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Educação e resgate paideico

Opinião Pública | 15/11/2017 | | IFE CAMPINAS

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Em conversa com o vice-reitor de uma universidade paulista, expus para ele minha preocupação sobre os rumos de uma pedagogia jurídica que só “prepara para o mercado de trabalho” ou “garante a futura empregabilidade do aluno”. Fiquei estarrecido quando ele me respondeu que essa visão acadêmica não é só privilégio do mundo das leis. Segundo ele, a colonização foi praticamente completa: “educa-se” para o mercado e não para o mundo do trabalho.

Esse é o quadro do cenário educacional que contemplamos hoje. Os alunos são clientes, os diplomas são comprados em prestações mensais e as metodologias de avaliação são típicas de um sistema de produção toyotista. A eficaz máquina educativa inunda o mundo profissional de analfabetos diplomados e eu convivo com muitos deles nas petições iniciais e contestações.

No fundo, penso que essa máquina parte de uma pobre visão antropológica que oscila entre o homem “consumens” e o macaco evoluído: esse busca a redenção existencial pela técnica, enquanto aquele satisfaz sua curiosidade e se diverte contra a angústia de uma vida sem sentido. De fato, a julgar pelo nível dessa premissa antropológica, a educação superior não pode ser muito diferente: os frutos jamais caem longe da árvore.

Os gregos transformaram a educação na própria razão de ser de seu povo. A Academia e o Liceu foram o modelo de uma escola autêntica: o assenhoramento da universalidade do conhecimento da época pelos mestres da filosofia levou o grego aristocrata a frequentar escolas naturalmente. Aliás, em razão do cultivo do saber e da busca da sabedoria, os gregos só poderiam valorizar altamente a educação.

Depois da Grécia, a educação passou a ser vista como fonte de fortalecimento dos povos. Floresceu e democratizou-se com o espírito prático dos romanos até a queda do império ocidental, quando a Igreja Católica assumiu sua função de educadora ao civilizar os povos bárbaros e, alguns séculos depois, fomentou a criação da universidade medieval, legado precioso que perdura até hoje e um dos símbolos da civilização ocidental.

Com o advento do Estado moderno, cada nação tratou de por seus olhos na formação de suas gerações pelo meio da educação, desde a mais elementar até a mais sofisticada, restando a impressão de que o homem estaria no vestibular da conquista do universo, cuja aprovação dependeria do domínio de suas próprias contradições e tendências menos dignas de uma natureza debilitada.

Mas parece que nos encaminhamos para a reprovação, se o estado atual das coisas permanecer assim. Talvez, uma saída passe por uma profunda reflexão sobre o papel da cultura. A cultura é sempre a irrupção do atemporal no meio do tempo. Cultura vem do latim colere, que significa também cuidar.

Algo que se relaciona com a natureza e o cultivo da terra e não com uma linha de produção. É uma operação que consiste em cuidar do espaço, liberar os recursos do crescimento de uma pessoa e permitir a frutificação da plenitude de um ser. Por isso, uma vivência cultural lembra mais o trato da terra e não o chão de fábrica.

Educar é, pois, cultivar e não manufaturar. Respeitar os ritmos das colheitas e das estações dos indivíduos. Trato esmerado. Não produção em série. Contudo, educar entranha um risco: o risco da liberdade humana. É o único caminho, porque uma educação sem risco vira adestramento, algo em que a maioria das faculdades concorrem umas com as outras. Diria até que, em alguns casos, o puro “educar” para o mercado de trabalho chega a ser tão eficaz que o aluno logo consegue um emprego.

Cinco anos depois, todo aquele conhecimento da graduação não tem muito mais serventia e começa a maratona de sucessivos cursos dos mais diferentes tipos, a fim de o ex-aluno se tornar cada vez mais empregável, visando escapar da condição de excluído. Afinal, ele foi adestrado para o mercado de trabalho. Se tivesse sido educado para o mundo do trabalho, muito dificilmente precisaria daquela maratona pedagógica.

A modernidade pedagógica propôs fazer uma educação laica, ainda que, em regra, tenha flertado com o laicismo. A pós-modernidade pedagógica propõe a falsa transcendência do mercado de trabalho. No primeiro caso, sonhávamos com um homem sem Deus. No segundo, sonhamos com algo pior: um homem sem o humano. Eis o efeito nefasto de nosso “adestramento superior”: é chegada a hora de seu resgate paideico. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 15/11/2017, Página A-2, Opinião.

Lançamento do 5º vol. de "História das Idéias Políticas" (Eric Voegelin)

Filosofia | 19/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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É Realizações Editora lança Religião e a Ascensão da Modernidadede Eric Voegelin

Chega às livrarias o quinto volume da série História das Ideias Políticas.

Religião e a Ascensão da Modernidade é uma obra de suma importância, não apenas por seu tratamento a pensadores e doutrinas influentes no século XVI, mas também pelo exame pormenorizado dessas experiências que formaram o panorama moderno.

Ao examinar a emergência da modernidade no âmbito dos debates filosóficos e políticos do século XVI, Religião e a Ascensão da Modernidade, volume V de História das Ideias Políticas, retoma a análise da “grande confusão” apresentada no volume IV da mesma coleção. Trata-se de um período controverso e revolucionário, que abrange uma gama de acontecimentos desencadeados pelas Noventa e Cinco Teses de Lutero.

Dos pensadores mais conhecidos aos menos estudados, esse volume apresenta figuras como Calvino, Althusius, Hooker, Bracciolini, Savonarola, Copérnico, Tycho de Brahe e Giordano Bruno. O autor dedica atenção considerável a Jean Bodin, apresentando-o como profeta de uma nova religião, em meio a desordem civilizacional da era pós-cristã. O presente volume foca em temas tradicionais como a monarquia, a teoria da guerra justa e a filosofia do direito, mas também investiga questões da astrologia, cosmologia e matemática.

Apesar da complexidade da época, a análise luminosa de Voegelin esclarece sua importância e sugere linhas de mudanças que convergem num ponto no futuro: a compreensão cristã medieval, de um cosmos fechado, criado divinamente, estava sendo substituída por uma nova forma de consciência humana moderna, que pressupunha o homem como a origem inerente do sentido do universo.

Sobre o autor

Eric Voegelin (1901-1985) foi um dos filósofos mais originais e influentes de nosso tempo. Nascido em Colônia, Alemanha, estudou na Universidade de Viena, onde depois tornou-se professor de Ciência Política na Faculdade de Direito. Em 1938, ele e sua esposa, fugindo de Hitler, emigraram para os Estados Unidos. Tornaram-se cidadãos americanos em 1944. Voegelin passou a maior parte de sua carreira na Universidade do Estado da Louisiana, na Universidade de Munique e no Instituto Hoover, na Universidade Stanford. Publicou muitos livros e mais de cem artigos.

Título: Religião e a Ascensão da Modernidade – História das Ideias Políticas V

Autor: Eric Voegelin

Tradução: Elpídio Mário Dantas Fonseca

Editora: É Realizações Editora

Preço: R$ 79,90

Nº de páginas: 368

 Para adquirir clique aqui.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br

Família: redução privatizante e função personalizante

Filosofia | 21/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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INTRODUÇÃO

 

Torna-te o que és! Foi o que disse, certa vez, o poeta pagão Píndaro acerca do homem. Do ponto de vista lógico, a afirmação de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:

“Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nascimento, podemos admitir, sem contradição, que aos nascermos ainda não somos seres humanos em plenitude, pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta: construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude, não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano. Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser humano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre por conta do duplo movimento de socialização e individuação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela individuação ele constrói a sua própria individualidade, tornando-se único, distinto de todos os demais no interior da mesma cultura”.

O fenômeno da família, no qual se insere o homem, decorre do fato de que o ser humano surge para a vida numa situação de desamparo e, por isso, está necessariamente referido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os primeiros momentos de sua existência, o que pode ser observado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento até a maturidade.

Surge assim uma relação entre uma nova vida, que ainda não tem a consciência de sua própria existência, e uma outra em andamento, representada pelos pais, cuja função é a de facilitar o advento das capacidades que resultem necessárias das circunstâncias vitais e históricas, as quais estão delimitadas por um arco de tempo que, normalmente, encerra-se no momento em que aquela nova vida alcança sua independência existencial, o que se dá ordinariamente com a conquista de uma profissão.

Mesmo assim, o processo familiar não cessa, porque o elemento de potencialidade interior no ser humano é essencialmente maior do que nos animais irracionais: nestes seres, os limites de possibilidade e de realidade alcançam rapidamente sua descoberta, causando a impressão de já estarem predispostos em sua própria natureza. No ser humano, a situação é completamente diversa.

Por isso, como resultante da importância dessa dimensão familiar, nós devemos nos debruçar sobre o estado da arte familiar nos dias atuais. Há algumas décadas, pude escutar dos lábios de João Paulo II, que havia chegado para toda civilização ocidental a “hora da família”. Mais do que assinalar as respostas que a ideia contemporânea de família propõe-nos como solução para o período de transição da modernidade para a pós-modernidade em que vivemos[1], é imprescindível demonstrar como a família pode ser uma primordial e insubstituível protagonista das mudanças radicais que nossa sociedade reclama no alvorecer do século XXI.

Ao analisarmos as relações entre a família, como ente social, e seu atual entorno histórico-existencial, esboça-se claramente sua atitude defensiva, porque a instituição familiar vem sendo submetida a um progressivo processo de deterioração de suas bases ontológicas e, ultimamente, tem sido o alvo de ataques, diretos ou indiretos, de vários campos do saber, sobretudo nos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico. A família está cercada por todos os lados. Não nos estranha, pois, essa postura defensiva.

Entretanto, agora, é a hora da família. É a vez de sair dessa postura em prol de um protagonismo amavelmente ofensivo, em virtude, justamente, dos bens e deveres em jogo para o futuro da humanidade e do bem comum, porque os verdadeiros aventureiros das trilhas de nosso confuso e belo mundo são justamente os pais de família. Charles Péguy (1958:108) escrevia, há algumas décadas, que

“os aventureiros mais desesperados não são nada em comparação com eles. Tudo no mundo moderno está organizado contra esses loucos, esses imprudentes, esses visionários ousados (…) que se atrevem, com audácia, a ter filhos. Tudo está contra essas pessoas que se arriscam a fundar uma família. A única aventura que existe é aquela protagonizada pelos pais de família. Os outros estão hermeticamente fechados em seus mundos. Aquele que é pai ou mãe de família está aberto ao mundo de seus filhos. Os outros sofrem por si mesmos. Só os pais de família sofrem pelos filhos e em cada situação por eles vivenciada. Somente os pais de família esgotam o sofrimento temporal. Aqueles que nunca tiveram um filho enfermo, não sabem o que é a enfermidade. Aqueles que nunca perderam um filho, que nunca viram seu filho falecido, não sabem o que é a dor. E tampouco sabem o que é a morte”.

Assim, as famílias devem crescer com a consciência de serem protagonistas das chamadas políticas familiares e, em razão disso, assumir a responsabilidade de transformação da sociedade, porquanto, a prevalecer a atuação defensiva, as famílias serão as primeiras vítimas justamente dos movimentos e das ideias que alimentam uma espécie de anticivilização, como já podemos observar em muitas tendências intelectuais da atualidade e em muitos fatos sociais e políticos, cujo pantagruelismo é patente.

A família constitui, ao cabo, a fonte da civilização do amor, na feliz expressão cunhada por Paulo V[2]. A família, como motor de uma verdadeira e fecunda revolução social, é a missão que nos incumbe diante das portas do terceiro milênio de nossa história. Afinal, como já lembrava João Paulo II (1982:90), “tal é a família, tal é a nação, porque tais são seus membros”, palavras que serão o eixo estruturante deste trabalho intelectual. Então, parafraseando nosso poeta pagão, se a família deve ser o centro e o coração da civilização do amor, família, torna-te o que és!

 

PRIMEIRA PARTE

A instituição familiar não é fundada numa filosofia romântica e vaga e que serve de pouco no momento em que se pretende demonstrar a ontologia de seu ser no contexto da “cultura de repúdio” (SCRUTON, 2011:XII) em que vivemos. Uma cultura que corresponde à maneira como o Ocidente tende a repudiar os seus valores estruturais: a filosofia grega, o direito romano e a tradição religiosa judaico-cristã. Essa “cultura de repúdio” não representa apenas um empobrecimento moral ou mesmo epistemológico no confronto dos homens com o mundo.

Começa por ser um empobrecimento ontológico, independentemente de crença religiosa ou até mesmo de indiferença ou ausência desta. Sem um contato vital com aquele rico e perene arcabouço da genealogia ocidental, ficamos cegos, surdos e mudos para compreender corretamente dois milênios de civilização e todo seu legado existencial. E, no que toca ao campo filosófico, nossa razão fica um tanto obscurecida na tarefa de investigação da essência das coisas e a instituição familiar não fica imune a isso.

A respeito da família, o retrospecto histórico demonstra que se dá um acordo universal do gênero humano, explicado pela própria índole da instituição familiar. Não existe instituição mais próxima da natureza que a família. Sociedade simples, lastreada de maneira muito imediata em certos instintos primordiais, a família nasce espontaneamente do mero desenvolvimento da vida humana.

O Estado também deriva de certas exigências naturais, como o fenômeno do poder. Mas o quanto ele dista, sobretudo se concebido a partir da Paz de Westfália e aprimorado à luz dos princípios do Welfare State com todos seus mecanismos e órgãos artificiais, do instinto social primário que impulsiona o homem a sair do solipsismo e unir-se com seus semelhantes!

Ao contrário, o natural impulso do instinto sexual, do amor materno e do desejo de perpetuação dos seus são elementos que fundam a família de maneira mais imediata. A autoridade dos pais, no seio familiar, resta fundamentada, sem a necessidade de complexos e intrincados princípios, no mero fato de que os filhos nascem de seus pais e não podem viver e desenvolver-se sem eles.

Tampouco pode-nos surpreender o fato de encontrarmos em todos os povos civilizados uma organização familiar sensivelmente idêntica, cuja vigência pode ser também observada em comunidades mais próximas do tribalismo. Nesse ponto, evidentemente, a família surge como problema antropológico-cultural e a etnografia ou etnologia estruturalista, cujo maior expoente foi Claude Lévi-Strauss (1909-2009), etnólogo e filósofo francês, faz algumas provocações interessantes, sempre fundadas numa realidade empírica investigada cientificamente.

Toda vez que tais provocações vêm à tona, lembro-me da provocação de Bergson (1950:109) sobre a religião, mas que pode ser perfeitamente aplicada à família: um espetáculo humilhante para a inteligência humana, tomado a partir do inúmeros absurdos, erros, violências e sacrifícios privados de qualquer sentido e que, em muitos casos, andaram de mãos juntas com o exotismo antropológico e o desrespeito à dignidade da pessoa humana.

Tais teratologias, assim entendidas sob o prisma da antropologia filosófica, impedem, em última análise e em prejuízo dos membros da entidade familiar, uma correta inserção destes no mundo humano, depois da ação personalizante da família, mais precisamente no complexo e multifacetado tecido social, historicamente condicionado e axiologicamente amalgamado. Esta inserção, como observa Arendt (2002:190), dá-se por meio da ação, fundada sempre num legado de valores familiares, e, de certa forma, é como um segundo nascimento[3]: o advento do “eu” individual junto ao “nós” social.

As cortinas desse espetáculo humilhante, ao qual se referia Bergson, abrem-se, no universo familiar, para o respeitável leitor: a poligamia e a decorrente ascendência indevida do sexo masculino nesse tipo de relação; a poliandria e o problema da paternidade; as culturas que assimilam a mulher estéril ao homem, ao mesmo tempo em que o consentem ao desposamento de outra mulher; os povos que atribuem a paternidade legal ao marido abandonado pela mulher em relação aos filhos que estar vier a dar à luz depois; as realidades culturais que legitimam socialmente as núpcias de um homem com uma mulher e, ao mesmo tempo, com a filha desta; os agrupamentos sociais que dilatam a genitorialidade social em prejuízo da genitorialidade biológica; os costumes populares que impõem o sacrifício ritual dos primogênitos e que estimulam o suicídio da viúva sobrevivente.

Depois desse rol apenas exemplificativo de realidades antropológicas, poderíamos nos perguntar se existe realmente uma ideia orgânica de família, já que não se vê qualquer unidade lógica ou funcional que possa ser extraída a partir daqueles mesmos exemplos. A etnografia ou etnologia estruturalista põe – aparentemente, como veremos mais à frente – em xeque qualquer proposta da busca de um conceito perene de família. Então, não seria melhor considerá-la como uma mera estrutura portadora de um “testemunho da sociedade” e deixar aberta a questão relativa em “haver algum sentido em se construir um conceito histórico continuativo de família”[4]?

No âmago do diálogo entre a etnografia ou etnologia estruturalista e a antropologia filosófica, algumas considerações devem ser feitas[5]. Em primeiro lugar, até o século XVIII, o problema cultural coincidia com o pedagógico. Assim, a cultura era concebida essencialmente como paideia[6], como formação da pessoa[7] e não como uma estrutura fundamental (categoria autônoma) da sociedade. Consequentemente, o problema cultural era analisado sob a perspectiva antropológica exclusivamente, sem qualquer contribuição do viés etnológico, o que veio a suceder somente a partir do século XVIII.

Graças aos trabalhos dos iluministas alemães Herder e Humboldt, a reflexão filosófica tomou consciência de que a cultura é um fenômeno que não só diz respeito ao indivíduo, mas também ao grupo social com tal, enquanto ela representa seu sistema de vida, constitui o vínculo que une os indivíduos entre si e os diferencia dos membros de outros grupamentos sociais.

A partir da segunda metade do século XX, etnólogos europeus dedicaram-se ao estudo científico de civilizações antigas e de povos primitivos e, como corolário, elaboraram teorias gerais a respeito dos fenômenos culturais ali descritos, sempre à luz dos postulados gerais de uma dada cosmovisão. Lévi-Strauss, um dos mais importantes deles, era adepto do estruturalismo que, como efeito de qualquer corrente de pensamento, implica numa determinada concepção de homem. A etnologia, então, vista sob o viés estruturalista, foi autoerigida à condição de antropologia filosófica e tomou o lugar deste ramo no saber filosófico.

O estruturalismo nasceu como efeito de um aprofundamento teórico da linguística. A linguística propõe que o importante não é tanto o conteúdo das palavras (o significado), mas o contexto das palavras, isto é, o conjunto de relações que cada palavra trava com as demais. E esse contexto não é algo que se estabelece conscientemente, de uma só vez, mas é o produto de uma atividade inconsciente da coletividade, de maneira que cada homem singular a ela se submete.

Em suma, a palavra denota uma estrutura de relações que, precisamente por ser uma estrutura básica, pode admitir diversas superestruturas. Pouca serventia tem o conteúdo se não se conhece a base estrutural que permite que este exista. Por exemplo, na linha da linguística, a palavra “família” pode comportar diversas noções de família (genealógica, etnológica, monoparental, afetiva, social, entre outras).

Essa base estrutural tem somente uma função formal, porque o método estruturalista intenta somente descrever posições. Saussure ilustrou essa função formal da estrutura com um exemplo bem claro: esse método assemelha-se a uma partida de xadrez em que uma dada posição das peças prescinde por completo dos movimentos antecedentes. Uma determinada posição das peças – considerando todas as possíveis e reais relações entre elas – pode ser entendida tanto por aquele que acaba de chegar à mesa da disputa como por aquele que esteja seguindo-a desde seu início.

O estruturalismo, dessa maneira, não se interessa pela gênese dos conceitos ou por sua história, senão pela complexa teia de relações que, num determinado momento, é possível descobrir. Por isso, a estrutura é definida justamente como uma entidade independente de qualquer conceito essencial e serve como forma para os inúmeros conteúdos que são delineados por aquela teia de relações.

Mas o estruturalismo vai mais além de um simples método. Como já antecipamos, implica numa determinada concepção antropológica, segundo a qual o homem, em suas manifestações individuais (trabalho) ou coletivas (família) está sempre submetido a estruturas linguísticas, biológicas, psicológicas que as superam e que se impõem sobre ele. O homem, assim, não faz a si mesmo. Ele é feito por uma consciência coletiva superior a ele, da qual ele, no máximo, é sua expressão. Por isso, Foucault chegou afirmar, coerentemente com os postulados estruturalistas, que o homem não existe, assim como fez Lacan na psicanálise e Lévi-Strauss na etnologia.

Segundo a etnografia ou etnologia estruturalista, a família, em suas diversas manifestações históricas, nada mais seria que um produto do pensamento inconsciente coletivo e jamais poderia haver um conceito natural dessa instituição, diante dos resultados das pesquisas de Lévi-Strauss, nos quais convivem a poligamia e a poliandria, entre outros, como superestruturas da estrutura familiar, tomadas sempre à vista do contexto de relações humanas desenvolvidas nas mais diferentes sociedades.

Pensamos que a família não é uma “resposta estrutural” que comporta infinitas superestruturas, moldadas no seio de relações sociais axiologicamente indiferentes. É, muito antes, uma “resposta antropológica”, porque, como ente multissingular, a família obedece à antropologia do homem, tanto que se cuida de um ente fundamental e insubstituível para qualquer sociedade de todas as eras e de todos os tempos. O próprio Lévi-Strauss (1967:134) afirma que “a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”.

De fato, como seres humanos que somos, nossa própria maneira de ser nos revela, sem muita dificuldade, como diz Spaemann (1996:38), que somos “gerados e não feitos”. Isso significa que, para que comecemos a existir (desde a fecundação, segundo entendemos), precisamos ser concebidos por outros seres humanos, pois nada pode dar o que não tem e o efeito não pode ser desproporcional à sua causa.

Para que a concepção se verifique, é indispensável a complementariedade biológica, sexual e psicológica entre uma mulher e um homem e isso é apenas o começo: a tarefa não se encerra com a geração do filho, mas se requerem décadas para que esses filhos cresçam, amadureçam e se desenvolvam, fases da vida em que os pais são indispensáveis, porque cada faz um aporte existencial e espiritual, desde sua particular perspectiva e, ao mesmo tempo, de maneira conjunta e complementar. A família, assim entendida, não foi inventada, porque é uma instituição natural e isso explica seu caráter universal e perene.

Doravante, acreditamos ser essa assertiva capaz de conduzir nossa investigação ao reenvio de uma série elementar de atributos que constituem o ente familiar. Tais atributos, por consequência, devem ter os toques da universalidade e da perenidade e, em sua essência, devem ser insuscetíveis de sofrer os efeitos da usura do tempo, salvo em suas formas de concretização, evidentemente condicionadas aos matizes históricos e materiais, mas sem que haja perda de sua identidade. Em suma, continuam, ontologicamente, referindo-se ao passado, mas, formalmente, agem diversamente do passado. DONATI (2000:64-65) anota que

“a família permanece como o lugar onde continua em vigor a proibição de inversão dos papéis sexuais (masculino e feminino) e geracionais (entre os que geram e os que são gerados), inclusive a proibição de incesto, mesmo se sexos e gerações não sejam mais separados, mas fortemente interativos entre eles. A família é e tende a ser aquela específica relação social à qual sempre é mais confiada a tarefa – não transferível a outras relações sociais – de personalizar a pessoa, através de específicos processos de socialização. Estes processos são essenciais para a maturação da criança e também do adulto, se e na medida em que “formar uma família” significa orientar a comunicação à totalidade da pessoa, segundo uma norma de reciprocidade solidária total”.

Por ser uma instituição tão próxima da natureza, o respeito às exigências naturais – se não se pretende desvirtuá-la – em matéria legislativa e jurídica deve ser redobrado, porque, historicamente, sempre que uma sociedade veio a soçobrar, o processo de decadência começou justamente pela família., como em Roma e, mais recentemente, nos totalitarismos de esquerda e de direita que se prodigalizaram ao longo do século XX.

Em outras palavras, a moralidade familiar é uma moralidade natural e não religiosa. Aliás, nesse ponto, convém lembrar que a tradição judaico-cristã nada mais fez do que assumir aquela moralidade natural e atribuir-lhe uma dignidade transcendental. Não inventou qualquer noção de família, apenas captou seus matizes essenciais e os incorporou ao magistério eclesial, a fim de indicar racionalmente aquilo que reforça – do ponto de vista dos costumes e das leis – aquela moralidade natural e aquilo que a dissolve.

Leclerq (1979:15), a respeito disso, informa que

“a continuidade entre a moral familiar cristã e a moral familiar humana é tal que, os escritores dos primeiros séculos invocam a elevada moral familiar dos cristãos como argumento em favor da fé. A pureza e a união das famílias cristãs são motivos de triunfo e os opõem à desordem dos costumes pagãos. Este argumento não teria valor algum para aqueles espíritos da cultura se não houvesse concordância com seus princípios. Se os pagãos considerassem a orgia como uma virtude e a castidade como um vício, em vão tais escritores teriam invocado a pureza dos costumes cristãos: estes deveriam já ter provado, de antemão, o valor da dita pureza. Se sentiram necessidade disso, foi porque uns e outros estavam de acordo quanto aos princípios. O mundo pagão não estava tão corrompido em seu espírito quanto estava em seus costumes (…). Não há que se assombrar, por conseguinte, pelo fato de que a sociedade cristã tenha se desenvolvido lentamente por uma espécie de crescimento natural. Nos primeiros séculos, a Igreja reagiu contra os costumes e as instituições jurídicas pagãs em determinados pontos, como a indissolubilidade do matrimônio e a importância da virtude da castidade. Depois, cobrou maior relevo de outros aspectos da moral familiar, como o princípio da liberdade dos consortes em contrair um matrimônio válido e, mais tarde, o direito inalienável dos pais como educadores de seus filhos”.

No seio dessa moralidade natural, reconhecemos que o direito e o ente familiar atuam em conjunto, estabelecendo uma perspectiva ontológica dotada de uma juridicidade e de uma essencialidade bem claras e definidas.  Mas logo emerge o quadro empírico-social vigente, ainda mais para quem lida diariamente nas varas de família, capaz de oferecer ao observador algumas intuições que, no fundo, servem para sinalizar muitas ambivalências nessas transformações havidas, à luz da ontologia familiar já delineada e sem qualquer apego nostálgico pela família “de ontem”, na definição de Giddens[8].

Mas também, por outro lado, sem aceitar servil e acriticamente as ofensivas que se fazem contra a instituição familiar, as quais serão objeto de nossa investigação doravante, e que costumam ser apresentadas, com um pomposo jogo semântico, na sociologia, pela expressão “pluralidade das formas familiares” e, no Direito, pelo título de “Direito das Famílias”. Não é por acaso que o mesmo Giddens (2000:75) reduz a família, à semelhança de muitas outras instituições sociais, à uma singela “instituição-casca”, ou seja, a um ente social que (GIDDENS, 2000:75) “ainda é chamado do mesmo modo, mas que, em seu interior, já é fundamentalmente diferente”.

 

SEGUNDA PARTE

Neste século XXI, parece que a sociedade perdeu o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Entretanto, nunca como hoje a qualidade das relações familiares é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista, relativista e indiferentista, deixando seus próprios membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras.

Por isso, urge que seja preservado um local onde as relações humanas sejam caracterizadas pela gratuidade, pela entrega e pela doação, isto é, por um amor que, de fato, comprometa a totalidade da pessoa. Em outras palavras, é preciso reconsiderar seriamente a vocação socializante da família, tarefa na qual sempre desempenhou um papel chave e único. Quando o ente familiar fica reduzido à uma espécie de célula primária da vida individual (e não social), aquela vocação fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma interação ética com os outros.

Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta, inaudita e desencadeada a partir de vários campos do saber, mas, sobretudo, dos terrenos filosófico, semântico, legal, científico e ideológico, sem prejuízo de seu principal efeito colateral, o fenômeno da despersonalização dos indivíduos, o qual será abordado na terceira parte deste trabalho. Vejamos, então, brevitatis causa cada um deles.

Na ofensiva filosófica, certas correntes de pensamento, portando conteúdos novos para os conceitos de pessoa/indivíduo, igualdade/identidade, liberdade/licitude, prazer/felicidade, colocaram a família em xeque, já que tais conceitos envolvem questões fundamentais para o homem. Pensamos que qualquer sistema filosófico construído com rigor e sistematicidade deve estar aberto às questões fundamentais que se abrigam no coração dos homens.

Boa parte das filosofias contemporâneas rejeitam, aprioristicamente, os conceitos de essência e de verdade, porquanto se entende que cada o ser de cada um depende exclusivamente do contexto cultural em que a pessoa está inserida (historicismo e culturalismo, o velho e o novo nome do relativismo) ou que a verdade é relativa (modernismo) ou mesmo que ela não existe (pós-modernismo).

Se cada categoria (a família, por exemplo) resume-se à uma imposição das relações de poder em voga (estruturalismo), nada é real e tudo é como aparece ao indivíduo. Se o foro de escolha disto ou daquilo reduz-se à estrita ação da vontade ou dos afetos (subjetivismo) ou se minha “felicidade” depende somente da satisfação dos prazeres (hedonismo), não existem, por conseguinte, mais a verdade e a essência. A virtude (como a magnanimidade) e o vício (como a mediocridade) tornam-se, eticamente, categorias equivalentes (niilismo – a “transvaloração” dos valores) e, no bojo desse caleidoscópio filosófico, qualquer noção de responsabilidade moral padece de sentido (modernidade líquida).

Estas e outras perspectivas de pensamento prevalecem no pensar e no agir das pessoas e, como efeito, atingem também o âmbito da noção de família: o ataque filosófico não se impõe com a expressão “isto não pode ser considerado propriamente uma família”, mas com outra manifestação – “sua ideia de família é tradicional e, portanto, superada. É possível redefini-la a fim de estimular outros laços entre os cônjuges e entre estes e os filhos”. Nessa tarefa de rearranjo destes laços, o céu é o limite.

Na ofensiva semântica, o termo “família tradicional” é muito usado em contextos políticos nos quais se debate a aprovação de diversas formas sociais de união, particularmente a união homossexual[9]. A partir do momento em que uma certa visão deturpada de fenomenologia expulsou a ontologia do núcleo do conceito de entidade familiar, isto é, a família não seria mais do que uma forma historicamente plasmada, não demorou muito para que o termo “família” agasalhasse outras relações sociais que muito pouco ou nada lembram seu conteúdo essencial, fato confirmado cientificamente pela etnologia. E é por isso, também, que os manuais de direito sobre família recebem o título, em muitos casos, de “direito das famílias”.

Essa postura não é tão inocente quanto parece, porquanto carrega uma carga semântica diversa. Discorre-se sobre “as novas famílias”, referindo-se aos “diferentes” que, a despeito da “diferença”, lutam para alcançar não somente aquilo que se refira a eles, mas também tudo aquilo que usufruem os “normais”. A expressão em foco é usada para tratar de temas que muitos pretendem furtar de qualquer vetor ético para relegá-los ao âmbito de uma mera política pública[10].

A expressão “novas famílias” é ambivalente, pois funciona como veículo de ideias que, no fundo, contradizem aquilo que significam à primeira vista. Uma vez manipulada, circula por todos os ambientes sociais. Não é o homem inteligente que a usa como própria, mas é a linguagem, imposta pelos grupos de pressão, que fala dentro dele. Heidegger já afirmava que não é o sujeito singular a falar, mas a linguagem que fala em nós. Orwell já profetizava, no livro “1984”, que o Big Brother manipularia a linguagem para que significasse o oposto daquilo que falava. Sabemos que as palavras são sinais inventados pelo homem, enquanto animal loquente (que possui a palavra) e significante (que se expressa). A palavra é sempre relativa a um conceito e este a uma coisa. O falar vem depois do pensar e o pensamento ganha sentido na medida em que se torna expressão da realidade que lhe é anterior.

O acerto semântico ocorre na reunião dos três níveis: palavra, ideia e realidade. Naturalmente, o homem tende a fazê-lo. Mas, como somos capazes de unir os três níveis, somos capazes de apartá-los. Quando os três mundos, o linguístico, o conceitual e a realidade posta, não estão em sintonia, as coisas deixam de ser ditas pelo seu verdadeiro nome: o aborto vira interrupção uterina, a eutanásia vira morte indolor, a afetividade toma o lugar do amor no seio das relações familiares, o adultério passa a ser chamado de aventura amorosa e o homoerótico transforma-se em homoafetivo[11].

Na ofensiva legal, todos sabemos que a tarefa da lei civil é a de assegurar o bem comum das pessoas por meio do reconhecimento e da defesa de seus direitos fundamentais, da promoção da paz e da moralidade pública. O bem comum político é a medida de avaliação ética das leis civis, como já alertava Aristóteles (2005:90).

Na história, a indissolubilidade da família constituída pelo matrimônio sempre foi ameaçada por leis em maior ou menor grau. O Velho Testamento, o Código de Hamurábi, na Grécia (com exceção do período homérico), em Roma (com exclusão da Monarquia e da República. No Império, na medida em que a opulência foi dissolvendo os costumes, generalizou-se o divórcio) e os povos do Oriente permitiam o divórcio. Muito mais como uma concessão à debilidade humana do que uma teoria moral.

Frise-se que a boa parte dos povos antigos era mais ou menos polígama e, por isso, a questão do divórcio tinha uma importância muito menor do que hoje, em que a família estrutura-se monogamicamente. O divórcio era uma prática, tornando-se legal porque compunha o costume de um povo. Atualmente, a situação é diversa: na sociedade ocidental, a tese divorcista apresenta-se como efeito de uma teoria moral, o direito ao “amor livre”.

É um filhote intelectual do liberalismo moral, de cunho individualista e racionalista, que vê o bem do homem exclusivamente na liberdade e na igualdade. Todos os homens têm o direito de buscar livremente sua felicidade e este direito estaria tão arraigado na natureza humana, que o homem não teria o dever de comprometer-se por toda a vida. Livres e iguais por natureza e titulares do direito à felicidade, os homens teriam o direito ao amor desenfreado, uma de suas formas essenciais, e ao direito de buscá-lo livremente, já que o amor é espontaneidade, não suporta subordinação e basta por si mesmo. Nessa linha de raciocínio, como o homem busca exclusivamente o bem pessoal, o bem comum, então, vira uma questão secundária.

Sob o influxo do materialismo, que invadiu a sociedade moderna, sobretudo após o advento do positivismo (século XIX), a teoria moral do amor livre foi repaginada e, nos ambientes do socialismo marxista, que reduz o bem do homem ao bem estar econômico e à felicidade “fisiológica”, serviu como apoio teórico para a edição de leis contrárias à instituição familiar.

A teoria em foco, tomando uma roupagem legal, conduz à anarquia sexual e à destruição da família. Se é certo que nem todos seus defensores, na prática, chegam ao extremo das implicações destes postulados, por outro lado, convém separar o acerto do erro nas hipóteses em que esta teoria aparece mesclada com outras diferentes. A família vê-se ameaçada por uma série de leis fundadas na teoria do “amor livre”: desde a limitação de nascimentos até a possibilidade de divórcio como terapêutica “preventiva” do adultério.

Na ofensiva científica, o quadro não difere muitos daqueles anteriormente tratados. Antes de mais nada, convém relembrar que a união conjugal tem uma antropologia implícita naturalmente estabelecida: diversidade sexual, complementaridade e abertura à procriação, alimentada pela natural atração entre homem e mulher e sobre a qual se articula a livre vontade de ambos, fundada pelo amor, e não pela simples afetividade, à doação e à aceitação mútua.

O amor conjugal não se limita a uma mera expressão da afetividade ou mesmo da volatilidade e do tumulto das emoções. Aliás, o amor humano pleno, em quaisquer de suas formas, não somente no amor esponsal, é oblativo, porque o amor consiste em (ARISTÓTELES, 2011:49) “querer o bem para o outro, enquanto outro”[12].

Amar é, primeiro lugar, querer, ou seja, o amor é uma dimensão que radica formal e prioritariamente na vontade e não se localiza na dimensão da afetividade (simpatias, sentimentos ou interesses). Quando se dá essa confusão, o sujeito, na prática, age como os seres inferiores (animais), porque é incapaz de saber dizer “eu quero” ou “eu não quero”. Em sua base, o amor é um ato da vontade e da inteligência, livre na causa, comprometedor nos efeitos e regido pela lógica da gratuidade.

Em segundo lugar, o amor busca o bem, mas o bem do ser amado, um bem real e objetivo: aquele que o aperfeiçoa como pessoa, tornando-o um ser humano mais completo e conduzindo-o para além do campo de seus próprios interesses e de suas apetências privadas. Em terceiro lugar, o querer do bem do outro é feito em consideração do outro enquanto outro, uma clássica reduplicação que encerra a cifra terminal do amor verdadeiro, porque a grandeza ontológica que me corresponde como pessoa exige que toda minha capacidade de agir seja vertida para os outros[13].

Logo, não nos parece possível que a estrita justaposição de dois egoísmos possa engendrar algum tipo de amor, ao menos digno de tal nome. Como o amor conjugal demanda o compromisso aberto à transmissão da vida, decorre que a sexualidade, neste âmbito, não é um singelo dado fortuito nem somente uma maneira alternativa pela qual os cônjuges podem canalizar seu apetite sexual com exclusividade.

Às vezes, o casal não pode conceber de forma natural. Nesse caso, a ciência em muito colabora para a superação deste revés, quando estabelece técnicas de reprodução que preservem a dignidade da pessoa humana. Ou, ainda, quando a ciência, de mãos dadas com a ética natural, preserva a natureza do ato conjugal. Todavia, as tecnologias reprodutivas da fecundação in vitro, da mãe de aluguel e da inseminação artificial  – casos mais ordinários – atentam diretamente contra a pessoa e à família.

Estes métodos têm, em comum, em relação à pessoa, o desrespeito à unidade do matrimônio, à dignidade da procriação da pessoa humana e à unidade parental física, psíquica e biológica. Em relação à família, tais efeitos corrompem toda a relação humana, na qual se constitui e se define a vida familiar. As crianças, podendo ser concebidas fora do corpo, do ato sexual conjugal e do amor, serão o resultado de uma mera manipulação genética que, a longo prazo, tornará a família um sistema ultrapassado de procriação.

Como apontava Lewis (2005:38), “cada novo poder científico conquistado ‘pelo’ homem é, ao mesmo tempo, um poder ‘sobre’ o homem. Cada avanço o deixa mais forte e, ao mesmo tempo, mais fraco. Em toda conquista da natureza pelo homem, há uma certa beleza trágica: o homem é o general que triunfa e, ao mesmo tempo, o escravo que segue o carro do exército vencedor”.

Na ofensiva ideológica, já tivemos a oportunidade de constatar, na primeira parte deste artigo, que a família é, por excelência, o princípio da continuidade social e da conservação das tradições humanas. Em suma, ela é o elemento de preservação da civilização, porque os valores são salvaguardados pelos antecessores e transmitidos pelos sucessores.

As ideologias tomam um aspecto da realidade, que goza de um peso específico, e lhe conferem tal envergadura como se aquele aspecto (como a economia, política e cultura) explicasse todos os princípios primeiros e as causas últimas daquela realidade examinada. Invariavelmente, falam com um sotaque estatalizante, pois acreditam que o poder estatal é a fonte de todo direito, inclusive dos direitos da família.

Por sua vez, a família é um obstáculo, já que é o locus, por excelência, da educação da prole. Por isso, quando uma ideologia alcança o poder, uma das primeiras investidas recai justamente sobre este direito, subtraindo-o do âmbito familiar e entregando-o nas mãos do Estado. As crianças e jovens passam a ser educados fora daquele contexto, à vista daquilo que a ideologia almeja como um projeto de poder. Afinal, a família pode produzir indivíduos ideologicamente “desajustados”.

Na experiência de reengenharia social mais longa e traumática do século XX, o socialismo, inspirado pelo marxismo, entendia que a família nascia com a propriedade privada capitalista, como instituição social monogâmica, reflexo, em menor escala, da luta de classes (burguesia x proletariado) e com a ascendência do homem sobre a mulher. Abolido o capitalismo, a família desapareceria, porquanto seria um mero reflexo histórico de uma época em que o interesse privado era preponderante. A família, com efeito, era considerada como uma superestrutura que se apoiava na infraestrutura dos meios de produção: no futuro, a família se reduziria apenas ao casal, unido pela satisfação erótica recíproca, numa espécie de egoísmo a dois.

O nazismo, irmão intelectual da genealogia totalitarista, também atuou de forma semelhante, embora movido por outro fim. As crianças eram afastadas de suas famílias desde cedo, alistando-se no Jungvolk (povo jovem) aos 10 anos, para serem treinadas em atividades extracurriculares de doutrinação ao nazismo. Aos 14 anos, os jovens ingressavam na Juventude Hitlerista, com sujeição a uma disciplina semi-militar e introdução à propaganda nazista. No fim do ciclo, aos 18 anos, deveriam alistar-se nas forças armadas ou nas forças de trabalho.

Em ambos os casos, a família não tinha lugar na estrutura ideológica e era desacreditada como instituição, pois não poderia constituir o terreno fértil para o crescimento do “ser coletivo”, objetivo primário de ambos totalitarismos. Negou-se à família sua tarefa intransferível de educação e de mediação social. Encurralada num sistema teórico inflexível, metamorfoseou-se a família num ente instrumental para o sucesso de uma causa ideológica. Ao cabo, a pobreza antropológica destes experimentos foi de uma evidência empírica sem precedentes, comparável apenas ao número de cadáveres que cada um deles produziu.

Não se estranha porque a sabedoria humana, a partir da qual surgiram todas as áreas do conhecimento anteriormente tratadas, desde seus primórdios, tenha dedicado várias linhas à importância social da vida familiar. Na realidade, uma fecunda sabedoria humana, a fim de se ver livre de qualquer instrumentalização, deve reconhecer a prioridade do pensamento de que teve origem e ao qual deve coerentemente servir.

Cícero (2000:54), nessa linha, por exemplo, chamava a familia de principium urbis et quasi seminarium rei publicae. O mesmo princípio está contido, em versão moderna, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.16, 3 – A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado). E outros exemplos podem ser ditos. Ao cabo, resta-nos afirmar que todos esses ataques à família, em seus mais variados campos e intensidades, demonstram que o novo, misturado de diversas formas, só serve para realçar o acerto dos contornos do velho. E da sabedoria humana que o sustenta.

 

TERCEIRA PARTE

Dentro deste ambiente intelectual desfavorável e deste caldo civilizacional confuso e caótico, a família, mesmo assim, deve reocupar o espaço que lhe é próprio por natureza. Não se trata de uma batalha das Termópilas, uma batalha de retaguarda a ser conduzida por bravos homens escudados pelas armas da nostalgia. Mas um horizonte a ser conquistado para bem da sociedade que, necessariamente, passa pelo nexo que une família e sociedade: a pessoa. A família dá consistência e alimenta a pessoa. Uma vez formada, a pessoa, por sua vez, nutre a sociedade. Por conseguinte, sem família não há pessoa e sem pessoa não há sociedade.

Embora a família seja uma instituição imprescindível para que a pessoa possa, em efeito, sê-lo, afirmando a plenitude de sua índole pessoal, a sociedade, pelo contrário, para se erigir sob uma condição humana e não como um mero agrupamento de indivíduos, deve estar composta por pessoas em sua totalidade, capazes de estabelecer entre si e nas mais variadas tramas do tecido social, relações interpessoais, regidas por amor e entrega gratuita, na efetiva busca do bem alheio.

A família, enquanto sociedade primária, constitui o paradigma do restante dos agrupamentos humanos. E, por isso, não é uma simples célula de sociedades mais amplas, porém, em razão de seu profundíssimo virtuosismo personalizante, é uma sociedade soberana. A soberania da família não se radica numa falsa e presumida autossuficiência, a ponto de assegurar sua subsistência sem o apoio dos demais grupamentos humanos, mas porque guarda uma íntima conexão com o fim último de todo ser humano, sua promoção enquanto pessoa. Em suma, a família é um modelo de sociedades e uma sociedade soberana.

João Paulo II (1980:237) afirmava explicitamente que

“o homem, acima de toda atividade intelectual ou social, por mais alta que seja, encontra seu pleno desenvolvimento, sua realização integral e sua riqueza insubstituível no seio familiar. Aqui, realmente, mais que em qualquer outro campo vital, joga-se o destino do homem. (…) O homem não tem outro caminho rumo à humanização do que por meio da família. A família deve ser colocada como o fundamento mesmo de toda a solicitude para o bem do homem e de todo esforço para que nosso mundo seja cada vez mais humano. Nada pode subtrair-se à essa solicitude: nenhuma sociedade, nenhum povo, nenhum sistema, nem o Estado, nem a Igreja e nem mesmo o indivíduo”.

O papel personalizante da família encontra seu fundamento último na natureza mais íntima e orgânica da instituição familiar, uma associação de pessoas. Contudo, essa natureza mais íntima e orgânica, ao se constituir no principal alvo do efeito colateral daquelas inúmeras ofensivas tratadas na segunda parte deste trabalho, acaba, também, por perder sua vitalidade e envereda por um processo crescente despersonalização: por um lado, a desconstrução do sujeito[14], que o priva das propriedades mais manifestas de sua condição pessoal e, por outro, a dissolução da individualidade irrepetível de cada um, em prol de uma massificação amorfa de condutas, porque apenas diversificadas em sua aparência.

Hegel, por assim dizer, desencadeou esse processo de despersonalização ao ter estabelecido, num vistoso arcabouço filosófico, que o indivíduo é um mero momento sem relevância na constituição do todo estatal. Depois dele, as filosofias materialistas simplesmente deram consequência prática à essa afirmação: o nacional socialismo alemão, o comunismo marxista, os socialismos de marca vária e o capitalismo liberal. É o eterno retorno: primeiro, questiona-se um valor; depois, alguém irá tratar dele por outros métodos.

Entretanto, hoje, a partir de um conjunto global de estruturas – economia, política, educação, trabalho, moda, entretenimento, telecomunicações, legislação – que configura o atual momento civilizacional, o fenômeno da despersonalização entrou numa dinâmica entrópica drástica, sutil e devastadora, porque tal conjunto global tende a homogeneizar e a massificar o indivíduo, reduzindo-o a um mero fragmento social ou a uma peça do sistema, nas quais a individualidade e o personalismo, ao invés de se desenvolverem, acabam por definhar até desaparecer.

Vejamos na educação superior das humanidades. Hoje, ao término desse processo educativo, estamos interagindo com um sujeito mais pleno e virtuoso, cônscio de seus direitos e deveres, de seu lugar no mundo, de seu papel entre seus iguais na sociedade, capaz de conferir sentido e alcance à sua existência? Ou topamos de frente com um “técnico” em humanidades, cujo auge de sua potencialidade criativa, na órbita profissional, está em fazer com que o sistema “funcione”, ou seja, em suma, esse “técnico”, no fundo, não passa de um “funcionário”[15]?

Ou, ainda, estamos estritamente preocupados na formação de um faber ou de um laborans sem alma ou peso específico e quase sem humanidade? Estamos, no fundo, buscando, ainda que sem clara consciência, um indivíduo que não seja nada mais além de uma peça que se encaixe com o menor grau de fricção possível no interior de um sistema laboral e econômico, a fim de assegurar ao conjunto o máximo de bem estar social, lema que foi adotado, por nossas sociedades, como um fim em si mesmo? Será que o mundo do trabalho não acaba por consolidar definitivamente o fenômeno da despersonalização[16] conduzido pela educação durante anos?

Na economia, o quadro não difere muito. Nesse campo, o grande ausente é a pessoa. Se os valores pessoais tivessem algum peso no sistema produtivo, tudo desembocaria na produção de bens que consistissem num efetivo incremento na categoria pessoal de seus destinatários. Bem ao contrário disso, em boa medida, o fundamento da economia contemporânea está na constante criação de necessidades supérfluas, quase sempre materiais, convertendo os indivíduos em meros consumidores, ao ponto de serem consumidos pelo próprio consumismo[17].

Uma economia movida pelo consumo exacerbado e enredado em si mesmo subordina seus atores, sejam fornecedores, produtores ou consumidores, ao império do dinheiro, de sorte que uns e outros terminam por restarem despojados de suas dimensões mais altas. Novamente, a pessoa fica preterida a um plano secundário, submetendo-a uma inquietante dimensão infra-humana.

No entretenimento, o desenho fático acompanha o quadro geral de despersonalização. O cinema, a música, a arte raramente induzem à formação de nossas prerrogativas singulares e, na prática, transformam-nos em fragmentos de massas amorfas, satisfeitas com um leque monocórdico de diversões que, no mais, servem apenas para nos fazer esquecer, por uns instantes, da alienação vital que nos cerca, porque a qualidade de tais distrações não tem nada ou muito pouco de cultural: esquecidas as dimensões da bondade, da verdade e da beleza, o entretenimento alimenta tão somente a afetividade e a emoção dos espectadores, já desprovidos de altura, peso e relevo, ou seja, apenas os aspectos periféricos de indivíduos carentes de profundidade espiritual e existencial[18].

Na política, o surto despersonalizante não difere das dimensões anteriormente analisadas: em regra, as agremiações políticas não defendem um ideario coeso e comprometedor, levado a cabo com paixão e temperado pelo debate intelectual pautado pelo respeito, liberdade e responsabilidade. Pelo contrário, enveredam por longos projetos de poder que só conseguem ser sustentados à base de muita demagogia e fisiologismo político, relegando o cidadão à condição de mero votante e, ao negar o atendimento de suas necessidades básicas, cria-se um ambiente social despersonalizante, cujo efeito mais perverso é a ascensão do arbítrio em prejuízo do bem comum.

Dizia Chesterton (2013:46) que “se queremos preservar a família, devemos revolucionar a nação”. Dessa forma, diante desse diagnóstico existencial contemporâneo – formado pelos ataques diretos à família e seu efeito colateral despersonalizante –, a chave dessa revolução transita necessariamente por aquilo que somente a família é capacitada para fazer crescer e amadurecer: a pessoa. Sobre a pessoa e seus valores deve girar o eixo do movimento revolucionário cujo ponto de chegada será a civilização do amor, conforme afirmamos na primeira parte deste trabalho.

Essa tarefa radicalmente repersonalizante começa por cada um de nós. Assim como um diamante é polido somente pela ação de outro diamante, a formação de uma pessoa – que se dá pela educação – somente pode ser realizada desde outra pessoa e pondo-se em jogo os atributos mais tipicamente pessoais: comprometendo-se a própria vida para solicitar dos demais aquilo que existe também de mais estritamente pessoal, a saber, sua inteligência e, sobretudo, sua vontade, na qual tem assento sua capacidade de amar, de querer e de construir o bem dos outros, Em suma, não há resposta técnica ou de cartilha para isso,

Nem pode haver, porque a tecnicidade reinante surgiu da mesma raiz despersonalizante da qual nasceu a modernidade: do afã de poder, de domínio, do intento de constituirmos, sem reservas, em donos e senhores absolutos da natureza e do universo (Descartes), para alcançar assim, por meio desse império hegemônico e desenfreado, nossa felicidade. Isso não só não aconteceu como o homem, como é reconhecido universalmente, desapareceu como efeito necessário do sufocamento provocado pela prepotência do instrumental técnico-científico criado por ele mesmo. Triste realidade histórica: crescemos ao longo de séculos e, depois, desaparecemos.

Essa subordinação mortificante já possuía em seu cerne o motor que converteria a realidade em matéria de manipulação transformadora, capaz de proporcionar aos mais fortes as vantagens, os benefícios e o bem estar, tudo isso alçado à condição de objetivos supremos de toda uma cultura. Para elevarmos seriamente a categoria humana resulta imprescindível resgatar suas dimensões estritamente pessoais. Melendo (2008:91-92) arremata que

“a regra de ouro, capaz de inspirar o labor restaurativo da sociedade em que a família está chamada a vir a ser, poderia ser assim enunciada: quanto mais profundamente incidir uma ação sobre os atributos pessoais mais íntimos do destinatário, tanto maior será sua capacidade de melhorar profunda e duradouramente essa pessoa, precisamente enquanto pessoa. Pelo contrário, na medida em que essa intervenção apelar para as dimensões mais superficiais e epidérmicas do ser humano, menor a possibilidade de se influir positivamente sobre ela”.

Quanto mais periférico e despersonalizante seja o influxo, maior será o poder de incitar os indivíduos à comodidade, à vida frívola e pouco substancial até se chegar ao gregarismo dissipador das teias sociais. E resulta mais difícil, por outro lado, a movê-los em direção ao bem e à uma atuação estrita e responsavelmente pessoal. Transformar a educação, o trabalho, a economia, o entretenimento e a política supõe vencer o coeficiente despersonalizante que cada uma delas carrega consigo, trabalhando a partir dessas dimensões e apesar delas, mas com um suplemento de humanidade, sem ceder jamais à tentação de acudir aos recursos e técnicas despersonalizantes que tais dimensões reclamam.

Por consequência, a partir do combate ao efeito colateral dos ataques ao ente familiar, paulatinamente, aquelas ofensivas diretas irão cessando, porque também serão esclarecidas e humanizadas mediante a insubstituível ação da relação pessoa-pessoa. E essa relação é particularmente feita na família e desde a família, a fim de se poder constituir a civilização do amor.

 

Considerações finais

Notamos que a família está enredada num ambiente social que pouco colabora para o desenvolvimento de suas potencialidades e virtuosidades, sobretudo no que atine à função personalizante do indivíduo, tarefa que sempre lhe foi incumbida ao longo da história, porque se trata do único ente social capaz de fazer frente a esse difícil desafio. Ao mesmo tempo, afirmamos a necessidade da família ser novamente alçada ao posto de custodes do humanum.

O quadro atual do contexto familiar, representado pelo confuso rearranjo dos papéis familiares, pelo aumento indiscriminado do número de mulheres no mercado de trabalho e das estatísticas de divórcio, pela diminuição dos matrimônios e pelo incremento das uniões estáveis e dos adultos solteiros, pelo decréscimo do nível de convívio familiar,  pela exacerbação da violência juvenil, pela inversão da pirâmide etária, pelo inverno demográfico em muitos países, pela reivindicação do direito de constituição de uma família pelos pares homossexuais e pela disseminação da violência familiar, oferecem ao estudioso um fértil campo de intuições, a fim de se poder chegar a uma série de deduções que permitam separar as causas dos efeitos da desagregação da noção ontológica do ente familiar e, ao mesmo tempo, realçar as contribuições que a família histórica dá para a ontologia familiar.

Sob outro ângulo, surgem, no horizonte do conhecimento, uma série de propostas carentes de um adequado fundamento antropológico e ético que, no limite, irão apenas aprofundar ainda mais aquele vazio ontológico, ainda mais se chanceladas pela normatividade do Direito. Em suma, são mais do mesmo, radicalizando a crescente abolição do humanum, ou seja, da tarefa personalizante do ente familiar. Um horizonte civilizacional pouco propício à conclusões e estimativas encorajadoras.

Em contrapartida, procuramos, numa sólida base antropológica e ética, sugerir uma forma de reencontro do caminho perdido: o resgate da ideia de família como uma comunidade de pessoas, fundada e vivificada pelo amor. Nosso contorno existencial e histórico reduziu a vitalidade do ente familiar à secura da despersonalização antropológica e, agora, redescobre a dimensão ontológica em busca da natural juridicidade constitutiva da família, em prol do bem comum, porquanto favorece a função personalizante e o telos social do ente familiar.

 

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VARGAS LLOSA, Mário. A Civilização do Espetáculo, uma radiografia de nosso tempo e de nossa cultura. São Paulo: Objetiva, 2012.

 

[1] Entendemos que, hoje, dentre os principais campos do saber, a pós-modernidade já completou seu processo de influxo e transformação epistemológica (que ainda toma corpo no campo do Direito de Família) apenas nas artes, a julgar pela irracionalidade e pela completa falta de senso ontológico e estético (quando não atingem a dimensão de verdadeiras pornopopéias) das principais manifestações artísticas expostas nos mais renomados museus do mundo inteiro. Nesse ponto, recordo-me de Vargas Llosa (2013:75-76) ao dizer que “no que me diz respeito, percebi que algo estava podre no mundo da arte há exatamente 37 anos, em Paris, quando um bom amigo, escultor cubano, cansado das negativas das galerias em expor as esplêndidas madeiras que eu o via trabalhar de sol a sol em sua mansarda, decidiu que o caminho mais seguro para o sucesso em matéria de arte era chamar a atenção. E, dito e feito, produziu umas “esculturas” que consistiam em pedaços de carne podre, fechados em caixas de vidro, com moscas vivas esvoaçando ao redor. Uns alto-falantes asseguravam que o zumbido das moscas ressoasse por todo o local como uma ameaça aterrorizante. Triunfou, de fato, pois até um figurão da Rádio e Televisão Francesa, Jean-Marie Drot, o convidou para seu programa. A mais inesperada e truculenta consequência da evolução da arte moderna e da miríade de experimentos que a alimentam é que já não existe critério objetivo algum que permita qualificar ou desqualificar uma obra de arte, nem situá-la dentro de uma hierarquia, possibilidade esta que se foi eclipsando a partir da revolução cubista e desapareceu totalmente com a não figuração. Na atualidade tudo pode ser arte e nada é arte, segundo o soberano capricho dos espectadores, que, em razão do naufrágio de todos os padrões estéticos, foram elevados ao nível de árbitros e juízes que outrora só alguns críticos possuíam. O único critério mais ou menos generalizado para as obras de arte na atualidade não tem nada de artístico; é o critério imposto por um mercado controlado e manipulado por máfias de galeristas e marchands que de maneira alguma revela gostos e sensibilidades estéticas, mas apenas operações publicitárias, de relações públicas e em muitos casos simples assaltos. Há mais ou menos um mês visitei pela quarta vez na vida (mas essa terá sido a última) a Bienal de Veneza. Fiquei lá algumas horas, acredito, e ao sair concluí que não teria aberto as portas de minha casa a nenhum daqueles quadros, esculturas e objetos que havia visto nos cerca de vinte pavilhões que percorrera. O espetáculo era tão enfadonho, farsesco e desolador quanto a exposição da Royal Academy, mas multiplicado por cem e com dezenas de países representados na patética farsada, onde, a pretexto de modernidade, experimentalismo e busca de ‘novos meios de expressão’, na verdade se documentava a terrível orfandade de ideias, cultura artística, habilidade artesanal, autenticidade e integridade que caracteriza boa parte das artes plásticas em nossos dias”.

[2] João Paulo II (1994:17) afirma “que a família está na base daquela que Paulo VI designou como «civilização do amor», expressão que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou já familiar. A expressão está ligada com a tradição da «igreja doméstica» do cristianismo nos seus primórdios, mas possui uma precisa referência também à época contemporânea. Etimologicamente o termo «civilização» deriva da palavra latina civis (cidadão), sublinhando a dimensão política da existência de cada indivíduo. Todavia o sentido mais profundo do termo «civilização» não é tanto político como sobretudo «humanístico». A civilização pertence à história do homem, porque corresponde ao plasmar de suas exigências espirituais e morais. Precisamente do cumprimento desta tarefa provém a civilização, que, em última análise, não é senão a humanização do mundo”.

[3] “É com palavras e atos que nos inserimos no mundo; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original. Não nos é imposta pela necessidade, como o labor, nem se rege pela utilidade, como o trabalho. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, apreendemos os valores familiares e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa”.

[4] A autoria da pergunta é de Niklas Luhmann (1989:234), para quem, por detrás dos subsistemas sociais não existe uma estrutura ontológica (natural ou metafísica) a impulsionar seus movimentos, mas cada função ou subsistema (ciência, religião, política, economia, família, moral e direito) é um esquema de sentido que permite independência à sua verificação analítica, na exata proporção em que cada arranjo de sentido é fundante de um conjunto de conceitos operativos aptos a proporcionar uma série de resultados buscados socialmente e, assim, minimizar a complexidade inerente à troca comunicativa entre os subsistemas. Em outras palavras, Luhmann busca justificar a tremenda e crescente especialização dos subsistemas a partir da modernidade, os quais passam a atuar e a se desdobrar em seus modos de atuação, a ponto de se constituírem em realidades paralelas e fechadas umas às outras, com códigos e linguagem próprios. A interação entre tais subsistemas seria possível apenas pelo intermédio de mecanismos de “generalização congruente” (por exemplo, as leis ou a opinião pública), os quais possibilitariam a transmissão da complexidade de cada subsistema de forma mais reduzida.

[5] D’Agostino (2003:97-98) conclui que “se o dever da etnografia da família está em catalogar, de um modo cientificamente correto, a epifania cultural do fenômeno familiar; o dever, por sua vez, da filosofia da família está em refletir o princípio familiar naquilo que ele resta de irredutível em toda a epifania familiar, a ponto de assinalar para todas as culturas um caminho, não de um conservadorismo obtuso, mas de um contínuo e sempre novo esforço de atualização histórica”.

[6] Desde Roma (CAMBI, 1999:108-109), a pedagogia também muda completamente: heleniza-se, racionaliza-se, libertando-se do vínculo com o ‘costume’ romano arcaico e republicano, para aproximar-se cada vez mais dos grandes modelos da pedagogia helenística. Em particular, também em Roma penetra a grande categoria-princípio da pedagogia grega, aquela noção e ideal de paideia, de formação humana pela cultura, que produz uma expansão e uma sofisticação, bem como uma universalização das características próprias do homem. A paideia de Isócrates (…) vem radicar-se também na cultura pedagógica romana, sobretudo por obra do grande mediador entre estas duas civilizações – a grega e a romana – que foi Cícero. A ele, de fato, devemos a versão latina da noção de paideia na de humanitas, que sublinha ulteriormente sua universalidade e seu caráter retórico-literário, permanecendo durante séculos no centro da reflexão educativa e da organização escolar do Ocidente.

[7]Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. (…) Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação (JAEGER, 2003: introdução)”.

[8] A expressão é de autoria do renomado sociólogo inglês Anthony Giddens, pai da teoria da estruturação e figura de proa da chamada “terceira via” e do novo trabalhismo inglês. Para Giddens (2000:71-75), a família de ontem ou a família tradicional é aquele tipo familiar que se desenvolveu num arco de tempo que se inicia na Idade Média e termina nos anos 50 da última centúria. Suas características principais são: a) unidade econômica, ou seja, as pessoas se uniam por motivos econômicos e não pelos laços amorosos; b) local da assimetria existencial entre o homem e a mulher, onde a mulher era considerada uma longa manus do marido ou uma propriedade do pai; c) os filhos não eram considerados em si mesmos, mas somente como mão-de-obra ou colaboradores em prol do empenho econômico comum familiar; d) a sexualidade tinha sempre um fim reprodutivo. De fato, o sociólogo britânico aponta, com rigor, muitas realidades históricas vivas e presentes ao longo do arco temporal por ele traçado. Apenas criticamos aqui a pretensão de se confundir a substância de um ente – a família – com suas concretizações históricas, sempre sujeitas à imperfectibilidade de nossa natureza. Se a família corresponder, indistintamente, às formas historicamente assumidas, então, a realidade histórica fica autoerigida ao status daquilo que corresponder ao ser da família. Em outras palavras, Giddens usa uma visão deturpada de fenomenologia contra a ontologia, a fim de reforçar a própria convicção com a simples constatação de que (GIDDENS, 2000:75) “desde então – dos anos cinquenta – a família mudou”.

 

 

[9] A respeito das relações entre linguagem, comunicação e poder, escrevi (FERNANDES, 2012:2): “Durante a história da filosofia, sua reflexão pode ser dividida em três partes bem distintas, segundo as partes da relação do conhecimento: na Idade Antiga e Média, os filósofos debruçaram-se sobre o objeto. Na Idade Moderna, o sujeito racionalizou tanto, a ponto de a razão restar curvada sobre si mesma, a ponto de não poder mais olhar para o horizonte da verdade. Atualmente, o foco da filosofia está no vínculo que une sujeito ao objeto: a linguagem. Existem dois modos de obrigar as pessoas a atuar numa situação. O primeiro é o uso da força, sempre inútil, porque não atua sobre uma vontade livre e dá margem ao arbítrio. O segundo, mais eficaz, é a propaganda sistemática que faz da manipulação verbal seu principal instrumento, desvirtuando o reto uso da linguagem. Goebbels foi um exímio mestre nesta arte. Seria capaz de fazer o povo alemão acreditar até nas valquírias, mas não teve tempo suficiente para tanto, porque o regime de mil anos sequer chegou aos treze. A propaganda sistemática procura inculcar novas convicções em suas vítimas. No momento em que estas novas atitudes são assimiladas, as pessoas julgam ter chegado a elas por meio da própria vontade de aceitar essa nova forma de agir, fazendo-a sua. Toda manipulação social começa com a manipulação da linguagem. Seu propósito é o de manobrar cuidadosamente a opinião pública para produzir determinadas mudanças no comportamento. (…) A manipulação verbal mina na raiz a dignidade humana, já que os indivíduos da sociedade vítima não são mais tratados como seres humanos, mas como objetos a serem manobrados, dominados e, depois, controlados. (…) Em “Alice no país das maravilhas”, a manipulação da linguagem é bem retratada pelo autor da obra: ‘Quando uso uma palavra’, diz Humpty, ‘ela significa exatamente aquilo que escolho que ela signifique’. ‘A questão é’, diz Alice, ‘que se podem inventar palavras para significar assim tantas coisas diferentes’. ‘A questão é’, diz Humpty, ‘qual se quer impor’”.

[10] A título de exemplo, disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/pt/obras-conversando-sobre-o-direito-das-familias.cont.

 

[11] A respeito das relações entre cultura moderna e linguagem, escrevi (2012:2): “(…) Também é preocupante o deslocamento da centralidade do matrimônio e da família para figuras assemelhadas e pouco condizentes com uma realidade antropológica objetiva, no âmbito da estrutura legal destas relações. A linguagem clássica e perene do matrimônio deu lugar a uma linguagem substitutiva: “cônjuge” virou “companheiro”, que sempre foi sinônimo de colega, ou “parceiro”, termo tomado de empréstimo junto à tradição contratual do direito romano-germânico. Em ambos os casos, as expressões estão bem longe de expressar um amor de aliança, fiel e exclusivo. O termo “família” já vem sendo usado como termo genérico para descrever uma vasta gama de relações. Atualmente, refere-se a vinte e uma diferentes definições de relacionamentos, dos quais o matrimônio é somente mais um. Nesse ritmo, daqui a alguns anos, provavelmente, o verbete terá um dicionário exclusivo. Toda história do homem está impregnada de reflexão sobre a linguagem e suas formas de manipulação. Platão já se desentedia com os sofistas, pois eles deturpavam o uso da linguagem. Górgias, famoso sofista e exímio orador, até virou nome de um dos diálogos platônicos, no qual foi tematizado o valor e a função da linguagem, como instrumento de poder ou como instrumento de verdade. Como Platão, hoje, compete a cada um de nós descobrir o charlatanismo linguístico que ocupa boa parte dos discursos sociais e, à semelhança do mestre grego, submetê-lo ao diálogo.

[12] Retórica, 2, 4, 80b.

[13] A respeito da ontologia do amor, escrevi (FERNANDES, 2013:2): “Recentemente, conversava com uns amigos sobre os tempos de faculdade. Cada um indicou seu maior legado. Para uns, foi a formação acadêmica; para alguns, foram as amizades; para outros, foram as festas e os jogos universitários. Para mim, foram tempos inesquecíveis em muitos sentidos, mas o maior legado do Largo de São Francisco foi o amor. E, por isso, sempre que vou ao centro de São Paulo, passo por lá, sento-me entre aquelas arcadas históricas e simplesmente me desligo por alguns instantes do mundo em volta. A qual amor me refiro? O amor ao direito, à minha profissão, aos estudos, aos meus amigos, aos injustiçados e à minha segunda namorada, que se casou comigo depois. Mas não necessariamente nessa ordem, porque corro o sério risco de ter problemas lá em casa. (…) Assim, deixemos as causas de lado e concentremo-nos na pessoa amada. Quando amamos uma pessoa, parece que nossa vontade é catapultada a uma capacidade de criar sem fim. Talvez isso decorra do fato de que uma pessoa é sempre uma fonte de novidades. Criar é fazer que existam coisas novas. O mais criador que existe é o amor: “todo amor é criador e não se cria mais que por amor”, já disse o poeta. (…) Recordo-me de uma bela afirmação de Agostinho: “meu peso é meu amor, por ele sou levado onde quer que eu vá”. É o peso da vida humana, o amor, que nos carrega de uma parte a outra. Hoje, tenho a impressão de que vivemos numa crise de amor. O amor, essa constante disposição da vontade humana, deu lugar para os afetos, sempre instáveis, em todos os relacionamentos. E, num ambiente de pluriafetividade, não há espaço para um desejo de imortalidade. É o aniquilamento do amor. Tudo passa a ser fugaz e superficial. “Tu que eu amo, não morrerás”, feliz fórmula de outro poeta. Isto significa a impossibilidade de se pensar no fim da pessoa amada. Necessita-se dessa pessoa para que a vida tenha sentido. Se o homem estivesse destinado a perecer, não seria tudo um enorme engano, uma espécie de brincadeira de mau gosto? A vida teria um sentido? Mas o que impulsiona essa maneira de ver as coisas é precisamente o amor. Se não se ama, tudo isso cai na própria base e já não importa nada (…).

[14] Acreditamos ser necessário que a cultura ocidental recobre, no âmbito intelectual, o uso de suas faculdades espirituais superiores, mais precisamente seu poder de contemplação, as quais restaram atrofiadas por séculos de negligência existencial, pois a inteligência e a vontade do homem ocidental, desde a Idade Moderna, concentraram-se na conquista dos poderes político, econômico e tecnológico. No âmbito social, parece-nos ser imprescindível o resgate das dimensões do amor e da amizade como principais forças configuradoras da teia de relações sociais.

[15] Esse problema é muito sensível no universo do ensino jurídico, no qual os índices de reprovação nos exames de advocacia e de ingresso nas carreiras jurídicas crescem vertiginosamente, em razão de problemas metodológicos e epistemológicos que permeiam a imensa maioria das instituições de ensino superior. Ollero Tassara (1982:268-269) diagnostica bem esse fato ao afirmar que “a forja do futuro profissional do direito passa por sua consciente identificação com o texto legal. Para isso há de se esforçar em plasmá-lo em sua memória com tal intensidade que não reste em sua mente resquício algum livre do domínio da vontade do legislador. Não faz sentido fazer do profissional do direito um erudito, capaz de compreender conhecimentos de interesse meramente teórico; nem mesmo um juiz apto a criticar ou discernir, porque o legislador já se encarregou a contento dessa tarefa. O importante é formar um técnico capaz de manter em funcionamento a máquina legislativa e de fazê-la socialmente eficaz. Sua missão, como a de qualquer outro técnico, consistirá em conhecer os detalhes da máquina para fazê-la render ao máximo (…). E não se deve olvidar que, se cada técnico empenha-se em inventar uma nova máquina, sua tarefa acaba sendo inútil. O profissional do direito há de se empenhar por conseguir, fundamentalmente, que a máquina funcione: será, por excelência, um funcionário”.

[16] Em nosso trabalho de mestrado (FERNANDES, 2014:78-84), afirmamos que “em terceiro lugar, no seio da relação educacional, ao lado da evolução e da inserção, radica o encontro, o momento em que o educando relaciona-se com outros semelhantes, coisas e fenômenos. Esses dados da realidade não se entrelaçam com ele a partir de uma ordem pré-determinada e absolutamente incondicionada, como o liame religioso que havia entre os gregos e seus deuses, mas se põem à sua frente, em virtude da recíproca abertura desses dados para ele. Como consequência, o educando passa a conhecer profundamente uma área do saber, um conceito até então pouco esclarecido ou uma nova forma de abordagem intelectual de um assunto complexo. No encontro, está subjacente uma atitude aberta ao mundo e à imprevisibilidade. Compreender o novo, enfrentar aquilo que surge e aprender a dar forma ao dado não planejado. É aqui onde jaz a mais acabada expressão da amplitude de movimento dos impulsos naturais do educando e, por ser cada um uma individualidade irrepetível, essa capacidade de encontro não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade. Se, na inserção, o educando é um “ser-aí”, no encontro, ele é um “vir-a-ser-aí”. (…) O encontro representa aprendizado constante, abertura ao imprevisto, espírito livre de investigação, perspectiva para distinguir o comum do peculiar, capacidade de reflexão e de autocrítica, convicção para bem decidir e, por trás disso, uma sensibilidade para o sentido e o alcance do próprio acontecimento decorrente do encontro. Tanto para ordená-lo no seio do já conhecido como também para tomar uma posição diante do novo enquanto tal. (…) A tarefa educativa, assim entendida, orienta o educando para uma postura em que se dá concomitante valor para os fatores do risco e da experiência, sendo que a modulação de um e de outro será estabelecida pela realidade pedagógica concretamente considerada. Essa atitude dispõe o educando para a originalidade do acontecimento, para a liberdade vital e para a amplitude da existência, lapidando a mais relevante dimensão humana: a dimensão espiritual, onde reside o motor que leva todo homem a naturalmente desejar o conhecimento (ARISTÓTELES, 2006:43)”.

[17] O consumismo sempre teve seus filhotes práticos, como a prodigalidade, o endividamento compulsivo e, atualmente, o brand bullying.

[18] A respeito das relações entre educação e entretenimento, escrevi (FERNANDES, 2011:2): “(…) Precisamos de uma educação emancipatória, entendida como a possibilidade de resistência às formas de dominação vigente pela via do exercício crítico e reflexivo da razão e que milite contra o pensamento determinista derivado da mitologia, os excessos do discurso unificador medieval, o cientificismo totalizante da modernidade, além do irracionalismo e do ceticismo das tipologias pós-modernas de desrazão, sem falar das inúmeras e atuais insinuações ideológicas presentes nos discursos sociais. Mas sem se desligar de um rol mínimos de valores, sob pena de desenraizamento e desorientação.  (…) Nesse assunto, basta lembrar que uma sociedade incapaz de educar seus filhos nos valores é uma sociedade incapaz de respeitar a si própria”.

O mundo após a crise das utopias (por Massimo Borghesi)

História | 20/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Transcrição da palestra Depois de 68 e 89: o mundo após a crise das utopias, pronunciada pelo prof. Massimo Borghesi no dia 02 de outubro de 2008, no IICS (Instituto Internacional de Ciências Sociais) de São Paulo. Após o texto da conferência, reproduzimos algumas respostas especialmente significativas a perguntas formuladas durante o debate que se seguiu.

Buona sera a tutti voi. Antes de entrar no tema sobre o qual me foi pedido que falasse, gostaria de esclarecer algumas premissas.

A primeira destas duas datas, 1968, situa-se dentro do quadro de um mundo bipolar, dividido, e que assim continuou até 1989. É nesse contexto de bipolaridade que se compreende o clima daqueles anos, e como o ano de 1968 adquiriu uma forte orientação anti-ocidental e anti-americana, que levou muitos a aderir a uma perspectiva da história de tipo marxista. Naturalmente, o quadro mundial é diferenciado. Como sabem, no Brasil houve, de 1964 a 1985, uma ditadura militar e, portanto, a situação era diferente daquela em que se encontravam os Estados Unidos e a Europa nessa época.

A segunda data, 1989, precedida pelo declínio das ditaduras militares na América Latina, representou o fim da divisão entre leste e oeste. Se as ditaduras desapareceram naquele período, foi porque o mundo estava superando a divisão; não se tratava apenas de um fenômeno latino-americano, mas de um fenômeno mundial.

 

Os ventos mudam

Queria começar por ressaltar que as premissas de 1968 não nascem do espírito do marxismo – este é um aspecto para o qual quase nunca se chama a atenção.

O 1968 europeu é, sem dúvida, reflexo do americano. Todos sabemos que foi a contestação na Universidade de Berkeley que deu início aos movimentos estudantis nos Estados Unidos e depois na Europa. Essa contestação, no entanto, nascia de uns motivos muito concretos, sobretudo da oposição à guerra do Vietnã. Os jovens não queriam mais ir combater ali, e certamente tinham boas razões para fazê-lo, visto que os Estados Unidos se tinham embrenhado, graças à administração Johnson, em uma guerra perdida de antemão e difícil de compreender para os americanos de 65, 66, 67…

Na época de Kennedy, somente especialistas militares tinham ido ajudar o exército vietnamita; com Johnson, porém, dezenas de milhares de jovens americanos foram enviados a combater em uma guerra que não entendiam. Os historiadores sabem que a escalada militar empreendida por Johnson só foi decidida em 1965, após um incidente falso inteligentemente orquestrado no golfo de Tonquim e que serviu para justificar uma intervenção maciça.

Em oposição à batalha do Vietnã, estavam os ideais da New Frontier – a “Nova Fronteira” -, ou seja, os da era Kennedy, que preconizavam o apaziguamento leste-oeste depois da grave crise dos mísseis de Cuba, momento em que o mundo quase “tocou” a Terceira Guerra Mundial. Essa crise cubana foi a maior que o mundo enfrentou desde 1945, e por muito pouco não se chegou a um conflito atômico; apenas um milagre o impediu.

Recordemos que a encíclica Pacem in terris, de João XXIII, foi escrita nesse momento, depois da grave crise de Cuba; não nasceu do nada, mas de o mundo haver vislumbrado a Terceira Guerra Mundial – outro ponto de que quase ninguém se lembra. Toda a vez que se fala da Pacem in terris, fala-se dela como se fosse um documento de ideais altíssimos, mas utópicos. No entanto, o Papa quis aquele documento porque o mundo quase tinha chegado à Terceira Guerra.

Os ideais da era Kennedy eram de oposição não-violenta, como o eram inicialmente as contestações estudantis, que retomavam o ideário de Martin Luther King, nome de enorme peso e grande fascínio nos Estados Unidos. Esses ideais inspiravam-se, ainda de forma muito ingênua, no movimento hippie americano, no famoso dístico peace and love, ou seja, na concepção de um retorno edênico à natureza, alimentada por certa literatura de tipo naturalístico.

Também na Europa o clima que precedeu 1968 era positivo, sem nenhuma relação com a violência subseqüente: o mundo passava por um momento de apaziguamento leste-oeste; havia acontecido o Concílio Vaticano II, com suas grandes esperanças; existia um desejo de solidariedade entre os povos. Recordo-me disso porque era jovem como vocês são agora, e lembro-me da ânsia que havia entre a juventude de que se resolvesse o problema da fome no mundo e de que a Europa e o Ocidente ricos se encarregassem dos problemas dos países pobres – o que, do ponto de vista europeu, significava principalmente o continente africano.

Esta atmosfera positiva mudou logo depois dos episódios de violência de 1968 e 69. Muitas vezes nos perguntamos: Como foi que se chegou àqueles anos? Como foi que se chegou àquele clima contestatário?

Chegamos a isso porque os próprios poderes intervieram para criar uma situação de violência, isto é, houve uma série de episódios nos quais os interesses dos poderosos causaram traumas que a seguir se manifestaram em reações violentas. Isto é importante, ao menos na minha modesta opinião, porque foi exatamente nesta passagem que se consumiu a alma religiosa cristã dos anos 60. Ou seja, o período que precedeu o ano de 68 era de forte idealismo, e quem não o viveu dificilmente pode compreender o que foi; mas aqueles ideais, a certa altura, foram crestados, destruídos pela radicalização de um conflito que se tornou violento.

A década de 60 viveu certamente, e com grande intensidade, uma ideologia de matriz fortemente cristã, determinada também, no mundo inteiro, pelo espírito do Vaticano II. E foi nesse momento que ocorreu a transição para a hegemonia marxista, passando-se de um tempo carregado dos valores da solidariedade cristã para um clima violento, duro, no qual o modelo marxista toma a primazia e passa a englobar em si o cristão.

Quais foram os eventos de violência que radicalizaram a situação, modificando o clima? Nos Estados Unidos, foi com certeza a morte de Martin Luther King, assassinado em Memphis a 4 de abril de 1968. A morte de King significava que os negros americanos não podiam mais esperar conseguir a igualdade pela via pacífica, baseada no modelo de Gandhi; e prevaleceu a idéia de que somente poderiam obter seus direitos pelas armas, pela violência. Pouco depois, a 6 de junho de 1968, Robert Kennedy foi assassinado, e também isto teve um significado muitíssimo simbólico: depois de John, também o seu irmão Bob tinha sido morto, o que era como se o ideal da “Nova Fronteira” se tivesse afundado definitivamente.

Na Itália – menciono-o porque evidentemente é a situação que conheço melhor -, aquilo que se veio a chamar de estratégia da tensão iniciou-se em 1969 com a bomba colocada no Banco Nacional da Agricultura, que fez mais de oitenta mortos. Os culpados jamais foram encontrados, mas as investigações apontam certamente para movimentos da extrema direita italiana. A estratégia da tensão (que se concluiu nos anos 80 com mais de 500 vítimas, entre mortos e feridos) principiou com essa bomba e originou a dialética rosso-nero, entre “vermelhos” e “negros” [1], da qual não se sairá mais – ou seja, a dialética entre a extrema esquerda e a extrema direita, unidas em torno da santificação da violência como método político.

 

À esquerda da esquerda

Como reação a tudo isso, cria-se uma radicalização da esquerda, que passa a estar toda sob a hegemonia da posição marxista. Trata-se de um comunismo revolucionário que já não se reconhece mais nos velhos partidos comunistas do tipo do italiano ou francês, mas busca como modelo a China, o Vietnã ou Lênin – o comunismo soviético do início, puro e duro, que não aceitava nenhum compromisso com o mundo burguês. Isso ao menos na Itália e na Alemanha, não na França, o que é um pouco paradoxal porque o ano de 1968 na Europa se abre com o famoso maio parisiense.

Na França, entretanto, o ano de 68 tem uma coloração diferente, porque ali penetra muito rapidamente a lição do Arquipélago Gulag, de Aleksander Solzhenitsyn, o grande autor russo que, depois de passar pela experiência do campo de concentração, escreveu essa que foi a mais crua denúncia do totalitarismo soviético. Enquanto Solzhenitsyn não foi levado muito a sério na Itália, os intelectuais parisienses foram muito influenciados por ele.

E eis que agora a contestação francesa assume uma fisionomia diferente em relação à alemã e à italiana: na França, o ano de 1968 não gerou a hegemonia marxista nem o terrorismo. Ao contrário, o 68 parisiense é fortemente crítico do modelo soviético, e valoriza um outro 68, aquele que ocorreu nas ruas de Praga (vocês sabem que na Checoslováquia houve a famosa “primavera de Praga”, esmagada pelos tanques soviéticos). Pois bem, a França era muito sensível a esse outro 68 que protestava, sobretudo, pela liberdade, e não apenas contra o mundo burguês.

Nos Estados Unidos, a esquerda não é marxista, pois jamais houve um partido comunista digno deste nome. E esta esquerda “oposicionista” exprime-se por meio de uma espécie de ideologia dos pluralismos “mutuamente incompatíveis”, por assim dizer. A refutação do modelo americano se expressa em uma série de “tribos” que reivindicam de maneira orgulhosa a própria identidade. Assim, os negros americanos assumem a mensagem de Malcolm X, a idéia de que os afro-americanos não devem se identificar com a sociedade dos brancos, mas sim construir uma identidade totalmente fechada ao relacionamento com eles. Assim também a idéia do feminismo como identidade que não é possível harmonizar com o universo masculino, e igualmente os movimentos homossexuais, etc.

Na América Latina, o vento de 1968 traz a concepção da “teologia da revolução”, paradoxalmente favorecida também pelas ditaduras que, neste intervalo, tomaram a geografia da América do Sul. A seguir, este vento traria a “ideologia indígena”, também ela uma realidade que reivindica o retorno à “antiga identidade” contra o Ocidente, ao menos o hispânico e cristão, e por isso acalenta a volta às antigas origens indígenas, pré-cristãs, anteriores à colonização. Essa perspectiva é o resultado final daqueles anos…

Voltando à Europa, a corrente que se põe à esquerda do partido comunista italiano, aquela que deu vida ao fenômeno terrorista, manifesta-se na Itália, na Alemanha, na Espanha com a ETA e na Irlanda com o IRA. Na Itália, atinge o ponto máximo de força e violência com a morte do grande estadista Aldo Moro, o primeiro-ministro democrata-cristão assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas [2]. Este é auge do terrorismo na Itália, mas ao mesmo tempo é um ponto de inflexão, pois os terroristas alcançam um grau de alienação tão radical da sociedade civil italiana que assinam ao mesmo tempo a sua condenação moral e, conseqüentemente, a sua crise.

Quem encarna verdadeiramente o ideal dos jovens daqueles anos? Certamente é o mito de Ernesto Che Guevara, morto em 9 de outubro de 1967. Em 1968, 69 e 70, Guevara torna-se um mito para milhares e milhares de jovens europeus. A famosa foto de Alberto Corda que mostra o “guerrilheiro heróico” percorre o mundo inteiro. Guevara aparece realmente como um novo Cristo, mas um Cristo guerrilheiro, que não se limita a carregar a cruz, mas a usa como espada, e assim une o pathos da paixão ao do poder.

Esta atitude, ou melhor, este mito, este herói ateu repleto de um poder propriamente religioso, certamente traz consigo a idéia da “santificação da violência”, que serviria para desagregar os poderes maus do mundo e que, por isso mesmo, traz em si alguma coisa de sagrado. Para muitos jovens, o Che fez o papel de mediador da passagem do cristianismo para o marxismo. Se não tivesse havido esta imagem de um “santo laico”, tal passagem teria sido muito mais difícil, porque não é tanto a ideologia que atrai, mas sobretudo o exemplo: a imagem do Che morto era como a do Cristo morto. Tudo isso mexia mais com a imaginação do que todas as doutrinas possíveis.

A legitimação cristã passava agora através da revolução. Para poder ser cristão, era preciso ser de alguma forma revolucionário; caso contrário, a pessoa seria considerada reacionária ou conservadora, ou ao menos pertencente ao mundo burguês. Um cristão, para poder afirmar-se como tal, tinha de pagar o seu tributo à ideologia da revolução: ao menos, deveria ser inimigo das classes superiores, deveria de algum modo aceitar a violência como método para a libertação dos oprimidos.

É aqui que se encontra o fulcro da crise do Concílio Vaticano II, e também este é um aspecto sobre o qual se reflete muito raramente. O período de 1968-1970 não é o da realização do Vaticano II, mas o da sua traição. Do ponto de vista “tradicionalista”, costuma-se dizer que Vaticano II e o ano de 68 são a mesma coisa, o que não é verdade. Os anos de 68 a 70 são a traição do seu espírito, do espírito que desejava a unidade, o apaziguamento, a paz, o “método da paz” como solução para os conflitos entre os povos, que queria que se atenuassem as diferenças entre “norte e sul” – e em tudo isso não há nada da ideologia marxista que depois virá, com a “teologia da revolução”. O marxismo sempre pretende tomar o lugar do cristianismo, e por isso trai necessariamente o Vaticano II: não há conciliação possível.

 

O que ficou de 1968?

O mundo bipolar era um mundo impiedoso. Combatia-se pela hegemonia, e as “forças alternativas” não tinham espaço – ou se estava de um lado, ou se estava do outro. Era uma perspectiva impiedosa, mórbida nos países da Europa e sangrenta fora deles – como na África, no Oriente Médio e na América Latina. O clima somente melhoraria a partir de meados dos anos 80, com a presidência de Gorbachev na União Soviética.

Sabemos que o Muro de Berlim caiu em 1989. Em 1991, foi o fim da URSS, quando a bandeira vermelha foi recolhida dos muros do Kremlin, em Moscou. E era também o fim da ideologia comunista – a grande religião atéia, a religião para os ateus do século XX, a grande fé que moveu milhões de homens que não acreditavam mais em Deus.

Com isto, é chegado o momento de nos perguntarmos: O que ficou de 1968? O que esse ano construiu?

Ficou muito pouco em termos positivos, e muito em termos negativos. A associação entre utopia e violência consumiu tudo o que havia de positivo na utopia, a ânsia inegável de solidariedade e de justiça. E trouxe como resultado uma espécie de cinismo em massa, ou seja, aquilo que um grande pensador italiano, Augusto del Noce [3], chamou “o burguês no seu estado puro”.

O resultado do fracasso da revolução ou dos ideais revolucionários foi a “era do desencanto”, do cinismo generalizado. Os anos 80, e depois também os 90, são a era na qual os ideais se resumem a: “Divirta-se, goze a vida e enriqueça”. Quem for mais capaz e tiver mais meios na vida, passe à frente. Para os outros, não há piedade. São os anos do “novo poder”, daquilo que na Itália Pier Paolo Pasolini diagnosticava de maneira muito lúcida: “Está-se criando um novo poder, o mais dessacralizante que possa haver. Um poder para o qual não há mais nada de sagrado”. Dizia-o a respeito da vida humana, do aborto; e, dirigindo-se aos seus amigos progressistas, acrescentava: “Vocês não se dão conta de que estão dando um presente àquelas forças desapiedadas que não reconhecem mais nada de sagrado, às forças da mercantilização integral da vida? Pensam que são progressistas, mas não percebem que desta maneira estão sendo conduzidos por aqueles que querem que a vida se reduza a uma mera mercadoria!”

A falência da ideologia marxista, portanto, cria um xeque-mate que ela não pôde dar enquanto existia: a sua falência é a sua realização, a sua única realização possível. Ou seja, o marxismo não pode atuar na parte positiva, porque é uma utopia que jamais se pode realizar. Continua a atuar, porém, pela parte negativa, que é a crítica a todos os ideais.

Para o marxismo, todos os ideais são disfarce para interesses de classe; ou seja, todos os ideais são ideologias, não há ideais verdadeiros. Mesmo os ideais universais são ideologias, refletem apenas o ponto de vista dos vencedores, que querem impor a sua ideologia a todos. Assim, o marxismo educou os seus seguidores para a mentalidade de que não existe nenhum ideal válido, porque tudo está em função das leis da economia.

E quando o marxismo morre, o que fica? Permanece, como vimos, a parte negativa, que é aquela que chegou até os nossos dias e atingiu milhões de jovens nestes últimos anos. Se não há mais nada a que valha realmente a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final das contas, que só permanece a idéia do “burguês em estado puro”. O revolucionário gera o “burguês em estado puro”, um burguês que não tem mais nenhum interesse ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral.

Depois do fim do poderio soviético, esta crítica investe contra o próprio marxismo e o comunismo. No fundo, o comunismo, nos anos em que existiu – também quando criticava a União Soviética -, vivia do seu poderio. No momento em que a União Soviética acaba, quando já não se considera comunista, o comunismo passa a não ter mais nenhuma “realização histórica” e o marxismo também se reduz a uma ideologia. A crítica que fez a todas as outras ideologias volta-se contra ele mesmo, que se torna uma ideologia entre tantas outras. Já não pode certificar a própria realidade porque, como o seu único critério de verdade é a práxis, a atuação histórica, no momento em que é desmentido pela história decai para uma posição totalmente questionável.

 

A vacilante ideologia da globalização

Dizíamos que os anos 80 são movidos pelo desencanto, pela ânsia de enriquecimento e pela euforia de mercado. Ou seja, movem-se por uma nova ideologia, a ideologia da globalização. Não foi somente o ano de 1968 que gerou utopias, igualmente o fez o ano de 1989. Por exemplo, aquela que o filósofo americano Francis Fukuyama chamou, em 1992, deThe End of History and the Last Man: ou seja, a idéia de que, com o fim do comunismo, a história acabou; o mundo já não seria bipolar, mas unipolar, uno, baseado todo ele no modelo americano, controlado por uma única economia global. Este foi o sonho, o mito de inícios dos anos 90.

É a idéia, enfim, de que não temos mais razão para conflitos, de que as guerras não têm mais sentido, de que a humanidade se encaminha para a uniformidade e, portanto, para a paz. Tudo isso era, em todo o caso, sugerido pelo que acontecia na política, porque aquele foi um período feliz, especialmente para a América Latina, uma vez que todas as ditaduras – ou quase todas – foram caindo uma após outra como castelos de cartas.

No plano religioso, a “teologia da revolução” torna-se “teologia do diálogo”. Esta é outra transição interessante, pois se passa do ideal da violência para o do diálogo, que é levado ao ponto de afirmar que, no fundo, todas as religiões são iguais. O mundo é uno e, portanto, todas as religiões veneram a mesma coisa… Graças a essa tendência, a religiosidade vai-se superficializando para uma espécie de New Age. Como sabem, a década de 90 é a do New Age: a religiosidade já não tem fronteiras, une os homens para além da diversidade das Igrejas e dos credos, etc. Tudo isso leva ao declínio da política e à idéia de que o fator que realmente importa é o econômico – a globalização -, juntamente com o religioso, sob a forma de uma religiosidade do tipo New Age.

Diante disso, o 11 de setembro de 2001 certamente representou a crise do período pós-1989. De modo repentino, passou-se de uma espécie de condição de conciliação ecumênica, de “diálogo”, ao maniqueísmo mais brutal e decidido. O mundo subitamente voltou a colorir-se de preto e branco: o Ocidente contra o Oriente, contra o Islã que agora aparece como totalmente negativo, como a fonte de todo o mal; mas ainda em nome de uma globalização que já não era pacífica, mas devia ser imposta à força, se necessário. A democracia já não se exportava em conjunto com o mercado, exportava-se da maneira dura, à base de canhões.

Mas era já uma globalização em crise. Todos conhecemos a obra de Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, de 1996, que representa uma resposta a Fukuyama, e sabemos da sua importância. Não é verdade que o mundo é uno, diz ele: está dividido em grandes civilizações inconciliáveis entre si, em grandes civilizações históricas que voltam à tona de tempos em tempos e tendem a estar em conflito umas com as outras.

Esse texto de Huntington era extremamente crítico com relação às teses de Fukuyama. Foi escrito em 1996, mas se tornaria atual em 2001. Examina os limites do poder americano frente ao renascimento da Ásia, ou melhor, da China e da Índia, das grandes civilizações históricas. O autor faz uma análise muito interessante: uma vez que a globalização favorece o poder econômico de grandes zonas da terra que foram excluídas da riqueza, aquelas zonas inevitavelmente redescobriram as suas identidades culturais e religiosas ancestrais e passaram a orgulhar-se das suas próprias tradições culturais e religiosas. Redescobriram assim a sua identidade, em antítese às outras identidades.

A globalização favoreceria, portanto, o pluralismo das potências civilizadas, resultado que não era previsto pela análise de Fukuyama. E não só não favoreceria a unidade, mas, pelo contrário, favoreceria o renascimento do prestígio das grandes potências históricas, que tinham sido niveladas no embate entre Leste e Oeste, entre comunismo e capitalismo. Na sua divisão, Huntington se refere particularmente ao Ocidente cristão, mas sem incluir a América Latina, pois para ele o “Ocidente cristão” é o majoritariamente protestante. A América Latina, diz ele, faz parte de um cristianismo, digamos, sui generis.

O último elo das ideologias de 89 a cair é a idéia do mercado global, que constitui o problema dos dias atuais. A atual crise do sistema financeiro americano, de 2008, põe-nos novamente cara a cara com o primado do político, aquele fator que tinha sido esquecido. Acabou-se a era do mercantilismo: agora, todos gritam que o mercado deve ser submetido a regras e todos almejam a “economia real” contra a tal “economia financeira” que reinou inconteste durante todos estes anos.

Ao mesmo tempo, percebemos que também a visão economicista da ideologia da globalização produziu um deserto da vida, uma destruição das relações pessoais. É nesta perspectiva que as reflexões dos pensadores comunitários americanos se tornam importantes – penso em MacIntyre ou em Charles Taylor como representantes desta corrente que indubitavelmente é importante. Na Europa, é dominante a figura de Jürgen Habermas, o expoente da “inteligência democrática” européia, que nos últimos anos – mais precisamente depois de 2001 – volta a perguntar-se sobre a importância da dimensão religiosa para recriar entre as pessoas uma solidariedade que a secularização maciça desses anos dissolveu de maneira impiedosa…

A partir disto, este crítico laico iluminista iniciou um diálogo de enorme interesse com o então cardeal Ratzinger, dando origem a um debate que continua até hoje. Na Itália, por exemplo, as teses de Habermas são muito discutidas, sobretudo nos ambientes laicos, porque apanharam o laicismo italiano de surpresa. Afinal, foi do mais importante expoente da inteligência progressista européia que veio uma provocação de altíssimo nível: o pensamento laico democrático atual não pode deixar de considerar a dimensão religiosa, a fim de ser capaz de reconstituir os vínculos de solidariedade que estão por trás da prática democrática hoje…

 

Conclusão

Em resumo: que aconteceu de 1968 a 1989 e até 2008? Passamos da utopia coletivista a um individualismo exasperado, e depois à consciência de que tanto um quanto o outro são ideologias. É ideologia o marxismo, é ideologia a idéia de que a globalização traz o paraíso a terra. Tudo não passa de ideologia. Na realidade prática, são necessários tanto o Estado como o mercado; são necessárias tanto a nação como a realidade supranacional, tanto a laicidade como a abertura para a dimensão religiosa, tanto a fé quanto a razão. Esta é a compreensão realista, que considera as diferenças e ao mesmo tempo trabalha para trazê-las a uma possível harmonia.

Mas há uma reductio ad unum das ideologias que não se sustenta. Um modelo é ideológico precisamente quando pretende simplificar a realidade, reduzindo-a à unidade. A realidade não é una: vive de tensões que têm de ser contidas para que não se tornem conflitivas, para que não explodam. Isso vale para as suas diversas formas, desde classes sociais e religiões até as nações e os estados. Por isso, pede sempre uma “política” em sentido amplo, política que é a arte, não apenas do possível, mas a arte de criar relações tranqüilas entre as diversas entidades contrapostas.

Isto vale também para a teologia, a qual, com excessiva freqüência, andou a reboque da sede de poder das ideologias que se alternaram ao longo dos últimos trinta anos. Nos anos 70, em muitas partes do mundo, fez-se uma “teologia da revolução” que, no fundo, ia atrás do poder – do “poder dos oprimidos”, sim, mas na realidade também de um outro poder muito bem determinado. Nos anos 80 e 90, passou a ser a “teologia New Age“, a do diálogo fácil, como se o mundo já estivesse às portas do Éden e tudo fosse simples. E de 2001 para cá tornou-se “teologia da identidade”, como na Europa, onde se fala agora com muita desenvoltura do “Ocidente cristão”, como se o cristianismo não fosse mundial, como se tantas partes do mundo fora do Ocidente não fossem católicas. Nesta ótica, não seriam cristãs a América Latina, as Filipinas, parte do Vietnã e da Coréia, grande parte da África… O “Ocidente cristão” significa a parte rica do mundo, isto é, somente o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

É evidente que aqui há um uso ideológico: quando a fé não interessa, é “privatizada”, e quando interessa é “propagandizada” em função do adversário. Isso não passa de uma instrumentalização, a que a teologia não se deveria prestar. O cristianismo corresponde às exigências do tempo sem, no entanto, conformar-se a ele. Deve levar em consideração a época histórica, as alternâncias de poder, as novas orientações, mas isso não significa conformar-se ao poder do momento. É necessário levar em conta os poderes, mas também a transcendência em relação a eles. Caso contrário, como o demonstra o percurso de 1968 a 2001, a fé condena-se a perseguir as ideologias do momento. Aquelas que a história, ao voltar as páginas, descartará como desatualizadas.

 

Perguntas

O materialismo, a crise da metafísica, da espiritualidade, da moralidade…, parecem ter crescido mesmo depois da queda do marxismo. Podemos dizer que o marxismo político, econômico, etc. caiu, mas o marxismo cultural permanece e até ganhou mais força?

Essa pergunta levanta um problema interessante: se o marxismo continua apesar dos pesares a ter certo peso no plano cultural, é evidente que traduz ou responde de alguma maneira a problemas reais. Para que determinada atitude cultural, política, religiosa…, responda adequadamente ao marxismo, é necessário que responda a esses problemas. Não basta simplesmente dizer que o marxismo está errado – o que é verdade -, mas depois não ter em conta que milhares de pessoas julgaram encontrar nele a solução para os seus problemas. Uma posição que queira ser antitética, oposta, ao marxismo, deve mesmo assim dar-se conta dos problemas históricos, sociais, reais a que o marxismo, ainda que de maneira errada, tentou dar solução. Caso contrário, diz-se: “Errou , e…” Não, as coisas não são tão simples assim. Afinal, o problema das tensões sociais, o problema de uma maior eqüidade, etc., são problemas reais.

Considerem o documento em que a Congregação para a Doutrina da Fé criticou de maneira impecável a Teologia da Libertação. Pois bem, nesse mesmo documento, se for lido com atenção, encontra-se toda uma série de pontos em que o mesmo organismo diz ser preciso enfrentar as exigências de justiça oriundas daqueles setores da população que, mais do que outros, puseram as suas esperanças na utopia marxista. Ou seja, a crítica à Teologia da Libertação deve ser acompanhada de um relançamento da Doutrina social da Igreja. Caso contrário, desenvolve-se apenas a parte negativa, quando o que falta é muitas vezes a parte positiva.

 

Hoje temos, de um lado, o extremismo islâmico, e do outro o “extremismo consumista”, tanto no Ocidente como nos países egressos do marxismo. No caso do Islã, o perigo parece ser o de uma cultura dirigida para o extremismo, ou pelo menos de uma cultura que o facilita; já o que caracteriza o consumismo é a falta de cultura, ou uma cultura apenas internética e superficial.

Eu diria que o consumismo e o extremismo islâmico, como diz, certamente merecem ser considerados as duas faces de uma mesma moeda. Porque é do deserto que nasce a reação fundamentalista: quanto mais uma sociedade é árida, tanto mais o fascínio do integralismo fundamentalista encontra eco ali.

No que diz respeito a muito dos islâmicos europeus, são com freqüência os filhos daqueles que vieram para a Europa a fim de trabalhar e inserir-se na sociedade ocidental que encontram na mensagem fundamentalista um sentido para a vida, em contraste com o deserto das nossas cidades em que já não lhes é oferecida nenhuma mensagem espiritual de tipo algum. Como a secularização esvaziou totalmente as almas, a mensagem fundamentalista representa para estes filhos de imigrantes um encontro com as suas raízes, um retorno à dimensão comunitária, uma redescoberta dessa relação com o divino que já não lhes é oferecida de outra maneira. Portanto, o fundamentalismo do tipo que amadurece na Europa é uma reação à secularização, àquilo a que chamamos consumismo, e que na realidade quer dizer, em última análise, a destruição da alma. Quando sobram apenas os corpos, as almas – por assim dizer – já não têm vida.

 

Um dos grandes problemas, que me parece que os europeus também têm, mas aqui me dá a impressão de ser mais dramático, é o do aburguesamento da juventude, no sentido de um fechamento cada vez mais individualista diante de uma realidade social em que a solidariedade é, no entanto, uma exigência gritante. Gostaria de que você falasse um pouco mais sobre o que significa esse “burguês em estado puro”, no conceito de Augusto del Noce.

Antes de mais nada, desejo prevenir um equívoco: não pretendo fazer polêmica contra a burguesia, porque isto não faria sentido. Todos aqui, até certo ponto, pertencemos à classe burguesa; não é esta a questão que interessa, não se trata de fazer aqui uma análise de tipo sociológico.

O que caracteriza o “burguês em estado puro” é que perdeu completamente os ideais da vida. Esta foi, de alguma maneira, a tragédia do fim do comunismo. O comunismo não foi uma tragédia apenas quando era poderoso; foi também uma tragédia quando desabou porque, ao desabar, arrastou consigo todos os ideais. Como todos estavam concentrados nessa ideologia, o fim dela trouxe consigo o fim de todos eles. Este é o grande paradoxo do fim do comunismo!

Isto se observa muito bem em toda a minha geração, a geração de 68. Esta geração lutou, esperou, fracassou, e qual é o resultado hoje? Quem tem agora cinqüenta, sessenta anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes, que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais. Não pensa que, como os seus ideais faliram, precisa experimentar outros. Pensa que aqueles ideais eram os únicos, e como faliram, que já não há esperança alguma. Este é o seu drama – e por isso repito que o comunismo foi uma tragédia não somente enquanto estava no poder, mas que também criou uma tragédia ao cair, porque levou consigo toda a capacidade de esperar por uma mudança.

O resultado é o “burguês em estado puro”, ou seja, a pessoa que agora vive unicamente da dimensão imediata da vida. Entre milhões de jovens europeus de hoje, qual é a percepção imediata da vida? Limita-se a um medo instintivo da morte, a uma instintividade imediata, que substancialmente quer dizer Eros vivido de maneira naturalística, e à possibilidade de ter sucesso na vida a qualquer custo e sem muito escrúpulo. Essa instintividade imediata foi o que sobrou – e não há mais nada.

 

O que fazer, como professores universitários, diante dessa situação, além de observá-la e lastimá-la?

O que fazer…? Diria que, diante disto, a Universidade tem antes de mais nada uma responsabilidade educativa. Porque a maneira como se transmite uma matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina. É tudo isto que está contido no ensino: não se trata apenas de uma série de informações sobre uma determinada matéria, mas da maneira como essa matéria será exercida, compreendida, relacionada com a própria existência e depois com a realidade da vida em geral. Nisto há uma dimensão ideal, ética, moral, e em última análise religiosa, que quem se limita a fazer de “informador” simplesmente já não compreende.

 

Recordo-me de uma frase que, como professor, sempre me impressionou muitíssimo. É de Olivier Clément, que, com palavras talvez um pouco injustas, mas tocantes, dizia: “Vocês, professores, continuam a ensinar do jeito que sempre ensinaram e os vossos alunos continuam a suicidar-se cada vez mais”. O que percebemos é que quase todos os professores concordam em princípio com essa afirmação, mas pouquíssimos são capazes de aplicá-la na prática; não querem limitar-se a ser meros “retransmissores de informação” ou, pior ainda, “transmissores de vazio”, mas acabam tornando-se exatamente isso.

Este processo de formação do “burguês em estado puro” – equivalente na prática ao que se costuma chamar “processo de secularização” – atingiu todas as principais figuras sociais. Hoje costumamos falar de “crise de valores”, e esta frase tornou-se tão comum que passou a ser banal. “A nossa sociedade não vai bem porque existe uma crise de valores”. Mas os valores, em si, não dizem nada! Os valores só são reais quando estão encarnados, e dentro de uma sociedade os valores são encarnados pelas figuras sociais.

Quais são as principais figuras sociais que já não representam valores? São as figuras eminentes. Pensem na figura do médico: até há trinta ou quarenta anos – na Europa pelo menos, não sei como será aqui -, ser médico não era apenas uma profissão, era também uma vocação. O médico podia ser chamado a qualquer hora, estava sempre a serviço do doente. Hoje, para nós, tornou-se um burocrata. É alguém que se limita a escrever receitas e a mandar-nos para o hospital. É médico apenas para ganhar dinheiro, não mais por uma vocação; esqueceu-se totalmente da dimensão pessoal do relacionamento com o paciente, que antes estava no próprio centro da prática médica.

O mesmo ocorre com outras figuras sociais: o político, antigamente, era alguém que vivia por uma paixão ideal, representava o povo, ao passo que hoje é um burocrata muitas vezes sem relacionamento algum com os eleitores; responde apenas ao poder do alto, não mais ao poder que vem de baixo. Mesmo os sacerdotes transformaram-se muitas vezes em burocratas: o sacerdote era aquele que cuidava das almas, ao passo que hoje muitas vezes é alguém que precisa fazer mil coisas de caráter burocrático. E a mesma coisa vale para os professores: antigamente, também esta era uma vocação; hoje, o professor é um “informador” técnico, alguém que se limita a transmitir informações. Assim, as principais figuras sociais transformaram-se em figuras burocráticas; secularização quer dizer também burocratização, ou seja, a exclusão do elemento pessoal.

Portanto, o médico, o professor, o sacerdote, as principais figuras sociais que encarnavam os ideais, não o fazem mais. Do ponto de vista dos jovens, que precisam de figuras com as quais possam identificar-se, este é o verdadeiro problema ético da crise de valores. Porque, para um jovem, um valor encarna-se em uma pessoa: em um professor, em um padre, em um médico…, em alguém que se dedique aos outros. A redução dessa dimensão vocacional é a causa da crise moral dos nossos dias. Porque a moral somente é possível em um processo de identificação com alguém que encarne um ideal. É graças ao fascínio de uma personalidade que atrai pela sua idealidade que seguimos um ideal. Por isso, dizia que Ernesto Che Guevara se transformou no falso Cristo de milhões de jovens, porque ali, no meio do deserto em que estavam, podiam vislumbrar um ideal encarnado. Encarnado de maneira errônea, mas encarnado.

A ausência dessas personalidades é que constitui o grande problema dos nossos dias. É o que vemos também no nível educacional. Um educador só é realmente educador se essa for a sua vocação.

Vocare, “chamar”, implica que se responde a alguém. Você, educador, responde ao rapaz, ao jovem que está ali na sua frente; não pode perder o interesse por ele, não pode simplesmente dar-lhe aquelas quatro informações e, depois, ele que “se vire”… De algum modo, a existência desse jovem universitário encontra-se com a sua vida, e aquilo que você lhe dá e lhe comunica é importante para ele. A maneira pela qual se comunica é importante. A maneira, porque a personalidade está no estilo, no modo pelo qual se comunica alguma coisa, mesmo que se trate uma fórmula abstrata de matemática. É o modo como você vai ao encontro do estudante, como se preocupa em saber se ele compreendeu – se compreendeu de verdade! -, como o quer ajudar. Só assim emerge a paixão da educação e, portanto, do relacionamento que se tem de pessoa para pessoa. O elemento pessoal é o que faz a diferença!

 

Parece-me evidente que, se Che Guevara acabou assumindo um papel, digamos, “Cristo-símile”, evidentemente foi porque o verdadeiro Cristo não foi mostrado na sua integralidade. Houve, portanto, uma deficiência dos cristãos nessa tarefa. Qual é a nossa responsabilidade, e quais foram as nossas falhas, como professores universitários e como cristãos, para que a situação chegasse ao ponto a que chegou? E o que pode a Universidade fazer como estrutura para resgatar valores para o século XXI, que não serão apenas do século XXI, mas de todos os séculos futuros?

Concordo inteiramente com o que você dizia, ou seja, que se o Che Guevara assumiu o lugar de Cristo para milhares de jovens, foi porque o verdadeiro Cristo, na sua figura e na sua realidade, já não estava claro. Aliás, em muitos casos estava totalmente ausente… Poder-se-ia escrever um livro sobre a passagem de Cristo a Guevara, como Guevara tomou o lugar de Cristo no coração de milhares de rapazes na América Latina, levando-os depois às armas, levando-os a um destino terrível.

Li recentemente um livro de um teólogo bastante famoso que continua a dizer que Che Guevara convidava a amar os homens. Ma Santo Dio! Insomma… Quanta ingenuidade há nisso! Guevara queria ser um militante marxista-leninista perfeitamente ortodoxo, era extremamente duro na observância das regras da militância marxista, a ponto de ser cruel. Era duro consigo e impiedoso com os que estavam sob o seu comando. Para dizer o que dizia esse teólogo, é preciso sofrer de uma miopia absoluta!

E esse é o drama por trás do que você dizia: que a Igreja não foi capaz de propor Cristo como o verdadeiro tipo de homem e de ideal na integralidade dos fatores da vida, não para “o lado de lá”, mas para “o lado de cá”. Para a vida real, para a vida social…, para a solução dos problemas reais.

Em relação à Universidade, você perguntava – como docente cristão – qual é a nossa responsabilidade. Ela consiste, acima de tudo, em comunicar um ideal, não uma utopia. Porque nestes anos muitos confundiram os ideais com as utopias. Os ideais, já vimos, encarnam-se na existência do dia-a-dia, realizam-se no dia-a-dia, sem jamais atingirem a perfeição na sua realização histórica. Isto, porém, nada subtrai à energia e à paixão com que se procura comunicá-los e traduzi-los no concreto da existência, até os mínimos detalhes. Até chegarem a traduzir-se em paixão que se empenha no social e no político, paixão por uma mudança efetiva, para que a sociedade possa construir condições para o aprimoramento real da vida dos homens, sobretudo daqueles que têm mais necessidades.

Isto não é um “pauperismo”, diga-se de passagem; esta é a solidariedade que surge da fé como uma dinâmica própria. O marxismo apropriou-se da categoria de “pobre”, mas até prova em contrário a atenção aos pobres sempre foi uma expressão da dinâmica cristã da existência. Não nos esqueçamos disso, porque em caso contrário daremos ao marxismo uma dimensão que na verdade nasce da fé cristã. É conceder demais ao marxismo dizer que o problema dos pobres diz respeito só aos marxistas. A paixão pela justiça e pela realidade nasce propriamente de uma fé cristã encarnada – mesmo lembrando-nos de que os pobres sempre existirão, como diz Cristo, o que significa que a utopia nunca se realizará. Porque o que está em jogo é a condivisão da realidade da vida, de pessoa para pessoa, não a realização de um reino perfeito.

Será tão difícil assim distinguir entre os ideais que se declinam na história, por um lado, e as utopias pelo outro? Essa foi a grande confusão cultural destes anos: dizer que os ideais cristãos, que eram ideais de solidariedade e de justiça, nascidos da graça da fé e não de um projeto social, não podem nunca traduzir-se em um reino perfeito. Ora, o cristianismo realmente não propõe nenhuma teologia política! A teologia política é o sonho de que a política seja a realização da teologia; mas nenhuma política, nenhuma!, pode jamais realizar o teológico! Simplesmente não é possível! Daí não se deduz, porém, nem o desinteresse perante o sofrimento alheio, nem o fim dos ideais cristãos.

 

O filósofo Jacques Maritain propunha o Humanismo Integral, o “humanismo cristão”, como uma resposta frente ao marxismo. O senhor acredita, depois de o mundo ter passado pelo marxismo, depois de passar pelo capitalismo, que esse humanismo cristão não seria algo capaz de tapar as lacunas que apontava?

Se o “Humanismo Integral” seria a resposta? Dito assim, parece-me antes que seria uma nova ideologia. Maritain, naqueles anos, fez uma proposta ousada – é importante essa obra de 1936 -, e dizia muitas coisas verdadeiras. Mas não é que o cristão realize o humanismo de forma integral. Penso que é antes a fé que tem de encarnar-se, e que ela traz em si uma paixão integral por tudo o que é humano, e não censura nenhum fator do humano, nem os belos, nem os feios. Que ela tudo acolhe e tudo redime, não por obra das mãos do cristão – um mísero pecador como todos -, mas por obra de um Outro que através dele se exprime e se realiza na história. Por isso, diria que o cristianismo, quando é a consciência de Cristo que opera através de você, se exprime como paixão pela integralidade do humano.

“Integralidade do humano” quer dizer das necessidades mais simples às mais complexas; quer dizer a cultura, a política, as condições de vida, a família etc. etc. Quer dizer a relação entre homem e mulher, a relação com o estudo. Tudo vem revestido dessa presença que muda o coração dos homens, e provoca neles a esperança de uma mudança que se transforma em experiência. Há esperança na mudança, porque é uma mudança real, que acontece. E a vida que muda transforma-se no testemunho de um novo modo de agir dentro da sociedade, de uma modalidade nova de ser dentro do mundo.

Não é uma utopia, é o testemunho de humanidade renovada o que muda o mundo. A pequena Teresa de Calcutá era uma nulidade do ponto de vista político, mas aquela pequena mulher mudou a vida de centenas de milhares de pessoas. Sinal de esperança para os deserdados da terra, figura moral que deu a muitos a esperança de que, neste mundo de deserto, se pode viver com uma humanidade diferente, impregnada de ideal até às vísceras da carne.

 

Massimo Borghesi é professor titular de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, de Ética e Teologia Filosófica na Universidade São Boaventura e de Hermenêutica e Filosofia da Cultura na Universidade Urbaniana de Roma; tem estudado especialmente o tema das raízes culturais da crise do pensamento moderno e das suas implicações políticas. É autor de diversos livros, ainda inéditos no Brasil, entre os quais os mais recentes são Il soggetto assente. Educazione e scuola tra memoria e nichilismo, Castel Bolognese, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2005);Secolarizzazione e nichilismo. Cristianesimo e cultura contemporanea, Siena, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2007);L’era dello Spirito. Secolarizzazione ed escatologia moderna, Roma, 2008. É o editor de Caro collega ed amico. Lettere di Etienne Gilson ad Augusto del Noce, Siena, 2008, com a correspondência entre os dois autores.

 

Tradução de Juliana Di Lollo, licenciada em Letras pela FFLCH-USP.

 


 

[1] Na Itália, assim como a cor vermelha é associada à esquerda e ao socialismo, a negra é associada à direita e ao fascismo (N. do E.).

[2] O principal grupo terrorista da esquerda italiana nos anos 70 (N. do E.).

[3] Augusto del Noce (1910-1989) foi um dos mais importantes filósofos políticos italianos do século XX. É um dos grandes estudiosos da crise do marxismo e do secularismo, e das suas relações com as raízes do pensamento moderno (N. do E.).

Publicado originalmente em: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/o-mundo-apos-a-crise-das-utopias/

Entre a arte e a ciência (por Roger Scruton)

Artes | 23/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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"View of Beirut", 1861, Edward Lear

“View of Beirut”, 1861, Edward Lear

 

Quando Mohamed Atta enfiou o vôo 11 da American Airlines na torre norte do World Trade Center, no dia 11 de setembro de 2001, deu expressão ao seu ressentimento para com tudo o que aquele prédio simbolizava: o triunfo do materialismo secular, o sucesso e a prosperidade da América, a tirania do mercado financeiro e a hybris da cidade moderna. Exprimia também um antigo rancor para com o modernismo arquitetônico, rancor que já havia manifestado na sua dissertação de mestrado para a Faculdade de Arquitetura da Universidade de Hamburgo. O tema dessa dissertação foi a antiga cidade de Aleppo, danificada pela implacável perseguição movida pelo presidente sírio Hafiz al-Assad contra a Fraternidade Muçulmana e danificada ainda mais pelos arranha-céus que apagam os contornos das ruas antigas e se erguem bem acima dos dedos finos e implorantes das mesquitas. A sucata do modernismo representava, para Atta, um símbolo da impiedade do mundo moderno e do seu desprezo brutal pela cidade muçulmana.

As antigas cidades do Oriente Médio, captadas nos belos desenhos e aquarelas de Edward Lear, eram lugares onde comunidades muito unidas se abrigavam em torno das mesquitas e onde os minaretes tocavam o céu num gesto de oração contínua. Eram lugares de piedosa laboriosidade, e as suas vielas, pátios e bazares – o pano de fundo típico das narrativas árabes, das Mil e uma noites até os romances de Naguib Mahfouz – ocupam um lugar inamovível na memória dos muçulmanos, especialmente daqueles que, como Atta, se encontram flutuando entre estranhos nas ruínas de concreto da cidade ocidental.

Hoje, essas cidades antigas do Oriente Médio estão muito diferentes, com as mesquitas pateticamente esmagadas pelos arranha-céus gigantescos, os antigos pátios comprimidos entre prédios de apartamentos populares e as vielas rasgadas por avenidas. Apesar de as causas desse desastre social e estético serem muitas – uma delas a superpopulação, outra a corrupção e, no caso da Arábia Saudita, a especulação imobiliária da família Bin Laden -,
não se pode negar que o modernismo arquitetônico tem a sua parcela de culpa. Foi o projeto insano de Le Corbusier para Argel que lançou a idéia de que as antigas cidades muçulmanas poderiam ser completamente remodeladas sem se levar em conta nenhuma das necessidades religiosas e sociais da população. Embora somente uma horripilante parte do projeto tenha sido construída, este é, no entanto, estudado assiduamente nas escolas de arquitetura como uma das grandes “soluções” para um problema que ninguém havia percebido antes de Le Corbusier.

O “problema” consistia em como encaixotar as pessoas numa cidade e depois permitir que elas se movessem livremente por ela. A solução do arquiteto foi construir pistas elevadas para carros enquanto a população se amontoava em blocos de apartamento debaixo delas. Casas e vielas antigas deviam ser demolidas e edifícios comerciais gigantescos deviam ser construídos à beira-mar, reduzindo a nada mesquitas e igrejas. O prefeito da cidade, eleito pelos moradores, opôs-se a esses planos, o que levou Le Corbusier a aproximar-se do governador não-eleito da província (um francês) para pedir-lhe que passasse por cima do prefeito. “O projeto deve prevalecer”, escreveu. “É o plano que está certo. Ele proclama realidades indubitáveis”. E ainda em 1941, como líder da Comissão Nacional de Construção Civil do governo de Vichy, insistia em classificar os seus planos para Argel como prioridade máxima.

Nunca ocorreu a Le Corbusier que a natureza congestionada de uma cidade muçulmana é o subproduto natural de um modo de vida. Pátios e vielas exprimem a própria alma dessa comunidade – uma comunidade que pára cinco vezes ao dia para rezar, que se define a si própria pela obediência e pela submissão e que se refugia na família sempre que as coisas se complicam. São justamente as avenidas e os edifícios que matam a cidade muçulmana e enviam os seus filhos para o estrangeiro, cheios de ódio e sede de vingança – como Atta – contra o modernismo que os desenraizou.

* * *

Quando a cidade de Nova York, na esteira do terrível crime de Atta, começou a pensar na reconstrução do ground zero, não faltaram sugestões sobre o que se deveria fazer. A minha preferida era o projeto de Alexander Stoddart e outros, proposto nas páginas do City Journal. Este projeto envolvia um retorno à escala e à densidade da parte mais antiga do baixo West Side, e a restauração de um bairro de finalidade mista, residencial e comercial; o principal espaço público seria a rua, ao invés dos assépticos parques e praças. O antigo calor e aconchego dos bairros de Nova York voltariam a instalar-se por meio do frutífero entrelaçamento do trabalho com a residência e o lazer.

Projetos como esse, porém, não atraem a atenção das autoridades municipais, uma vez que quase todas procuram símbolos que mostrem quão esclarecidas são, e a maioria delas engoliu a doutrina de que a arquitetura é uma arte que deve ter como meta a sua própria vanguarda. Cidades que contam com corporações de alto nível profissional e financeiro para financiar os seus projetos, confiam-nos a um grupo cada vez menor de arquitetos-superstars escolhidos em função da sua capacidade de chocar o gosto dos cidadãos comuns com edifícios que se tornam causes célebrespor recusarem ostensivamente qualquer integração com a vizinhança.

A maioria desses arquitetos-superstars – Daniel Libeskind, Frank Gehry, Richard Rogers, Norman Foster, Peter Eisenman, Rem Koolhaas – adquiriu todo um repertório de blablablá pretensioso para mostrar claramente a sua genialidade àqueles que, de outra maneira, não o perceberiam. Ao gastar o dinheiro que pertence a eleitores ou acionistas, as pessoas deixam-se facilmente convencer por esse jargão, pois estimula a sua vaidade levando-as a acreditar que investem numa obra-prima original e revolucionária. Não surpreende, pois, que o prefeito Michael Bloomberg, o então governador George Pataki e o arrendatário Larry Silverstein tenham sido atraídos pelo projeto de Daniel Libeskind, que consistia em substituir as torres do World Trade Center por um fantástico conjunto de caixas de vidro assimétricas, uma delas dotada de uma sinuosa “Torre da Liberdade” que atingiria exatamente 1776 pés quando se acrescentasse no seu topo uma antena de rádio, também esta deslocada com relação ao centro do edifício.

Libeskind, o arquiteto do Museu Judaico de Berlim, é conhecido por projetar edifícios que são esculturas expressionistas, construídos para desafiar a gravidade, a estabilidade e a comunidade, e que envolvem custos enormes e geralmente imprevisíveis na sua construção. Foi este último fator que persuadiu Bloomberg, Pataki e Silverstein a confiar o projeto a Skidmore, Owings e Merrill, na intenção de torná-lo econômica e estruturalmente viável. Foi o que a empresa fez, descartando pura e simplesmente os planos de Libeskind e recomeçando do zero, a fim de produzir uma tediosa fileira de torres sem beleza alguma, alinhadas ao redor de um espaço aberto sem propósito nenhum –
a velha solução da Bauhaus, que tem desagradado a todos em todo o mundo, de Vladivostok a Los Angeles, da Cidade do Cabo a Aberdeen.

Libeskind é um dos alvos de John Silber em Architecture of the Absurd (“Arquitetura do absurdo”), um franco ataque aos arquitetos-superstars e aos seus projetos dispendiosos e auto-afirmativos [1]. Silber é reconhecidamente uma autoridade na moral e na filosofia da religião de Kant, e também um acadêmico que, sem nunca esconder a sua opinião de ninguém que lhe cruzasse o caminho, pôs a Universidade de Boston entre as melhores do país durante a sua administração. Além disso, é filho de um arquiteto e passou muitos dos seus anos de formação no escritório do pai, aprendendo as técnicas de um ofício que nunca viria a praticar. Aposentado, retorna agora a esse seu interesse juvenil e produz uma argumentação vivaz e convincente contra o culto do “gênio”, que teria exercido uma influência perniciosa sobre a arquitetura moderna.

A arquitetura, segundo Silber, não é uma arte “privada” como a poesia, a pintura e a música, cujas inovações podem ser oferecidas aos “iniciados” sem maltratar o gosto e as expectativas de nós outros. É uma realização pública, com um impacto inevitável sobre todos os que fazem uso da cidade e das suas ruas. Deve satisfazer o cliente, mas igualmente o público, que só deseja uma arquitetura que combine bem com as redondezas. Silber não é avesso ao modernismo e faz elogios (bem mais ardentes do que eu jamais me animaria a fazer) ao festejado edifício Seagram, de Mies van der Rohe, que se tornou o modelo de todos os prédios de escritório de vidros escuros encontrados em qualquer lugar da Europa e da América. O seu verdadeiro alvo é a egolatria, especialmente a egolatria que busca a originalidade em detrimento da harmonia e lança toda a humildade aos quatro ventos em nome da necessidade urgente de “aparecer”. Foi isso, pensa Silber, que culminou no culto ao gênio – um culto que pode ter sido importante na revitalização de artes como a poesia, a pintura e a música, mas que não tem cabimento na arquitetura.

Sim, não há dúvida de que há arquitetos que são geniais: Michelangelo, Palladio e mesmo Frank Lloyd Wright. Mas uma cidade não é obra de gênios. É obra de humildes artesãos e efeito colateral do seu contínuo diálogo consigo mesma. É um tecido em constante crescimento, remendado e costurado à medida que os nossos costumes mudam, de modo que a ordem surge pela “mão invisível” dos desejos que as pessoas têm de se relacionarem com os seus vizinhos. É isso o que produz cidades como Veneza e Paris, onde mesmo os mais grandiosos monumentos – San Marco, Notre Dame, a praça Vendôme, a Scuola di San Rocco – confortam os olhos e irradiam um sentido de pertença. No passado, os gênios faziam o máximo para que houvesse harmonia entre o seu projeto e a rua, o céu e o espaço público – como Michelangelo em São Pedro -, ou criavam, como fez Palladio, todo um vocabulário que fosse a língua franca de uma cidade em que todos pudessem sentir-se em casa.

Em contrapartida, a nova arquitetura do absurdo, exemplificada pelo insanamente dispendioso e bombástico Museu Guggenheim de Gehry em Bilbao, é projetada para desafiar a ordem dos arredores, para destacar-se como a obra de um artista inspirado que não constrói para as pessoas, mas “esculpe o espaço” em função das suas próprias finalidades expressivas. Silber não esconde a sua ira perante esse tipo de presunção e usa palavras duras e impactantes para falar do Stata Center do MIT projetado por Gehry, um edifício que, precisamente por pretender ridicularizar os velhos conceitos de paredes e janelas, já está cheio de vazamentos e rachaduras nas junções. A denúncia feroz de Silber detalha todas as deficiências do prédio, incluídos os custos muito maiores do que o orçamento inicial e os gastos necessários para a manutenção.

Mas a crítica mais forte é, de longe, a que evoca a figura de Le Corbusier – que, como Gehry, tinha a mesma concepção apriorística da construção e também se via a si próprio como um gênio revolucionário. Uma vez que o Stata Center devia abrigar todos os pesquisadores altamente qualificados que o MIT vai colecionando, Gehry decidiu projetar um interior que os encorajasse a interagir, a compartilhar idéias, a amplificar a criatividade mútua, permitindo-lhes passar as idéias de sala em sala como se fossem bolas de futebol. Livrou-se assim das paredes internas, tornou transparentes todas as divisões e expôs tudo em espaços abertos, desagradáveis e vazios por causa das cores infantis de supermercado que gritam pelos corredores abertos. Esse tipo de apriorismo da parte de um arquiteto que jamais se deu ao trabalho de observar outros membros da sua espécie, lembra os projetos de Le Corbusier para um hospital em Veneza, no qual não devia haver janelas e todas as portas se abririam para dentro, o que fomentaria a absoluta tranqüilidade de que nasce (segundo o arquiteto) a convalescença. Na vida real, porém, pesquisadores precisam de paredes, privacidade e solidão, se queremos que algum dia produzam idéias que possam passar para os seus colegas, assim como os doentes precisam de luz, ar e contato com a vida exterior, se queremos que melhorem.

São convincentes as críticas que Silber faz a Gehry e Libeskind, e ainda mais a sua rejeição absoluta de Josep Lluís Sert, ex-decano da Harvard Design School, clone de Walter Gropius e seguidor de Le Corbusier, que atulhou Boston e Cambridge dos seus grotescos e desagradáveis monumentos a si mesmo e destruiu a Universidade de Boston com a repulsiva torre da Faculdade de Direito. O que, diga-se de passagem, me levou a perguntar por que Silber não a mandou demolir quando foi reitor de Boston, pois, embora a demolição de um edifício modernista seja cara, os gastos logo se recuperam com os reduzidos custos de manutenção de um edifício tradicional edificado em sua substituição. Por animador que seja o livro de Silber, mais animadora e ainda mais necessária para o ambiente cultural dos Estados Unidos de hoje seria a visão de uma “obra-prima” modernista sendo demolida impunemente – e não é que o reitor Silber alguma vez tenha deixado de fazer alguma coisa por saber que encontraria oposição. Hoje, há poucas pessoas que teriam a coragem de fazer aquilo de que o futuro da Universidade de Boston tanto precisa: eliminar do seu pequeno câmpus qualquer traço de Sert, de modo que a Faculdade de Direito possa abrigar-se num prédio realmente conforme com a lei.

Os desastres que Silber relata aconteceram em parte porque, como ele aponta, a educação disciplinada que seu pai lhe exigiu foi deliberadamente destruída. Poucas escolas de arquitetura ensinam hoje os seus alunos a desenhar paisagens urbanas, fachadas ou figuras humanas; poucas ensinam os alunos a criar composições valendo-se das regras clássicas ou desenhar fenômenos profundamente significativos e transitórios, como a incidência da luz num capitel coríntio – técnicas necessárias que treinam a mão e o olho e que ensinam os arquitetos a prestar atenção em algo mais interessante que eles próprios. A Engenharia e o desenho técnico tomaram o lugar de tudo isso, e o resto não passa dehype – blablablá desconstrucionista projetado para vender qualquer tipo de escultura espacial que você seja capaz de inventar.

Mas qual seria a alternativa? Nathan Glazer afirma no seu livro From a Cause to a Style que as limitações da arquitetura moderna tornam quase impossível para os arquitetos comportar-se como os seus predecessores, que adornavam edifícios com alguma reminiscência eclética do estilo gótico ou clássico, revestiam estruturas de ferro com pedras talhadas e coroavam as fachadas com uma cornija vignolesca em zinco [2]. O que antes era uma solução barata para a demanda pública por ornamento e ordem tornou-se de um custo proibitivo. As maneiras antigas de construir já não são financeiramente viáveis agora que o espaço é limitado, a mão-de-obra especializada é rara e a engenharia de proporções elefantinas é tecnicamente possível e relativamente barata.

Glazer é um sociólogo que dedicou à arquitetura e aos seus efeitos sociais uma atenção considerável ao longo dos anos; o seu livro reúne ensaios bem escritos que relatam a sua desilusão crescente com os estilos e arquétipos modernistas. Como muitos socialistas bem-intencionados (coisa que ele era na época), Glazer em princípio foi um entusiasta da mentalidade planificadora que fincou raízes na Grã-Bretanha do pós-guerra e que procurou varrer os cortiços superlotados e insalubres, substituindo-os por torres higiênicas cercadas de espaços onde a população pudesse desfrutar de luz e ar. Essa receita para melhorar a situação da classe trabalhadora das cidades foi mais influenciada por Gropius e a Bauhaus do que por Le Corbusier. Coincidia com o programa socialista, segundo o qual a habitação era responsabilidade do Estado, todos os arquitetos da época tendiam a endossá-la, e parecia oferecer vantagens insuperáveis em comparação com a receita antiga – que em todo o caso era antes um subproduto da liberdade do que uma escolha consciente -, segundo a qual as casas deviam ficar uma ao lado da outra ao longo da mesma rua.

Contudo, Glazer chama a atenção para o fato de a principal oposição ao projeto modernista de habitação não ter vindo dos críticos, mas das próprias pessoas a que esses projetos eram destinados. Para a surpresa dos planejadores, a população resistiu à tentativa de demolir as suas ruas e de eliminar as doenças familiares e domesticadas que grassavam nos seus quintais atulhados. As pessoas não gostavam nada de viver dependuradas no ar, nem de olhar por uma janela e não ver coisa alguma; queriam a vida da rua, queriam sentir a vida ao seu redor e ao mesmo tempo saber que podiam trancá-la do lado de fora ou deixá-la entrar conforme quisessem. Queriam ter os vizinhos ao lado, não acima ou abaixo. E a maioria delas queria uma casa própria, não uma que fosse propriedade da prefeitura e que depois não pudesse ser transmitida  como herança para os filhos. A tentativa de “bauhausizar” a classe operária foi, portanto, rejeitada pelos próprios operários, que nesse caso como em tantos outros se recusaram a fazer o que os socialistas lhes ordenavam até serem coagidos a fazê-lo pelo Estado.

Assim como Silber, Glazer tem um resto de simpatia pelo modernismo, apesar de, também como Silber, reconhecer que os arquitetos se tornaram individualistas, excêntricos e auto-referentes por causa da suposta competência que o modernismo lhes confere. Os arquitetos-superstars não agradam mais a um que ao outro, e Glazer tem sábias palavras sobre o estrago que o egoísmo arquitetônico é capaz de fazer no entramado de uma cidade, particularmente nos monumentos públicos, em que a população deseja enxergar o “nós” e não o “eu”. Apesar de simpatizar com as abrangentes críticas que o Príncipe de Gales [3] tem feito aos últimos cinqüenta anos de urbanização, Glazer reluta em defender o tipo de retorno aos princípios clássicos proposto por Leon Krier, arquiteto do Príncipe em Poundbury [4]. Glazer procura entender o descontentamento público com os edifícios modernistas, freqüentemente vistos como ofensas à cidade. A alternativa, diz ele, não é nem Levittown [5] nem Poundbury, mas algo que ainda está por surgir, não se sabe como, da crescente percepção pública de que nem tudo está bem nas nossas cidades e de que muito daquilo que perdemos era melhor.

É aqui que entra Nikos Salingaros [6]. A arquitetura, afirma ele, é governada por princípios universais e intuitivos exemplificados em todos os estilos bem-sucedidos e em todas as civilizações que deixaram a sua existência plasmada em construções. A própria vida segue esses princípios e controla o processo que, num organismo complexo, liga uma parte a outra e cada parte com o todo. Reconhecemos intuitivamente a autoridade desses princípios porque correspondem aos nossos processos vitais internos; sentimo-nos à vontade em edifícios que os seguem e desconfortáveis em edifícios que não o fazem. Os contornos, as escalas, os materiais e as superfícies uniformes dos prédios modernos desprezam deliberadamente esses princípios, o que basta para explicar os sentimentos de hostilidade que provocam. A solução não está em retornar aos estilos clássicos (embora Salingaros, ao contrário da maioria dos críticos de arquitetura, não tenha uma aversão puritana a isso); está em retornar aos primeiros princípios e construir dentro dos seus limites, como o fez Gaudí em Barcelona.

Salingaros não é o primeiro a acreditar que os princípios arquitetônicos podem ser expressos com um rigor quase matemático. Neste sentido, reconhece explicitamente a sua dívida para com Christopher Alexander, arquiteto e teórico austríaco naturalizado inglês que hoje leciona em Berkeley e há décadas tem proposto consistentemente a mesma idéia central. Há um modo atemporal de construir, diz ele. Tem milhares de anos e continua a ser hoje o mesmo do passado. Os grandes edifícios tradicionais do passado, os vilarejos, as tendas e os templos em que as pessoas se sentem em casa sempre foram feitos por indivíduos que estavam muito próximos do núcleo central desse modo de construção. Quando não é seguido, torna-se impossível construir edifícios ou cidades espetaculares, lugares belos, lugares onde uma pessoa pode sentir-se ela mesma, pode sentir-se viva. E, como veremos, esse caminho conduz quem quer que queira segui-lo a construções cuja forma é tão antiga como a das árvores e das montanhas, como a forma dos nossos rostos.

Alexander apóia essa tese de vastas repercussões (proposta em The Timeless Way of Building [7]) numa espécie de gramática gerativa das formas arquitetônicas. Lança mão de um conjunto de regras que, se forem postas em prática pelo arquiteto, produzem resultados capazes de ser entendidos pelo usuário normal dessa construção, o qual reconstrói inconscientemente o processo que lhe deu origem.

Salingaros, por sua vez, é professor de Física Matemática na Universidade do Texas em San Antonio. É também um intelectual consciencioso e preocupado com a sociedade, e pensa que os erros encerrados no vernáculo modernista representam uma séria ameaça à possibilidade de habitar nas nossas cidades. Por toda a parte do mundo moderno (e não por último em San Antonio) podemos encontrar evidências disso: com exceção das cidades unificadas pelo emaranhado das suas ruas e quarteirões ancestrais, como as italianas e francesas, ou daquelas que não se desintegram graças a essa espécie de entusiasmo centrípeto que cria o núcleo fervente de São Francisco e Nova York, as cidades vêm-se tornando cada vez mais alheias aos seus moradores, que vêm fugindo delas aos magotes. Ora, desde sempre a cidade é o centro da vida social e criativa, e se fugimos dela acabamos por refugiar-nos numa solidão estéril, como a descrita por James Howard Kunstler (The Geography of Nowhere, 1993 [8])
e Robert Putnam (Bowling Alone, 2000 [9]). Para Salingaros, portanto, nenhuma causa é mais importante que o retorno à ordem natural da arquitetura, que permitirá que voltemos a sentir-nos em casa em um ambiente urbano.

O segredo dessa ordem natural encontra-se no conceito de escala. Os edifícios bem realizados não tiveram o seu tamanho e a sua forma escolhidos, por assim dizer, numa só penada, como se tivessem sido moldados previamente em fôrmas – embora seja precisamente isso o que acontece no caso dos monstros de concreto armado que assolam as nossas cidades. Os edifícios bem realizados atingem o seu tamanho e a sua forma, afirma Salingaros, através de uma hierarquia de escalas que nos permite “ler” as suas dimensões maiores como amplificações das menores. O arquiteto ascende da escala menor à maior por meio da repetida aplicação de uma “regra escalar” que exige que a passagem de um nível para o imediatamente superior se faça através da multiplicação por uma constante.

A escolha dessa constante não é arbitrária, porque a própria vida parece favorecer –
nas estruturas fractais dos flocos de neve e dos cristais, nas camadas sobrepostas de tecidos das folhas ou de células – um número em torno de três. É a “regra do um terço” que, segundo Salingaros, foi aplicada pelos grandes arquitetos ao longo da história – por exemplo, ao estabelecer que a largura de uma janela deveria corresponder a um terço da largura da parede em que essa janela se encontra. No fim, por razões em parte matemáticas e em parte intuitivas, Salingaros opta pela constante e (aproximadamente 2,7) como apropriada para produzir uma ordem inteligível em qualquer edificação, permitindo que os todos maiores sejam compreendidos como expressão natural da ordem contida nas suas partes. Qualquer número menor do que esse produziria uma superfície tensa e congestionada, em que não se consegue distinguir claramente as ordens maiores das menores; e qualquer número muito maior do que esse produziria vastos vazios, como os que observamos nas lisas muralhas de vidro que são o pano de fundo cada vez mais habitual da vida urbana.

Salingaros desenvolve essa idéia, e muitas outras, de maneira instigante, argumentando por exemplo que o modernismo já começou errado ao aplicar a famosa rejeição dos ornamentos por Adolf Loos; essa rejeição deixou sem definir o ponto mais baixo da hierarquia escalar, de modo que os níveis superiores ficaram soltos e flutuantes. Também o uso de materiais pré-formatados ou polidos, que não possuem uma estrutura interna fractal, é em ampla medida responsável pela ausência de vida dos edifícios modernos, cujas superfícies carecem daquelas texturas que percebemos na pele, na casca das árvores ou nos paredões de rocha, texturas que se prestam a ser analisadas de acordo com a progressão escalar. De maneira similar, os limites finos que definem os edifícios modernos – pontas de vigas de aço, troncos abruptos de pilotis, encaixes metálicos de janelas que não podem ser abertas ou beiradas invisíveis de portas giratórias -, contribuem todos para deixar os limites indistintos, artificiais e inflexíveis, além de caros e geralmente fabricados fora do local de construção, sem referência às condições e irregularidades locais (a noção de “limites grossos x limites finos” é de Alexander, a quem Salingaros remete generosamente em todo o livro).

Salingaros vale-se da ciência cognitiva e da psicologia evolutiva a fim de mostrar que os modos tradicionais de construção obedecem a leis impostas pelas nossas faculdades cognitivas. A arquitetura sem detalhes significativos ou texturas granulares provoca um estranhamento em nós porque frustra as capacidades visuais e cognitivas com que exploramos o nosso ambiente. Ao mesmo tempo, tal como Alexander, Salingaros considera que as suas teorias revelam analogias profundas e perceptíveis entre arquitetura e vida. Muitas das maneiras pelas quais as células arquitetônicas se desdobram em edifícios imitam as formas de crescimento das plantas e dos animais; e ao tentar estabelecer uma teoria geral desse tipo de desdobramento, Salingaros retoma um tema que o Príncipe de Gales já havia abordado nos seus escritos.

Numa série de ensaios eruditos e tocantes ao mesmo tempo (Anti-architecture and Deconstruction), Salingaros e vários colegas próximos defendem uma compreensão da arquitetura como pano de fundo da comunidade humana, como a preparação do local onde moramos [10]. Salingaros atribui o modernismo radical dos arquitetos-superstars menos ao egoísmo que a um desejo niilista de negar o caráter gregário das comunidades e de infestar o nosso entorno com objetos que nos impedem de ter conforto. Para ele, o problema não está no culto ao gênio, mas sim no espírito desconstrucionista que se espalhou pelo mundo intelectual como um vírus que desfaz todas as maneiras normais de pensar. Arquitetos como Gehry e Libeskind não constroem para a cidade, mas contra ela – e o mesmo vale para os arquitetos-superstars desde o momento em que Piano e Rogers desferiram o golpe decisivo contra Paris com o Centro Pompidou. Num vívido ensaio sobre Libeskind, Salingaros vai ainda mais longe e diagnostica a desordem entrópica dos projetos de Libeskind como “geometria da morte”: quando aparecem nas nossas cidades, fazem-no como uma espécie de maldição, como estruturas vampirescas que se alimentam da vida do seu entorno.

É impossível resumir num espaço pequeno todos os argumentos que Salingaros aduz para mostrar o que houve de errado e como deve ser retificado. Nem sempre o autor convence – há nele um quê de apriorismo só redimido parcialmente pelo fato de reconhecer que as suas teorias devem fundamentar-se na nossa intuição visual, não em provas matemáticas. No entanto, nenhum leitor de A Theory of Architecture conseguirá ignorar a seriedade de tom e a profundidade de observação plasmadas no texto, nem deixará de apreciar os muitos insights tanto sobre a beleza dos antigos estilos populares como sobre o vazio ofensivo do estilo modernista.

É um sintoma da desesperadora situação do nosso ensino de arquitetura que esse livro e a compilação de ensaios só possam ser encontrados graças a uma obscura editora alemã (distribuída pela ISI), ao passo que os escritos de Le Corbusier e Sigfried Giedion são publicados por editoras universitárias e considerados de leitura obrigatória em praticamente todos os cursos de arquitetura de todas as faculdades. Um dia, Salingaros talvez venha a tornar-se leitura obrigatória dos arquitetos. Se isso acontecer, pode ser que surja uma nova “ortodoxia”, uma ortodoxia na qual a humildade, a ordem e a preocupação social – as virtudes expurgadas dessa disciplina pelos arquitetos-superstars – venham a ser norma. E é possível que, quando isso acontecer, não precisemos de um John Silber para ordenar a demolição de todos e cada um dos prédios de Sert.

 

Notas

[1] John Silber, Architecture of the Absurd. How “Genius” Disfigured a Practical Art. Quantuck Lane, 2007, 128 págs.

[2] Nathan Glazer, From a Cause to a Style: Modernist Architecture’s Encounter with the American City. Prince-ton: Princeton University Press, 2007, 310 págs.

[3] Charles, filho de Elizabeth II, publicou um livro e fez um documentário chamados A Vision for Britain, em que advoga por um urbanismo tradicional, pela retomada de uma escala mais humana nos edifícios e pela restauração das construções históricas, integradas ao desenvolvimento urbano. Segue em geral as idéias de Christopher Alexander e Leon Krier (N. do T.).

[4] Poundbury é um vilarejo experimental criado nos arredores de Dorchester com base nas idéias urbanísticas do Príncipe Charles (N. do T.).

[5] Levittown é um subúrbio de Nova York, o primeiro inteiramente planejado nos EUA, que serviu de modelo para bairros posteriores desse tipo. Muitas das características das casas particulares modernas surgiram ali (N. do T.).

[6] Nikos Salingaros, A Theory of Architecture. ISI Books, 2007, 278 págs.

[7] Christopher Alexander, The Timeless Way of Building, Oxford University Press, 1979, 552 págs. (N. do T.).

[8] James Howard Kunstler, The Geography of Nowhere: The Rise and Decline of America’s Man-Made Landscape. Free Press, 1993, 304 págs. (N. do T.).

[9] Robert Putnam, Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community. Simon & Schuster, 2000, 544 págs. (N. do T.).

[10] Nikos A. Salingaros, Anti-architecture and Deconstruction. ISI Books, 2007, 210 págs. (N.do T.).

 

Artigo traduzido da revista The New Criterion, vol. 26, fevereiro de 2008, página 4. Copyright © Roger Scruton, 2008. Todos os direitos desta tradução reservados a Dicta&Contradicta.

Roger Scruton , PhD em Filosofia por Cambridge com uma tese sobre Estética, interessa-se especialmente por arquitetura. Atualmente, leciona Filosofia no Institute for the Psychological Sciences, tanto em Washington como em Oxford. Além de colaborar com diversas revistas, publicou recentemente, entre outros, os livros A Political Philosophy(Continuum Books, 2006), The West and the Rest (ISI Books, 2001), Culture Counts: Faith and Healing in a World Besieged (Encounter Books 2007) e a terceira edição de A Dictionary of Political Thought (Palgrave Macmillan, 2007).

Tradução de Cristian Clemente, licenciado em Letras pela FFLCH-USP.

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta.