divórcios, que têm um enorme peso sobre uma sociedade, podem alimentar um sentimento de insegurança, a ponto de o indivíduo duvidar não apenas do empreendimento familiar, mas também do êxito de qualquer projeto pessoal num seio conjugal. Por que a tônica das rupturas?

A crescente instabilidade dos vínculos familiares testemunha antes de mais nada as dificuldades de inserção do indivíduo na existência social. Já não se consegue tratar mais das crises, salvo se pelo caminho espinhoso da ruptura. Em muitas audiências conciliatórias em processos de família, parece que o mínimo problema ou acúmulo de ressentimentos ou de questões mal resolvidas ao longo da relação conjugal só pode ser resolvido pela petição de divórcio, potencializada pela norma contida na Emenda Constitucional 66/10.

Essa válvula de escape divorcista influencia os comportamentos sociais na medida em que, agora, basta solicitar junto a um cartório extrajudicial a petição de divórcio, sem que os envolvidos tenham a possibilidade ou os meios de compreender o que se passa em suas vidas.

Um problema que poderia ser restrito à uma escolha equivocada de parceiro ou à evolução divergente de personalidades transforma-se, com o tempo, num problema social, inclusive econômico, a julgar pelos altos custos financeiros do divórcio, assunto que tem sido objeto de estudo por muitos institutos de economia americanos, dado o elevadíssimo número de divorciados naquela nação: para cada americano casado, existe um divorciado.

A facilitação do divórcio só se presta ao fim utilitarista de alívio dos tribunais da pletora de processos: uma série de problemas não percebidos por ocasião do divórcio somente aparecerão mais tarde. Então, esses novos problemas serão transformados, muito provavelmente, em outros processos. Essa pulsão desagregadora – diante de um conflito conjugal, o indivíduo sequer cogita a chance de tratamento – foi alçada à condição de dominante psicótica no direito de família.

Aceitar essa morbidez existencial equivale a se fechar na própria impotência de agir diante dos contratempos e a fazer vista cega para os problemas que irão aflorar mais cedo ou mais tarde. O indivíduo realista é aquele que aceita enfrentar as interrogações da vida para dar-lhes respostas e, como efeito, viver melhor.

Também contribui para essa pulsão desagregadora a ideia de que a afetividade entre o casal terá as respostas para os problemas e as crises da vida conjugal. “Basta que se gostem muito e tudo se resolverá!”, costumava ouvir de uma psicóloga judicial que me auxiliou por muito tempo nas audiências de conciliação. Respondia para ela, em tom jocoso, que, se fosse muito ingênuo, acreditaria nisso.

O amor, no sentido objetal do termo, não é, de início, um sentimento, mas, sobretudo, o desejo de se construir uma relação comum que se inscreve na duração temporal. Os sentimentos, por mais nobres que sejam, constituem um dos elementos da relação de amor, mas não a definem por si só. Dessa maneira, confundem os afetos com a relação amorosa, que lhe serve de base. Os afetos não gozam de sentido em si mesmos. São relativos à natureza da relação e dependem, em muito, de um projeto de vida no âmago do qual adquirem sentido e alcance.

Mas os sentimentos não influenciam apenas os mecanismos de resolução dos conflitos conjugais. Alimentam a imaturidade que se vê na maioria das audiências de instrução em matéria de família e enfraquecem o vínculo conjugal, predispondo-o, com maior envergadura, à ruptura. Em relacionamentos cujos afetos assumem o reinado existencial, as demandas daí decorrentes detêm um tal controle que seria conveniente que seus protagonistas pudessem refletir sobre a própria personalidade e história pessoal, a fim de saber discernir entre sentimentos, desejos e sinais distintivos de uma autêntica relação amorosa.

Contudo, não o fazem, mormente porque, contemporaneamente, os indivíduos não são portadores de uma gama de recursos interiores, cujo efeito reside em deixá-los desprovidos diante das legítimas expectativas que um amor verdadeiro é capaz de produzir nas vontades de indivíduos enamorados. Prova disso é o baixo interesse das pessoas no cultivo da interioridade: preferem, cada vez mais, canalizar um esmerado esforço para cursos de capacitação, especialização e reciclagem profissionais.

Esquecem a máxima aristotélica de que o agir segue o ser. Se o aprimoramento é focado somente no agir (aqui, no sentido de fazer), ele não se solidifica no indivíduo, pois não foi cultivado na dimensão anterior, o ser, a qual dá fundamento, alcance e sentido para o agir, porque lhe é precedente.

Quando os afetos ditam uma realidade tão rica e profunda como o vínculo conjugal, outro inconveniente notado é justamente a perda do gosto por projetos em comum de longo prazo. Então, a primeira vítima desse dado sociológico é a criança. O divórcio é uma constante ameaça a solapar sua personalidade.

Muitos dos problemas de identidade sexual e de socialização têm, como causa direta, conforme pode ser lido nos estudos psicossociais, os problemas de filiação. O menor sofre com a quebra do vínculo conjugal. Defender o contrário é querer jogar o problema que surgirá, anos depois, para debaixo do tapete.

Ouço, com frequência, nas audiências, o advogado proclamar para a criança que “seus pais se divorciam, mas continuam a amá-la”. É um bom exemplo da afirmação feita no parágrafo anterior. Tais palavras ignoram a irracionalidade afetiva do menor, porque, para ele, o amor dos pais passa, essencialmente, pela relação conjugal deles, que significa uma espécie de amor parental: porquanto os pais se amam em sua relação conjugal é que a criança sente-se amada e, a partir dessa relação parental, ela constrói sua identidade. Quando o divórcio surge em seu horizonte, o amor parental dá lugar ao amor de sedução.

A continuidade na multiplicação das rupturas ainda provocará outros problemas sobre o tecido social, o equilíbrio dos indivíduos e a economia nacional: dificuldades escolares, instabilidade juvenil, perda de autoridade dos pais, falta de pontos de referência na existência, empobrecimento decorrente da divisão de renda familiar (o sujeito constitui uma segunda família, mas ainda está amarrado pela pensão alimentícia da família anterior), sem contar o fato de que a lei, ao invés de tutelar a família, resolve inscrever normativamente situações relacionais problemáticas.

A criança, depois de um lapso temporal, torna-se adolescente e, a partir de então, descobre outros modelos afetivos vividos por outros adultos e valorizados nas representações sociais e na mídia, a ponto de experimentar inconscientemente uma incerteza diante da imaturidade do ambiente, preferindo a falsa tranquilidade de uma relação mais sentimental que amorosa. Ao cabo, consegue, no máximo, buscar a si mesmo por meio do outro.

Torna-se um adulto, já entrado em idade, inseguro afetivamente, como efeito perverso da alteração generalizada do vínculo de confiança que tradicionalmente unia os parceiros conjugais entre si, o amor. Hesita em dar sua fidúcia ao outro e, por isso, a fidelidade é, hoje, uma garantia muito comumente exigida do outro como condição de adesão numa vida em comum.

Desvalorização do matrimônio

O aumento de divórcios leva a uma atitude pessimista ou, pelo menos, cética, em relação ao matrimônio. Esse fenômeno não é novo na história da humanidade. Todavia, nos dias em que vivemos, isso é agravado pela tendência legiferante de valorização das práticas minoritárias em todos os domínios da vida social.

Terminamos por modelizar as representações coletivas, muitas delas problemáticas, como uma perspectiva de futuro. Sem prejuízo desse agravamento, de algumas décadas para cá, resolvemos separar o amor do sexo e, depois, o sexo da procriação. Com esse quadro sociológico, repleto de problemas e contradições daí decorrentes, o vínculo entre relação amorosa e matrimônio, como diz o bardo português, tende a padecer de todo fenecer.

A questão do matrimônio surge, segundo nossa experiência forense nas lides alimentares e declaratórias de paternidade, porque elas acabam por obrigar os envolvidos à reflexão sobre o sentido e o alcance da dimensão conjugal que, habitualmente, precede tais demandas. É uma espécie de tributo que o erro presta ao acerto.

Mesmo assim, aquela atitude pessimista leva muitos a se perguntar qual seria o liame entre os afetos e a necessidade de um matrimônio. Creem, honestamente, ser suficiente um forte apego sentimental recíproco, sem qualquer exigência de publicização ou institucionalização social da relação consolidada empiricamente a dois. Eis uma forma muito comum de se confundir amor com afeto até que o casal resolva ter filhos.

Nesse momento, muitos ainda pensam em convolar matrimônio, o que demonstra que os elementos conjugal e parental ainda estão estreitamente associados à órbita social daquele vínculo. Com efeito, enquanto a relação permanece num plano unicamente sentimental, a questão da identidade conjugal não vem à tona.

Os indivíduos sentem-se muito bem juntos e permanecem no âmbito de uma afetividade vivenciada sem muita necessidade de comprometimento recíproco, porque, no máximo, os envolvidos trilham por uma jornada individual de busca das próprias gratificações afetivas.

Em outras palavras, não se cuida primordialmente de construir uma história de vida juntos, mas de experimentar a si mesmo por meio do outro, por intermédio de uma resposta imediata dos sentimentos na interioridade existencial de cada envolvido. Sem essa sensação de completude afetiva, os indivíduos, se meros conviventes, separam-se. Se casados, divorciam-se.

O matrimônio, então, não deixa de adquirir psicologicamente uma certa dimensão psicossomática e mesmo histórica. Uma vez adquirida a maturidade temporal pelo indivíduo enredado nessa situação, a variável temporal deixa de ser reduzida à fugacidade dos afetos: surge o desejo de se construir uma existência comum, uma coexistência, que não seja mais fundada na provisoriedade e na precariedade de uma coabitação.

Alcança-se o sentido conjugal da relação a dois e, como consequência, tenciona-se criar uma comunidade de vida que se inscreve no tempo e passa pelo vínculo geracional: a maternidade e a paternidade. Aqui, inevitavelmente, põe-se o problema do matrimônio.

No entanto, para que se institucionalize a união de fato – a inscrição na existência e a socialização da vida afetiva-sexual – os envolvidos pedem uma espécie de cheque em branco recíproco, com vistas à duração dessa união, fadado a não ser sacado, porque a falta de confiança em si e nos próprios afetos, decorrente de um ceticismo no amor, somado ao recuo da sexualidade para um registro puramente intimista e individualista, impedem a superação dessa etapa de comprometimento.

Ao contrário, caso vencida essa etapa, depois de casados, diante dos primeiros contratempos conjugais, a incerteza toma a cena e já não mais se tem a segurança de si para o prosseguimento da aventura conjugal. O divórcio é cogitado, nessa etapa, como uma solução viável, mas causa medo pelos efeitos publicamente nefastos produzidos, e o legislador, erradamente, valoriza-o ao afrouxar os requisitos para seu reconhecimento legal. De resto, surpreende-nos como, cada vez mais, a lei protege, cada vez menos, a instituição matrimonial.

Esse quadro empírico, aliado à supervalorização epistemológica da afetividade, encarada como a única realidade fundante de uma relação a dois, tende a provocar a rejeição ainda maior dos indivíduos pelo casamento, pelo temor da falta de confiança de si: o sujeito irá se questionar se encontrou o parceiro ideal para a construção de uma vida em comum ou se esse parceiro goza de pontos e referências comuns para que haja um entendimento recíproco.

De fato, são perguntas muito pertinentes e importantes para qualquer indivíduo que se vislumbre na iminência de convolar uma vida em comum. Todavia, a tendência a que assistimos nos processos de divórcio, a partir da leitura dos estudos psicossociais, é a de que tais questões acabam por ser mal respondidas, em regra, em nome de uma tábula rasa que o indivíduo faz de todas suas referências e marcos identitários, causada pelos fortes influxos dos sentimentos.

Mais tarde, paga-se caro por isso, porquanto a renúncia voluntária a uma importante dimensão da existência pessoal, antes do envolvimento afetivo a dois, equivale a um empobrecimento da personalidade. Prova de que a realidade de uma vida em comum não pode repousar exclusivamente nos afetos, como procura fazer crer, equivocadamente, boa parte das obras dos estudiosos do direito de família.

Estandardização dos novos arranjos familiares

A incidência, segundo nossa experiência judicial, de pais de segunda ou terceira união como réus nas ações de fixação de alimentos é crescente e, ordinariamente, vem em prejuízo de um justo balanceamento financeiro na equação necessidade-possibilidade. Muitas vezes, mormente quando o alimentante pertence às classes sociais mais baixas, temos a impressão de estar tirando o pão da boca do filho da primeira união e entregando-o ao irmão, por parte de pai, da terceira união.

Esse problema decorre do fato de ser cada vez maior o número de indivíduos abertos a dissociar a vida parental da vida amorosa. Deixam o pai ou a mãe de seus filhos para se engajar numa outra relação a dois, sem, por isso, desengajar-se da relação parental anterior.

Aos poucos, a sociedade vai se acomodando a essa tendência e o legislador ainda chancela, legalmente, tais práticas sociais, sob o argumento reducionista de que “o direito segue a vida como ela é”, como se o Direito confundisse-se com a Sociologia.

A par disso, muitas correntes no campo de direito de família imiscuíram-se disso: introduzem inúmeras confusões na juridicidade familiar, promulgam leis contraditórias e atabalhoam o trabalho dos notários e dos advogados especializados em questões familiares.

Em questão de tempo, o direito não conseguirá chegar a um consenso na definição da noção de família. Introduziu-se na psicologia social uma nova clivagem que pouco favorece o amadurecimento afetivo, porque se nega à natural dimensão procriadora o direito de ser parte integrante da sexualidade.

A difusão do modelo da livre convivência (ou união livre) influenciou sobremaneira as concepções atuais de compromisso conjugal. Será que não seria o momento de avaliar se essas ideias e modelos não agem em antinomia com as demandas afetivas dos indivíduos e muito à margem de uma reflexão antropológica objetiva da família?

Será que essa colcha de patchwork, chamada de “direito das famílias”, não desestabiliza os indivíduos e desestrutura o corpo social? Será que a negação do vínculo social amoroso, desencadeado pelo paradigma da união livre, não exprimiu o começo do questionamento de todos os ideais a partir dos quais se construía o discurso amoroso?

Da livre convivência (ou união livre) passamos a três concepções que coexistem atualmente com o matrimônio, a única dimensão que funda a família nos laços de sangue e da aliança conjugal: a união estável, a relação monoparental e o poliamor. A união estável, em essência, nada difere da coabitação clássica como conhecida na antiga Roma: era uma relação não declarada e definida pelo prazer, subtraindo a sexualidade de sua dimensão social. Os romanos tinham uma visão pessimista do amor e do casamento, fruto da influência estóica, a qual associava os afetos amorosos às complicações do matrimônio.

Hoje, a clássica divisão pagã da sexualidade tomou contornos contemporâneos com todas as complicações modernas do desejo sexual que conhecemos. Viver em união estável, nessa quadra existencial, revela um duplo desafio. Em relação à sociedade, como se não tivesse nada a ver com a história pessoal dos envolvidos, e a si mesmo, na constante tensão entre a publicidade ou a privacidade da relação a dois.

A união estável é uma espécie de casamento que não ousa dizer seu nome, afora uma diferença decisiva com este: a formalização da relação matrimonial ancora uma história no tempo, decorrente do “sim” inaugural que funda um querer viver e permanecer juntos, enquanto a união estável não supõe esse compromisso solene dos envolvidos, feito em plena liberdade e responsabilidade.

A relação monoparental também não é inédita na história da humanidade. No passado, em razão dos esforços de guerra ou de grandes epidemias, o filho passou a viver só com a mãe (mais comum) ou o pai. Esse modelo, outrora acidental, passou a ser buscado por si mesmo e teve sua igualdade reconhecida ao lado da família nuclear.

A sabedoria acumulada ao longo de mais de cinquenta séculos sugere que a configuração parental ideal é aquela formada por um homem e uma mulher e, como corolário, deve receber uma tutela jurídica específica, na medida em que essa configuração reforça inúmeras dimensões do vigor teleológico da família. A relação monoparental, quando buscada como modalidade de vida, despreza com alguma arrogância semelhante acervo de sensatez.

Também não podemos nos esquecer dos reflexos do princípio da liberdade sobre o ente conjugal nos dias atuais, a culminar com a ideia de poliamor. A liberdade confunde-se, cada vez mais, com os mandamentos da cartilha libertária, na linha de Nozick: a liberdade levada às últimas consequências.

Ser livre não se reduz à mera ausência de limites ou ao gozo de uns desejos. Uma pessoa que age segundo esta ótica certamente é menos livre que outra que aprendeu a ser crítica diante do objeto de sua vontade e se esforça com sabedoria em fazer melhores opções, atuando com o domínio de si.

Os defensores dos postulados libertários sugerem a ampliação da ordem conjugal para a união de pessoas de mesmo grupo (“poliamor”). Poderiam argumentar que o contrário equivaleria à violação do direito de interação com o(s) outro(s), segundo a própria vontade e não com base dos ditames do Estado.

Em primeiro lugar, a relação conjugal entre uma mulher e um homem é um dado natural e sociológico. Não foi criado por nenhuma religião, filosofia ou credo político. Em segundo lugar, se há liberdade para a formação de qualquer relacionamento humano, não se pode dizer que toda relação é um ente conjugal, sob pena de se reduzir uma estrutura antropológica sociologicamente objetiva, majoritária e central a outra realidade alimentada pelo mero interesse a três, que mais lembra o fruto de um experimento social pós-moderno. Uma espécie de clube dos corações divididos. Essas três tendências, que reatualizam práticas antigas, poderiam representam modelo de referência aptos a manter e enriquecer o vínculo social? Poderiam gozar da mesma equivalência axiológica da relação entre um homem e uma mulher, declarada publicamente, institucionalizada e reconhecida pelo matrimônio? Se o matrimônio deixar de ser a referência e a norma social, como assegurar a institucionalização dos indivíduos no seio social?

Aversão ao recâmbio geracional

A atual tendência de queda da natalidade, fato público e notório no mundo ocidental, só pode ser invertida por uma mudança muito forte das formas e estratégias familiares: câmbios culturais, desde a superação da mentalidade anti-natalista ou contraceptiva, sem prejuízo da busca de um novo valor social para o rol de atributos maternos, além de políticas sociais, trabalhistas e previdenciárias coerentes com tudo isso. Do contrário, podemos assistir ao fenômeno da espiral negativa, consistente no abandono do trabalho pela mulher, com a consequente diminuição do ingresso de receitas familiares.

A planificação familiar dos anos 60 e 70 transformou-se em implosão familiar nos anos 80 e 90. Apesar disso, os processos migratórios ainda conseguem completar o buraco de recâmbios geracionais deficitários dos países mais opulentos. Mas não por muito tempo.

Uma drástica e prolongada diminuição da fecundidade significa: a) dramáticos câmbios de formas familiares (crescimento de famílias sem filhos ou com filho único); b) falta de “input” nos sistemas econômico e previdenciário, com efeitos regressivos; c) forte envelhecimento da população e explosão de demandas próprias dessa fase da vida, somado ao fato da diminuição de recursos, que deveriam proceder da força de trabalho mais jovem, escassa em razão das baixas taxas de recâmbio geracional; d) necessidade de se redefinir toda a sociedade a partir de outras bases multiétnicas e multiculturais.

Nosso ambiente cultural não está mais interessado em refletir nos riscos de um baixo nível de recâmbio geracional, porquanto: a) os indivíduos preferem assumir posturas sentimentalistas, que impulsionam os indivíduos à postura ambígua de se almejar ter filhos, mas também de se ter receio disso; b) a sociedade assume que a procriação desliga-se por completo da orientação familiar, porque, hoje, a procriação é um cometimento feito por indivíduos e entre indivíduos. Não se parte e não se precisa chegar à uma família nuclear. Não se vê que a procriação é um fenômeno mediado por uma relação de casal e pelo contexto familiar. Prefere-se que ela se desvincule das redes e das mediações entre os sexos e as gerações; c) a procriação, fenômeno natural e fisiológico, assume ares de fenômeno artificial e patológico.

A fecundidade de uma geração é, sobretudo, uma resultante da história das mentalidades. Atribuir valor preponderante a fatores culturais não significa menosprezar o rol de fatores materiais e seus efeitos na fecundidade. Todavia, no fundo, um maior ou menor recâmbio geracional revela aquilo que os filhos realmente representam para os pais. Se vivemos num ambiente de aversão à fecundidade, os filhos, então, andam mal vistos.

Considerações finais

A julgar pela manutenção do quadro atual, a sociedade encaminha-se para um estado indiferenciado e acentuado pelos agentes sociais, cujas decisões nem sempre avaliam as consequências no seio social. Paradoxalmente, os ideais que moveram essa torrente de mudança, enraizados nos anos sessenta, mas, sobretudo, em Maio de 1968, terminaram por nos conduzir ao eclipse do pensamento sobre o sentido e o alcance da existência, com reflexos na cena matrimonial.

A atenção tão contemporânea aos mecanismos da vida psíquica e da subjetividade não pode mais fazer as vezes de reflexão filosófica, antropológica ou axiológica. Tudo na vida atual passa como se estivéssemos desprovidos de um legado veritativo das gerações precedentes, a partir do qual a vida poderia ser renovada em virtude das inflexões do pensamento atual.

Para se romper com esse quadro sociológico vigente, convém levar em conta três realidades simbólicas e tratá-las numa perspectiva antropológico-filosófica. A primeira delas, a da realidade do bem-estar humano, envolve a questão dos desejos interiores e a exacerbação da vivência destes para melhor se sentir viver, como é a tônica contemporânea.

Mas o desejo humano é insaciável, ainda mais quando o indivíduo toma a si mesmo por seu objeto. Por isso, o desejo precisa ser orientado e finalizado para assegurar a coerência da própria personalidade. Do contrário, a personalidade fica perdida e incapacita-se para saber o que deseja e, nessa perspectiva, o indivíduo nada ou muito pouco constrói.

Por isso, é indispensável que cada um construa sua existência a partir de algumas verdades perenes, de forma a entrar em contato com uma certa ontologia social, a fim de se superar a vida pulsional que carregamos dentro de cada um de nós.

A segunda realidade simbólica, a da consciência histórica, demanda uma certa maturidade temporal de saber aceitar e interiorizar a diferença, mormente entre as gerações familiares. Os mesmos influxos dos anos sessenta acabaram por criar uma ideia de tempo interrompido, movido pela ideia de uma juventude sem fim: a sociedade torna-se povoada de adultos adolescentes. Esvaziada de qualquer sentido transcendental, a vida social não permite mais ritmar, ritualizar, diferenciar e contribuir no bojo da relação das gerações umas para com as outras.

A terceira realidade simbólica, a do direito, propõe-se, contemporaneamente, a definir mais as relações e as realidades humanas em termos utilitários, segundo critérios estritamente econômicos e não em termos de sentido. A própria dimensão moral é vítima desse nivelamento por baixo: a ética da ação comunicativa leva-nos a muitos impasses sociais, porque essa perspectiva impede de se cotejar o caso singular com os postulados de uma lei moral perene, da mesma forma, guardadas as devidas proporções, como se pronunciava a cosmogonia dos antigos gregos e romanos.

Como efeito, hodiernamente, as verdades passam a ser normatizadas subjetivamente, a ponto de se negar a dimensão de norma objetiva que o próprio complexo de Édipo representa no seio da juridicidade familiar. Se o direito e a moral, cada qual em seu campo de atuação, perdem sua órbita universal, os indivíduos já não podem mais criar liames sociais nem se comunicar uns com os outros. Restaria apenas nos agrupar em classes de interesse coletivos e nos defender em tribos existenciais.

A batalha contra a vigente propensão rumo à uma sociedade indiferenciada passa pelo resgate antropológico das três dimensões anteriores, a fim de anular os efeitos nefastos que a atual realidade empírica das famílias fragilizadas proporciona e fomenta: a fragmentação e o esfacelamento da sociedade, formada por indivíduos desinstitucionalizados que já não mais dispõem de ideais que possam ligar uns aos outros.

A experiência da família depende das concepções que dela temos. Ela não é inata e procede de uma vontade e de um projeto de vida. Não podemos ficar nos simples movimentos das representações primárias e dos afetos, sem qualquer regulação social e (ANATRELLA, 1998:61) sem que se reconheça uma hierarquia entre as diferentes organizações afetivas e sexuais que favoreçam, em maior ou menor grau, o vínculo da sociabilidade e o desenvolvimento e a perenidade de uma sociedade.

A partir de um casal, constituído de uma mulher e de um homem que se tornam mãe e pai para seus filhos, a família nuclear3 atravessa a história e as culturas de todos os tempos e permanece como firme referência sociológica e antropológica para a construção da interioridade de cada indivíduo.

Eis a nossa contribuição para o debate nas relações entre família e sociedade, destilada a partir de um trabalho de indução teórica alicerçado na empiria familiar e desenvolvido analiticamente sob o filtro de uma maioridade profissional vivenciada pelas alegrias e tragédias das lides familiares, as quais são capazes de forjar pedagogicamente o homem que está por trás do magistrado que assina estas linhas.

A família é um projeto existencial pleno de expectativas, a envolver tanto o destino do indivíduo como o da sociedade. Quando a ontologia social da instituição familiar respeita sua ontologia natural, favorece-se, em muito, sua função socializante. Quando a família é fragilizada nessa relação ontológica, pelo efeito da mentalidade do fenômeno dos adultos adolescentes, a sociedade resta esfacelada.

André Gonçalves Fernandes é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Mestre e doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final em matéria de família e sucessões. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (DGP – Lattes) e professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU-IICS Escola de Direito. Juiz Instrutor da Escola Paulista da Magistratura. Colunista do Correio Popular de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira 30 da Academia Campinense de Letras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANATRELLA, Tony. La différence interdite – sexualité, éducation, violence. Paris: Flammarioin, 1998.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2005.

 

NOTAS:

1 “(…) On tient pour ´postmoderne’ l’incredulité a l’égard des metarécits”.

2 EC 66/10 – Emenda que instituiu o divórcio direto completa 5 anos. Números de divórcios dobrou após aprovação da medida. Nesse mês, a EC 66/10, que agilizou o divórcio, completou cinco anos. A medida trouxe outra realidade às famílias brasileiras, já que suprimiu prazos desnecessários e acabou com a discussão de culpa pelo fim do casamento. Antes, era necessário estar separado judicialmente há um ano ou separado de fato por dois anos para que o casal pudesse se divorciar. Carlos Fernando Brasil Chaves, presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB-SP), entidade que congrega os cartórios de notas de SP, afirma que a medida consagrou a prática social, trazendo mais facilidade aos casais que não desejam mais viver juntos. “Hoje, as pessoas que optarem por um divórcio consensual, podem consegui-lo no mesmo dia.”. Segundo dados do CNB-SP, desde a instituição da EC 66, os cartórios de notas paulistas passaram a lavrar, em média, mais de 16 mil divórcios consensuais por ano, 100% a mais do que antes da emenda entrar em vigor. In: http://intranet.tjsp.jus.br/Clippings/Clipping.aspx?Id=44566. Acesso em 22.10.15.

3 Utilizamos o termo “família nuclear”, mas intuímos que essa expressão, em muitos campos do saber que se entrelaçam com o ente familiar, como, por exemplo, a sociologia da família, parece demandar um certo revigoramento epistemológico. Não trataremos disso aqui e não é uma questão de a expressão estar superada ou não. As investigações empíricas dizem que a família nuclear continua sendo o modelo mais difundido e, no senso comum, dizer família é aludir ao símbolo cultural da convivência estável no seio de um casal heterossexual e de seus filhos. Sem prejuízo disso, o fato de se enfatizar a família nuclear, seja para relevar sua importância, seja para acentuar sua crise, conduz à reflexão da família como célula ou esfera privada e essa imagem oculta ou elimina o protagonismo da família numa série de mediações constatadas empiricamente, como a mediação entre os sexos, entre as gerações e entre seus membros e a sociedade. A família como sujeito de mediação social. No clima cultural atual, a família converte-se num sistema de mediações relacionais que vão além da família nuclear: é a família pós-nuclear, a qual exerce um rol de mediações que superam a estrutura e a identidade da família nuclear. Não se pretende abandonar a noção de família nuclear; apenas se afirma que sua centralidade já não é mais dada em sentido normativo, como forma vinculativa ou constritiva.

A Prudência e o Direito como Razão Prática

Direito | 06/01/2017 | | IFE CAMPINAS

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O Direito reduziu a complexidade da vida jurídica à secura da dogmática e redescobre o mundo filosófico em busca da prudência perdida.

(SOUZA SANTOS, 1996:46)

 

Quando o Imperador Augusto outorgou, no século I de nossa era, o ius publice respondendi ex auctoritate Principis aos mais notáveis juristas[2] da Roma Imperial, fê-lo em razão da qualidade, publicamente reconhecida, de iuris prudentes, isto é, de possuidores, em grau eminente, de uma especial forma de conhecimento jurídico, o conhecimento prudencial. Papiniano, Ulpiano, Gaio, Paulo e Modestino destacavam-se no mundo romano por sua peculiar aptidão para a investigação e a busca de uma justa solução para cada um dos casos concretos trazidos pelos consulentes.

Esse conhecimento acertado daquilo que correspondia o direito[3] em cada situação singular concretamente analisada, isto é, a jurisprudência ou a “prudência do ius”, posteriormente, foi desvirtuado, por uma derivação linguística, para uma ideia de “ciência do Direito”. Ciência e prudência são duas dimensões diferentes do saber humano: a ciência é um saber estritamente teórico, abstrato, especulativo e relativo ao universal e perene; a prudência, por sua vez, é prática, concreta, real e diz respeito ao singular e contingente. Assim, a ideia do conhecimento do justo concreto como um saber prudencial perdeu seu sentido original e profundo.

Atualmente, a expressão “prudência” tem uma noção completamente divergente daquela criada pelos gregos. No léxico, tornou-se sinônimo de cautela, apoucamento ou temor excessivo; o indivíduo prudente deixou de ser um virtuoso e tornou-se um timorato. Por conseguinte, resulta difícil falar da prudência propriamente dita ou mesmo da “prudência jurídica” como um modo especial e indispensável de se conhecer o Direito.

Entretanto, no âmbito filosófico, a prudência ainda demonstra sua vitalidade como objeto de estudo, muito embora vista, por muitos e equivocadamente, como uma das partes mais caducas da tradição moral escolástica. Aubenque (2003:7-9), no prefácio de um dos clássicos sobre o assunto, faz um longo libelo sobre a atualidade do estudo da prudência, ao afirmar que

 

hoje, o autor não tem mais por que se desculpar do que poderia passar por um apego intempestivo à tradição, pois a tradição moral aristotélica irrompeu, nesse ínterim, na modernidade. As razões dessa atualidade, não persistente, mas renascente, devem ser procuradas na urgência da reflexão que os dramas e as catástrofes do século XX reclamam e no malogro trágico dos modelos intelectuais que os tinham, se não suscitado diretamente, ao menos tornado possíveis. A hybris, a desmesura – quase que poderia traduzir por imprudência, atribuindo a esta palavra toda sua força – era para os gregos a falta por excelência, causa de todas as infelicidades privadas e públicas. No início, erro, mais do que vício, mas tornando-se vício pela perseverança e obstinação no erro, a hybris era o desafio lançado aos deuses, a ambição quase risível na disputa pelo saber absoluto, a pretensão usurpada à imortalidade e, a partir daí, o desprezo pelos outros, o desdém soberano pela escolha dos meios e o cálculo das consequências da ação julgada boa, numa palavra, a irresponsabilidade. Sem dúvida, se reconhecerá nisso alguns traços de um passado recente ou ainda atual: a insistência ideológica, a obstinação axiológica, a arrogância tecnológica e mesmo a consciência moralista. A hybris não nasce da falta mas do excesso de teoria, mais exatamente da inadequação entre a teoria e a prática. Que a teoria, mesmo a mais bem formada, não possa determinar imediatamente a prática, mesmo a mais bem intencionada, nisso reside a lição tirada da prudência aristotélica. A ação bem sucedida requer a mediação concomitantemente intelectual e volitiva que é a única que permite escolher e fazer o que Aristóteles chama de “bem factível”, isto é, não um utópico bem absoluto, mas o melhor possível num mundo contingente e incerto. A prudência é a virtude da boa deliberação (…). Nesses quarenta anos, numerosos trabalhos enriqueceram nossa meditação sobre a prudência. Citamos, em primeiro lugar, os trabalhos de Hans Georg Gadamer na Alemanha; os de Hannah Arendt e Martha Nussbaum nos Estados Unidos. O famoso seminário realizado por Heidegger, em Fribourg (1923), sobre o livro VI da Ética Nicomaquéia (…) especialmente enfatizando que a phronesis aristotélica é a que melhor cumpria o programa de hermenêutica da existência humana voltada para a praxis. A tradição analítica, por seu lado, precisou a análise psicológica do julgamento prudencial e, em particular, a economia da deliberação, especialmente em relação à difícil questão de saber se a prudência diz respeito ao fim ou aos meios da ação.

 

Também no âmbito do ensino jurídico e das decisões judiciais, notamos o reaparecimento de referências à necessidade de um conhecimento prudencial do Direito, como um elemento indispensável para a busca de uma solução judicial que corresponda ao justo concreto, porque o Direito não é estritamente uma ciência, ainda que haja uma ciência que o investigue. É uma prudência, um saber prático, pois o objeto do conhecimento jurídico não é uma essência puramente investigativa, posta ante nossa consideração para ser contemplada. No dizer de Martínez Doral (1960:16-17),

 

tratam-se aqui de condutas, ações, decisões humanas, isto é, objetos que fazem referência à realidade concreta e que não podem ser compreendidos, sobretudo se produzem reflexos jurídicos, privados dessa referência à realidade. Trata-se, também, do fato de que a Justiça carrega consigo uma tendência inexorável à realização, numa tentativa de conformação e configuração de situações concretas em sociedades determinadas. De qualquer ângulo que se contemple essa tentativa, a ideia de realização e a referência à ação e à vida intervêm sempre e de uma maneira verdadeiramente decisiva.

 

Eis uma das notas mais características do fenômeno jurídico. Seu objeto de análise recai sobre condutas que, por si mesmas, não estão definitiva e pormenorizadamente “antecipadas” normativamente, mas que, antes, devem ser examinadas em circunstâncias concretas e específicas, rodeadas de um contexto pormenorizado, razão pela qual dão um lugar à uma conclusão própria  e que não encontrará, em regra, um paralelo em outra situação vital, porquanto somente em ocasiões carentes de mediana ou superior complexidade será possível uma remissão a soluções análogas.

Conforme ressalta Utz (1967:20-21), “o direito não se realiza senão na relação interpessoal concreta. A análise da ordem real deverá então evidenciar os preceitos segundo os quais o caso concreto e particular está em condições de ser determinado juridicamente” (tradução livre).

O Direito – e, em última análise, seu processo gnoseológico – não envolve somente uma simples operação de lógica formal, bem ao gosto do positivismo jurídico, mas deve expor, por intermédio de adequados juízos prudenciais, o sentido e o alcance dos preceitos normativos. Não há espaço para fórmulas normativas acabadas e prontas para uma imediata aplicação ao caso concreto previsto pela norma como hipótese de incidência.

Aristóteles (2009:124-125) declarava ser viciosa uma aplicação meramente mecânica da lei, sem qualquer preocupação prudencial e axiológica, na melhor linha do pensamento positivista no Direito. Recorda-nos o filósofo que o

 

que origina o problema é o fato de o equitativo ser justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nos casos, portanto, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei leva em consideração o caso mais frequente, embora não ignore a possibilidade de erro em consequência dessa circunstância. E nem por isso esse procedimento deixa de ser correto, pois o erro não está na lei nem no legislador, e sim na natureza do caso particular, já que os assuntos práticos são, por natureza, dessa espécie. Por conseguinte, quando a lei estabelece uma lei geral e surge um caso que não é abarcado por essa regra, então é correto (visto que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade), corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta.

 

 

Em suma, o Direito não se reduz a uma singela atividade cognoscitiva racional, mas compreende uma atividade decisória e volitiva, campo de valoração das possíveis soluções judiciais para o caso concreto, culminando com a prolação daquela apta a produzir o justo concreto. Logo, vê-se que o Direito é muito antes uma prudência do que uma ciência e sua hermenêutica é muito mais um ato de construção prudencial do que racional.

Ollero Tassara (1998:121) conclui que “toda atividade jurídica parece-nos, na realidade, como filosofia prática, que capta e conforma, por sua vez, – determina – essas exigências objetivas de justiça, positivando-as existencialmente. Positivar o direito – fazer justiça – é, pois, estar disposto a conhecer uma verdade prática, inevitavelmente por fazer”. Conhecer o Direito, desta forma, é um saber prático.

Porém, não um saber segundo uma noção um tanto esvaziada de “prático” que hoje temos, normalmente associada a tudo aquilo que produz uma utilidade imediata, como o dinheiro, o prazer ou os bens de consumo; mas como um saber prático que corresponde ao sentido último do Direito, a saber, um conjunto de conhecimentos orientados não para o puro conhecer, porém, para o fazer, já que seu objeto visa proporcionar ao indivíduo um rol de meios necessários para uma escorreita regulação exterior de sua conduta nas mais diversas situações que se apresentam ao longo de sua vida no seio social.

Hoje, a reabilitação do Direito como um saber prático passa pelo resgate da filosofia prática. Sem se desprezar o auxílio dos mecanismos científicos, é preciso ir aflorando hermeneuticamente a verdade inesgotável da convivência humana. Dessa forma, a atividade jurídica (OLLERO TASSARA, 2006:313) converte-se numa relevante aliada de propostas reabilitadoras de uma filosofia prática: “a filosofia não é apenas o reflexo de uma verdade prévia, mas a arte de realização dessa verdade. A relação do filósofo com o ser não é uma relação frontal do espectador diante do espetáculo; é como uma cumplicidade, uma relação oblíqua e oculta” (MERLEAU-PONTY, 1945: XV).

Essa preocupação focada num saber que orienta para um correto agir individual no âmbito de uma comunidade – campo de atuação da ética e da política, incluída nesta o Direito[4] – retroage a Homero, à religião délfica e à tragédia grega e, no seio da realidade cultural grega, alcança sua formulação completa com Aristóteles, para quem a prudência é vista como uma potência habitual da inteligência, ou seja, uma virtude intelectual; porém, delas se diferenciará, em espécie, em razão de seu objeto: a praxis, o agir ético do homem, que pressupõe uma compenetração, no âmago dessa excelência, entre a parte intelectual e a parte afetiva do homem, porquanto (GAUTHIER, 1973:89-92) o objeto da ação é, indissoluvelmente, objeto da inteligência e do desejo e, para agir, é necessário conhecê-lo de forma veraz e almejá-lo com retidão.

Dessa forma, a prudência é uma virtude do intelecto prático (e não especulativo), cujo objeto está em estabelecer e prescrever, no caso concreto, a reta conduta no agir propriamente humano. É composta por dois planos distintos. No primeiro, especifica-se o agir humano devido, mediante a constituição de valores objetivos (causalidade formal, composta por um ato de deliberação e por um ato de juízo); no segundo, realiza-se efetivamente esse agir, por intermédio de um comando apto a produzir atos que comprometam todo o indivíduo (causalidade eficiente, formada por um ato de império).

Enquanto se inscreve na órbita da causalidade formal, ou seja, na determinação da conduta humana concreta, a prudência não busca na conduta propriamente dita seu princípio determinativo intrínseco, mas fora dela, no intelecto do indivíduo. O juízo resultante da dimensão intelectual da prudência desloca-se para a conduta como uma espécie de modelo ou paradigma exemplar, de acordo com o qual deve estruturar-se o ato humano livre para alcançar a retidão devida nas circunstâncias do caso concreto.

Nesse âmbito normativo da causalidade formal, deve ser feita uma distinção imprescindível. Em primeiro lugar, existe uma causa formal extrínseca remota dessa conduta, composta pelas normas gerais que descrevem, em geral, os tipos de ação devida para uma classe de situações de uma maneira mais ou menos abstrata (ato de deliberação). Em segundo lugar, aparece uma causa formal extrínseca próxima, consistente por um preceito singular referido a uma conduta concreta e que determina o modo de ser do agir humano, naquelas circunstâncias, em sua máxima proximidade (ato de juízo).

Depreende-se claramente que o juízo prudencial, como um todo, corresponde, no fundo, a uma concreção de natureza normativa (preponderando, assim, a segunda fase, de natureza preceptiva), cuja finalidade, na órbita jurídica, está em delimitar o justo concreto para toda uma comunidade ou para um indivíduo numa situação específica, porque, ao agir de acordo com o juízo prudencial, o agente dá a cada um o devido. Nessa mesma órbita, é a lei que assume o caráter de causa formal extrínseca remota e a sentença judicial, por sua vez, a de causa formal extrínseca próxima.

No primeiro plano da prudência (causalidade formal), as normas gerais acima citadas são conhecidas, pelo indivíduo, por meio da razão natural ou sindérese[5], um hábito natural do intelecto que entende e concebe os princípios da ordem da ação que incita ao bem e condena o mal, na medida em que julga o que encontramos, mediante os primeiros princípios. São estudados pela Filosofia Moral (como, por exemplo, o respeito à dignidade da pessoa humana) ou pela Filosofia do Direito, nesse caso quando se referem expressamente à ordem jurídica (por exemplo, a impossibilidade de ninguém poder transferir mais direitos do que tem).

Ademais, a sindérese nunca falha. Se o indivíduo errou num dado juízo prudencial, esse equívoco encontra seu lugar na consciência, a qual não soube aplicar corretamente os primeiros princípios da sindérese ou a fez deturpada sob a influência de alguma paixão. Albertuni (2006:85-86) explica que, “assim, a consciência erra não por causa do erro da sindérese, mas por causa do erro da razão”.

Superado o primeiro plano da prudência, passemos ao segundo. Compete à causalidade eficiente a tarefa de mover o indivíduo à realização daquilo que foi determinado como devido, pelo primeiro plano, numa dada circunstância: o comando, representado por um ato de império. Desde Aristóteles, é reconhecido ao comando a natureza de elemento integrante da prudência. Tomás de Aquino (2005:598) atribui ao comando a maior relevância no seio da dinâmica da prudência: “o comando consiste em aplicar à ação o resultado obtido no entendimento e no julgamento. E porque este ato está mais próximo do fim da razão prática, segue-se que este é o ato principal da razão prática e, consequentemente, da prudência[6]”.

Significa dizer que o entendimento ou intelecto, onde reside a prudência, não se detém somente na especificação do devido, mas que, com o concurso da vontade do indivíduo, produz o ato ordenado a consumar, na realidade concreta, a conduta tida como reta. De fato, assiste razão a Tomás de Aquino, porquanto, do contrário, a prudência se reduziria a um puro saber especulativo e sem qualquer virtualidade prática. A ação da vontade, nessa instância da ordem prudencial, é fruto das potências da alma, as quais têm, por função elementar, mover o homem à realização daquilo que a razão apresenta como bom[7].

A participação da vontade na ordem prudencial demonstra que a determinação da conduta humana por parte dessa virtude não seja somente racional, mas também volitiva. Para tanto, é necessário que essa vontade esteja previamente ordenada, tarefa que corre por conta das virtudes morais (por exemplo, a justiça e a fortaleza): um viciado etílico não pode agir prudentemente, pois, ainda que seu entendimento prescreva, no caso concreto, que o álcool lhe é prejudicial, sua conduta não acompanhará aquele juízo, pois sua vontade, debilitada pelo vício, não estará disposta a colaborar no afã de realização daquilo que o juízo reputa como devido.

Estabelecidos os marcos conceituais da filosofia prática e da prudência, vêm à tona seus consequentes vínculos. Nesse diapasão, podemos concluir que, se por um lado, o procedimento tipológico da ética confere a esta um caráter científico, por outro, ela diferencia-se da phronesis, que não pode ser uma ciência, na medida em que extrai, dos postulados gerais da ética (igualmente informados pela sindérese), os princípios do raciocínio prático para determinar, no caso concreto, a ação que convém ser feita para viver bem nas circunstâncias singulares e contingentes.

O processo deliberativo no qual a prudência está inserida pode ser descrito como um silogismo prático. A premissa maior é o fim moral a ser levado a cabo (o universal) e a premissa menor é a correta reprodução das circunstâncias do caso (o singular), seguida da ação devida, isto é, um agir consequente ao juízo formado a partir do entendimento e do julgamento, segundo o jargão tomista.

A formação desse silogismo, como se depreende, exige dois tipos de saber, o conhecimento do universal e o conhecimento do singular. O filósofo (ARISTÓTELES, 2009:136) ressalta que “a prudência não tem por objeto somente o universal, mas ela deve também conhecer os singulares, pois ela dirige a ação e a ação dirige-se aos singulares[8]”. O universal é aprendido pela educação e o particular pela experiência.

O raciocínio silogístico estará eivado de erro se ignora o correto conhecimento do universal ou se descreve a situação singular incorretamente, situações geradas por uma imperfeição da consciência: “O erro pode dizer respeito seja ao universal, seja ao singular. Pois se pode ignorar tanto que as águas pesadas são prejudiciais à saúde, como o fato desta água aqui ser uma água pesada (ARISTÓTELES, 2009:138)[9]”.

A tendência empírica do pensamento prudencial aristotélico demonstra aqui todo seu vigor, quando afirma que o conhecimento do singular é mais relevante que o conhecimento do universal para a elaboração de um juízo prudencial acertado, pois (ARISTÓTELES, 2009:136) “nós devemos ter os dois conhecimentos, aquele do universal, e do particular, ou, se devemos escolher, de preferência este último[10]”.

Daí decorre a importância que Aristóteles atribui à experiência como meio de aquisição da prudência e é por isso que a prudência não está associada à juventude, mas à velhice, porque o jovem carece de experiência de vida, ainda que possa ser um grande matemático, porquanto esse saber trata do universal e não do particular.

Por intermédio da experiência, chega-se à verdade prática, ou seja, a verdade ligada à praxis: “Essa verdade é de ordem prática (ARISTÓTELES, 2009:130)[11]”. A verdade, no pensamento aristotélico, consiste na correspondência entre uma asserção e a realidade; a verdade prática[12] é a conformidade entre o ditame da razão prática e as exigências da própria realidade. O justo meio é a conformidade do desejo e da ação à regra racional, que é sua medida. Se esta regra tem também sua própria medida, esta medida não é uma outra regra, sob pena de indução ao infinito, mas a própria realidade das coisas e a conformidade do espírito à realidade não é justo meio, mas a verdade (GAUTHIER, 1992:71).

Em outras palavras, a regra racional proveniente da prudência, apta a indicar o justo meio no caso concreto, deve ser justaposta à realidade que se pretende orientar. A prudência, como um saber, tem por objeto a verdade; todavia, ao contrário da verdade investigada pelo pensamento filosófico ou científico, é uma verdade prática, isto é, uma verdade contingente e mutável de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

Como a verdade prática está associada à toda praxis social, Aristóteles especifica as várias formas de prudência (individual, doméstica, legislativa e política)[13] e acaba por engajar toda a sociedade num macro processo prudencial, de sorte que todos os indivíduos tornam-se comprometidos com o uso da razão prática. Naquilo que atine ao eixo estruturante deste trabalho, na órbita jurídica, as prudências individual, doméstica e legislativa não suprem a prudência jurídica, espécie de prudência política; complementam-se, porque cada situação fática demanda um juízo prático orientado pela respectiva prudência.

Diante da magnitude virtuosa da prudência, por outro lado, a filosofia prática aristotélica procura justificar os fins das virtudes éticas, dentre as quais a prudência tem relevância ímpar, refluindo-os a uma concepção normativa da vida boa e descrevendo os atributos do raciocínio prático com o qual o homem prudente aplica às situações os fins virtuosos que definem a vida boa.

Logo, conclui-se que a filosofia prática aristotélica[14], ao contrário da filosofia platônica do Bem, é perfeitamente compatível com o ethos da polis e os endoxa, as opiniões de autoridade acerca do modo conveniente e nobre de viver e de agir. E o filósofo prático não se limita a observar a realidade empírica e reproduzi-la: ele vai além, pois compreende o ethos da polis, submete-o a uma argumentação dialética e diaporética, examinando as eventuais aporias às quais as opiniões conduzem e busca resolvê-las, mediante a explicação da parte de verdade e da parte de erro contida naquelas opiniões. Ao fim, identifica uma concepção normativa de vida boa e, nessa tarefa, acaba por ser um crítico do mesmo ethos, buscando aprimorá-lo. Agora, deixamos a prudência e ingressamos na jurisprudência, a prudência do Direito.

Sob os olhos da modernidade e, sobretudo das relações entre Direito e razão prática, percebe-se que a moral prudencial aristotélica é completamente diferente da moral normativista em voga desde Kant, renovada na última quadra de século por John Rawls. Segundo Barzotto (2010:167),

 

Toda filosofia moral da modernidade (…) discute a questão: “Que regra eu devo seguir?” A concepção aristotélica não está centrada na regra[15], mas no saber prático que determina se uma regra é ou não aplicável ao caso. Assim, a questão central da teoria moral é: que tipo de conhecimento torna o agente moral capaz de aplicar regras ou a agir na ausência de regras? Afinal, a regra não determina seu caso de aplicação, isto é, não há uma regra para aplicação de regras. A concepção normativista da moral que impera na modernidade está ligada à concepção normativista do direito como um conjunto de regras. A concepção clássica da moral, fundada na prudência, está ligada a uma concepção do direito onde a regra não ocupa o papel central.

 

Segundo uma visão prudencial (e não normativista) do Direito, o direito não emana da regra, mas a regra emana do direito[16]. Em outras palavras, na aplicação do direito ao caso concreto, as circunstâncias fáticas – singulares e contingentes – delimitarão o sentido e o alcance da regra, prevista genericamente pela lei, a ser justaposta naquela situação, de molde a assegurar o império do justo concreto.

Essa concepção, que nega a identificação do direito com a norma (porque o direito identifica-se com o justo e a norma é apenas o instrumento do direito), está na base da prudência do direito romano, na jurisprudentia romana, a primeira e mais perene síntese entre prudência[17], direito e ética.

O trabalho de acomodação e de respostas para problemas práticos criam uma massa crítica de conhecimento prático e assume a forma de jurisprudentia, a prudência do direito, até o momento em que o Imperador Augusto outorgou, no século I de nossa era, o ius publice respondendi ex auctoritate Principis aos mais notáveis juristas da Roma Imperial, em razão da qualidade, publicamente reconhecida, de iuris prudentes, isto é, de portadores, em grau eminente, de uma especial forma de conhecimento jurídico, o conhecimento prudencial, um saber marcado por sua peculiar aptidão para a investigação e a busca de uma justa solução para os casos concretos.

VILLEY (1981:73) ensina, acerca da jurisprudência, que

 

os juristas romanos atribuíam à jurisprudência o papel primordial na gênese de seu direito. Há um texto do Digesto que especifica que nas origens e, na ausência de qualquer lei escrita, os seus verdadeiros autores foram os prudentes. A jurisprudência representou para os romanos o berço do direito. Creio que continua sendo verdadeiro no século XX quanto aos setores dinâmicos do direito. Ao menos onde o sentido da palavra não foi falsificado, onde ela não se desviou para o papel de serva estática, onde ela permaneceu conhecimento dos casos, isto é, do direito nas coisas (grifos nossos).

 

Assim entendida, como o conhecimento do direito nas coisas, a jurisprudentia romana é dotada de cinco grandes características: é um saber realista, prático, ético, casuístico e tradicional (BARZOTTO, 2010:170-174).

É realista, porque está fincado na realidade posta e não numa atividade puramente especulativa ou abstrata. A atitude espiritual do romano é a do camponês-soldado, apegado às verdades que emanam intuitivamente do senso comum e que repudia qualquer normatividade que pretenda se impor, de fora, à estrutura do real. Não é de se espantar que a única definição acerca de jurisprudência seja dotada de um realismo impressionante: “a jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência prática do justo e do injusto[18]”.

É um saber prático. O povo romano ocupava-se das construções teóricas gregas na exata medida de suas necessidades práticas e materiais. Por exemplo, a matemática é transformada em engenharia, a geografia é empregada na estratégia militar e a retórica assume a atividade política.

Ciente de que não poderia renunciar ao poder institucional decorrente da posse de um saber voltado para a resolução de conflitos sociais, a aristocracia romana fomenta a formação de quadros voltados para o exercício da jurisprudência[19], essa tarefa de importância tão manifesta como fonte do direito[20] (a lei era fonte subsidiária, ao contrário da mentalidade moderna), como capacitação para o exercício da atividade política na urbe romana. Logo, a formação jurídica está voltada para a política e não para o direito.

É um saber ético, porquanto o jurisprudente, no caso concreto, está preocupado em buscar a resposta que corresponda ao justo, donde decorre a natureza moral de seu mister. O próprio Digesto começa com uma definição acerca do jus: “Convém que aquele que vai dedicar-se ao direito conheça primeiramente donde deriva o termo jus. É chamado assim por derivar de justitia[21]”. Ou seja, ainda que seja o contrário (justitia derive de jus), ao definir o objeto de seu saber, o jurisconsulto o vincula imediatamente com a justiça. Não busca um lastro epistemológico que encerre a atividade jurisdicional em si mesma.

Os jurisconsultos entendem o direito como um saber a ser construído responsavelmente e (VIEHWEG, 1986:80-81) “toda sua personalidade estava comprometida nisso; como dizia Ihering, ‘seu orgulho não é somente de tipo intelectual, mas também de tipo moral’”.

É um saber casuístico. O Direito Romano não tem a lei como fonte primária, mas a obra destilada dos jurisconsultos. A lei é pouco manejada no âmbito do direito privado, porque a formação jurídica consiste em assistir um jurisconsulto experiente aconselhando os particulares, seguido de um debate, posteriormente, entre seus discípulos, destilando-se, de geração em geração, um saber fincado na experiência.

Em Roma (KÄSER, 1962:121), a lei contrapõe-se ao direito dos juristas: ela é uma fonte de direito em virtude de uma imposição, ao passo que o direito dos juristas não é senão a experiência derivada dos casos particulares e progressivamente consolidada. É por isso que a lei pôde aparecer aos juristas romanos não tanto como o cerne da sua ordem jurídica, mas antes uma barreira limitando a liberdade de descoberta do direito pelos juristas. A atenção do jurisprudente está no caso e não na regra.

Pela via da sedimentação das soluções, naturalmente vão se formando regras por um processo de generalização empírica, como as seguintes: “Ninguém pode transferir mais direitos do que tem[22]”, “Não se considera que alguém perca o que não era seu[23]” ou “É nula a obrigação de objeto impossível[24]”. Interessante notar que o pensamento do jurisprudente ainda é fortemente concreto e empírico, mesmo quando formula regras gerais.

É um saber tradicionalista, eis que, a fim de se evitar a insegurança jurídica que poderia emanar do tratamento casuístico dos problemas, a jurisprudência vale-se da tradição da moral (mos maiorum) e dos costumes (boni mores), além do recurso aos precedentes jurisprudenciais, conferindo coerência e organicidade ao conjunto das soluções tomadas. O novo caso insere-se numa cadeia específica de soluções, onde a evolução no entendimento acontecia de forma gradual e lenta, mas segura.

A experiência romana demonstra que o verdadeiro conhecimento do Direito corresponde a um conhecimento prudencial do Direito, porque o direito é uma prudência, um saber prático, uma atividade própria do agir, impulsionada pelo pensamento: “mais que um emaranhado de regras, suscetíveis de aprendizagem, o direito consiste num <<saber-fazer>>, que dita como e quando elas se aplicam, transcendendo-as (OLLERO TASSARA, 2006:316)”. Saber leis não é saber o Direito.

Com efeito, Gadamer (1994:178) acentua esse liame entre Direito e prudência ao sustentar que

 

o conhecimento do direito que caracteriza o jurista segue chamando-se, com boas razões, jurisprudência, literalmente, prudência jurídica. Esta palavra recorda ainda o legado da filosofia prática, que via na prudentia a virtude suprema de uma racionalidade prática. O fato de que a expressão ciência do direito tenha prevalecido a partir do final do século XIX indica a perda da ideia de uma peculiaridade metodológica deste saber jurídico e de sua definição prática.

 

Nessa linha argumentativa, o Código Iberoamericano de Ética Judicial (2008:19) em vigor reforça, na exposição de motivos, a importância da prudência jurídica, constituindo-se a essência do modo com que a prestação jurisdicional deve ser feita pelo magistrado na solução dos processuais.

Aliás, se é certo que não se pode reduzir a prudência jurídica ao estrito campo da aplicação judicial das normas, pois existem uma prudência política e uma prudência legislativa que a antecedem, resulta evidente que, em seu modo judicial, pode-se apreciar mais claramente as notas e particularidades da prudência jurídica. A prudência judicial é, então, a prudência jurídica por excelência.

A mesma codificação continental (2008:36 e 43) prescreve, em vários pontos, a forma geral de exercício da prudência judicial (artigos 8º e 68 a 72). Uma adequada compreensão do Direito supõe a busca de um estatuto teórico que corresponda à sua efetiva dimensão na realidade das coisas. Atualmente, as categorias e os pressupostos de especulação epistemológica da modernidade são incapazes de dar conta de uma análise prudencial da experiência jurídica, ao contrário do que sucedeu entre a filosofia grega e a jurisprudentia romana.

Logo, não é muito simples a tarefa de revitalização epistemológica da essência prudencial do Direito, ainda submetido aos influxos do positivismo normativista kelseniano, que fez do direito positivo, enquanto ordem normativa, um mundo completamente independente de qualquer influência, direta ou indireta, da filosofia moral.

A definição clássica de jurisprudência, em seu rigoroso sentido de prudência do direito, como o saber do justo e do injusto[25] por meio do conhecimento de todas as coisas humanas e divinas, de um lado, abre a ciência jurídica à experiência da totalidade do Direito. Por outro, centra sua especificidade na determinação do justo e no discernimento do injusto. Dessa maneira, o justo jurídico, determinado prudencialmente, adquire um status próprio entre a virtude da justiça e as exigências da natural essência política do homem, fundada na ideia de bem comum e nos ditames da filosofia prática.

Com efeito, o saber jurisprudencial é um saber em que o fato concreto, preteritamente havido, renova-se presencialmente nos autos do processo, a fim de adquirir pleno sentido jurídico pela pena do magistrado que, desvendando a essência na aparência fática, dá continuidade[26] prudencial ao núcleo operável do trabalho hermenêutico, declarando, motivadamente na sentença, o justo concreto.

 

André Fernandes é graduado “cum laude” pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Mestre e Doutorando em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Juiz de direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (DGP – Lattes) e professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Juiz Instrutor da Escola Paulista da Magistratura. Colunista do Correio Popular de Campinas. Coordenador Estadual da ADFAS (SP-Interior). Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira 30 da Academia Campinense de Letras.

 

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NOTAS:

[2] “A jurisprudência, no sentido romano, era o conhecimento do direito e sua atuação pelo uso prático (…). Era obra dos jurisconsultos que desempenharam um papel capital na fixação das regras do direito. Na verdade, os jurisconsultos eram homens muito experientes na prática do direito, quer enquanto davam consultas jurídicas (responsa), quer enquanto redigiam atos e orientavam as partes nos processos, embora aí não interviessem. A autoridade de suas consultas decorria de seu valor pessoal e de seu prestígio social. Apesar de seu caráter privado, os escritos dos jurisconsultos constituíram uma verdadeira fonte do direito na época clássica, não somente pelos seus comentários de textos legislativos e dos éditos dos pretores, mas sobretudo pela maneira de resolver as lacunas do direito (GILISSEN, 1986:90-91)”.

[3] O Direito nasce e desenvolve-se em Roma como um saber prudencial, dado o perfil extremamente prático e pouco dado à abstração do povo romano. Assim, nunca houve uma preocupação teórica no desenvolvimento de uma teoria do Direito que explicasse, além das categorias jurídicas e conceitos, a natureza e os fins da atividade da prudência do Direito, a jurisprudentia. Mas não foi uma mera obra do acaso a nomeação, dessa disciplina, como prudência do direito e, do jurista, como prudente. Os romanos, influenciados pelo legado filosófico grego, pretendiam expressar com o termo prudentia a phronesis grega: a phronesis, na cultura grega, de Homero a Aristóteles, designa um tipo de saber que orienta a ação do homem. Para o grego, o ser prudente era aquele que sabia agir corretamente nas inúmeras situações diárias da vida na polis. E, para agir bem, ou seja, corretamente, era necessário que o indivíduo soubesse, teoricamente, o que correspondia ao bem genérico e, depois, aquilo que correspondia ao bem genérico naquela dada circunstância da vida e aos meios necessários para efetivá-la na praxis. Na análise da expressão phronesis, seguiremos a recomendação de Jaeger (2003:93): “nenhuma filosofia vive da pura razão. Ela é apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização, tais como se desenrolam na história”. Séculos mais tarde, Tomás de Aquino, na Suma Teológica, irá alçar a prudência ao posto de principal virtude cardeal, concedendo-lhe, no âmbito das virtudes humanas, o mesmo status que Aristóteles (2009:144) conferia à prudência no trato das excelências éticas, a de olhos da alma: “a sabedoria prática não é faculdade, mas não existe sem ela; esse olho da alma não alcança seu completo desenvolvimento sem a virtude, como já dissemos (L. VI, 12, 1144a)”. Segundo o filósofo medieval (2005:189), “ergo prudentia non inesti nobis a natura sede ex doctrina et experimento (a prudência não é inata em nós, mas procede da educação e da experiência) (S. Th., II – II, 47, 15, sed contra)”. Como se nota, para ambos os filósofos, a prudência é um hábito operativo bom.

[4] A entranha interpretativa da tarefa jurídica a coloca ao lado da filosofia prática: “hermenêutica é filosofia e não só filosofia, mas filosofia prática (GADAMER, 1972:331-332 e 343)”.

[5] Suma Teológica, I, a.12 e a.79; II-IIae, q.47, a.6, resp. e s.1. A expressão porta um caráter inovador no seio da teoria da ação moral, em comparação com a ética aristotélica, pois Tomás de Aquino a compreende como o hábito dos princípios primeiros da moral, topos equivalente ao hábito dos primeiros princípios teóricos de Aristóteles, designado por este como intellectus principiorum. Segundo Nascimento (1993:365-385), após o estudo detalhado dos 16 artigos da questão 47 da IIa IIae, Tomás de Aquino inova no conceito aristotélico de prudência ao introduzir a noção de sindérese, frisando que, mesmo assim, a virtude da prudência não é desconfigurada na teoria moral tomista, por ser reputada como “a sabedoria das coisas humanas”.

[6] Suma Teológica, V, q.47, a.8.

[7] Suma Teológica, I, q. 82, a.4.

[8] Ética a Nicômaco, L. VI, 1141 b.

[9] Ética a Nicômaco, L.VI, 1142 a.

[10] Ética a Nicômaco, L. VI, 1141 b.

[11] Ética a Nicômaco, L. VI, 1139 a.

[12] Segundo Merleau-Ponty (1960:160), “a verdade prática é a memória de tudo que se encontrou ao longo do caminho”.

[13] Segundo Aristóteles, a prudência individual orienta as decisões do indivíduo; a prudência doméstica, as decisões familiares; a prudência legislativa, as decisões do legislador; a prudência política divide-se em discricionária e judicial: a primeira corresponde à prudência do indivíduo investido no poder de deliberação sobre os assuntos públicos; a segunda orienta as decisões dos juízes nos processos judiciais.

[14] Segundo a ética aristotélica, a experiência humana tem um papel fundamental: a atuação do homem prudente, a opinião dos mais velhos, sua vivência existencial e os costumes da polis representam dados indispensáveis, a ponto de extrair, por indução, seus princípios racionais, motivo pelo qual confere um denso espaço para os dados empíricos e psicológicos que podem ser coletados em muitos capítulos da Ética a Nicômaco. Consciente da natureza ética do homem, Aristóteles propôs uma justificação teleológica dos valores e regras morais em função de um fim último, situado no plano da existência terrena e hierarquizado pela contemplação no ápice de sua felicidade (eudaimonia), para o qual todas as ações virtuosas do homem devem convergir. A fim de possuir o bem supremo, o homem deve, por um lado, regular as funções inferiores por intermédio da razão e, por outro, desenvolver as virtualidades do espírito, situadas sempre no meio – entendido como o ápice da excelência e não como a mediocridade – de dois vícios opostos. Assim, à luz de uma ética das virtudes, a sociedade seria capaz de alcançar o bem comum. Na alma do homem, está sediada a faculdade intelectiva que, aprimorada pela educação, permite à pessoa valorar o conteúdo de suas ações e ordená-los à consecução de seus fins naturais. Ou seja, a consciência individual, potencializada pelo desenvolvimento das virtudes e adequadamente educada por critérios éticos ordenadores do agir humano, leva o homem à sua plena realização existencial.

[15] Segundo Gauthier (2002:437), a expressão “norma” aparece uma única vez na Ética a Nicômaco. Na passagem 1153b, o termo “norma” refere-se à filosofia. Hoje, na maioria dos manuais do curso de graduação de Direito, essa expressão aparece, como sinônimo de Direito, já na introdução da obra, sendo repetida ao longo do livro, nesse mesmo sentido, segundo a maior ou menor amplitude do normativismo jurídico do autor.

[16] D. 50, 17,1.

[17] Segundo Aubenque (2003:63), “a expressão phronesis, conforme o sentido popular da palavra, designa uma virtude intelectual orientada imediatamente para a ação. É Cícero que, para traduzir a phronesis estóica, recorreu à palavra prudentia (contração de providentia, que evoca a ideia de previdência, saber eficaz)”.

[18] D. 1, 1, 10.

[19] Cícero (2010:51) conta que “entre os gregos, homens da mais baixa condição, impelidos pelo incentivo de um magro salário, oferecem-se para assistir em justiça aos oradores sobre as questões de direito: chamam-lhes ‘práticos’. Na nossa cidade, pelo contrário, os mais ilustres personagens desempenham esse trabalho”.

[20] D. 1, 2, 12: segundo Pomponius, “o jus civile propriamente dito é aquele que, sem estar escrito, consiste na interpretação dos prudentes”.

[21] D. 1, 1, 1.

[22] D. 50, 17, 54.

[23] D. 50, 17, 83.

[24] D. 50, 17, 185.

[25] No Corpus Iuris Civilis, a magnífica compilação de toda a tradição jurídica romana feita pelo imperador bizantino Justiniano por volta do ano 530, há um brocardo jurídico atribuído a Ulpiano, um dos últimos grandes juristas da época clássica do direito romano: “a jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência prática do justo e do injusto”. Nesta rica fórmula, causa uma certa inquietação a integração da injustiça na definição, a ponto de proporcionar alguma dúvida ao estudioso acerca da necessidade e da importância da injustiça para um homem que pretende ser justo. Todavia, pelo contrário, a sagaz percepção de Ulpiano indica um paradoxo da vida humana. Quando a humanidade percebe que algo ou uma situação é injusta, a mesma humanidade não se limitou a desmascarar essa injustiça, porém, ao mesmo tempo, aprendeu em que consiste a justiça naquele caso concreto. O excepcional talento prático dos romanos, que faz um interessante contraponto com o superior talento reflexivo dos gregos, captou primorosamente esta misteriosa pedagogia da injustiça e exprimiu-a teoricamente ao lecionar que o bom jurista é aquele que domina o justo e também o injusto. Afinal, quem descobre a razão da injustiça de algo ou de uma situação, foi porque aprendeu não menos profundamente o que deve ser o justo.

[26] Afonso Botelho (1990:41-42) nota que “estar” já implica um “permanente renovo” e estar de novo é continuar.

Reflexões sobre abertura da linguagem no Direito: obstáculo ou trunfo? (por Débora Costa Ferreira)

Direito | 08/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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Imagem: reprodução (Dicta&Contradicta - site)

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Refletindo sobre a incompletude na linguagem nas relações humanas, arrebatou-me a percepção do inexorável efeito que esse fato traz para o mundo do Direito. Sei que não é tema novo na discussão da filosofia jurídica, por isso apoio-me nos ombros dos gigantes[1] que por ora conheço pra resenhar uma humilde reflexão.

Hebert L. A. Hart, em sua obra escrita em 1961[2], discorrendo sobre a textura aberta das normas jurídicas, chegou a uma das mais brilhantes compreensões sobre o tema (ainda mais quando se nota que advém de um positivista), diante de tamanha apreensão ontológica. Segundo ele, a fluidez da linguagem decorre senão da nossa natureza humana na sua jornada de trágicas escolhas diárias. Em suas palavras:

 “a necessidade dessa escolha nos é imposta porque somos homens e não deuses. É típico da conduta humana que labutemos com duas desvantagens interligadas sempre que procuremos regulamentar, antecipadamente e sem ambiguidade alguma esfera de comportamento por meio de um padrão geral que possa ser usado sem orientação oficial posterior em ocasiões específicas”[3] (p. 166).

 Os economistas explicariam tudo com os conceitos de trade-off e custo de oportunidade, mas é Luhmann[4] que arremata toda essa imprecisão ao constatar que vivemos em um mundo complexo e contingente, no qual o Direito é um acalanto para toda essa instabilidade, engendrado por meio da generalização de expectativas recíprocas, objetivando-se o alcance de bons resultados seletivos e a estabilidade social.

De todo modo, como ficou bem pontuado até aqui, essas funções estabilizadoras do Direito têm limites na medida da sua abertura semântica, a qual impede que os legisladores estruturem concepções de norma tão detalhadas a ponto de cercear qualquer margem de escolha judicial no futuro. Aliás, se não fosse assim, o legislador não precisaria estar se dando ao trabalho de cumprir tal papel social, uma vez que poderia estar sendo muito mais bem remunerado na função de oráculo.

Assim, as normas jurídicas garantiam segurança jurídica e estabilidade social até o ponto em que previam as consequências jurídicas de condutas claramente identificáveis na realidade fática. O problema então estava na regulação dos comportamentos que extrapolavam tal descrição normativa, situação em que caberia ao juiz delimitar e determinar qual direito deveria ser aplicado no caso concreto, dentro de uma margem “discricionária”.

Esboçado esse quadro, conclui-se: foi dada asa à cobra. A grande frustração dos positivistas foi a sua incapacidade de conter a discricionariedade judicial dentro de certas raias jurídico-positivas. A moldura da norma de Kelsen era uma caixinha bem flexível, na qual o juiz podia esticar suas bordas com saltos twist-carpados hermenêuticos, sob o manto dos postulados lógico-científicos de Von Wright[5]. Mas note-se: qualquer semelhança com os dias de hoje é mera coincidência…

Foi preciso apelar para valores morais para disciplinar o juiz. Mas, me parece que o juiz Hércules de Dworkin[6] – nada presunçoso e arrogante, para não falar o contrário – não estaria muito disposto a receber ordens alheias. Até porque quem mais poderia alcançar tão bem o espírito moral do povo para aplicar o Direito com integridade senão ele próprio?! Quem mais seria capaz de escrever um novo capítulo do “romance em cadeia” tão bem escrito quanto ele, que tinha completo entendimento da coerência que deveria manter com o passado histórico jurídico daquela sociedade?! O legislador? Esse legislador que nem consegue prever o futuro ou regulamentar satisfatoriamente o que sua população clama?! Impossível. Melhor deixar a cargo das Cortes a função de tomar todas as decisões substanciais da nação, para proteger as minorias da força esmagadora das maiorias!

Sim. O ativismo é bom até o ponto em que me favorece, até o ponto em que eu concordo com suas decisões. Já que a textura das normas é aberta, melhor aplicar a técnica do in dubio pro ego. E quando essa cobra voadora começar a ameaçar suas preferências axiológicas? Não adianta se filiar aos céticos e profetizar que todo sistema jurídico não tem jeito mesmo; nem adianta voltar à lógica cartesiana dos positivistas extremos[7] para tentar racionalizar a decisão judicial a ponto de resumi-la a silogismos.

Já chegou ao ponto em que o juiz escolhe até sobre o silêncio do legislador, se ele não falou por querer – o “silêncio eloquente” – ou se não falou sem querer – a “lacuna não intencional”. Assim, os cânones da interpretação não são capazes de eliminar essas incertezas, podendo, por vezes, agravá-las.

Mas a existência de escolhas trágicas não implica em um fim igualmente trágico. É justamente por meio do livre arbítrio que nos foi dado pelos deuses que o homem é capaz de traçar suas vitórias. O processo de tentativa e erro interpretativo em uma sociedade plural decorre não só da última palavra do juiz, mas da construção social e democrática dos significados até que eles se estabilizem, fruto de um consenso temporário[8], que logo se desfaz novamente, e assim por diante. Daí a importância dos operadores do Direito nessa destruição criativa.

Mas que ingratidão dos juristas maldizer a abertura da linguagem como um obstáculo do Direito?! É justamente por intermédio dos artifícios linguístico-argumentativos quase esotéricos que esses conseguem encantar o detentor do poder de decisão, dentro de um hipnótico processo dialético, que garante uma reserva de mercado especialmente vantajosa e um poder de influência considerável sobre os rumos sociais. A infinidade de problemas e possibilidades geradas pela relatividade linguística é o que permite que os filósofos e doutrinadores do Direito divaguem à vontade sobre teorias jurídicas, que façam fluir a envolvente e admirável arte das palavras.

Nota-se, pois, que a capacidade de articulação da linguagem aproxima os indivíduos dos centros de decisão, mas, por outro lado, exclui aqueles que não tiveram acesso a tais ferramentas da possibilidade da alteração de sua realidade social. Como Fabiano de Vidas Secas[9] mesmo compreendeu: sua incapacidade de manipular a dubiedade e a riqueza da linguagem marginalizava-o da humanidade e aproximava-o dos bichos – sua cadela Baleia também não conseguia convencer ninguém que a sua interpretação era a correta e que, portanto, deveria prevalecer.

Débora Costa Ferreira é mestranda em Direito Constucional. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2014) e em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília. Tem especialização na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional.

 

NOTAS:

[1] Expressão cunhada por Albert Einstein: “se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”. – If I have seen further it is by standing on the shoulders of Giants.– Carta de Newton para Robert Hooke, 5 de Fevereiro de 1676; Inspirada numa famosa metáfora (em Latin: nanos Gigantum humeris insidentes) atribuída por John de Salisbury à Bernard de Chartres

[2] HART, H. L. A. O conceito de Direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[3] Idem, p. 166.

[4] LUHMANN, Nicklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

[5] VON WRIGHT, Georg H. Deontic Logic, 1951.

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Tradução Nelson Boeira. 3a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

[7] Hart percebe que a história da teoria do direito é, sob esse aspecto, curiosa, pois costuma ou ignorar ou exagerar a indeterminação das normas jurídicas.

[8] Para Habermas, o estabelecimento do rol de direitos fundamentais de uma sociedade deve ser feito por meio de um ambiente dialógico no qual argumentos racionais possam ser apresentados e debatidos por cidadãos livres e iguais, fazendo com que a autonomia privada se compatibilize com a pública por meio da possibilidade de participação no processo democrático e da aceitabilidade dessas decisões por todos os destinatários. (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entrevalidade e facticidade II. Tradução: Flávio BenoSiebeneichjer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997).

[9] RAMOS, Graciliano Vidas Secas. Record, 74ª edição, 1998. Fabiano é o personagem principal de obra Vidas Secas. Fabiano é um homem rude, típico vaqueiro do sertão nordestino. Sem ter frequentado a escola, não é um homem com o dom das palavras, e chega a ver a si próprio como um animal às vezes. Empregado em uma fazenda, pensa na brutalidade com que seu patrão o trata. Fabiano admira o dom que algumas pessoas possuem com a palavra, mas assim como as palavras e as ideias o seduziam, também o enganavam.

 

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, em 21 de Junho de 2016.

“Estado da Arte”: A Magna Carta

Direito | 29/02/2016 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 05 de fevereiro de 2015

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Durante a Guerra Civil inglesa, o panfleteiro ultrademocrata Richard Overton se lembraria comovido de uma das incontáveis vezes em que foi preso pelos oficiais da Coroa: enquanto arrancavam “de mim a Grande Carta das Liberdades e Direitos da Inglaterra”, gritava “assassino, assassino, assassino!” Uma geração antes, Sir Henry Spelman, membro da ala conservadora do Parlamento, descreveria a Carta como “a mais majestosa e sacrossanta âncora das liberdades inglesas”.

No ano de seu oitavo centenário a Magna Carta é prestigiada mundialmente não só como a pedra fundamental do direito anglo-saxão, mas também, nas palavras do jurista britânico Lord Denning, “como o maior documento constitucional de todos os tempos – o fundamento da liberdade individual contra a autoridade arbitrária do déspota”.

Todavia, de suas 63 cláusulas, só 3 não caducaram ou foram revogadas, permanecendo vigentes na Constituição do Reino Unido. E nos últimos dois séculos não faltaram historiadores que denunciassem a Grande Carta como um “mito” elaborado ideologicamente sobre uma colcha de retalhos de exigências incôngruas e mal costuradas em nome dos interesses privados da elite feudal do século XIII. O próprio Overton diria em outra ocasião, numa chave bem menos romântica, que a Carta é “uma coisa miserável contendo muitas marcas de opressão intolerável”.

Convidados

– Eduardo Tomasevicius Filho: mestre em História Social e professor doutor do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Maria Cristina Carmignani: professora doutora de História do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Tomás Olcese: professor de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas e membro do grupo de pesquisa “Direito Privado Comparado Contemporâneo” da Universidade de São Paulo.

Referências
  • Origem dos Direitos dos Povos de Jayme de Altavila (Ícone editora).
  • Magna Carta de James C. Holt (Cambridge University Press).
  • Magna Carta – Its Role In The Making Of The English Constitution 1300–1629 de Faith Thompson (University of Minnesota Press).
  • “The Magna Carta” em In Our Time.
  • Magna Carta: Manuscripts and Myths de Claire Breay (The British Library).
  • Struggle for Mastery: The Penguin History of Britain 1066–1284 de David A. Carpenter (Penguin).
  • Magna Carta: Through the Ages de Ralph Turner (Routledge).
  • A History of The English People de Paul Johnson (Littlehampton).
  • Roots of Liberty: Magna Carta, Ancient Constitution and the Anglo-American Tradition of Rule of Law de Ellis Sandoz (Liberty Fund).
  • Magna Carta. A commentary on the Great Charter of King John de William Sharp McKechnie.
  • A Short History of England: The Glorious Story of a Rowdy Nation de Simon Jenkins (Public Affairs).
  • An Introduction to English History de J.H. Baker (Oxford University Press).
  • Historical Foundations Of The Common Law de S.F.C Milson (Oxford University Press).
  • Les Grands Systèmes de Droit Contemporains de René David (Dalloz).

 

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Echo’s Studio

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/a-magna-carta/