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Um tesouro a descobrir

Opinião Pública | 15/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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Um amigo resolveu pregar uma peça e postou uma foto de uma planície toda branca e, num relance, parecia um campo coberto de neve, iluminado pelo sol a pino. Curti a foto e o elogiei dizendo que, finalmente, ele não havia publicado nenhuma vaca sendo ordenhada, um monte de saco de cebola enfileirado ou qualquer imagem de padrão agropecuário. Nada contra as vacas ou as cebolas. Tudo contra o odor campestre que ambos exalam.

Logo em seguida, veio a resposta: “Isso aí é uma plantação de algodão aqui em Brasília!”. Ele não perdoou e disse que enganar juiz não é muito difícil no Brasil. Depois, mandou uma foto do STF e perguntou para mim quando iria para lá. Respondi que não tenho amigos políticos e me sinto mais confortável entre juízes de carreira. Ele afirmou: “Você tem ótimos amigos então!”. Emendei: “E você é um deles! Desde o ginásio”.

Toda vez que o tema da amizade surge, lembro-me sempre de um amigo cético que tem uma pérola sobre o assunto: “A amizade, como o amor, não passa de um nome!”. Nominalismos à parte, quem não crê na amizade, certamente, é um indivíduo sem amigos. Por isso, vale o conselho de Cícero: “Penso que deveis perguntar sobre a amizade aos que a praticam”.

Contudo, hoje, quem for seguir a sugestão do mais ilustre orador romano, vai ter alguns problemas no caminho. Há muitos que creem ser a amizade algo supérfluo e uma coisa do passado. Os interesses econômicos e a ambição de poder do mundo dos negócios e da política limitam muito o espaço necessário para relações pessoais desinteressadas e sinceras. O mesmo vale para as órbitas social e acadêmica, onde as fogueiras das vaidades nunca se apagam. Em todos esses campos, networking é o novo nome da amizade.

Nesses meios, as pessoas costumam ser apreciadas pelo que têm e não pelo que são, ou seja, pelas vantagens materiais e imateriais que podem nos proporcionar. Ter “amigos” é uma política de trato a fim de se ter mais possibilidades de privilégios e recomendações. Desde suplente de diretor de quadra de bocha até cargo comissionado na presidência de alguma empresa pública.

Aqui em Pindorama, muitos atribuem esse trato “político” da amizade aos tempos de Pero Vaz, quando, em sua famosa carta do “Achamento”, ele já teria solicitado, para Dom Manuel, um favor para seu genro. Vista dessa forma, a amizade perde seu valor e vira uma fonte de injustiças. Históricas, inclusive.

Outro obstáculo no cultivo da amizade atende pelo nome de sociedade massificada. Adorno, lá atrás, já alertava que “nos dias atuais, falta vida e sobra coesão. Nossa sociedade sobre de uma unidade imposta, de uma aglutinação forçada e violenta. São multidões esmagadas pelo império das leis, pelas necessidades técnicas e pelas exigências materiais”.

Esse tipo de sociedade conduz seus indivíduos à despersonalização e, progressivamente, o sujeito deixa de agir como um ser singular, livre e criativo, cujo efeito mais deletério é o de perder a capacidade de se relacionar intimamente.

Surgem indivíduos gregários, solitários e que repetem, como autômatos, as formas abstratas que aprenderam, sem nenhum vigor, entusiasmo ou convicção verdadeiramente pessoal. Some-se a isso o crescente predomínio do público sobre o privado, quando não uma invasão daquele no mundo da intimidade do relacionamento pessoal. As individualidades cederam espaço para as coletividades.

Ao contrário da vida animal, é preciso que se redescubra nossa condição de pessoa e se valorize isso: no fundo, nós somos, para os outros, nossas irrepetíveis individualidades. Sem dúvida, é um bom propósito nesse ano em que reencontrei minhas turmas de ginásio do Porto Seguro e de direito do Largo de São Francisco. Resgatar a amizade, pelo que são, de cada um daqueles que escreveram no livro da minha vida. Não sem estar acompanhado de um bom destilado ou fermentado, pois, afinal, como diz outro grande amigo, nunca cultivei amigos e amigas tomando leite de vaca. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/6/2016, Página A-2, Opinião.

Vale a pena?!

Opinião Pública | 22/02/2016 | | IFE CAMPINAS

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Ao olhar cabisbaixo de um amigo, lanço logo o convite: “Vamos à luta! Vale a pena!”. E como têm sido frequentes estes encontros. Faço-o por mim e por eles, pois parece que o ar que respiramos anda intoxicado de medo e tristeza. Sem perceber parece que estamos sendo levados pelo marketing da tragédia, do escândalo, da podridão, como se estivéssemos fascinados pelo espetáculo do mal. Nunca tivemos tanto conforto e bem-estar e nunca desfrutamos tão pouco das coisas. Será este o preço que pagamos por tanta fartura e progresso material?

O empreendedorismo é admirável, uma face virtuosa do mundo do trabalho. E já passou da hora de superarmos o ranço invejoso do discurso vermelho que divide o mundo entre proletários-explorados e capitalistas-vilões. Sou filho de uma família de empreendedores pioneiros, desbravadores de um Brasil que começava sua via industrial. Ando pela cidade onde nasci e até hoje são muitos os que brilham os olhos de gratidão ao me reconhecerem um descendente daqueles homens corajosos, que se colocaram a serviço e geraram oportunidades e riquezas para tantas famílias, recebendo uma justa recompensa pelo trabalho bem feito.

Coisa bem diferente é o “materialismo” que tomou conta das ruas. Vermelho ou branco, de direita ou de esquerda, todo materialismo é uma condenação. Há coisas que não podemos comprar no comércio, nem produzir na indústria, simples assim. Nem tudo se mede pela régua da eficiência ou pela lei do mercado. O Estado jamais vai suprir todas as nossas necessidades, e nem todo sofrimento termina com justiça social. Enfim, nem só de pão vive o homem!

É sobre isto que penso quando sou mal atendido em uma consulta médica. Quando vejo jovens abandonando suas vocações pelo desejo de enriquecer. Quando o antigo teatro municipal é destruído para dar lugar a um prédio comercial. Quando belas Igrejas passam a abrigar restaurantes e bares. Quando uma família se desfaz, a custa de aventuras. Quando a política é transformada numa barganha de interesses e favores.

Constrangidos, somos obrigados a reconhecer que os bens que conquistamos não se traduzem numa apreciação maior da vida. Ao contrário, muitas vezes parece que à medida que aumenta o gozo das coisas, perdemos a capacidade de desfrutá-las e de nos alegrar. Já não cultivamos a festa da celebração da vida, mas outro tipo de festa, a festa da evasão e da fuga, da qual voltamos à vida diária como quem retorna ao cárcere, com uma sensação de tédio e sobrecarga.

Os filósofos gregos já diziam que a felicidade humana não está nas coisas, no dinheiro, no bem-estar, no prazer ou no sucesso, pois o bem do homem somente se realiza em um bem de mesma natureza pessoal. Por isso, a felicidade dos homens somente pode se realizar na amizade com outros homens, não qualquer tipo de amizade, mas aquela que é fruto de um amor recíproco. E pensando nisto, Aristóteles escreveu um tratado sobre as virtudes, pois, segundo ele, somente homens virtuosos são capazes de amar. Sem isso a amizade é corrompida pelo egoísmo, tornando-se fonte de exploração de um pelo outro ou um mero pacto de interesses e isto não basta para trazer a felicidade. Por isso, ele conclui que para o bem da sociedade e dos cidadãos, os homens devem ser educados nas virtudes.

Chesterton disse uma vez: “O mundo nunca sofrerá com a falta de maravilhas, mas apenas com a falta de capacidade de se maravilhar”. Por trás de todo o pessimismo e medo da nossa época esconde-se uma atroz incapacidade de se admirar, um desencantamento por estarmos privados de gozar do verdadeiro amor, a única fonte da nossa força e vitalidade, a única razão da nossa esperança. Desprovidos do legítimo bem, caminhamos como cegos, abandonados em um mundo escuro, perigoso e sem sentido, onde a única alegria que podemos esperar é aquela oferecida por alguns poucos prazeres e deleites. Precisamos retomar a trilha, esfregar os olhos e despertar deste sono. “Vale a pena!”, repitamos todos os dias, aos quatro cantos, enquanto nos empenhamos em redescobrir o valor das coisas simples, cultivando laços de verdadeira amizade, pelo caminho das virtudes.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, edição de 20 de Janeiro de 2016, Página A2 – Opinião.

Uma Boa Mentira: Virtudes humanas em estado puro. Sem vírgulas. (por Pablo González)

Cinema | 06/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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The Good Lie. USA. (2014). Diretor: Philippe Falardeau.  Reese Witherspoon, Corey Stoll, Sarah Baker, Sope Aluko, Sharon Conley, Mike Pniewski, Arnold Oceng, Clifton Guterman, Ger Duany, Emmanuel Jal. 110 min. 

Uma boa mentira - capaUma lufada de ar refrescante. Imprevista. Tinha este filme nos meus arquivos, vários meses esperando. Algo tinha lido em alguma crítica: ativista americana que ajuda refugiados sudaneses. Mais do mesmo, pensei. E deixei esperando. Um dia –sempre é desse jeito- , sem pensa-lo muito (aliás, parece-me que tinha previsto assistir outro filme), coloquei-o na tela do computador, talvez até por engano. E deixei correr. Vejo jovens africanos embarcando de um campo de refugiados para América. E a seguir, em flashback, a explicação conveniente.

Imediatamente, conforme as lembranças dos protagonistas desfilam na tela, a minha memória evoca outras paralelas, vindas de um livro que li há alguns meses. Correr para viver. A história de um refugiado sudanês, que acaba se transformando em atleta olímpico em USA. O livro é sua história, e o débito que com justiça e com elegância paga a todos os que lhe ajudaram. Uma boa mentira - 7Aqui os protagonistas são outros, não parece que tenham aptidões especiais como o corredor do livro, mas evidentemente o marco histórico é o mesmo. Os meninos perdidos do Sudão, órfãos durante a guerra civil de 1983 que assolou o pais e emigraram para os campos de refugiados do Quênia. No final dos anos 90 começa o êxodo facilitado pelos Estados Unidos, que através de organizações variadas, acolhe os órfãos sudaneses. Até o 11 de Setembro, onde o processo se interrompe, por motivos de segurança. O filme –como o livro- conta uma história real, e os atores são realmente emigrados sudaneses, ou filhos daqueles. Argumento simples, atitudes humanitárias, enfim, um capítulo da história humana que carrega lamentos pelas barbaridades perpetradas e louvores para os que tentaram minimizá-las.

Uma boa mentira - 1Mas a força do filme –pelo menos o que me impactou- não esta ai, mas nas entrelinhas. São as atitudes dos africanos as que esbanjam virtudes. O tempo todo. Durante a massacre étnica, nos tempos que passam no campo de refugiados e, com destaque, na sua chegada a USA. Até parece que são pessoas de outro planeta pelo modo, simples, franco, direto, como se comportam. Lealdade, afeto, generosidade distribuída sem medida. Elogios aos policiais que mantém a autoridade, porque no entender deles –na cultura africana- são pessoas que estão ao serviço da sociedade. Compartilhar com quem não tem, porque é assim que eles foram criados, não concebem outro modo de viver. Integridade a prova de bomba, simplicidade que lhes permite apreciar o que para outros passa desapercebido. E uma amizade temperada pelo sentimento de lealdade, de honra, que ultrapassa as categorias vigentes. A boa mentira, que dá titulo ao filme, é importada de um romance de Mark Twain, onde um dos protagonistas se faz passar por outro, para ajudá-lo, arcando com o débito que o beneficiado tinha em conta. Gente de outro planeta? Ou somos nós os que mudamos e arrastamos nessa mudança saturada de mentira, corrupção e deslealdade os cacos deste mundo nosso?

Uma boa mentira - 2Virtudes em estado puro. Esse foi o resumo que cristalizou na minha mente, enquanto desfilavam na tela os créditos finais. E ao tempo, lembrei de uma conversa singular, acontecida numa das muitas reuniões humanistas nas que ando envolvido. Recordo-a como a reunião das vírgulas. Em teoria, todos concordamos que se deve viver a honestidade –ou a sinceridade, a lealdade, e por ai afora- , mas há situações onde…..O “mas”, golpe adversativo, costuma ser precedido por uma vírgula. A vírgula, que fornece um ponto de inflexão à virtude, é o começo do descaminho. Sim, tudo isto é muito importante, mas….. Ai está a vírgula. Como esclarecendo: no meu caso, nesta situação, em tais circunstâncias, …..E, com a vírgula segue-se a desculpa para eximir-se da atitude virtuosa.

Uma boa mentira - 3Na vírgula damos entrada aos exemplos –maus exemplos, entende-se- que outros dão e que parecem desculpar-nos das nossas obrigações. Na vírgula se desbota a virtude, perde cor e atrativo. E como nunca foi mais atual aquele ditado de que quem não vive como pensa, acaba pensando como vive, construímos toda uma antropologia da vírgula, que se veste de questões culturais, modernas –ou pós-modernas- desculpas eruditas para fugir do cumprimento do dever. Integridade? Compromisso? Lealdade? Sim, de acordo, mas….E lá vem a vírgula, confortante e salvadora. Impossível não recordar aquele fato que contam ocorreu com Alexandre Dumas, o filho. Chegou a uma reunião social e uma das damas espetou-lhe: “Deve ser muito difícil para o senhor ter um pai com costumes tão licenciosos como o pai do senhor”. Parece que a fama de bon vivant do Dumas pai era pública. Mas o interpelado respondeu-lhe com imensa calma: “Nada disso, minha senhora. Se ele não me serve como exemplo, funciona bem como desculpa”.

Uma boa mentira - 4A reunião das virgulas ficou famosa. Lembro que alguns dias depois recebi um e-mail de um dos participantes, comentando um assunto profissional –por certo, de modo muito competente- e desculpando-se por não ter feito ainda melhor. “Sei que você não gosta de vírgulas, afirmava no final”. Não é uma questão de gosto, mas de coerência. Quando se permite que as virgulas tomem conta, as modulações e orações subordinadas acabam apagando a sentença principal.

Uma boa mentira - 5Os atores deste filme não são gente de outro planeta. São humanos, como nos, mas sem vírgulas. E ai minha imaginação voo para outro livro que também li recentemente e que comentei neste espaço, o Caçador de Pipas. Recomendo a leitura do comentário –eu mesmo acabo de reler o que escrevi- porque é um complemento ao tema das vírgulas. Atrai-nos o exótico, emociona-nos a amizade, a lealdade destes seres longínquos –do Sudão ou do Paquistão- e até nos arranca lágrimas. Mas os deixamos lá, em outro planeta, porque permitir a entrada no nosso provocaria uma enxurrada de reflexões, e vai ver que nos pega de calça curta.

Uma boa mentira - 6A maldita lealdade inabalável do protagonista do Caçador de Pipas, a amizade íntegra do sudanês da Boa Mentira, são uma bofetada para a nossa sociedade medíocre. É sabido o pouco espaço que as noticias dos países africanos ou asiáticos que estão no terceiro (ou quarto?) mundo, têm nos meios de comunicação. Dizem alguns que talvez porque não são relevantes para a economia e para os destinos do poderoso ocidente e de quem corta o bacalhau. Atrevo-me a pensar que há talvez outros motivos muito mais perigosos: vai ver que o confronto com essas vidas simples, diretas, repletas de virtudes em estado puro, sem vírgulas, nos incomodaria sobremaneira. Sim, uma bofetada; ou, pelo menos, uma luva que nos é jogada na cara, para enfrentar o duelo e resgatar uma vida digna, sem vírgulas, e tomar posse real do nosso planeta, em solidariedade de virtudes com quem tem tanto para nos ensinar.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2015/07/31/uma-boa-mentira-virtudes-humanas-em-estado-puro-sem-virgulas/#more-2417>

A Amizade ou Cícero e Riobaldo estão de acordo

Literatura | 27/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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PortraitLHvers1870-dois-amigos-DP“Amigo para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual para o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e todos os sacrifícios. Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é. Amigo meu era Diadorim.”[1]

Essa é, talvez, a definição da mais bela história de amizade da literatura. Em Grande Sertão:Veredas, Guimarães Rosa conta-nos a relação entre Riobaldo e Diadorim. Quem narra a história é Riobaldo, já velho, mas que mantém viva na lembrança a grande amizade com o amigo jagunço: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem.”[2]

Antes de destrinchar o sentido desta amizade, vale a pena contar como ela se deu. Riobaldo tinha cerca de catorze anos. Como havia se curado de uma doença, a mãe fez uma promessa. O menino teria de pedir esmolas no porto para pagar uma missa. Certo dia, enquanto cumpria a promessa, apareceu um menino e os dois começaram a conversar sobre assuntos triviais: de onde vem, para onde vai. Com o passar do tempo, Riobaldo começou a se afeiçoar àquele menino e desejou que ele não fosse mais embora. O menino foi fazer um passeio de canoa e o chamou. Uma observação que Riobaldo fez, já velho e que é muito importante: “Tudo fazia com um realce de simplicidade, tanto desmentindo pressa, que a gente só podia responder que sim.”[3]

Neste passeio pelo Rio São Francisco, eles pararam em um determinado ponto, desceram e ficaram “espreitando distâncias do rio e o parado das coisas.”[4] Em seguida, despediram-se e, embora não soubesse o nome do amigo, sabia que ficaria para sempre em sua lembrança: “Dele nunca me esqueci, depois, tantos anos todos.”

No excelente romance de Guimarães Rosa, o futuro uniu os dois amigos que andaram pelos sertões, fazendo companhia um ao outro. Esse fato nos leva a pensar na citação inicial deste ensaio, em que Riobaldo define o laço que os unia como um prazer de estar junto e todos os sacrifícios. Talvez seja por isso que a amizade esteja em baixa atualmente, porque se é um prazer, também é exigente, requer esforço, dedicação. Mas não é um fardo, porque nos dá riquezas que não sonhávamos que existissem sobre a terra. Um amigo, na plena acepção do termo, é a pessoa que nos mostra a grandeza que cada ser humano guarda e como o guardar é relativo, pois o tesouro que ele tinha sob seu poder foi feito para dar a outra pessoa, ao seu amigo.

É desse modo que podemos entender também a grande amizade que ligou o filósofo, poeta e grande orador Cícero (106 a.C/43 a.C) a Ático. Foi por causa do amigo que Cícero escreveu o belo diálogo Da Amizade, que “oferece um interesse único: é a obra de um amigo escrevendo ao seu mais querido amigo, após uma vida de íntima amizade”[5], diz o tradutor da obra, Tassilo Orpheu Spalding. Afirma também que a obra está baseada nas seguintes reflexões: a amizade não é procurada para satisfazer o egoísmo, mas devido a um desejo da alma, e que não há amizade sem virtude. Se nos lembrarmos do que disse Riobaldo, vemos que é o mesmo que Cícero: prazer de estar junto e não prazer por sentir prazer e todos os sacrifícios, ou seja, ter e adquirir virtudes.

Discorrendo sobre a primeira reflexão, de que não é por egoísmo, Cícero diz que o egoísta se atormenta excessivamente com os seus próprios males, o que não é próprio do amigo. Talvez esteja aí também um dos motivos pelos quais se tem uma certa desconfiança atualmente em relação à amizade. Muitas vezes, as pessoas procuram não confidentes, mas depósitos de lamúrias, no qual um eu fica girando em seu próprio eixo sem ouvir e dar espaço ao outro: não é a busca de um amigo, mas a de um terceiro ouvido. É certo que o amigo tem essa função, a de escutar o outro, mas fala ao outro, não para si mesmo, embora quando falamos a um amigo verdadeiro é como se falássemos para nós mesmos, mas não porque não lhe damos ouvido, mas porque nos compreende, ou como diz Cícero:

“Existe um homem para quem viver seja realmente viver, como diz Ênio, se não conhece a felicidade de amar e ser amado? Que há de mais doce do que ter alguém com quem ouses falar como falarias a ti mesmo? Para que serviriam tão grandes frutos na felicidade se não tivesse com quem partilhar o gozo que eles nos dão?”[6]

Sobre a segunda reflexão, Cícero e Riobaldo também estão de acordo no que diz respeito às exigências de uma amizade. Após dizer que “tira o sol do mundo quem tira a amizade da vida”, Cícero afirma que não há razão para desistir da amizade devido aos dissabores que pode vir a nos causar, já que do mesmo modo é insensato renunciar à virtude pelo fato de exigir esforço. Além disso, suportar e auxiliar o amigo nos momentos em que ser amigo de fato é mais custoso, é uma grande oportunidade para alcançarmos novas virtudes e mais, demonstrar ao amigo que a amizade não é devida a um impulso gregário ou egoísta, mas devido a um amor desinteressado. É também o que diz Riobaldo quando fala da sua amizade por Diadorim: “Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor.”[7]

Portanto, embora exista uma troca muito benéfica na amizade, ela não se resume a isso, porque é doação. E o que se dá? O que há de mais profundo no ser humano: a sua interioridade, a sua intimidade. Cícero diz que não é “tanto a utilidade partilhada pelo amigo, como o próprio amor do amigo que deleita: o que vem dum amigo sempre nos agrada, quando seu zelo por nós o inspirou”. E concluiu esta reflexão afirmando que não é a amizade que segue a utilidade, mas a utilidade segue a amizade”, ou seja, não buscamos no amigo o que nos convêm, mas a própria amizade traz consigo o que nos convêm.

A amizade, enfim, é um tipo de amor em que a alma é o que conta, como disse Riobaldo: “Diadorim e eu, a sombra da gente uma só formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem”[8]. Do mesmo modo, e mostrando que as diferentes épocas viram a amizade como um bem sem preço que possa medir o seu valor, Cícero vê na busca da amigo o transbordar do amor que cada um sente por si – não como egoísmo, mas como instinto fundamental de sobrevivência e acolhimento verdadeiro da própria riqueza como pessoa:

“Se alguém ama a si mesmo, não é porque exija de si mesmo o preço desse afeto, mas porque cada um é caro a si próprio. A não ser que se transfira isto para a amizade, jamais será encontro verdadeiro: pois o verdadeiro amigo é como um outro nós mesmos. Se isto se evidencia nos animais, nas aves, nos peixes que primeiro amam a si mesmos (pois este instinto nasce com todo ser vivo), em seguida procuram e perseguem o do seu gênero para a eles se unirem, e fazem isto com tal ternura que lembra a dos homens, mais ainda no homem, onde ocorre por sua própria natureza, o qual ama a si mesmo e procura, a seguir, um coração com o qual o seu se possa unir tão estreitamente que os dois não façam senão um!”[9]

O escritor C.S.Lewis afirmou no livro The Four Loves que a baixa estima que a amizade tem atualmente é devido ao fato de que poucos a experimentam.[10] Duas grandes obras provam que vale a pena.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário, e gestor do Núcleo de Educação do IFE Campinas.

NOTAS

[1] Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, in Ficção completa, Rio de Janeiro, 1995, Nova Aguilar, p. 119.

[2] Id. Ib., p. 160.

[3] Op. Cit. p. 70-71.

[4] Op. Cit. p.74.

[5] Op. Cit., p. 122.

[6] Op. Cit., p. 135.

[7] Op. Cit., p. 104.

[8] Op. Cit., p. 160.

[9] Marco Túlio Cícero, Da amizade. In: Da velhice e da amizade, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 160.

[10] C.S. Lewis, Los cuatroamores, Rialp.8ª ed. p.70.