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Amor, ontem e hoje

Opinião Pública | 18/10/2017 | | IFE CAMPINAS

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Recentemente, conversava com uns amigos sobre os tempos de faculdade. Cada um indicou seu maior legado. Para uns, foi a formação acadêmica; para alguns, foram as amizades; para outros, foram as festas e os jogos universitários. Para mim, foram tempos inesquecíveis em muitos sentidos, mas o maior legado do Largo de São Francisco foi o amor. E, por isso, sempre que vou ao centro de São Paulo, passo por lá, sento-me entre aquelas arcadas históricas e simplesmente me desligo por alguns instantes do mundo em volta.

A qual amor me refiro? O amor ao direito, à minha profissão, aos estudos, aos meus amigos, aos injustiçados e à minha segunda namorada, que se casou comigo depois. Mas não necessariamente nessa ordem, porque corro o sério risco de ter problemas lá em casa. Assim, deixemos as causas de lado e concentremo-nos na pessoa amada.

Quando amamos uma pessoa, parece que nossa vontade é catapultada a uma capacidade de criar sem fim. Talvez isso decorra do fato de que uma pessoa é sempre uma fonte de novidades. Criar é fazer que existam coisas novas. O mais criador que existe é o amor: “todo amor é criador e não se cria mais que por amor”, já disse o poeta.

Por exemplo, nesse afã criativo, o amor aguça a capacidade de superar as dificuldades para unir-se e conhecer ao ser amado. Busca sempre novas formas de afirmação do outro. Mas, busca, sobretudo, uma coisa fundamental: sua perpetuação imortal no outro, ainda que a morte, um dia, venha a separar os amantes fisicamente.

Cada um de nós é um ser intrinsecamente amoroso, é uma realidade amorosa. Seria interessante estudar histórica ou socialmente a condição amorosa, que se realiza de formas muito diversas, com variações de intensidade e de conteúdo, nas manifestações reais da vida pessoal ou literárias da vida social. E relacionar esse dado com a atitude face àquela imortalidade.

Será que não existem épocas em que o homem sente fortemente a pretensão de imortalidade, tem vivo interesse por ela, por continuar vivendo sempre, precisamente porque tem uma realidade intensamente amorosa? Pelo contrário, não sucederá que, em épocas em que a capacidade amorosa decai, o nível amoroso anda baixo, produz-se diretamente uma queda no desejo de imortalidade, da pretensão de perdurar?

Apesar do ceticismo que, infelizmente, mina a capacidade de amar das pessoas nos dias atuais, ainda há manifestações culturais, principalmente na música e na literatura, que enaltecem aquela perpetuação imortal do amor. À medida que se ama, necessita-se continuar vivendo ou voltar a viver depois da morte para continuar amando. Recordo-me de uma bela afirmação de Agostinho: “meu peso é meu amor, por ele sou levado onde quer que eu vá”. É o peso da vida humana, o amor, que nos carrega de uma parte a outra.

Hoje, tenho a impressão de que vivemos numa crise de amor. O amor, essa constante disposição da vontade humana, deu lugar para os afetos, sempre instáveis, em todos os relacionamentos. E, num ambiente de pluriafetividade, não há espaço para um desejo de imortalidade. É o aniquilamento do amor. Tudo passa a ser fugaz e superficial. Líquido.

“Tu que eu amo, não morrerás”, é a feliz fórmula de outro poeta. Isso significa a impossibilidade de se pensar no fim da pessoa amada. Necessita-se dessa pessoa para que a vida tenha sentido. Se o homem estivesse destinado a perecer, não seria tudo um enorme engano, uma espécie de brincadeira de mau gosto? A vida teria um sentido? Mas o que impulsiona essa maneira de ver as coisas é precisamente o amor.

Se não se ama, tudo cai na própria base e já não importa nada. Em outras palavras, quem não ama com aquele afã criativo de eternidade, não só não deseja continuar a viver, mas já converteu sua vida num tremendo engano. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular​, edição 18/10/2017, Página A-2, Opinião.

Adultos adolescentes, família fragilizada e sociedade esfacelada

Direito | 12/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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RESUMO

Assistimos, neste começo de século, à interdição das diferenças: tudo parece organizar-se para que o indivíduo, no afã de buscar a igualdade entre os sexos, acabe por achar que somos todos parecidos. A sociedade, fascinada por si mesma, olha-se num espelho quebrado pela ausência de alteridade. Nessa realidade despedaçada, reconhecer a diferença torna-se inaceitável, porque se induz a encerrar o outro na representação de si para fazê-lo existir socialmente no prolongamento da própria imagem.

No seio familiar, esse fenômeno provoca o enfraquecimento ou a negação de uma série de funções simbólicas que permitem ao indivíduo vincular-se socialmente com os outros e, como efeito, o indivíduo dessocializa-se até tornar-se desinstitucionalizado. Uma vez fragilizada, a família perde sua insubstituível aptidão de formar indivíduos socializados, criando as bases para uma sociedade esfacelada.

Palavras-Chave: Família, Sociedade, Diferença, Ruptura, Crise.

ABSTRACT

TEENAGERS ADULTS, WEAKENED FAMILY AND SHATTERED SOCIETY

In the beginning of this century, we have witnessed an interdiction of differences: everything seems to be disposed in order to lead the individual, in his eagerness to seek gender equality, to believe that we are all alike. Fascinated by itself, society looks into a mirror broken by the lack of otherness. In this scattered reality, the acknowledgement of differences becomes unacceptable, because the individual is lead to believe that the recognition of others is limited to its own reflection, in order for them to socially exist only as an extended image of one’s self.

Within the family, these events cause the weakening or denial of numerous symbolic functions that allow an individual to socially relate with others and as a result the individual dissocializes until he becomes noninstitutionalized. Once it’s weakened, the family loses its irreplaceable faculty to form socialized individuals, creating the foundation of a scattered society.

Keywords: Family, Society, Difference, Break, Crisis.

INTRODUÇÃO

Nos dias atuais, a palavra-chave nas relações sociais é a diversidade. A reivindicação das identidades próprias que, no fundo, definem as diferenças, nunca foi tão significativa: desde as relações entre nações e a autodeterminação dos povos até a adoção de novos papéis sexuais tomados a partir de novas visões da sexualidade.

Embora a reivindicação das diferenças não seja um fenômeno estritamente novo, é inquietante observar que, paralelamente a partir dos anos sessenta, mas, sobretudo, depois de Maio de 1968, fala-se, cada vez mais, de “comunidades”, sejam elas locais, periféricas, sexuais, etnográficas, de estilos de vida, tanto mais quanto se enfatiza o rompimento com o vínculo social.

Ao se multiplicarem os grupos minoritários, muitos por intermédio de ficções identitárias, nossa sociedade dá a ilusão de tolerar a diferença, quando, na verdade, acaba por anulá-la: ser idêntico na tribo social e não se sentir ligado socialmente ao conjunto da sociedade. A diferença exaltada no parágrafo anterior resta aqui ofuscada justamente por sua negação.

Nesse amálgama estandartizante proporcionado pela interdição da diferença, o indivíduo tem dificuldade em se socializar e, em muitos casos, recorre à solidariedade ou prefere ser assistido e, se puder, até ser desresponsabilizado socialmente.

O indivíduo só é capaz de apreender, de forma narcisista, aquilo que se assemelha a ele e, sem possibilidade de inscrever-se numa história de vida, prefere viver o aqui e o agora, o imediato, sem se preocupar com as consequências, em relação aos outros e à sociedade, de suas ações e omissões.

Os efeitos dessa onda desinstitucionalizante estão em oferecer para a sociedade modelos incompletos nas dimensões socializantes da família. O casal, a sexualidade, a família propriamente dita, a educação familiar e os quadros simbólicos que acompanham tais dimensões são particularmente atingidos pelos influxos desse mundo indiferenciado.

Como se dão os efeitos da interdição da diferença na órbita familiar? Essa indiferenciação porta nuances negativas para o ente familiar? Caso afirmativo, como superar esse quadro fático, a fim de que não criemos as condições para o advento de um sociedade esfacelada?

A partir dos detalhes do cotidiano familiar, veremos que brota o implícito que estrutura o comportamento familiar, onde são vincadas muitas das representações sociais e das linguagens discursivas que circulam atualmente. Nosso caminho desenvolve-se desde este ponto de partida empírico.

DESENVOLVIMENTO

Historicamente, os anos sessenta foram tempos de questionamento social, cujo ápice deu-se em Maio de 1968. Nesta data, aquilo que começou com uma greve geral de trabalhadores acabou por se transformar numa revolta popular, liderada por estudantes universitários, ocasião em que, nesse barril de pólvora político, novas barreiras étnicas, culturais, etárias e classistas procuraram-se impor, como efeito de ideias inspiradas por postulados marxistas e anarquistas.

Muitos estudantes viram o evento como uma oportunidade para sacudir os valores da “velha sociedade”, contrapondo ideias progressistas sobre a educação, a sexualidade e o prazer. No campo pedagógico, Maio de 1968 pretendeu emancipar-se do sistema educativo instaurado no século anterior que, de fato, já havia se esgotado em muitos de seus postulados epistemológicos. Contudo, Maio de 1968 foi além: era preciso destruir e negar o passado, a fim de surgir um admirável mundo novo. Aliás, como tudo na retórica progressista, cuja beleza consiste em sabermos como começa e ignorarmos como termina.

Nesse caso, já não mais: um movimento formado por adolescentes significou a expressão da recusa da entrada na sociedade dos adultos. De lá para cá, as ditas ideias progressistas permaneceram no mundo juvenil e, indiretamente, influenciaram outras dimensões da realidade, mormente a familiar. Sem que seus defensores sequer desconfiassem disso.

Maio de 1968 consagrou, sob o manto do posteriormente denominado pós-modernismo, o indivíduo-rei em prejuízo do senso social, a sexualidade divorciada da afetividade, a confusão entre sexo e gênero, a recusa do dado parental, o império da subjetividade, a abolição do sentido da lei de Édipo, o eclipse ou a indiferença da função paterna no seio familiar e o declínio da racionalidade em prol da irracionalidade no pensamento.

Jean-François Lyotard destacou, no âmago dessa visão de mundo pós-modernista, o abandono das precedentes metanarrativas fundacionais e a deserção de concepções genéricas, no dizer de Giddens (2005:536), idôneas a dar uma vazão de sentido universal ao homem, à história e à sociedade. “Numa excessiva simplificação, tem-se por ‘pós-moderno’, a incredulidade quanto às metanarrativas”1 (LYOTARD, 1994:7).

Em outras palavras, equivale dizer que a pós-modernidade consiste na falta de crença em fundamentos reais para o mundo e para os discursos humanos. É uma espécie de contrafundacionismo ou antiessencialismo e nisso repousa seu traço distintivo em relação às visões de mundo que a antecederam.

Poderia ser dito que, se para o modernismo, a verdade é relativa, para o pós-modernismo, a verdade é irrelevante. O abandono das metanarrativas propiciou a avulsão de uma série de grandes teorias (pós-estruturalismo, teoria crítica, teoria do discurso, holística), com a diferença de que estas, em relação às metanarrativas pretéritas, buscam uma autoafirmação resignada à autorreferencialidade: a regressão infinita de enunciados nada mais é o tributo que se presta à abdicação do amparo numa verdade ou bem fundacionais.

A circularidade interna de tais teorias é, ao cabo, sua fonte de “legitimação epistemológica”. Seus defensores são presas de sua própria armadilha intelectual. Na carona de tais teorias, assistimos, quarenta anos depois de Maio de 1968, ao crescente império do “cada qual faça o que quiser”, perfeitamente legítimo, porém, no mais das vezes, sem qualquer interesse pelas consequências desse postulado sobre o tecido social, como se fosse possível atacar a estrutura do quadro simbólico questionado pelo movimento em foco dessa maneira. Salvo se, conforme já dissemos, suas ideias tiverem permanecido aprisionadas na primavera da vida. Então, a ingenuidade dessa postura explica-se por completo.

A atual atomização social já esgarça os poucos vínculos sociais ainda resistentes. O pensamento débil dá livre curso às mais arcaicas representações do ente familiar, tratando seus principais protagonistas – sobretudo a figura paterna – como se fossem crianças adultas: indivíduos que recusam viver a realidade, em nome de um imaginário social, preferencialmente desligado das correlatas responsabilidades que as tarefas familiares sempre demandaram em qualquer época histórica.

Cada um faça o que quiser!” é um lema que solapa as bases de qualquer tentativa de uma sólida constituição do ente familiar, cujos reflexos são sentidos na órbita comunitária em termos de sociabilidade. Ou melhor, da falta desta. Como efeito prático desse lema, as questões familiares vêm cada vez mais solicitar a proteção do juiz ou mesmo do médico. O lema de Maio de 1968 pretendeu ignorar, a partir de suas próprias visões sobre educação, sexualidade e prazer, uma certa estrutura antropológica objetiva do ente familiar.

A operação teve sucesso, mas sobre as ruínas que restaram constrói-se muito pouco ou mesmo nada, porque muitas das propostas do movimento de Maio de 1968 representam o testemunho de carências de uma sociedade esfacelada por não saber articular a dimensão conjugal com a pessoal e mesmo demonstrar algum apreço pelo sentido de sociabilidade do ente familiar.

Essa dissonância é uma das razões que explicam muitas das dificuldades com as quais se confronta a família contemporânea. Com efeito, a família, na imensa maioria das pesquisas de opinião, ainda representa um valor muito caro para os indivíduos, prova das várias expectativas que o ente familiar suscita entre nós.

Entretanto, a família parece trilhar por sendas experimentais que podem levar a precipícios existenciais e vivencia fortes tensões que, longe de serem sequer abordadas, são reiteradamente negadas, em prejuízo da solidez estrutural desta instituição natural, anterior mesmo à qualquer religião monoteísta: correspondem, a partir de nossa experiência forense no direito de família, à banalização das rupturas conjugais pela mentalidade divorcista, à desvalorização do matrimônio em prol de outras conformações conjugais , à estandardização dos novos arranjos familiares e à aversão ao recâmbio geracional. Trataremos de cada uma dessas sendas e tensões daqui por diante.

Banalização das rupturas conjugais

Desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional 66/10, que possibilitou o divórcio direto, sem necessidade de separação judicial prévia, o número de divórcios nos tribunais tem aumentado vertiginosamente2. Desnecessário concluir que, a longo prazo, os divórcios, que têm um enorme peso sobre uma sociedade, podem alimentar um sentimento de insegurança, a ponto de o indivíduo duvidar não apenas do empreendimento familiar, mas também do êxito de qualquer projeto pessoal num seio conjugal. Por que a tônica das rupturas?

A crescente instabilidade dos vínculos familiares testemunha antes de mais nada as dificuldades de inserção do indivíduo na existência social. Já não se consegue tratar mais das crises, salvo se pelo caminho espinhoso da ruptura. Em muitas audiências conciliatórias em processos de família, parece que o mínimo problema ou acúmulo de ressentimentos ou de questões mal resolvidas ao longo da relação conjugal só pode ser resolvido pela petição de divórcio, potencializada pela norma contida na Emenda Constitucional 66/10.

Essa válvula de escape divorcista influencia os comportamentos sociais na medida em que, agora, basta solicitar junto a um cartório extrajudicial a petição de divórcio, sem que os envolvidos tenham a possibilidade ou os meios de compreender o que se passa em suas vidas.

Um problema que poderia ser restrito à uma escolha equivocada de parceiro ou à evolução divergente de personalidades transforma-se, com o tempo, num problema social, inclusive econômico, a julgar pelos altos custos financeiros do divórcio, assunto que tem sido objeto de estudo por muitos institutos de economia americanos, dado o elevadíssimo número de divorciados naquela nação: para cada americano casado, existe um divorciado.

A facilitação do divórcio só se presta ao fim utilitarista de alívio dos tribunais da pletora de processos: uma série de problemas não percebidos por ocasião do divórcio somente aparecerão mais tarde. Então, esses novos problemas serão transformados, muito provavelmente, em outros processos. Essa pulsão desagregadora – diante de um conflito conjugal, o indivíduo sequer cogita a chance de tratamento – foi alçada à condição de dominante psicótica no direito de família.

Aceitar essa morbidez existencial equivale a se fechar na própria impotência de agir diante dos contratempos e a fazer vista cega para os problemas que irão aflorar mais cedo ou mais tarde. O indivíduo realista é aquele que aceita enfrentar as interrogações da vida para dar-lhes respostas e, como efeito, viver melhor.

Também contribui para essa pulsão desagregadora a ideia de que a afetividade entre o casal terá as respostas para os problemas e as crises da vida conjugal. “Basta que se gostem muito e tudo se resolverá!”, costumava ouvir de uma psicóloga judicial que me auxiliou por muito tempo nas audiências de conciliação. Respondia para ela, em tom jocoso, que, se fosse muito ingênuo, acreditaria nisso.

O amor, no sentido objetal do termo, não é, de início, um sentimento, mas, sobretudo, o desejo de se construir uma relação comum que se inscreve na duração temporal. Os sentimentos, por mais nobres que sejam, constituem um dos elementos da relação de amor, mas não a definem por si só. Dessa maneira, confundem os afetos com a relação amorosa, que lhe serve de base. Os afetos não gozam de sentido em si mesmos. São relativos à natureza da relação e dependem, em muito, de um projeto de vida no âmago do qual adquirem sentido e alcance.

Mas os sentimentos não influenciam apenas os mecanismos de resolução dos conflitos conjugais. Alimentam a imaturidade que se vê na maioria das audiências de instrução em matéria de família e enfraquecem o vínculo conjugal, predispondo-o, com maior envergadura, à ruptura. Em relacionamentos cujos afetos assumem o reinado existencial, as demandas daí decorrentes detêm um tal controle que seria conveniente que seus protagonistas pudessem refletir sobre a própria personalidade e história pessoal, a fim de saber discernir entre sentimentos, desejos e sinais distintivos de uma autêntica relação amorosa.

Contudo, não o fazem, mormente porque, contemporaneamente, os indivíduos não são portadores de uma gama de recursos interiores, cujo efeito reside em deixá-los desprovidos diante das legítimas expectativas que um amor verdadeiro é capaz de produzir nas vontades de indivíduos enamorados. Prova disso é o baixo interesse das pessoas no cultivo da interioridade: preferem, cada vez mais, canalizar um esmerado esforço para cursos de capacitação, especialização e reciclagem profissionais.

Esquecem a máxima aristotélica de que o agir segue o ser. Se o aprimoramento é focado somente no agir (aqui, no sentido de fazer), ele não se solidifica no indivíduo, pois não foi cultivado na dimensão anterior, o ser, a qual dá fundamento, alcance e sentido para o agir, porque lhe é precedente.

Quando os afetos ditam uma realidade tão rica e profunda como o vínculo conjugal, outro inconveniente notado é justamente a perda do gosto por projetos em comum de longo prazo. Então, a primeira vítima desse dado sociológico é a criança. O divórcio é uma constante ameaça a solapar sua personalidade.

Muitos dos problemas de identidade sexual e de socialização têm, como causa direta, conforme pode ser lido nos estudos psicossociais, os problemas de filiação. O menor sofre com a quebra do vínculo conjugal. Defender o contrário é querer jogar o problema que surgirá, anos depois, para debaixo do tapete.

Ouço, com frequência, nas audiências, o advogado proclamar para a criança que “seus pais se divorciam, mas continuam a amá-la”. É um bom exemplo da afirmação feita no parágrafo anterior. Tais palavras ignoram a irracionalidade afetiva do menor, porque, para ele, o amor dos pais passa, essencialmente, pela relação conjugal deles, que significa uma espécie de amor parental: porquanto os pais se amam em sua relação conjugal é que a criança sente-se amada e, a partir dessa relação parental, ela constrói sua identidade. Quando o divórcio surge em seu horizonte, o amor parental dá lugar ao amor de sedução.

A continuidade na multiplicação das rupturas ainda provocará outros problemas sobre o tecido social, o equilíbrio dos indivíduos e a economia nacional: dificuldades escolares, instabilidade juvenil, perda de autoridade dos pais, falta de pontos de referência na existência, empobrecimento decorrente da divisão de renda familiar (o sujeito constitui uma segunda família, mas ainda está amarrado pela pensão alimentícia da família anterior), sem contar o fato de que a lei, ao invés de tutelar a família, resolve inscrever normativamente situações relacionais problemáticas.

A criança, depois de um lapso temporal, torna-se adolescente e, a partir de então, descobre outros modelos afetivos vividos por outros adultos e valorizados nas representações sociais e na mídia, a ponto de experimentar inconscientemente uma incerteza diante da imaturidade do ambiente, preferindo a falsa tranquilidade de uma relação mais sentimental que amorosa. Ao cabo, consegue, no máximo, buscar a si mesmo por meio do outro.

Torna-se um adulto, já entrado em idade, inseguro afetivamente, como efeito perverso da alteração generalizada do vínculo de confiança que tradicionalmente unia os parceiros conjugais entre si, o amor. Hesita em dar sua fidúcia ao outro e, por isso, a fidelidade é, hoje, uma garantia muito comumente exigida do outro como condição de adesão numa vida em comum.

Desvalorização do matrimônio

O aumento de divórcios leva a uma atitude pessimista ou, pelo menos, cética, em relação ao matrimônio. Esse fenômeno não é novo na história da humanidade. Todavia, nos dias em que vivemos, isso é agravado pela tendência legiferante de valorização das práticas minoritárias em todos os domínios da vida social.

Terminamos por modelizar as representações coletivas, muitas delas problemáticas, como uma perspectiva de futuro. Sem prejuízo desse agravamento, de algumas décadas para cá, resolvemos separar o amor do sexo e, depois, o sexo da procriação. Com esse quadro sociológico, repleto de problemas e contradições daí decorrentes, o vínculo entre relação amorosa e matrimônio, como diz o bardo português, tende a padecer de todo fenecer.

A questão do matrimônio surge, segundo nossa experiência forense nas lides alimentares e declaratórias de paternidade, porque elas acabam por obrigar os envolvidos à reflexão sobre o sentido e o alcance da dimensão conjugal que, habitualmente, precede tais demandas. É uma espécie de tributo que o erro presta ao acerto.

Mesmo assim, aquela atitude pessimista leva muitos a se perguntar qual seria o liame entre os afetos e a necessidade de um matrimônio. Creem, honestamente, ser suficiente um forte apego sentimental recíproco, sem qualquer exigência de publicização ou institucionalização social da relação consolidada empiricamente a dois. Eis uma forma muito comum de se confundir amor com afeto até que o casal resolva ter filhos.

Nesse momento, muitos ainda pensam em convolar matrimônio, o que demonstra que os elementos conjugal e parental ainda estão estreitamente associados à órbita social daquele vínculo. Com efeito, enquanto a relação permanece num plano unicamente sentimental, a questão da identidade conjugal não vem à tona.

Os indivíduos sentem-se muito bem juntos e permanecem no âmbito de uma afetividade vivenciada sem muita necessidade de comprometimento recíproco, porque, no máximo, os envolvidos trilham por uma jornada individual de busca das próprias gratificações afetivas.

Em outras palavras, não se cuida primordialmente de construir uma história de vida juntos, mas de experimentar a si mesmo por meio do outro, por intermédio de uma resposta imediata dos sentimentos na interioridade existencial de cada envolvido. Sem essa sensação de completude afetiva, os indivíduos, se meros conviventes, separam-se. Se casados, divorciam-se.

O matrimônio, então, não deixa de adquirir psicologicamente uma certa dimensão psicossomática e mesmo histórica. Uma vez adquirida a maturidade temporal pelo indivíduo enredado nessa situação, a variável temporal deixa de ser reduzida à fugacidade dos afetos: surge o desejo de se construir uma existência comum, uma coexistência, que não seja mais fundada na provisoriedade e na precariedade de uma coabitação.

Alcança-se o sentido conjugal da relação a dois e, como consequência, tenciona-se criar uma comunidade de vida que se inscreve no tempo e passa pelo vínculo geracional: a maternidade e a paternidade. Aqui, inevitavelmente, põe-se o problema do matrimônio.

No entanto, para que se institucionalize a união de fato – a inscrição na existência e a socialização da vida afetiva-sexual – os envolvidos pedem uma espécie de cheque em branco recíproco, com vistas à duração dessa união, fadado a não ser sacado, porque a falta de confiança em si e nos próprios afetos, decorrente de um ceticismo no amor, somado ao recuo da sexualidade para um registro puramente intimista e individualista, impedem a superação dessa etapa de comprometimento.

Ao contrário, caso vencida essa etapa, depois de casados, diante dos primeiros contratempos conjugais, a incerteza toma a cena e já não mais se tem a segurança de si para o prosseguimento da aventura conjugal. O divórcio é cogitado, nessa etapa, como uma solução viável, mas causa medo pelos efeitos publicamente nefastos produzidos, e o legislador, erradamente, valoriza-o ao afrouxar os requisitos para seu reconhecimento legal. De resto, surpreende-nos como, cada vez mais, a lei protege, cada vez menos, a instituição matrimonial.

Esse quadro empírico, aliado à supervalorização epistemológica da afetividade, encarada como a única realidade fundante de uma relação a dois, tende a provocar a rejeição ainda maior dos indivíduos pelo casamento, pelo temor da falta de confiança de si: o sujeito irá se questionar se encontrou o parceiro ideal para a construção de uma vida em comum ou se esse parceiro goza de pontos e referências comuns para que haja um entendimento recíproco.

De fato, são perguntas muito pertinentes e importantes para qualquer indivíduo que se vislumbre na iminência de convolar uma vida em comum. Todavia, a tendência a que assistimos nos processos de divórcio, a partir da leitura dos estudos psicossociais, é a de que tais questões acabam por ser mal respondidas, em regra, em nome de uma tábula rasa que o indivíduo faz de todas suas referências e marcos identitários, causada pelos fortes influxos dos sentimentos.

Mais tarde, paga-se caro por isso, porquanto a renúncia voluntária a uma importante dimensão da existência pessoal, antes do envolvimento afetivo a dois, equivale a um empobrecimento da personalidade. Prova de que a realidade de uma vida em comum não pode repousar exclusivamente nos afetos, como procura fazer crer, equivocadamente, boa parte das obras dos estudiosos do direito de família.

Estandardização dos novos arranjos familiares

A incidência, segundo nossa experiência judicial, de pais de segunda ou terceira união como réus nas ações de fixação de alimentos é crescente e, ordinariamente, vem em prejuízo de um justo balanceamento financeiro na equação necessidade-possibilidade. Muitas vezes, mormente quando o alimentante pertence às classes sociais mais baixas, temos a impressão de estar tirando o pão da boca do filho da primeira união e entregando-o ao irmão, por parte de pai, da terceira união.

Esse problema decorre do fato de ser cada vez maior o número de indivíduos abertos a dissociar a vida parental da vida amorosa. Deixam o pai ou a mãe de seus filhos para se engajar numa outra relação a dois, sem, por isso, desengajar-se da relação parental anterior.

Aos poucos, a sociedade vai se acomodando a essa tendência e o legislador ainda chancela, legalmente, tais práticas sociais, sob o argumento reducionista de que “o direito segue a vida como ela é”, como se o Direito confundisse-se com a Sociologia.

A par disso, muitas correntes no campo de direito de família imiscuíram-se disso: introduzem inúmeras confusões na juridicidade familiar, promulgam leis contraditórias e atabalhoam o trabalho dos notários e dos advogados especializados em questões familiares.

Em questão de tempo, o direito não conseguirá chegar a um consenso na definição da noção de família. Introduziu-se na psicologia social uma nova clivagem que pouco favorece o amadurecimento afetivo, porque se nega à natural dimensão procriadora o direito de ser parte integrante da sexualidade.

A difusão do modelo da livre convivência (ou união livre) influenciou sobremaneira as concepções atuais de compromisso conjugal. Será que não seria o momento de avaliar se essas ideias e modelos não agem em antinomia com as demandas afetivas dos indivíduos e muito à margem de uma reflexão antropológica objetiva da família?

Será que essa colcha de patchwork, chamada de “direito das famílias”, não desestabiliza os indivíduos e desestrutura o corpo social? Será que a negação do vínculo social amoroso, desencadeado pelo paradigma da união livre, não exprimiu o começo do questionamento de todos os ideais a partir dos quais se construía o discurso amoroso?

Da livre convivência (ou união livre) passamos a três concepções que coexistem atualmente com o matrimônio, a única dimensão que funda a família nos laços de sangue e da aliança conjugal: a união estável, a relação monoparental e o poliamor. A união estável, em essência, nada difere da coabitação clássica como conhecida na antiga Roma: era uma relação não declarada e definida pelo prazer, subtraindo a sexualidade de sua dimensão social. Os romanos tinham uma visão pessimista do amor e do casamento, fruto da influência estóica, a qual associava os afetos amorosos às complicações do matrimônio.

Hoje, a clássica divisão pagã da sexualidade tomou contornos contemporâneos com todas as complicações modernas do desejo sexual que conhecemos. Viver em união estável, nessa quadra existencial, revela um duplo desafio. Em relação à sociedade, como se não tivesse nada a ver com a história pessoal dos envolvidos, e a si mesmo, na constante tensão entre a publicidade ou a privacidade da relação a dois.

A união estável é uma espécie de casamento que não ousa dizer seu nome, afora uma diferença decisiva com este: a formalização da relação matrimonial ancora uma história no tempo, decorrente do “sim” inaugural que funda um querer viver e permanecer juntos, enquanto a união estável não supõe esse compromisso solene dos envolvidos, feito em plena liberdade e responsabilidade.

A relação monoparental também não é inédita na história da humanidade. No passado, em razão dos esforços de guerra ou de grandes epidemias, o filho passou a viver só com a mãe (mais comum) ou o pai. Esse modelo, outrora acidental, passou a ser buscado por si mesmo e teve sua igualdade reconhecida ao lado da família nuclear.

A sabedoria acumulada ao longo de mais de cinquenta séculos sugere que a configuração parental ideal é aquela formada por um homem e uma mulher e, como corolário, deve receber uma tutela jurídica específica, na medida em que essa configuração reforça inúmeras dimensões do vigor teleológico da família. A relação monoparental, quando buscada como modalidade de vida, despreza com alguma arrogância semelhante acervo de sensatez.

Também não podemos nos esquecer dos reflexos do princípio da liberdade sobre o ente conjugal nos dias atuais, a culminar com a ideia de poliamor. A liberdade confunde-se, cada vez mais, com os mandamentos da cartilha libertária, na linha de Nozick: a liberdade levada às últimas consequências.

Ser livre não se reduz à mera ausência de limites ou ao gozo de uns desejos. Uma pessoa que age segundo esta ótica certamente é menos livre que outra que aprendeu a ser crítica diante do objeto de sua vontade e se esforça com sabedoria em fazer melhores opções, atuando com o domínio de si.

Os defensores dos postulados libertários sugerem a ampliação da ordem conjugal para a união de pessoas de mesmo grupo (“poliamor”). Poderiam argumentar que o contrário equivaleria à violação do direito de interação com o(s) outro(s), segundo a própria vontade e não com base dos ditames do Estado.

Em primeiro lugar, a relação conjugal entre uma mulher e um homem é um dado natural e sociológico. Não foi criado por nenhuma religião, filosofia ou credo político. Em segundo lugar, se há liberdade para a formação de qualquer relacionamento humano, não se pode dizer que toda relação é um ente conjugal, sob pena de se reduzir uma estrutura antropológica sociologicamente objetiva, majoritária e central a outra realidade alimentada pelo mero interesse a três, que mais lembra o fruto de um experimento social pós-moderno. Uma espécie de clube dos corações divididos. Essas três tendências, que reatualizam práticas antigas, poderiam representam modelo de referência aptos a manter e enriquecer o vínculo social? Poderiam gozar da mesma equivalência axiológica da relação entre um homem e uma mulher, declarada publicamente, institucionalizada e reconhecida pelo matrimônio? Se o matrimônio deixar de ser a referência e a norma social, como assegurar a institucionalização dos indivíduos no seio social?

Aversão ao recâmbio geracional

A atual tendência de queda da natalidade, fato público e notório no mundo ocidental, só pode ser invertida por uma mudança muito forte das formas e estratégias familiares: câmbios culturais, desde a superação da mentalidade anti-natalista ou contraceptiva, sem prejuízo da busca de um novo valor social para o rol de atributos maternos, além de políticas sociais, trabalhistas e previdenciárias coerentes com tudo isso. Do contrário, podemos assistir ao fenômeno da espiral negativa, consistente no abandono do trabalho pela mulher, com a consequente diminuição do ingresso de receitas familiares.

A planificação familiar dos anos 60 e 70 transformou-se em implosão familiar nos anos 80 e 90. Apesar disso, os processos migratórios ainda conseguem completar o buraco de recâmbios geracionais deficitários dos países mais opulentos. Mas não por muito tempo.

Uma drástica e prolongada diminuição da fecundidade significa: a) dramáticos câmbios de formas familiares (crescimento de famílias sem filhos ou com filho único); b) falta de “input” nos sistemas econômico e previdenciário, com efeitos regressivos; c) forte envelhecimento da população e explosão de demandas próprias dessa fase da vida, somado ao fato da diminuição de recursos, que deveriam proceder da força de trabalho mais jovem, escassa em razão das baixas taxas de recâmbio geracional; d) necessidade de se redefinir toda a sociedade a partir de outras bases multiétnicas e multiculturais.

Nosso ambiente cultural não está mais interessado em refletir nos riscos de um baixo nível de recâmbio geracional, porquanto: a) os indivíduos preferem assumir posturas sentimentalistas, que impulsionam os indivíduos à postura ambígua de se almejar ter filhos, mas também de se ter receio disso; b) a sociedade assume que a procriação desliga-se por completo da orientação familiar, porque, hoje, a procriação é um cometimento feito por indivíduos e entre indivíduos. Não se parte e não se precisa chegar à uma família nuclear. Não se vê que a procriação é um fenômeno mediado por uma relação de casal e pelo contexto familiar. Prefere-se que ela se desvincule das redes e das mediações entre os sexos e as gerações; c) a procriação, fenômeno natural e fisiológico, assume ares de fenômeno artificial e patológico.

A fecundidade de uma geração é, sobretudo, uma resultante da história das mentalidades. Atribuir valor preponderante a fatores culturais não significa menosprezar o rol de fatores materiais e seus efeitos na fecundidade. Todavia, no fundo, um maior ou menor recâmbio geracional revela aquilo que os filhos realmente representam para os pais. Se vivemos num ambiente de aversão à fecundidade, os filhos, então, andam mal vistos.

Considerações finais

A julgar pela manutenção do quadro atual, a sociedade encaminha-se para um estado indiferenciado e acentuado pelos agentes sociais, cujas decisões nem sempre avaliam as consequências no seio social. Paradoxalmente, os ideais que moveram essa torrente de mudança, enraizados nos anos sessenta, mas, sobretudo, em Maio de 1968, terminaram por nos conduzir ao eclipse do pensamento sobre o sentido e o alcance da existência, com reflexos na cena matrimonial.

A atenção tão contemporânea aos mecanismos da vida psíquica e da subjetividade não pode mais fazer as vezes de reflexão filosófica, antropológica ou axiológica. Tudo na vida atual passa como se estivéssemos desprovidos de um legado veritativo das gerações precedentes, a partir do qual a vida poderia ser renovada em virtude das inflexões do pensamento atual.

Para se romper com esse quadro sociológico vigente, convém levar em conta três realidades simbólicas e tratá-las numa perspectiva antropológico-filosófica. A primeira delas, a da realidade do bem-estar humano, envolve a questão dos desejos interiores e a exacerbação da vivência destes para melhor se sentir viver, como é a tônica contemporânea.

Mas o desejo humano é insaciável, ainda mais quando o indivíduo toma a si mesmo por seu objeto. Por isso, o desejo precisa ser orientado e finalizado para assegurar a coerência da própria personalidade. Do contrário, a personalidade fica perdida e incapacita-se para saber o que deseja e, nessa perspectiva, o indivíduo nada ou muito pouco constrói.

Por isso, é indispensável que cada um construa sua existência a partir de algumas verdades perenes, de forma a entrar em contato com uma certa ontologia social, a fim de se superar a vida pulsional que carregamos dentro de cada um de nós.

A segunda realidade simbólica, a da consciência histórica, demanda uma certa maturidade temporal de saber aceitar e interiorizar a diferença, mormente entre as gerações familiares. Os mesmos influxos dos anos sessenta acabaram por criar uma ideia de tempo interrompido, movido pela ideia de uma juventude sem fim: a sociedade torna-se povoada de adultos adolescentes. Esvaziada de qualquer sentido transcendental, a vida social não permite mais ritmar, ritualizar, diferenciar e contribuir no bojo da relação das gerações umas para com as outras.

A terceira realidade simbólica, a do direito, propõe-se, contemporaneamente, a definir mais as relações e as realidades humanas em termos utilitários, segundo critérios estritamente econômicos e não em termos de sentido. A própria dimensão moral é vítima desse nivelamento por baixo: a ética da ação comunicativa leva-nos a muitos impasses sociais, porque essa perspectiva impede de se cotejar o caso singular com os postulados de uma lei moral perene, da mesma forma, guardadas as devidas proporções, como se pronunciava a cosmogonia dos antigos gregos e romanos.

Como efeito, hodiernamente, as verdades passam a ser normatizadas subjetivamente, a ponto de se negar a dimensão de norma objetiva que o próprio complexo de Édipo representa no seio da juridicidade familiar. Se o direito e a moral, cada qual em seu campo de atuação, perdem sua órbita universal, os indivíduos já não podem mais criar liames sociais nem se comunicar uns com os outros. Restaria apenas nos agrupar em classes de interesse coletivos e nos defender em tribos existenciais.

A batalha contra a vigente propensão rumo à uma sociedade indiferenciada passa pelo resgate antropológico das três dimensões anteriores, a fim de anular os efeitos nefastos que a atual realidade empírica das famílias fragilizadas proporciona e fomenta: a fragmentação e o esfacelamento da sociedade, formada por indivíduos desinstitucionalizados que já não mais dispõem de ideais que possam ligar uns aos outros.

A experiência da família depende das concepções que dela temos. Ela não é inata e procede de uma vontade e de um projeto de vida. Não podemos ficar nos simples movimentos das representações primárias e dos afetos, sem qualquer regulação social e (ANATRELLA, 1998:61) sem que se reconheça uma hierarquia entre as diferentes organizações afetivas e sexuais que favoreçam, em maior ou menor grau, o vínculo da sociabilidade e o desenvolvimento e a perenidade de uma sociedade.

A partir de um casal, constituído de uma mulher e de um homem que se tornam mãe e pai para seus filhos, a família nuclear3 atravessa a história e as culturas de todos os tempos e permanece como firme referência sociológica e antropológica para a construção da interioridade de cada indivíduo.

Eis a nossa contribuição para o debate nas relações entre família e sociedade, destilada a partir de um trabalho de indução teórica alicerçado na empiria familiar e desenvolvido analiticamente sob o filtro de uma maioridade profissional vivenciada pelas alegrias e tragédias das lides familiares, as quais são capazes de forjar pedagogicamente o homem que está por trás do magistrado que assina estas linhas.

A família é um projeto existencial pleno de expectativas, a envolver tanto o destino do indivíduo como o da sociedade. Quando a ontologia social da instituição familiar respeita sua ontologia natural, favorece-se, em muito, sua função socializante. Quando a família é fragilizada nessa relação ontológica, pelo efeito da mentalidade do fenômeno dos adultos adolescentes, a sociedade resta esfacelada.

André Gonçalves Fernandes é Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Mestre e doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito titular de entrância final em matéria de família e sucessões. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de ética, política e educação (DGP – Lattes) e professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU-IICS Escola de Direito. Juiz Instrutor da Escola Paulista da Magistratura. Colunista do Correio Popular de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Titular da cadeira 30 da Academia Campinense de Letras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANATRELLA, Tony. La différence interdite – sexualité, éducation, violence. Paris: Flammarioin, 1998.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Coimbra: Calouste Gulbenkian, 2005.

 

NOTAS:

1 “(…) On tient pour ´postmoderne’ l’incredulité a l’égard des metarécits”.

2 EC 66/10 – Emenda que instituiu o divórcio direto completa 5 anos. Números de divórcios dobrou após aprovação da medida. Nesse mês, a EC 66/10, que agilizou o divórcio, completou cinco anos. A medida trouxe outra realidade às famílias brasileiras, já que suprimiu prazos desnecessários e acabou com a discussão de culpa pelo fim do casamento. Antes, era necessário estar separado judicialmente há um ano ou separado de fato por dois anos para que o casal pudesse se divorciar. Carlos Fernando Brasil Chaves, presidente do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB-SP), entidade que congrega os cartórios de notas de SP, afirma que a medida consagrou a prática social, trazendo mais facilidade aos casais que não desejam mais viver juntos. “Hoje, as pessoas que optarem por um divórcio consensual, podem consegui-lo no mesmo dia.”. Segundo dados do CNB-SP, desde a instituição da EC 66, os cartórios de notas paulistas passaram a lavrar, em média, mais de 16 mil divórcios consensuais por ano, 100% a mais do que antes da emenda entrar em vigor. In: http://intranet.tjsp.jus.br/Clippings/Clipping.aspx?Id=44566. Acesso em 22.10.15.

3 Utilizamos o termo “família nuclear”, mas intuímos que essa expressão, em muitos campos do saber que se entrelaçam com o ente familiar, como, por exemplo, a sociologia da família, parece demandar um certo revigoramento epistemológico. Não trataremos disso aqui e não é uma questão de a expressão estar superada ou não. As investigações empíricas dizem que a família nuclear continua sendo o modelo mais difundido e, no senso comum, dizer família é aludir ao símbolo cultural da convivência estável no seio de um casal heterossexual e de seus filhos. Sem prejuízo disso, o fato de se enfatizar a família nuclear, seja para relevar sua importância, seja para acentuar sua crise, conduz à reflexão da família como célula ou esfera privada e essa imagem oculta ou elimina o protagonismo da família numa série de mediações constatadas empiricamente, como a mediação entre os sexos, entre as gerações e entre seus membros e a sociedade. A família como sujeito de mediação social. No clima cultural atual, a família converte-se num sistema de mediações relacionais que vão além da família nuclear: é a família pós-nuclear, a qual exerce um rol de mediações que superam a estrutura e a identidade da família nuclear. Não se pretende abandonar a noção de família nuclear; apenas se afirma que sua centralidade já não é mais dada em sentido normativo, como forma vinculativa ou constritiva.

Renan, Cunha e Gollum

Opinião Pública | 23/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Renan Calheiros, como sabemos, é o atual presidente do Senado. Tem 60 anos e é autor de alguns livros, entre eles um de título sugestivo, “Contadores de balelas”. Sua primeira eleição aconteceu em 1978, quando foi eleito Deputado Estadual pelo então MDB. Nessa época, travava uma luta feroz contra o prefeito de Maceió, Fernando Collor. Duas eleições para Deputado Federal mais tarde, filiou-se ao PRN e foi nomeado assessor de Collor, então candidato à presidência. Mas, devido a uma desavença política pelo Governo de Alagoas, deixou o partido e, à época da queda de Collor, pediu o seu impeachment. Em 1994, foi eleito Senador, cargo que ocupa até hoje. Responde, no Supremo, a 12 inquéritos, nove ligados a investigações sobre o esquema de corrupção na PETROBRÁS, um relativo à Operação Zelotes e outros dois que apuram irregularidades no pagamento de pensão a uma filha.

Eduardo Cunha tem 57 anos. Entrou na política graças a Fernando Collor, pois trabalhou durante sua campanha ao lado de P. C. Farias. Assim como Calheiros, era filiado ao PRN. Logo após a eleição, foi nomeado presidente da TELERJ, onde foi acusado de sua primeira irregularidade e teve de deixar o cargo. Trabalhou em outras estatais e, em 2000, teve de ser novamente afastado do cargo, desta vez da Companhia Estadual de Habitação, devido a irregularidades. Graças a Anthony Garotinho, elegeu-se Deputado Federal em 2002. Em 2015, assumiu a presidência da Câmara, de onde acaba de ser afastado pelo Supremo Tribunal Federal. Responde a três inquéritos na Lava-Jato e é réu em uma ação no STF.

Gollum é um personagem de O Hobbit e de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien. Inicialmente era um bom sujeito, mas, com o tempo, deixou de olhar para o alto: “Sua cabeça e olhos só se dirigiam para baixo”. Foi o começo da sua derrocada. Logo após viu o Um Anel, o mais poderoso de todos, com o seu primo. Matou o parente para obtê-lo. Com a preciosidade em mãos, ganhou o poder de se tornar invisível. Porém, tornou-se impopular com a família e foi expulso de casa e se escondeu em um lugar ermo. Lá ficou até perder o anel para Bilbo.

O que une esses três personagens é a sede de poder, que acaba por corromper um homem (ou hobbit). Em O senhor dos anéis, o fim de Gollum mostra o que acontece com todos os que buscam o poder para proveito próprio. Tolkien afirma que Gollum passou a odiar a luz e a escuridão e, curiosamente, passou a detestar acima de tudo o anel.

O simples hobbit Frodo – talvez como nós – não conseguia entender essa sede de poder e como Gollum passou a detestar o que mais amava. O sábio Gandalf explicou que ele nutria os mesmos sentimentos que por si próprio e por isso não podia deixar o anel, assim como nós não podemos nos libertar de nós mesmos. Dominado por esse poder maléfico, “não tinha mais vontade própria”.

Na conversa com o mago, Frodo pergunta por que não mataram Gollum quando tiveram a oportunidade. Gandalf diz que quem não deu a vida não deve tirá-la e acrescenta que não sabemos os percursos de uma vida. Portanto, seria precipitado achá-la digna de um fim. O que fazer, então, com Gollum? Tirar o seu anel de poder. Foi o que, de certa maneira, Frodo fez. O que fazer com Renan e Cunha? Destituí-los do poder e, se as acusações provarem-se verdadeiras, prendê-los. O STF fez a sua parte com Cunha. Falta Renan.

O fim de Gollum é triste: tornou-se um solitário que busca voltar a ter o poder de antes. Jurava ter sido injustiçado e que tinha bons amigos que iriam resgatar a sua dignidade. Renan e Cunha poderiam ser mais honrados: usar o anel uma última vez e desaparecerem para sempre da vida pública. Já fizeram mal o bastante.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE – Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 19/5/2016, Página A-2, Opinião.

Família: redução privatizante e função personalizante

Filosofia | 21/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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INTRODUÇÃO

 

Torna-te o que és! Foi o que disse, certa vez, o poeta pagão Píndaro acerca do homem. Do ponto de vista lógico, a afirmação de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:

“Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nascimento, podemos admitir, sem contradição, que aos nascermos ainda não somos seres humanos em plenitude, pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta: construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude, não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano. Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser humano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre por conta do duplo movimento de socialização e individuação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela individuação ele constrói a sua própria individualidade, tornando-se único, distinto de todos os demais no interior da mesma cultura”.

O fenômeno da família, no qual se insere o homem, decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial, o que se dá ordinariamente com a conquista de uma profissão.

Mesmo assim, o processo familiar não cessa, porque o elemento de potencialidade interior no ser humano é essencialmente maior do que nos animais irracionais: nestes seres, os limites de possibilidade e de realidade alcançam rapidamente sua descoberta, causando a impressão de já estarem predispostos em sua própria natureza. No ser humano, a situação é completamente diversa.

Por isso, como resultante da importância dessa dimensão familiar, nós devemos nos debruçar sobre o estado da arte familiar nos dias atuais. Há algumas décadas, pude escutar dos lábios de João Paulo II, que havia chegado para toda civilização ocidental a “hora da família”. Mais do que assinalar as respostas que a ideia contemporânea de família propõe-nos como solução para o período de transição da modernidade para a pós-modernidade em que vivemos[1], é imprescindível demonstrar como a família pode ser uma primordial e insubstituível protagonista das mudanças radicais que nossa sociedade reclama no alvorecer do século XXI.

Ao analisarmos as relações entre a família, como ente social, e seu atual entorno histórico-existencial, esboça-se claramente sua atitude defensiva, porque a instituição familiar vem sendo submetida a um progressivo processo de deterioração de suas bases ontológicas e, ultimamente, tem sido o alvo de ataques, diretos ou indiretos, de vários campos do saber, sobretudo nos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico. A família está cercada por todos os lados. Não nos estranha, pois, essa postura defensiva.

Entretanto, agora, é a hora da família. É a vez de sair dessa postura em prol de um protagonismo amavelmente ofensivo, em virtude, justamente, dos bens e deveres em jogo para o futuro da humanidade e do bem comum, porque os verdadeiros aventureiros das trilhas de nosso confuso e belo mundo são justamente os pais de família. Charles Péguy (1958:108) escrevia, há algumas décadas, que

“os aventureiros mais desesperados não são nada em comparação com eles. Tudo no mundo moderno está organizado contra esses loucos, esses imprudentes, esses visionários ousados (…) que se atrevem, com audácia, a ter filhos. Tudo está contra essas pessoas que se arriscam a fundar uma família. A única aventura que existe é aquela protagonizada pelos pais de família. Os outros estão hermeticamente fechados em seus mundos. Aquele que é pai ou mãe de família está aberto ao mundo de seus filhos. Os outros sofrem por si mesmos. Só os pais de família sofrem pelos filhos e em cada situação por eles vivenciada. Somente os pais de família esgotam o sofrimento temporal. Aqueles que nunca tiveram um filho enfermo, não sabem o que é a enfermidade. Aqueles que nunca perderam um filho, que nunca viram seu filho falecido, não sabem o que é a dor. E tampouco sabem o que é a morte”.

Assim, as famílias devem crescer com a consciência de serem protagonistas das chamadas políticas familiares e, em razão disso, assumir a responsabilidade de transformação da sociedade, porquanto, a prevalecer a atuação defensiva, as famílias serão as primeiras vítimas justamente dos movimentos e das ideias que alimentam uma espécie de anticivilização, como já podemos observar em muitas tendências intelectuais da atualidade e em muitos fatos sociais e políticos, cujo pantagruelismo é patente.

A família constitui, ao cabo, a fonte da civilização do amor, na feliz expressão cunhada por Paulo V[2]. A família, como motor de uma verdadeira e fecunda revolução social, é a missão que nos incumbe diante das portas do terceiro milênio de nossa história. Afinal, como já lembrava João Paulo II (1982:90), “tal é a família, tal é a nação, porque tais são seus membros”, palavras que serão o eixo estruturante deste trabalho intelectual. Então, parafraseando nosso poeta pagão, se a família deve ser o centro e o coração da civilização do amor, família, torna-te o que és!

 

PRIMEIRA PARTE

A instituição familiar não é fundada numa filosofia romântica e vaga e que serve de pouco no momento em que se pretende demonstrar a ontologia de seu ser no contexto da “cultura de repúdio” (SCRUTON, 2011:XII) em que vivemos. Uma cultura que corresponde à maneira como o Ocidente tende a repudiar os seus valores estruturais: a filosofia grega, o direito romano e a tradição religiosa judaico-cristã. Essa “cultura de repúdio” não representa apenas um empobrecimento moral ou mesmo epistemológico no confronto dos homens com o mundo.

Começa por ser um empobrecimento ontológico, independentemente de crença religiosa ou até mesmo de indiferença ou ausência desta. Sem um contato vital com aquele rico e perene arcabouço da genealogia ocidental, ficamos cegos, surdos e mudos para compreender corretamente dois milênios de civilização e todo seu legado existencial. E, no que toca ao campo filosófico, nossa razão fica um tanto obscurecida na tarefa de investigação da essência das coisas e a instituição familiar não fica imune a isso.

A respeito da família, o retrospecto histórico demonstra que se dá um acordo universal do gênero humano, explicado pela própria índole da instituição familiar. Não existe instituição mais próxima da natureza que a família. Sociedade simples, lastreada de maneira muito imediata em certos instintos primordiais, a família nasce espontaneamente do mero desenvolvimento da vida humana.

O Estado também deriva de certas exigências naturais, como o fenômeno do poder. Mas o quanto ele dista, sobretudo se concebido a partir da Paz de Westfália e aprimorado à luz dos princípios do Welfare State com todos seus mecanismos e órgãos artificiais, do instinto social primário que impulsiona o homem a sair do solipsismo e unir-se com seus semelhantes!

Ao contrário, o natural impulso do instinto sexual, do amor materno e do desejo de perpetuação dos seus são elementos que fundam a família de maneira mais imediata. A autoridade dos pais, no seio familiar, resta fundamentada, sem a necessidade de complexos e intrincados princípios, no mero fato de que os filhos nascem de seus pais e não podem viver e desenvolver-se sem eles.

Tampouco pode-nos surpreender o fato de encontrarmos em todos os povos civilizados uma organização familiar sensivelmente idêntica, cuja vigência pode ser também observada em comunidades mais próximas do tribalismo. Nesse ponto, evidentemente, a família surge como problema antropológico-cultural e a etnografia ou etnologia estruturalista, cujo maior expoente foi Claude Lévi-Strauss (1909-2009), etnólogo e filósofo francês, faz algumas provocações interessantes, sempre fundadas numa realidade empírica investigada cientificamente.

Toda vez que tais provocações vêm à tona, lembro-me da provocação de Bergson (1950:109) sobre a religião, mas que pode ser perfeitamente aplicada à família: um espetáculo humilhante para a inteligência humana, tomado a partir do inúmeros absurdos, erros, violências e sacrifícios privados de qualquer sentido e que, em muitos casos, andaram de mãos juntas com o exotismo antropológico e o desrespeito à dignidade da pessoa humana.

Tais teratologias, assim entendidas sob o prisma da antropologia filosófica, impedem, em última análise e em prejuízo dos membros da entidade familiar, uma correta inserção destes no mundo humano, depois da ação personalizante da família, mais precisamente no complexo e multifacetado tecido social, historicamente condicionado e axiologicamente amalgamado. Esta inserção, como observa Arendt (2002:190), dá-se por meio da ação, fundada sempre num legado de valores familiares, e, de certa forma, é como um segundo nascimento[3]: o advento do “eu” individual junto ao “nós” social.

As cortinas desse espetáculo humilhante, ao qual se referia Bergson, abrem-se, no universo familiar, para o respeitável leitor: a poligamia e a decorrente ascendência indevida do sexo masculino nesse tipo de relação; a poliandria e o problema da paternidade; as culturas que assimilam a mulher estéril ao homem, ao mesmo tempo em que o consentem ao desposamento de outra mulher; os povos que atribuem a paternidade legal ao marido abandonado pela mulher em relação aos filhos que estar vier a dar à luz depois; as realidades culturais que legitimam socialmente as núpcias de um homem com uma mulher e, ao mesmo tempo, com a filha desta; os agrupamentos sociais que dilatam a genitorialidade social em prejuízo da genitorialidade biológica; os costumes populares que impõem o sacrifício ritual dos primogênitos e que estimulam o suicídio da viúva sobrevivente.

Depois desse rol apenas exemplificativo de realidades antropológicas, poderíamos nos perguntar se existe realmente uma ideia orgânica de família, já que não se vê qualquer unidade lógica ou funcional que possa ser extraída a partir daqueles mesmos exemplos. A etnografia ou etnologia estruturalista põe – aparentemente, como veremos mais à frente – em xeque qualquer proposta da busca de um conceito perene de família. Então, não seria melhor considerá-la como uma mera estrutura portadora de um “testemunho da sociedade” e deixar aberta a questão relativa em “haver algum sentido em se construir um conceito histórico continuativo de família”[4]?

No âmago do diálogo entre a etnografia ou etnologia estruturalista e a antropologia filosófica, algumas considerações devem ser feitas[5]. Em primeiro lugar, até o século XVIII, o problema cultural coincidia com o pedagógico. Assim, a cultura era concebida essencialmente como paideia[6], como formação da pessoa[7] e não como uma estrutura fundamental (categoria autônoma) da sociedade. Consequentemente, o problema cultural era analisado sob a perspectiva antropológica exclusivamente, sem qualquer contribuição do viés etnológico, o que veio a suceder somente a partir do século XVIII.

Graças aos trabalhos dos iluministas alemães Herder e Humboldt, a reflexão filosófica tomou consciência de que a cultura é um fenômeno que não só diz respeito ao indivíduo, mas também ao grupo social com tal, enquanto ela representa seu sistema de vida, constitui o vínculo que une os indivíduos entre si e os diferencia dos membros de outros grupamentos sociais.

A partir da segunda metade do século XX, etnólogos europeus dedicaram-se ao estudo científico de civilizações antigas e de povos primitivos e, como corolário, elaboraram teorias gerais a respeito dos fenômenos culturais ali descritos, sempre à luz dos postulados gerais de uma dada cosmovisão. Lévi-Strauss, um dos mais importantes deles, era adepto do estruturalismo que, como efeito de qualquer corrente de pensamento, implica numa determinada concepção de homem. A etnologia, então, vista sob o viés estruturalista, foi autoerigida à condição de antropologia filosófica e tomou o lugar deste ramo no saber filosófico.

O estruturalismo nasceu como efeito de um aprofundamento teórico da linguística. A linguística propõe que o importante não é tanto o conteúdo das palavras (o significado), mas o contexto das palavras, isto é, o conjunto de relações que cada palavra trava com as demais. E esse contexto não é algo que se estabelece conscientemente, de uma só vez, mas é o produto de uma atividade inconsciente da coletividade, de maneira que cada homem singular a ela se submete.

Em suma, a palavra denota uma estrutura de relações que, precisamente por ser uma estrutura básica, pode admitir diversas superestruturas. Pouca serventia tem o conteúdo se não se conhece a base estrutural que permite que este exista. Por exemplo, na linha da linguística, a palavra “família” pode comportar diversas noções de família (genealógica, etnológica, monoparental, afetiva, social, entre outras).

Essa base estrutural tem somente uma função formal, porque o método estruturalista intenta somente descrever posições. Saussure ilustrou essa função formal da estrutura com um exemplo bem claro: esse método assemelha-se a uma partida de xadrez em que uma dada posição das peças prescinde por completo dos movimentos antecedentes. Uma determinada posição das peças – considerando todas as possíveis e reais relações entre elas – pode ser entendida tanto por aquele que acaba de chegar à mesa da disputa como por aquele que esteja seguindo-a desde seu início.

O estruturalismo, dessa maneira, não se interessa pela gênese dos conceitos ou por sua história, senão pela complexa teia de relações que, num determinado momento, é possível descobrir. Por isso, a estrutura é definida justamente como uma entidade independente de qualquer conceito essencial e serve como forma para os inúmeros conteúdos que são delineados por aquela teia de relações.

Mas o estruturalismo vai mais além de um simples método. Como já antecipamos, implica numa determinada concepção antropológica, segundo a qual o homem, em suas manifestações individuais (trabalho) ou coletivas (família) está sempre submetido a estruturas linguísticas, biológicas, psicológicas que as superam e que se impõem sobre ele. O homem, assim, não faz a si mesmo. Ele é feito por uma consciência coletiva superior a ele, da qual ele, no máximo, é sua expressão. Por isso, Foucault chegou afirmar, coerentemente com os postulados estruturalistas, que o homem não existe, assim como fez Lacan na psicanálise e Lévi-Strauss na etnologia.

Segundo a etnografia ou etnologia estruturalista, a família, em suas diversas manifestações históricas, nada mais seria que um produto do pensamento inconsciente coletivo e jamais poderia haver um conceito natural dessa instituição, diante dos resultados das pesquisas de Lévi-Strauss, nos quais convivem a poligamia e a poliandria, entre outros, como superestruturas da estrutura familiar, tomadas sempre à vista do contexto de relações humanas desenvolvidas nas mais diferentes sociedades.

Pensamos que a família não é uma “resposta estrutural” que comporta infinitas superestruturas, moldadas no seio de relações sociais axiologicamente indiferentes. É, muito antes, uma “resposta antropológica”, porque, como ente multissingular, a família obedece à antropologia do homem, tanto que se cuida de um ente fundamental e insubstituível para qualquer sociedade de todas as eras e de todos os tempos. O próprio Lévi-Strauss (1967:134) afirma que “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”.

De fato, como seres humanos que somos, nossa própria maneira de ser nos revela, sem muita dificuldade, como diz Spaemann (1996:38), que somos “gerados e não feitos”. Isso significa que, para que comecemos a existir (desde a fecundação, segundo entendemos), precisamos ser concebidos por outros seres humanos, pois nada pode dar o que não tem e o efeito não pode ser desproporcional à sua causa.

Para que a concepção se verifique, é indispensável a complementariedade biológica, sexual e psicológica entre uma mulher e um homem e isso é apenas o começo: a tarefa não se encerra com a geração do filho, mas se requerem décadas para que esses filhos cresçam, amadureçam e se desenvolvam, fases da vida em que os pais são indispensáveis, porque cada faz um aporte existencial e espiritual, desde sua particular perspectiva e, ao mesmo tempo, de maneira conjunta e complementar. A família, assim entendida, não foi inventada, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter universal e perene.

Doravante, acreditamos ser essa assertiva capaz de conduzir nossa investigação ao reenvio de uma série elementar de atributos que constituem o ente familiar. Tais atributos, por consequência, devem ter os toques da universalidade e da perenidade e, em sua essência, devem ser insuscetíveis de sofrer os efeitos da usura do tempo, salvo em suas formas de concretização, evidentemente condicionadas aos matizes históricos e materiais, mas sem que haja perda de sua identidade. Em suma, continuam, ontologicamente, referindo-se ao passado, mas, formalmente, agem diversamente do passado. DONATI (2000:64-65) anota que

“a família permanece como o lugar onde continua em vigor a proibição de inversão dos papéis sexuais (masculino e feminino) e geracionais (entre os que geram e os que são gerados), inclusive a proibição de incesto, mesmo se sexos e gerações não sejam mais separados, mas fortemente interativos entre eles. A família é e tende a ser aquela específica relação social à qual sempre é mais confiada a tarefa – não transferível a outras relações sociais – de personalizar a pessoa, através de específicos processos de socialização. Estes processos são essenciais para a maturação da criança e também do adulto, se e na medida em que “formar uma família” significa orientar a comunicação à totalidade da pessoa, segundo uma norma de reciprocidade solidária total”.

Por ser uma instituição tão próxima da natureza, o respeito às exigências naturais – se não se pretende desvirtuá-la – em matéria legislativa e jurídica deve ser redobrado, porque, historicamente, sempre que uma sociedade veio a soçobrar, o processo de decadência começou justamente pela família., como em Roma e, mais recentemente, nos totalitarismos de esquerda e de direita que se prodigalizaram ao longo do século XX.

Em outras palavras, a moralidade familiar é uma moralidade natural e não religiosa. Aliás, nesse ponto, convém lembrar que a tradição judaico-cristã nada mais fez do que assumir aquela moralidade natural e atribuir-lhe uma dignidade transcendental. Não inventou qualquer noção de família, apenas captou seus matizes essenciais e os incorporou ao magistério eclesial, a fim de indicar racionalmente aquilo que reforça – do ponto de vista dos costumes e das leis – aquela moralidade natural e aquilo que a dissolve.

Leclerq (1979:15), a respeito disso, informa que

“a continuidade entre a moral familiar cristã e a moral familiar humana é tal que, os escritores dos primeiros séculos invocam a elevada moral familiar dos cristãos como argumento em favor da fé. A pureza e a união das famílias cristãs são motivos de triunfo e os opõem à desordem dos costumes pagãos. Este argumento não teria valor algum para aqueles espíritos da cultura se não houvesse concordância com seus princípios. Se os pagãos considerassem a orgia como uma virtude e a castidade como um vício, em vão tais escritores teriam invocado a pureza dos costumes cristãos: estes deveriam já ter provado, de antemão, o valor da dita pureza. Se sentiram necessidade disso, foi porque uns e outros estavam de acordo quanto aos princípios. O mundo pagão não estava tão corrompido em seu espírito quanto estava em seus costumes (…). Não há que se assombrar, por conseguinte, pelo fato de que a sociedade cristã tenha se desenvolvido lentamente por uma espécie de crescimento natural. Nos primeiros séculos, a Igreja reagiu contra os costumes e as instituições jurídicas pagãs em determinados pontos, como a indissolubilidade do matrimônio e a importância da virtude da castidade. Depois, cobrou maior relevo de outros aspectos da moral familiar, como o princípio da liberdade dos consortes em contrair um matrimônio válido e, mais tarde, o direito inalienável dos pais como educadores de seus filhos”.

No seio dessa moralidade natural, reconhecemos que o direito e o ente familiar atuam em conjunto, estabelecendo uma perspectiva ontológica dotada de uma juridicidade e de uma essencialidade bem claras e definidas.  Mas logo emerge o quadro empírico-social vigente, ainda mais para quem lida diariamente nas varas de família, capaz de oferecer ao observador algumas intuições que, no fundo, servem para sinalizar muitas ambivalências nessas transformações havidas, à luz da ontologia familiar já delineada e sem qualquer apego nostálgico pela família “de ontem”, na definição de Giddens[8].

Mas também, por outro lado, sem aceitar servil e acriticamente as ofensivas que se fazem contra a instituição familiar, as quais serão objeto de nossa investigação doravante, e que costumam ser apresentadas, com um pomposo jogo semântico, na sociologia, pela expressão “pluralidade das formas familiares” e, no Direito, pelo título de “Direito das Famílias”. Não é por acaso que o mesmo Giddens (2000:75) reduz a família, à semelhança de muitas outras instituições sociais, à uma singela “instituição-casca”, ou seja, a um ente social que (GIDDENS, 2000:75) “ainda é chamado do mesmo modo, mas que, em seu interior, já é fundamentalmente diferente”.

 

SEGUNDA PARTE

Neste século XXI, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Entretanto, nunca como hoje a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras.

Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa. Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual sempre desempenhou um papel chave e único. Quando o ente familiar fica reduzido à uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética com os outros.

Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta, inaudita e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, dos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico, sem prejuízo de seu principal efeito colateral, o fenômeno da despersonalização dos indivíduos, o qual será abordado na terceira parte deste trabalho. Vejamos, então, brevitatis causa cada um deles.

Na ofensiva filosófica, certas correntes de pensamento, portando conteúdos novos para os conceitos de pessoa/indivíduo, igualdade/identidade, liberdade/licitude, prazer/felicidade, colocaram a família em xeque, já que tais conceitos envolvem questões fundamentais para o homem. Pensamos que qualquer sistema filosófico construído com rigor e sistematicidade deve estar aberto às questões fundamentais que se abrigam no coração dos homens.

Boa parte das filosofias contemporâneas rejeitam, aprioristicamente, os conceitos de essência e de verdade, porquanto se entende que cada o ser de cada um depende exclusivamente do contexto cultural em que a pessoa está inserida (historicismo e culturalismo, o velho e o novo nome do relativismo) ou que a verdade é relativa (modernismo) ou mesmo que ela não existe (pós-modernismo).

Se cada categoria (a família, por exemplo) resume-se à uma imposição das relações de poder em voga (estruturalismo), nada é real e tudo é como aparece ao indivíduo. Se o foro de escolha disto ou daquilo reduz-se à estrita ação da vontade ou dos afetos (subjetivismo) ou se minha “felicidade” depende somente da satisfação dos prazeres (hedonismo), não existem, por conseguinte, mais a verdade e a essência. A virtude (como a magnanimidade) e o vício (como a mediocridade) tornam-se, eticamente, categorias equivalentes (niilismo – a “transvaloração” dos valores) e, no bojo desse caleidoscópio filosófico, qualquer noção de responsabilidade moral padece de sentido (modernidade líquida).

Estas e outras perspectivas de pensamento prevalecem no pensar e no agir das pessoas e, como efeito, atingem também o âmbito da noção de família: o ataque filosófico não se impõe com a expressão “isto não pode ser considerado propriamente uma família”, mas com outra manifestação – “sua ideia de família é tradicional e, portanto, superada. É possível redefini-la a fim de estimular outros laços entre os cônjuges e entre estes e os filhos”. Nessa tarefa de rearranjo destes laços, o céu é o limite.

Na ofensiva semântica, o termo “família tradicional” é muito usado em contextos políticos nos quais se debate a aprovação de diversas formas sociais de união, particularmente a união homossexual[9]. A partir do momento em que uma certa visão deturpada de fenomenologia expulsou a ontologia do núcleo do conceito de entidade familiar, isto é, a família não seria mais do que uma forma historicamente plasmada, não demorou muito para que o termo “família” agasalhasse outras relações sociais que muito pouco ou nada lembram seu conteúdo essencial, fato confirmado cientificamente pela etnologia. E é por isso, também, que os manuais de direito sobre família recebem o título, em muitos casos, de “direito das famílias”.

Essa postura não é tão inocente quanto parece, porquanto carrega uma carga semântica diversa. Discorre-se sobre “as novas famílias”, referindo-se aos “diferentes” que, a despeito da “diferença”, lutam para alcançar não somente aquilo que se refira a eles, mas também tudo aquilo que usufruem os “normais”. A expressão em foco é usada para tratar de temas que muitos pretendem furtar de qualquer vetor ético para relegá-los ao âmbito de uma mera política pública[10].

A expressão “novas famílias” é ambivalente, pois funciona como veículo de ideias que, no fundo, contradizem aquilo que significam à primeira vista. Uma vez manipulada, circula por todos os ambientes sociais. Não é o homem inteligente que a usa como própria, mas é a linguagem, imposta pelos grupos de pressão, que fala dentro dele. Heidegger já afirmava que não é o sujeito singular a falar, mas a linguagem que fala em nós. Orwell já profetizava, no livro “1984”, que o Big Brother manipularia a linguagem para que significasse o oposto daquilo que falava. Sabemos que as palavras são sinais inventados pelo homem, enquanto animal loquente (que possui a palavra) e significante (que se expressa). A palavra é sempre relativa a um conceito e este a uma coisa. O falar vem depois do pensar e o pensamento ganha sentido na medida em que se torna expressão da realidade que lhe é anterior.

O acerto semântico ocorre na reunião dos três níveis: palavra, ideia e realidade. Naturalmente, o homem tende a fazê-lo. Mas, como somos capazes de unir os três níveis, somos capazes de apartá-los. Quando os três mundos, o linguístico, o conceitual e a realidade posta, não estão em sintonia, as coisas deixam de ser ditas pelo seu verdadeiro nome: o aborto vira interrupção uterina, a eutanásia vira morte indolor, a afetividade toma o lugar do amor no seio das relações familiares, o adultério passa a ser chamado de aventura amorosa e o homoerótico transforma-se em homoafetivo[11].

Na ofensiva legal, todos sabemos que a tarefa da lei civil é a de assegurar o bem comum das pessoas por meio do reconhecimento e da defesa de seus direitos fundamentais, da promoção da paz e da moralidade pública. O bem comum político é a medida de avaliação ética das leis civis, como já alertava Aristóteles (2005:90).

Na história, a indissolubilidade da família constituída pelo matrimônio sempre foi ameaçada por leis em maior ou menor grau. O Velho Testamento, o Código de Hamurábi, na Grécia (com exceção do período homérico), em Roma (com exclusão da Monarquia e da República. No Império, na medida em que a opulência foi dissolvendo os costumes, generalizou-se o divórcio) e os povos do Oriente permitiam o divórcio. Muito mais como uma concessão à debilidade humana do que uma teoria moral.

Frise-se que a boa parte dos povos antigos era mais ou menos polígama e, por isso, a questão do divórcio tinha uma importância muito menor do que hoje, em que a família estrutura-se monogamicamente. O divórcio era uma prática, tornando-se legal porque compunha o costume de um povo. Atualmente, a situação é diversa: na sociedade ocidental, a tese divorcista apresenta-se como efeito de uma teoria moral, o direito ao “amor livre”.

É um filhote intelectual do liberalismo moral, de cunho individualista e racionalista, que vê o bem do homem exclusivamente na liberdade e na igualdade. Todos os homens têm o direito de buscar livremente sua felicidade e este direito estaria tão arraigado na natureza humana, que o homem não teria o dever de comprometer-se por toda a vida. Livres e iguais por natureza e titulares do direito à felicidade, os homens teriam o direito ao amor desenfreado, uma de suas formas essenciais, e ao direito de buscá-lo livremente, já que o amor é espontaneidade, não suporta subordinação e basta por si mesmo. Nessa linha de raciocínio, como o homem busca exclusivamente o bem pessoal, o bem comum, então, vira uma questão secundária.

Sob o influxo do materialismo, que invadiu a sociedade moderna, sobretudo após o advento do positivismo (século XIX), a teoria moral do amor livre foi repaginada e, nos ambientes do socialismo marxista, que reduz o bem do homem ao bem estar econômico e à felicidade “fisiológica”, serviu como apoio teórico para a edição de leis contrárias à instituição familiar.

A teoria em foco, tomando uma roupagem legal, conduz à anarquia sexual e à destruição da família. Se é certo que nem todos seus defensores, na prática, chegam ao extremo das implicações destes postulados, por outro lado, convém separar o acerto do erro nas hipóteses em que esta teoria aparece mesclada com outras diferentes. A família vê-se ameaçada por uma série de leis fundadas na teoria do “amor livre”: desde a limitação de nascimentos até a possibilidade de divórcio como terapêutica “preventiva” do adultério.

Na ofensiva científica, o quadro não difere muitos daqueles anteriormente tratados. Antes de mais nada, convém relembrar que a união conjugal tem uma antropologia implícita naturalmente estabelecida: diversidade sexual, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor, e não pela simples afetividade, à doação e à aceitação mútua.

O amor conjugal não se limita a uma mera expressão da afetividade ou mesmo da volatilidade e do tumulto das emoções. Aliás, o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo, porque o amor consiste em (ARISTÓTELES, 2011:49) “querer o bem para o outro, enquanto outro”[12].

Amar é, primeiro lugar, querer, ou seja, o amor é uma dimensão que radica formal e prioritariamente na vontade e não se localiza na dimensão da afetividade (simpatias, sentimentos ou interesses). Quando se dá essa confusão, o sujeito, na prática, age como os seres inferiores (animais), porque é incapaz de saber dizer “eu quero” ou “eu não quero”. Em sua base, o amor é um ato da vontade e da inteligência, livre na causa, comprometedor nos efeitos e regido pela lógica da gratuidade.

Em segundo lugar, o amor busca o bem, mas o bem do ser amado, um bem real e objetivo: aquele que o aperfeiçoa como pessoa, tornando-o um ser humano mais completo e conduzindo-o para além do campo de seus próprios interesses e de suas apetências privadas. Em terceiro lugar, o querer do bem do outro é feito em consideração do outro enquanto outro, uma clássica reduplicação que encerra a cifra terminal do amor verdadeiro, porque a grandeza ontológica que me corresponde como pessoa exige que toda minha capacidade de agir seja vertida para os outros[13].

Logo, não nos parece possível que a estrita justaposição de dois egoísmos possa engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. Como o amor conjugal demanda o compromisso aberto à transmissão da vida, decorre que a sexualidade, neste âmbito, não é um singelo dado fortuito nem somente uma maneira alternativa pela qual os cônjuges podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

Às vezes, o casal não pode conceber de forma natural. Nesse caso, a ciência em muito colabora para a superação deste revés, quando estabelece técnicas de reprodução que preservem a dignidade da pessoa humana. Ou, ainda, quando a ciência, de mãos dadas com a ética natural, preserva a natureza do ato conjugal. Todavia, as tecnologias reprodutivas da fecundação in vitro, da mãe de aluguel e da inseminação artificial  – casos mais ordinários – atentam diretamente contra a pessoa e à família.

Estes métodos têm, em comum, em relação à pessoa, o desrespeito à unidade do matrimônio, à dignidade da procriação da pessoa humana e à unidade parental física, psíquica e biológica. Em relação à família, tais efeitos corrompem toda a relação humana, na qual se constitui e se define a vida familiar. As crianças, podendo ser concebidas fora do corpo, do ato sexual conjugal e do amor, serão o resultado de uma mera manipulação genética que, a longo prazo, tornará a família um sistema ultrapassado de procriação.

Como apontava Lewis (2005:38), “cada novo poder científico conquistado ‘pelo’ homem é, ao mesmo tempo, um poder ‘sobre’ o homem. Cada avanço o deixa mais forte e, ao mesmo tempo, mais fraco. Em toda conquista da natureza pelo homem, há uma certa beleza trágica: o homem é o general que triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército vencedor”.

Na ofensiva ideológica, já tivemos a oportunidade de constatar, na primeira parte deste artigo, que a família é, por excelência, o princípio da continuidade social e da conservação das tradições humanas. Em suma, ela é o elemento de preservação da civilização, porque os valores são salvaguardados pelos antecessores e transmitidos pelos sucessores.

As ideologias tomam um aspecto da realidade, que goza de um peso específico, e lhe conferem tal envergadura como se aquele aspecto (como a economia, política e cultura) explicasse todos os princípios primeiros e as causas últimas daquela realidade examinada. Invariavelmente, falam com um sotaque estatalizante, pois acreditam que o poder estatal é a fonte de todo direito, inclusive dos direitos da família.

Por sua vez, a família é um obstáculo, já que é o locus, por excelência, da educação da prole. Por isso, quando uma ideologia alcança o poder, uma das primeiras investidas recai justamente sobre este direito, subtraindo-o do âmbito familiar e entregando-o nas mãos do Estado. As crianças e jovens passam a ser educados fora daquele contexto, à vista daquilo que a ideologia almeja como um projeto de poder. Afinal, a família pode produzir indivíduos ideologicamente “desajustados”.

Na experiência de reengenharia social mais longa e traumática do século XX, o socialismo, inspirado pelo marxismo, entendia que a família nascia com a propriedade privada capitalista, como instituição social monogâmica, reflexo, em menor escala, da luta de classes (burguesia x proletariado) e com a ascendência do homem sobre a mulher. Abolido o capitalismo, a família desapareceria, porquanto seria um mero reflexo histórico de uma época em que o interesse privado era preponderante. A família, com efeito, era considerada como uma superestrutura que se apoiava na infraestrutura dos meios de produção: no futuro, a família se reduziria apenas ao casal, unido pela satisfação erótica recíproca, numa espécie de egoísmo a dois.

O nazismo, irmão intelectual da genealogia totalitarista, também atuou de forma semelhante, embora movido por outro fim. As crianças eram afastadas de suas famílias desde cedo, alistando-se no Jungvolk (povo jovem) aos 10 anos, para serem treinadas em atividades extracurriculares de doutrinação ao nazismo. Aos 14 anos, os jovens ingressavam na Juventude Hitlerista, com sujeição a uma disciplina semi-militar e introdução à propaganda nazista. No fim do ciclo, aos 18 anos, deveriam alistar-se nas forças armadas ou nas forças de trabalho.

Em ambos os casos, a família não tinha lugar na estrutura ideológica e era desacreditada como instituição, pois não poderia constituir o terreno fértil para o crescimento do “ser coletivo”, objetivo primário de ambos totalitarismos. Negou-se à família sua tarefa intransferível de educação e de mediação social. Encurralada num sistema teórico inflexível, metamorfoseou-se a família num ente instrumental para o sucesso de uma causa ideológica. Ao cabo, a pobreza antropológica destes experimentos foi de uma evidência empírica sem precedentes, comparável apenas ao número de cadáveres que cada um deles produziu.

Não se estranha porque a sabedoria humana, a partir da qual surgiram todas as áreas do conhecimento anteriormente tratadas, desde seus primórdios, tenha dedicado várias linhas à importância social da vida familiar. Na realidade, uma fecunda sabedoria humana, a fim de se ver livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensamento de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.

Cícero (2000:54), nessa linha, por exemplo, chamava a familia de principium urbis et quasi seminarium rei publicae. O mesmo princípio está contido, em versão moderna, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.16, 3 – A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado). E outros exemplos podem ser ditos. Ao cabo, resta-nos afirmar que todos esses ataques à família, em seus mais variados campos e intensidades, demonstram que o novo, misturado de diversas formas, só serve para realçar o acerto dos contornos do velho. E da sabedoria humana que o sustenta.

 

TERCEIRA PARTE

Dentro deste ambiente intelectual desfavorável e deste caldo civilizacional confuso e caótico, a família, mesmo assim, deve reocupar o espaço que lhe é próprio por natureza. Não se trata de uma batalha das Termópilas, uma batalha de retaguarda a ser conduzida por bravos homens escudados pelas armas da nostalgia. Mas um horizonte a ser conquistado para bem da sociedade que, necessariamente, passa pelo nexo que une família e sociedade: a pessoa. A família dá consistência e alimenta a pessoa. Uma vez formada, a pessoa, por sua vez, nutre a sociedade. Por conseguinte, sem família não há pessoa e sem pessoa não há sociedade.

Embora a família seja uma instituição imprescindível para que a pessoa possa, em efeito, sê-lo, afirmando a plenitude de sua índole pessoal, a sociedade, pelo contrário, para se erigir sob uma condição humana e não como um mero agrupamento de indivíduos, deve estar composta por pessoas em sua totalidade, capazes de estabelecer entre si e nas mais variadas tramas do tecido social, relações interpessoais, regidas por amor e entrega gratuita, na efetiva busca do bem alheio.

A família, enquanto sociedade primária, constitui o paradigma do restante dos agrupamentos humanos. E, por isso, não é uma simples célula de sociedades mais amplas, porém, em razão de seu profundíssimo virtuosismo personalizante, é uma sociedade soberana. A soberania da família não se radica numa falsa e presumida autossuficiência, a ponto de assegurar sua subsistência sem o apoio dos demais grupamentos humanos, mas porque guarda uma íntima conexão com o fim último de todo ser humano, sua promoção enquanto pessoa. Em suma, a família é um modelo de sociedades e uma sociedade soberana.

João Paulo II (1980:237) afirmava explicitamente que

“o homem, acima de toda atividade intelectual ou social, por mais alta que seja, encontra seu pleno desenvolvimento, sua realização integral e sua riqueza insubstituível no seio familiar. Aqui, realmente, mais que em qualquer outro campo vital, joga-se o destino do homem. (…) O homem não tem outro caminho rumo à humanização do que por meio da família. A família deve ser colocada como o fundamento mesmo de toda a solicitude para o bem do homem e de todo esforço para que nosso mundo seja cada vez mais humano. Nada pode subtrair-se à essa solicitude: nenhuma sociedade, nenhum povo, nenhum sistema, nem o Estado, nem a Igreja e nem mesmo o indivíduo”.

O papel personalizante da família encontra seu fundamento último na natureza mais íntima e orgânica da instituição familiar, uma associação de pessoas. Contudo, essa natureza mais íntima e orgânica, ao se constituir no principal alvo do efeito colateral daquelas inúmeras ofensivas tratadas na segunda parte deste trabalho, acaba, também, por perder sua vitalidade e envereda por um processo crescente despersonalização: por um lado, a desconstrução do sujeito[14], que o priva das propriedades mais manifestas de sua condição pessoal e, por outro, a dissolução da individualidade irrepetível de cada um, em prol de uma massificação amorfa de condutas, porque apenas diversificadas em sua aparência.

Hegel, por assim dizer, desencadeou esse processo de despersonalização ao ter estabelecido, num vistoso arcabouço filosófico, que o indivíduo é um mero momento sem relevância na constituição do todo estatal. Depois dele, as filosofias materialistas simplesmente deram consequência prática à essa afirmação: o nacional socialismo alemão, o comunismo marxista, os socialismos de marca vária e o capitalismo liberal. É o eterno retorno: primeiro, questiona-se um valor; depois, alguém irá tratar dele por outros métodos.

Entretanto, hoje, a partir de um conjunto global de estruturas – economia, política, educação, trabalho, moda, entretenimento, telecomunicações, legislação – que configura o atual momento civilizacional, o fenômeno da despersonalização entrou numa dinâmica entrópica drástica, sutil e devastadora, porque tal conjunto global tende a homogeneizar e a massificar o indivíduo, reduzindo-o a um mero fragmento social ou a uma peça do sistema, nas quais a individualidade e o personalismo, ao invés de se desenvolverem, acabam por definhar até desaparecer.

Vejamos na educação superior das humanidades. Hoje, ao término desse processo educativo, estamos interagindo com um sujeito mais pleno e virtuoso, cônscio de seus direitos e deveres, de seu lugar no mundo, de seu papel entre seus iguais na sociedade, capaz de conferir sentido e alcance à sua existência? Ou topamos de frente com um “técnico” em humanidades, cujo auge de sua potencialidade criativa, na órbita profissional, está em fazer com que o sistema “funcione”, ou seja, em suma, esse “técnico”, no fundo, não passa de um “funcionário”[15]?

Ou, ainda, estamos estritamente preocupados na formação de um faber ou de um laborans sem alma ou peso específico e quase sem humanidade? Estamos, no fundo, buscando, ainda que sem clara consciência, um indivíduo que não seja nada mais além de uma peça que se encaixe com o menor grau de fricção possível no interior de um sistema laboral e econômico, a fim de assegurar ao conjunto o máximo de bem estar social, lema que foi adotado, por nossas sociedades, como um fim em si mesmo? Será que o mundo do trabalho não acaba por consolidar definitivamente o fenômeno da despersonalização[16] conduzido pela educação durante anos?

Na economia, o quadro não difere muito. Nesse campo, o grande ausente é a pessoa. Se os valores pessoais tivessem algum peso no sistema produtivo, tudo desembocaria na produção de bens que consistissem num efetivo incremento na categoria pessoal de seus destinatários. Bem ao contrário disso, em boa medida, o fundamento da economia contemporânea está na constante criação de necessidades supérfluas, quase sempre materiais, convertendo os indivíduos em meros consumidores, ao ponto de serem consumidos pelo próprio consumismo[17].

Uma economia movida pelo consumo exacerbado e enredado em si mesmo subordina seus atores, sejam fornecedores, produtores ou consumidores, ao império do dinheiro, de sorte que uns e outros terminam por restarem despojados de suas dimensões mais altas. Novamente, a pessoa fica preterida a um plano secundário, submetendo-a uma inquietante dimensão infra-humana.

No entretenimento, o desenho fático acompanha o quadro geral de despersonalização. O cinema, a música, a arte raramente induzem à formação de nossas prerrogativas singulares e, na prática, transformam-nos em fragmentos de massas amorfas, satisfeitas com um leque monocórdico de diversões que, no mais, servem apenas para nos fazer esquecer, por uns instantes, da alienação vital que nos cerca, porque a qualidade de tais distrações não tem nada ou muito pouco de cultural: esquecidas as dimensões da bondade, da verdade e da beleza, o entretenimento alimenta tão somente a afetividade e a emoção dos espectadores, já desprovidos de altura, peso e relevo, ou seja, apenas os aspectos periféricos de indivíduos carentes de profundidade espiritual e existencial[18].

Na política, o surto despersonalizante não difere das dimensões anteriormente analisadas: em regra, as agremiações políticas não defendem um ideario coeso e comprometedor, levado a cabo com paixão e temperado pelo debate intelectual pautado pelo respeito, liberdade e responsabilidade. Pelo contrário, enveredam por longos projetos de poder que só conseguem ser sustentados à base de muita demagogia e fisiologismo político, relegando o cidadão à condição de mero votante e, ao negar o atendimento de suas necessidades básicas, cria-se um ambiente social despersonalizante, cujo efeito mais perverso é a ascensão do arbítrio em prejuízo do bem comum.

Dizia Chesterton (2013:46) que “se queremos preservar a família, devemos revolucionar a nação”. Dessa forma, diante desse diagnóstico existencial contemporâneo – formado pelos ataques diretos à família e seu efeito colateral despersonalizante –, a chave dessa revolução transita necessariamente por aquilo que somente a família é capacitada para fazer crescer e amadurecer: a pessoa. Sobre a pessoa e seus valores deve girar o eixo do movimento revolucionário cujo ponto de chegada será a civilização do amor, conforme afirmamos na primeira parte deste trabalho.

Essa tarefa radicalmente repersonalizante começa por cada um de nós. Assim como um diamante é polido somente pela ação de outro diamante, a formação de uma pessoa – que se dá pela educação – somente pode ser realizada desde outra pessoa e pondo-se em jogo os atributos mais tipicamente pessoais: comprometendo-se a própria vida para solicitar dos demais aquilo que existe também de mais estritamente pessoal, a saber, sua inteligência e, sobretudo, sua vontade, na qual tem assento sua capacidade de amar, de querer e de construir o bem dos outros, Em suma, não há resposta técnica ou de cartilha para isso,

Nem pode haver, porque a tecnicidade reinante surgiu da mesma raiz despersonalizante da qual nasceu a modernidade: do afã de poder, de domínio, do intento de constituirmos, sem reservas, em donos e senhores absolutos da natureza e do universo (Descartes), para alcançar assim, por meio desse império hegemônico e desenfreado, nossa felicidade. Isso não só não aconteceu como o homem, como é reconhecido universalmente, desapareceu como efeito necessário do sufocamento provocado pela prepotência do instrumental técnico-científico criado por ele mesmo. Triste realidade histórica: crescemos ao longo de séculos e, depois, desaparecemos.

Essa subordinação mortificante já possuía em seu cerne o motor que converteria a realidade em matéria de manipulação transformadora, capaz de proporcionar aos mais fortes as vantagens, os benefícios e o bem estar, tudo isso alçado à condição de objetivos supremos de toda uma cultura. Para elevarmos seriamente a categoria humana resulta imprescindível resgatar suas dimensões estritamente pessoais. Melendo (2008:91-92) arremata que

“a regra de ouro, capaz de inspirar o labor restaurativo da sociedade em que a família está chamada a vir a ser, poderia ser assim enunciada: quanto mais profundamente incidir uma ação sobre os atributos pessoais mais íntimos do destinatário, tanto maior será sua capacidade de melhorar profunda e duradouramente essa pessoa, precisamente enquanto pessoa. Pelo contrário, na medida em que essa intervenção apelar para as dimensões mais superficiais e epidérmicas do ser humano, menor a possibilidade de se influir positivamente sobre ela”.

Quanto mais periférico e despersonalizante seja o influxo, maior será o poder de incitar os indivíduos à comodidade, à vida frívola e pouco substancial até se chegar ao gregarismo dissipador das teias sociais. E resulta mais difícil, por outro lado, a movê-los em direção ao bem e à uma atuação estrita e responsavelmente pessoal. Transformar a educação, o trabalho, a economia, o entretenimento e a política supõe vencer o coeficiente despersonalizante que cada uma delas carrega consigo, trabalhando a partir dessas dimensões e apesar delas, mas com um suplemento de humanidade, sem ceder jamais à tentação de acudir aos recursos e técnicas despersonalizantes que tais dimensões reclamam.

Por consequência, a partir do combate ao efeito colateral dos ataques ao ente familiar, paulatinamente, aquelas ofensivas diretas irão cessando, porque também serão esclarecidas e humanizadas mediante a insubstituível ação da relação pessoa-pessoa. E essa relação é particularmente feita na família e desde a família, a fim de se poder constituir a civilização do amor.

 

Considerações finais

Notamos que a família está enredada num ambiente social que pouco colabora para o desenvolvimento de suas potencialidades e virtuosidades, sobretudo no que atine à função personalizante do indivíduo, tarefa que sempre lhe foi incumbida ao longo da história, porque se trata do único ente social capaz de fazer frente a esse difícil desafio. Ao mesmo tempo, afirmamos a necessidade da família ser novamente alçada ao posto de custodes do humanum.

O quadro atual do contexto familiar, representado pelo confuso rearranjo dos papéis familiares, pelo aumento indiscriminado do número de mulheres no mercado de trabalho e das estatísticas de divórcio, pela diminuição dos matrimônios e pelo incremento das uniões estáveis e dos adultos solteiros, pelo decréscimo do nível de convívio familiar,  pela exacerbação da violência juvenil, pela inversão da pirâmide etária, pelo inverno demográfico em muitos países, pela reivindicação do direito de constituição de uma família pelos pares homossexuais e pela disseminação da violência familiar, oferecem ao estudioso um fértil campo de intuições, a fim de se poder chegar a uma série de deduções que permitam separar as causas dos efeitos da desagregação da noção ontológica do ente familiar e, ao mesmo tempo, realçar as contribuições que a família histórica dá para a ontologia familiar.

Sob outro ângulo, surgem, no horizonte do conhecimento, uma série de propostas carentes de um adequado fundamento antropológico e ético que, no limite, irão apenas aprofundar ainda mais aquele vazio ontológico, ainda mais se chanceladas pela normatividade do Direito. Em suma, são mais do mesmo, radicalizando a crescente abolição do humanum, ou seja, da tarefa personalizante do ente familiar. Um horizonte civilizacional pouco propício à conclusões e estimativas encorajadoras.

Em contrapartida, procuramos, numa sólida base antropológica e ética, sugerir uma forma de reencontro do caminho perdido: o resgate da ideia de família como uma comunidade de pessoas, fundada e vivificada pelo amor. Nosso contorno existencial e histórico reduziu a vitalidade do ente familiar à secura da despersonalização antropológica e, agora, redescobre a dimensão ontológica em busca da natural juridicidade constitutiva da família, em prol do bem comum, porquanto favorece a função personalizante e o telos social do ente familiar.

 

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[1] Entendemos que, hoje, dentre os principais campos do saber, a pós-modernidade já completou seu processo de influxo e transformação epistemológica (que ainda toma corpo no campo do Direito de Família) apenas nas artes, a julgar pela irracionalidade e pela completa falta de senso ontológico e estético (quando não atingem a dimensão de verdadeiras pornopopéias) das principais manifestações artísticas expostas nos mais renomados museus do mundo inteiro. Nesse ponto, recordo-me de Vargas Llosa (2013:75-76) ao dizer que “no que me diz respeito, percebi que algo estava podre no mundo da arte há exatamente 37 anos, em Paris, quando um bom amigo, escultor cubano, cansado das negativas das galerias em expor as esplêndidas madeiras que eu o via trabalhar de sol a sol em sua mansarda, decidiu que o caminho mais seguro para o sucesso em matéria de arte era chamar a atenção. E, dito e feito, produziu umas “esculturas” que consistiam em pedaços de carne podre, fechados em caixas de vidro, com moscas vivas esvoaçando ao redor. Uns alto-falantes asseguravam que o zumbido das moscas ressoasse por todo o local como uma ameaça aterrorizante. Triunfou, de fato, pois até um figurão da Rádio e Televisão Francesa, Jean-Marie Drot, o convidou para seu programa. A mais inesperada e truculenta consequência da evolução da arte moderna e da miríade de experimentos que a alimentam é que já não existe critério objetivo algum que permita qualificar ou desqualificar uma obra de arte, nem situá-la dentro de uma hierarquia, possibilidade esta que se foi eclipsando a partir da revolução cubista e desapareceu totalmente com a não figuração. Na atualidade tudo pode ser arte e nada é arte, segundo o soberano capricho dos espectadores, que, em razão do naufrágio de todos os padrões estéticos, foram elevados ao nível de árbitros e juízes que outrora só alguns críticos possuíam. O único critério mais ou menos generalizado para as obras de arte na atualidade não tem nada de artístico; é o critério imposto por um mercado controlado e manipulado por máfias de galeristas e marchands que de maneira alguma revela gostos e sensibilidades estéticas, mas apenas operações publicitárias, de relações públicas e em muitos casos simples assaltos. Há mais ou menos um mês visitei pela quarta vez na vida (mas essa terá sido a última) a Bienal de Veneza. Fiquei lá algumas horas, acredito, e ao sair concluí que não teria aberto as portas de minha casa a nenhum daqueles quadros, esculturas e objetos que havia visto nos cerca de vinte pavilhões que percorrera. O espetáculo era tão enfadonho, farsesco e desolador quanto a exposição da Royal Academy, mas multiplicado por cem e com dezenas de países representados na patética farsada, onde, a pretexto de modernidade, experimentalismo e busca de ‘novos meios de expressão’, na verdade se documentava a terrível orfandade de ideias, cultura artística, habilidade artesanal, autenticidade e integridade que caracteriza boa parte das artes plásticas em nossos dias”.

[2] João Paulo II (1994:17) afirma “que a família está na base daquela que Paulo VI designou como «civilização do amor», expressão que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou já familiar. A expressão está ligada com a tradição da «igreja doméstica» do cristianismo nos seus primórdios, mas possui uma precisa referência também à época contemporânea. Etimologicamente o termo «civilização» deriva da palavra latina civis (cidadão), sublinhando a dimensão política da existência de cada indivíduo. Todavia o sentido mais profundo do termo «civilização» não é tanto político como sobretudo «humanístico». A civilização pertence à história do homem, porque corresponde ao plasmar de suas exigências espirituais e morais. Precisamente do cumprimento desta tarefa provém a civilização, que, em última análise, não é senão a humanização do mundo”.

[3] “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, apreendemos os valores familiares e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa”.

[4] A autoria da pergunta é de Niklas Luhmann (1989:234), para quem, por detrás dos subsistemas sociais não existe uma estrutura ontológica (natural ou metafísica) a impulsionar seus movimentos, mas cada função ou subsistema (ciência, religião, política, economia, família, moral e direito) é um esquema de sentido que permite independência à sua verificação analítica, na exata proporção em que cada arranjo de sentido é fundante de um conjunto de conceitos operativos aptos a proporcionar uma série de resultados buscados socialmente e, assim, minimizar a complexidade inerente à troca comunicativa entre os subsistemas. Em outras palavras, Luhmann busca justificar a tremenda e crescente especialização dos subsistemas a partir da modernidade, os quais passam a atuar e a se desdobrar em seus modos de atuação, a ponto de se constituírem em realidades paralelas e fechadas umas às outras, com códigos e linguagem próprios. A interação entre tais subsistemas seria possível apenas pelo intermédio de mecanismos de “generalização congruente” (por exemplo, as leis ou a opinião pública), os quais possibilitariam a transmissão da complexidade de cada subsistema de forma mais reduzida.

[5] D’Agostino (2003:97-98) conclui que “se o dever da etnografia da família está em catalogar, de um modo cientificamente correto, a epifania cultural do fenômeno familiar; o dever, por sua vez, da filosofia da família está em refletir o princípio familiar naquilo que ele resta de irredutível em toda a epifania familiar, a ponto de assinalar para todas as culturas um caminho, não de um conservadorismo obtuso, mas de um contínuo e sempre novo esforço de atualização histórica”.

[6] Desde Roma (CAMBI, 1999:108-109), a pedagogia também muda completamente: heleniza-se, racionaliza-se, libertando-se do vínculo com o ‘costume’ romano arcaico e republicano, para aproximar-se cada vez mais dos grandes modelos da pedagogia helenística. Em particular, também em Roma penetra a grande categoria-princípio da pedagogia grega, aquela noção e ideal de paideia, de formação humana pela cultura, que produz uma expansão e uma sofisticação, bem como uma universalização das características próprias do homem. A paideia de Isócrates (…) vem radicar-se também na cultura pedagógica romana, sobretudo por obra do grande mediador entre estas duas civilizações – a grega e a romana – que foi Cícero. A ele, de fato, devemos a versão latina da noção de paideia na de humanitas, que sublinha ulteriormente sua universalidade e seu caráter retórico-literário, permanecendo durante séculos no centro da reflexão educativa e da organização escolar do Ocidente.

[7]Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. (…) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação (JAEGER, 2003: introdução)”.

[8] A expressão é de autoria do renomado sociólogo inglês Anthony Giddens, pai da teoria da estruturação e figura de proa da chamada “terceira via” e do novo trabalhismo inglês. Para Giddens (2000:71-75), a família de ontem ou a família tradicional é aquele tipo familiar que se desenvolveu num arco de tempo que se inicia na Idade Média e termina nos anos 50 da última centúria. Suas características principais são: a) unidade econômica, ou seja, as pessoas se uniam por motivos econômicos e não pelos laços amorosos; b) local da assimetria existencial entre o homem e a mulher, onde a mulher era considerada uma longa manus do marido ou uma propriedade do pai; c) os filhos não eram considerados em si mesmos, mas somente como mão-de-obra ou colaboradores em prol do empenho econômico comum familiar; d) a sexualidade tinha sempre um fim reprodutivo. De fato, o sociólogo britânico aponta, com rigor, muitas realidades históricas vivas e presentes ao longo do arco temporal por ele traçado. Apenas criticamos aqui a pretensão de se confundir a substância de um ente – a família – com suas concretizações históricas, sempre sujeitas à imperfectibilidade de nossa natureza. Se a família corresponder, indistintamente, às formas historicamente assumidas, então, a realidade histórica fica autoerigida ao status daquilo que corresponder ao ser da família. Em outras palavras, Giddens usa uma visão deturpada de fenomenologia contra a ontologia, a fim de reforçar a própria convicção com a simples constatação de que (GIDDENS, 2000:75) “desde então – dos anos cinquenta – a família mudou”.

 

 

[9] A respeito das relações entre linguagem, comunicação e poder, escrevi (FERNANDES, 2012:2): “Durante a história da filosofia, sua reflexão pode ser dividida em três partes bem distintas, segundo as partes da relação do conhecimento: na Idade Antiga e Média, os filósofos debruçaram-se sobre o objeto. Na Idade Moderna, o sujeito racionalizou tanto, a ponto de a razão restar curvada sobre si mesma, a ponto de não poder mais olhar para o horizonte da verdade. Atualmente, o foco da filosofia está no vínculo que une sujeito ao objeto: a linguagem. Existem dois modos de obrigar as pessoas a atuar numa situação. O primeiro é o uso da força, sempre inútil, porque não atua sobre uma vontade livre e dá margem ao arbítrio. O segundo, mais eficaz, é a propaganda sistemática que faz da manipulação verbal seu principal instrumento, desvirtuando o reto uso da linguagem. Goebbels foi um exímio mestre nesta arte. Seria capaz de fazer o povo alemão acreditar até nas valquírias, mas não teve tempo suficiente para tanto, porque o regime de mil anos sequer chegou aos treze. A propaganda sistemática procura inculcar novas convicções em suas vítimas. No momento em que estas novas atitudes são assimiladas, as pessoas julgam ter chegado a elas por meio da própria vontade de aceitar essa nova forma de agir, fazendo-a sua. Toda manipulação social começa com a manipulação da linguagem. Seu propósito é o de manobrar cuidadosamente a opinião pública para produzir determinadas mudanças no comportamento. (…) A manipulação verbal mina na raiz a dignidade humana, já que os indivíduos da sociedade vítima não são mais tratados como seres humanos, mas como objetos a serem manobrados, dominados e, depois, controlados. (…) Em “Alice no país das maravilhas”, a manipulação da linguagem é bem retratada pelo autor da obra: ‘Quando uso uma palavra’, diz Humpty, ‘ela significa exatamente aquilo que escolho que ela signifique’. ‘A questão é’, diz Alice, ‘que se podem inventar palavras para significar assim tantas coisas diferentes’. ‘A questão é’, diz Humpty, ‘qual se quer impor’”.

[10] A título de exemplo, disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/pt/obras-conversando-sobre-o-direito-das-familias.cont.

 

[11] A respeito das relações entre cultura moderna e linguagem, escrevi (2012:2): “(…) Também é preocupante o deslocamento da centralidade do matrimônio e da família para figuras assemelhadas e pouco condizentes com uma realidade antropológica objetiva, no âmbito da estrutura legal destas relações. A linguagem clássica e perene do matrimônio deu lugar a uma linguagem substitutiva: “cônjuge” virou “companheiro”, que sempre foi sinônimo de colega, ou “parceiro”, termo tomado de empréstimo junto à tradição contratual do direito romano-germânico. Em ambos os casos, as expressões estão bem longe de expressar um amor de aliança, fiel e exclusivo. O termo “família” já vem sendo usado como termo genérico para descrever uma vasta gama de relações. Atualmente, refere-se a vinte e uma diferentes definições de relacionamentos, dos quais o matrimônio é somente mais um. Nesse ritmo, daqui a alguns anos, provavelmente, o verbete terá um dicionário exclusivo. Toda história do homem está impregnada de reflexão sobre a linguagem e suas formas de manipulação. Platão já se desentedia com os sofistas, pois eles deturpavam o uso da linguagem. Górgias, famoso sofista e exímio orador, até virou nome de um dos diálogos platônicos, no qual foi tematizado o valor e a função da linguagem, como instrumento de poder ou como instrumento de verdade. Como Platão, hoje, compete a cada um de nós descobrir o charlatanismo linguístico que ocupa boa parte dos discursos sociais e, à semelhança do mestre grego, submetê-lo ao diálogo.

[12] Retórica, 2, 4, 80b.

[13] A respeito da ontologia do amor, escrevi (FERNANDES, 2013:2): “Recentemente, conversava com uns amigos sobre os tempos de faculdade. Cada um indicou seu maior legado. Para uns, foi a formação acadêmica; para alguns, foram as amizades; para outros, foram as festas e os jogos universitários. Para mim, foram tempos inesquecíveis em muitos sentidos, mas o maior legado do Largo de São Francisco foi o amor. E, por isso, sempre que vou ao centro de São Paulo, passo por lá, sento-me entre aquelas arcadas históricas e simplesmente me desligo por alguns instantes do mundo em volta. A qual amor me refiro? O amor ao direito, à minha profissão, aos estudos, aos meus amigos, aos injustiçados e à minha segunda namorada, que se casou comigo depois. Mas não necessariamente nessa ordem, porque corro o sério risco de ter problemas lá em casa. (…) Assim, deixemos as causas de lado e concentremo-nos na pessoa amada. Quando amamos uma pessoa, parece que nossa vontade é catapultada a uma capacidade de criar sem fim. Talvez isso decorra do fato de que uma pessoa é sempre uma fonte de novidades. Criar é fazer que existam coisas novas. O mais criador que existe é o amor: “todo amor é criador e não se cria mais que por amor”, já disse o poeta. (…) Recordo-me de uma bela afirmação de Agostinho: “meu peso é meu amor, por ele sou levado onde quer que eu vá”. É o peso da vida humana, o amor, que nos carrega de uma parte a outra. Hoje, tenho a impressão de que vivemos numa crise de amor. O amor, essa constante disposição da vontade humana, deu lugar para os afetos, sempre instáveis, em todos os relacionamentos. E, num ambiente de pluriafetividade, não há espaço para um desejo de imortalidade. É o aniquilamento do amor. Tudo passa a ser fugaz e superficial. “Tu que eu amo, não morrerás”, feliz fórmula de outro poeta. Isto significa a impossibilidade de se pensar no fim da pessoa amada. Necessita-se dessa pessoa para que a vida tenha sentido. Se o homem estivesse destinado a perecer, não seria tudo um enorme engano, uma espécie de brincadeira de mau gosto? A vida teria um sentido? Mas o que impulsiona essa maneira de ver as coisas é precisamente o amor. Se não se ama, tudo isso cai na própria base e já não importa nada (…).

[14] Acreditamos ser necessário que a cultura ocidental recobre, no âmbito intelectual, o uso de suas faculdades espirituais superiores, mais precisamente seu poder de contemplação, as quais restaram atrofiadas por séculos de negligência existencial, pois a inteligência e a vontade do homem ocidental, desde a Idade Moderna, concentraram-se na conquista dos poderes político, econômico e tecnológico. No âmbito social, parece-nos ser imprescindível o resgate das dimensões do amor e da amizade como principais forças configuradoras da teia de relações sociais.

[15] Esse problema é muito sensível no universo do ensino jurídico, no qual os índices de reprovação nos exames de advocacia e de ingresso nas carreiras jurídicas crescem vertiginosamente, em razão de problemas metodológicos e epistemológicos que permeiam a imensa maioria das instituições de ensino superior. Ollero Tassara (1982:268-269) diagnostica bem esse fato ao afirmar que “a forja do futuro profissional do direito passa por sua consciente identificação com o texto legal. Para isso há de se esforçar em plasmá-lo em sua memória com tal intensidade que não reste em sua mente resquício algum livre do domínio da vontade do legislador. Não faz sentido fazer do profissional do direito um erudito, capaz de compreender conhecimentos de interesse meramente teórico; nem mesmo um juiz apto a criticar ou discernir, porque o legislador já se encarregou a contento dessa tarefa. O importante é formar um técnico capaz de manter em funcionamento a máquina legislativa e de fazê-la socialmente eficaz. Sua missão, como a de qualquer outro técnico, consistirá em conhecer os detalhes da máquina para fazê-la render ao máximo (…). E não se deve olvidar que, se cada técnico empenha-se em inventar uma nova máquina, sua tarefa acaba sendo inútil. O profissional do direito há de se empenhar por conseguir, fundamentalmente, que a máquina funcione: será, por excelência, um funcionário”.

[16] Em nosso trabalho de mestrado (FERNANDES, 2014:78-84), afirmamos que “em terceiro lugar, no seio da relação educacional, ao lado da evolução e da inserção, radica o encontro, o momento em que o educando relaciona-se com outros semelhantes, coisas e fenômenos. Esses dados da realidade não se entrelaçam com ele a partir de uma ordem pré-determinada e absolutamente incondicionada, como o liame religioso que havia entre os gregos e seus deuses, mas se põem à sua frente, em virtude da recíproca abertura desses dados para ele. Como consequência, o educando passa a conhecer profundamente uma área do saber, um conceito até então pouco esclarecido ou uma nova forma de abordagem intelectual de um assunto complexo. No encontro, está subjacente uma atitude aberta ao mundo e à imprevisibilidade. Compreender o novo, enfrentar aquilo que surge e aprender a dar forma ao dado não planejado. É aqui onde jaz a mais acabada expressão da amplitude de movimento dos impulsos naturais do educando e, por ser cada um uma individualidade irrepetível, essa capacidade de encontro não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade. Se, na inserção, o educando é um “ser-aí”, no encontro, ele é um “vir-a-ser-aí”. (…) O encontro representa aprendizado constante, abertura ao imprevisto, espírito livre de investigação, perspectiva para distinguir o comum do peculiar, capacidade de reflexão e de autocrítica, convicção para bem decidir e, por trás disso, uma sensibilidade para o sentido e o alcance do próprio acontecimento decorrente do encontro. Tanto para ordená-lo no seio do já conhecido como também para tomar uma posição diante do novo enquanto tal. (…) A tarefa educativa, assim entendida, orienta o educando para uma postura em que se dá concomitante valor para os fatores do risco e da experiência, sendo que a modulação de um e de outro será estabelecida pela realidade pedagógica concretamente considerada. Essa atitude dispõe o educando para a originalidade do acontecimento, para a liberdade vital e para a amplitude da existência, lapidando a mais relevante dimensão humana: a dimensão espiritual, onde reside o motor que leva todo homem a naturalmente desejar o conhecimento (ARISTÓTELES, 2006:43)”.

[17] O consumismo sempre teve seus filhotes práticos, como a prodigalidade, o endividamento compulsivo e, atualmente, o brand bullying.

[18] A respeito das relações entre educação e entretenimento, escrevi (FERNANDES, 2011:2): “(…) Precisamos de uma educação emancipatória, entendida como a possibilidade de resistência às formas de dominação vigente pela via do exercício crítico e reflexivo da razão e que milite contra o pensamento determinista derivado da mitologia, os excessos do discurso unificador medieval, o cientificismo totalizante da modernidade, além do irracionalismo e do ceticismo das tipologias pós-modernas de desrazão, sem falar das inúmeras e atuais insinuações ideológicas presentes nos discursos sociais. Mas sem se desligar de um rol mínimos de valores, sob pena de desenraizamento e desorientação.  (…) Nesse assunto, basta lembrar que uma sociedade incapaz de educar seus filhos nos valores é uma sociedade incapaz de respeitar a si própria”.

Vale a pena?!

Opinião Pública | 22/02/2016 | | IFE CAMPINAS

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Ao olhar cabisbaixo de um amigo, lanço logo o convite: “Vamos à luta! Vale a pena!”. E como têm sido frequentes estes encontros. Faço-o por mim e por eles, pois parece que o ar que respiramos anda intoxicado de medo e tristeza. Sem perceber parece que estamos sendo levados pelo marketing da tragédia, do escândalo, da podridão, como se estivéssemos fascinados pelo espetáculo do mal. Nunca tivemos tanto conforto e bem-estar e nunca desfrutamos tão pouco das coisas. Será este o preço que pagamos por tanta fartura e progresso material?

O empreendedorismo é admirável, uma face virtuosa do mundo do trabalho. E já passou da hora de superarmos o ranço invejoso do discurso vermelho que divide o mundo entre proletários-explorados e capitalistas-vilões. Sou filho de uma família de empreendedores pioneiros, desbravadores de um Brasil que começava sua via industrial. Ando pela cidade onde nasci e até hoje são muitos os que brilham os olhos de gratidão ao me reconhecerem um descendente daqueles homens corajosos, que se colocaram a serviço e geraram oportunidades e riquezas para tantas famílias, recebendo uma justa recompensa pelo trabalho bem feito.

Coisa bem diferente é o “materialismo” que tomou conta das ruas. Vermelho ou branco, de direita ou de esquerda, todo materialismo é uma condenação. Há coisas que não podemos comprar no comércio, nem produzir na indústria, simples assim. Nem tudo se mede pela régua da eficiência ou pela lei do mercado. O Estado jamais vai suprir todas as nossas necessidades, e nem todo sofrimento termina com justiça social. Enfim, nem só de pão vive o homem!

É sobre isto que penso quando sou mal atendido em uma consulta médica. Quando vejo jovens abandonando suas vocações pelo desejo de enriquecer. Quando o antigo teatro municipal é destruído para dar lugar a um prédio comercial. Quando belas Igrejas passam a abrigar restaurantes e bares. Quando uma família se desfaz, a custa de aventuras. Quando a política é transformada numa barganha de interesses e favores.

Constrangidos, somos obrigados a reconhecer que os bens que conquistamos não se traduzem numa apreciação maior da vida. Ao contrário, muitas vezes parece que à medida que aumenta o gozo das coisas, perdemos a capacidade de desfrutá-las e de nos alegrar. Já não cultivamos a festa da celebração da vida, mas outro tipo de festa, a festa da evasão e da fuga, da qual voltamos à vida diária como quem retorna ao cárcere, com uma sensação de tédio e sobrecarga.

Os filósofos gregos já diziam que a felicidade humana não está nas coisas, no dinheiro, no bem-estar, no prazer ou no sucesso, pois o bem do homem somente se realiza em um bem de mesma natureza pessoal. Por isso, a felicidade dos homens somente pode se realizar na amizade com outros homens, não qualquer tipo de amizade, mas aquela que é fruto de um amor recíproco. E pensando nisto, Aristóteles escreveu um tratado sobre as virtudes, pois, segundo ele, somente homens virtuosos são capazes de amar. Sem isso a amizade é corrompida pelo egoísmo, tornando-se fonte de exploração de um pelo outro ou um mero pacto de interesses e isto não basta para trazer a felicidade. Por isso, ele conclui que para o bem da sociedade e dos cidadãos, os homens devem ser educados nas virtudes.

Chesterton disse uma vez: “O mundo nunca sofrerá com a falta de maravilhas, mas apenas com a falta de capacidade de se maravilhar”. Por trás de todo o pessimismo e medo da nossa época esconde-se uma atroz incapacidade de se admirar, um desencantamento por estarmos privados de gozar do verdadeiro amor, a única fonte da nossa força e vitalidade, a única razão da nossa esperança. Desprovidos do legítimo bem, caminhamos como cegos, abandonados em um mundo escuro, perigoso e sem sentido, onde a única alegria que podemos esperar é aquela oferecida por alguns poucos prazeres e deleites. Precisamos retomar a trilha, esfregar os olhos e despertar deste sono. “Vale a pena!”, repitamos todos os dias, aos quatro cantos, enquanto nos empenhamos em redescobrir o valor das coisas simples, cultivando laços de verdadeira amizade, pelo caminho das virtudes.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, edição de 20 de Janeiro de 2016, Página A2 – Opinião.