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Educar as emoções – por Pablo González Blasco

Cinema | 03/12/2018 | | IFE BRASIL

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Foto por Dan Bøțan no Unsplash.

 

Educar com o Cinema é tema que me tem acompanhado nos últimos anos. Tive ocasião de escrever artigos, publicar livros, dar conferências em congressos internacionais, apresentar-me em programas de TV. E, em quase todos os cenários, a pergunta que surge é similar: “Você não é médico? E isto do cinema, como se encaixa na sua vida?”. A pergunta procede e, até tal ponto, que mesmo quando não a fazem eu mesmo a coloco e respondo. Afinal, é necessário justificar o tempo que se dedica a um trabalho que já ultrapassou de longe as proporções de um simples hobby.

Dizer que os médicos de hoje estão munidos de excelente preparação técnica, não é novidade. Como, infelizmente, também não o é afirmar que carecem, na maioria, da sensibilidade suficiente para lidar com o ser humano doente, que sofre e se confia aos seus cuidados. Fala-se em humanizar a medicina, quando na verdade o que se gostaria é de injetar doses de humanidade nos médicos para ver se o paciente consegue, de algum modo, se fazer entender pelo profissional que está destinado a cuidá-lo e, muito absorvido pela técnica moderna –e necessária- parece esquecer o paciente, ocupando-se apenas com a doença.

Para um professor de medicina –como é o meu caso- trazer o médico de volta ao que realmente importa, o paciente, é um desafio diário e uma necessidade na formação dos jovens profissionais. E os que levamos algumas horas de vôo nesta empreitada formativa sabemos que não é tarefa fácil lembrar aquilo que é óbvio …..e que se esquece: a pessoa que sofre. Recursos assim chamados “humanizantes” não passam de remédios paliativos, que têm tanto de superficial como de ineficaz. Cursos de ética, aulas de psicologia e de relacionamento, grupos de estudo, não conseguem a pesar da imensa boa vontade dos organizadores, o seu objetivo. E o divórcio entre o médico que se diverte com a técnica, e o paciente que caminha em desamparo com a sua moléstia continua.

O Cinema tem se mostrado um recurso eficaz para promover a reflexão, para fazer as pessoas pensar. Estudantes e médicos, profissionais da saúde, são convidados através desta metodologia a refletir sobre as suas atitudes. E o resultado é que a reflexão surge como o verdadeiro núcleo do processo humanizante. De modo talvez excessivamente simples, pode se dizer que humanizar é, em primeiro lugar, lembrar ao médico que ele, médico, é um ser humano, e que o paciente também o é. Algo evidente embora esquecido com muita freqüência. E a reflexão traz isto à tona com vigor. Se o cinema nos ajuda a pensar e a refletir sobre as coisas essenciais da vida, converte-se em recurso educacional de valor para formar pessoas e, naturalmente, para melhorar a formação dos médicos. Aqui está a resposta à pergunta que costuma inaugurar os vários cenários educacionais aos quais sou convocado.

Mas isto que funciona para os médicos, não funcionaria para qualquer pessoa? Evidentemente que sim. Daí que o que se iniciou como uma necessidade docente específica –trazer os estudantes de medicina para o lado humano do enfermo- amplia suas possibilidades educacionais com enorme espectro. A razão é simples: O universo da afetividade – sentimentos, emoções e paixões – vêm assumindo um crescente papel de protagonista no mundo da educação. As emoções do aluno não podem ser ignoradas neste processo. Cabe ao educador contemplá-las e utilizá-las como verdadeira porta de entrada para compreender o universo do estudante. Formar o ser humano requer educar sua afetividade, trabalhar com as emoções. Como fazer isto de modo ágil, moderno, compreensível, eficaz? O Cinema mostra-se particularmente útil na educação afetiva, por sintonizar com o universo do estudante onde impera uma cultura da emoção e da imagem. Educar as atitudes supõe mais do que oferecer conceitos teóricos ou simples treinos; implica promover a reflexão que facilita a descoberta de si mesmo, e permite extrair do núcleo íntimo do ser humano um compromisso por melhorar. Professores, estudantes, líderes empresariais, educadores familiares agentes sociais, recursos humanos e todos os que têm a gestão de pessoas como objetivo profissional encontrarão no meu mais recente livro “A Educação da Afetividade através do Cinema” uma metodologia simples, acessível e divertida para aperfeiçoar seu desempenho. Onde há pessoas querendo melhorar e alguém querendo educar o cinema tem vez.

A abordagem pedagógica clássica costuma dividir os objetivos educacionais em três grandes categorias: assim os cognitivos, os psicodinâmicos e os afetivos, implicando respectivamente a aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento de habilidades e a educação da afetividade. Enquanto os dois primeiros são de fácil avaliação ou, pelo menos, passíveis de uma avaliação objetiva –através de provas, testes e desempenho de aptidões- avaliar a qualidade da educação afetiva é tema que entranha muito maior complexidade. Não há como medir com “objetividade” o crescimento ou a correta orientação da dinâmica afetiva do educando; e como sempre acontece com aquilo que é difícil medir, corre o risco de ser esquecido, ou colocado no âmbito da pura arbitrariedade. Em outras palavras: cada educador avalia a educação afetiva como quer, ou como pode, ou simplesmente deixa fazê-lo. Isto significa que, na prática, muitas vezes nem é levada em consideração ao estabelecer os objetivos educacionais. Pretender uma avaliação objetiva –análoga á praticada com os conhecimentos técnicos de física ou de história e geografia, por colocar um exemplo- é desconhecer a natureza do fenômeno, querer juntar litros com metros, ou medir o amor por quilogramas. A dificuldade na medida, na avaliação, é porque talvez não se trate tanto de medir como de fomentar e promover a afetividade.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Texto publicado no site de Pablo González Blasco, em 25/08/2007, link: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2007/08/25/educar-as-emocoes/.

[FILME] “Casablanca” (por Pablo González)

Cinema | 19/11/2018 | | IFE BRASIL

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(Casablanca). Diretor: Michael Curtiz. Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Paul Henreid, Claude Reins.USA. l943. l02 min.

A sessão mensal do Cinema para Todos pedia um clássico. E um clássico é muitas vezes aquele filme do qual todos falam, muitos citam diálogos e até alguma cena consagrada…..mas nunca viram o filme inteiro. Era preciso preencher essa lacuna cultural. Colocamos Casablanca na tela, a pipoca por perto, e deixamos rodar.

Quem não conhece Casablanca? Em conversas de cinema, mesmo entre os pouco versados, é passagem obrigatória. E os afiados na arte fílmica citam de cor os diálogos, e até colocam na boca de Bogart palavras que nunca chegou a pronunciar. Os clássicos têm isso; manipulação indiscriminada, direitos autorais vencidos. São como patrimônio da humanidade. “As times goes by” -o tema musical que ninguém toca como Sam- envolve em papel de presente o celuloide, tornando-o apetitoso. A voz arranhada de Sam golpeia as lembranças de Bogart que tem cheiro de Paris; os dedos arrancam das notas a melodia, e dos espectadores todo um universo de saudades na tentativa de congelar momentos passados de tempos melhores. Os tempos de cada um, as recordações boas que todos guardamos no coração.

Por isso, falar de Casablanca é sentir-se à vontade em tema que todos conhecem. Não há o perigo de “contar o filme” quando passeamos pelas cenas, recreando-nos mais uma vez, em tudo o que nos é grato. Quando se assiste a primeira vez, presta-se atenção no argumento. Na segunda, são os diálogos -riquíssimos, deliciosamente sutis- os que chamam a atenção. Na primeira passada fugiram à nossa observação, pois a agilidade das cenas é grande, e o conteúdo denso. Mas é depois, nas sucessivas apreciações, quando reparamos que cada cena, cada quadro, é simplesmente redondo, acabado. Passamos a ver o filme como um conjunto de miniaturas preciosas, onde vamos nos detendo, ganhando intimidade com ele, como um álbum de família. É o momento da sintonia, de entrar em ressonância com o filme, vivê-lo junto com as personagens numa aventura que é desabrochar de emoções ocultas.

Todos conhecem Casablanca, mas poucos sabem explicar o magnetismo que encerra. Lembro de um fato esclarecedor. Foi no início da década dos 80, quando o Vídeo Cassete aparecia no mercado brasileiro, e os cinéfilos corriam à procura dos clássicos, daqueles que não passavam na TV, ou pelo menos em horário compatível com o dos cidadãos comuns, que acordam cedo e trabalham ganhando o leite das crianças. Naquela época a pirataria de fitas de vídeo era a praxe, sem selos de qualidade e toda essa regulamentação que vivemos hoje.

Vamos ao fato. O local: um vídeo clube nos Jardins. Os protagonistas: um rapaz jovem, novo cliente, fascinado pelas descobertas dos clássicos da sétima arte e leigo no assunto; uma moça, gerente do clube; um outro cliente que, passivo, observa o diálogo entre os dois primeiros. “Formidável este Casablanca que você me recomendou” – diz o rapaz, enquanto devolve a fita. “Naturalmente -exclama a moça- trata-se de um clássico. Pena que tenha esse final. Deveriam ter dado um jeitinho…”. “É mesmo: se não fosse esse final…” – acrescenta o jovem. O terceiro personagem entra em cena: “Minha filha, não seja superficial. O filme é famoso pelo final que tem. Você não repara que um final diferente lhe tiraria toda a força? Murcharia tudo, querida!” Perplexidade. O que murchou foi a conversa, que se encerrou ali mesmo.

Assisti Casablanca muitas vezes. As suficientes para perder a conta e conhecer de cor a maioria dos diálogos. O desfecho final, na clássica cena do aeroporto, é magistral. O magnetismo de que falávamos cativou os cineastas e os amantes do cinema que gostam, vez por outra, de saborear cada um dos fotogramas, envolvidos na neblina do aeroporto. A sequência temperada com duas lágrimas escorrendo na sombra do chapéu de Ilsa, inclinado com charme.  E tudo isto, sem saberem explicar o porquê. São os valores que o filme destila os que lhe conferem toda a força e encanto. Como o vinho, melhor a cada ano que passa.

Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, Rick e Ilsa, acompanham o desenrolar do cinema neste século, atrás das cortinas do escritório de Rick. Um cinema que cada vez mais carece de valores, órfão de romantismo. Ou talvez, como na janela de “La Belle Aurore”, quando Paris é invadido, olham-nos com receio, surpreendidos destes novos invasores que chamam de cinema a qualquer metro de celuloide impresso. Algo grave está para acontecer, pensam. E como toda resposta: “Beije-me, beije-me como se fosse a última vez”. A taça de Champagne cai. A tinta do bilhete escorre com a chuva na estação de Paris. Definitivamente, é preciso rever Casablanca, de vez em sempre, para que o coração do cinema não perca o seu marca passo.

Ingrid Bergman, com 28 anos, sempre elegante, com postura e classe, sóbria nos modos, cheia de dramatismo quando necessário. Bogart vive o papel com credibilidade porque é ele mesmo, como sempre. Cínico, indiferente, com metódico desprezo por tudo e por todos. Cercado de um ar “não partidário”, como recurso para encobrir os sentimentos nobres de fundo. Comenta-se nos bastidores que o final de filme foi escolhido por ele: não surpreende. É bem o seu estilo, auto desprezo, querendo ser frio, mas não consegue ocultar que tem coração e grande.

Não poderiam ser outros os atores deste clássico embora -sempre conversa de bastidores- inicialmente, nomes diferentes pairavam entre os candidatos. Hoje seria difícil imaginar quem encaixaria melhor. Michael Curtiz, húngaro de nascimento, passaria a posteridade mesmo que tivesse dirigido apenas Casablanca. As personagens secundárias estão maravilhosamente cuidadas, e aqui vai mais um mérito para o diretor deste filme antológico. Os valores de fundo atuam como arcabouço para toda a tecelagem das cenas. São estes valores, os que o público, sem perceber, vai descobrindo cada vez que assiste, entrando em ressonância, identificando-se com eles.

Passeemos de novo pelas cenas. Estamos no quarto de Rick. Ilsa exige, revolver em mão, as carta de trânsito. “Dispare, me fará um favor”. É Rick falando. Ilsa titubeia, cede e cai nos braços de Rick. “Já não sei mais o que é direito. Você terá de pensar por nós dois. Por todos nós”. O público identifica-se com Ilsa que hesita. Está falando o sentimento.

Agora estamos no aeroporto. Rick pede ao inspetor Renault que preencha as cartas de trânsito. Ilsa vira-se surpresa: “Eu não entendo. Ontem à noite…” Rick fala com convicção: “Ontem à noite pensei muito e decidi que você vai com Lazlo nesse avião. Se fica talvez não se arrependa hoje, nem amanhã, mas algum dia acabaria fazendo-o e pelo  resto da sua vida”. É a lealdade, o sentido do dever, a nobreza do coração de Rick que deixa ir a mulher que admira, que respeita – sim, que ama!!- por sabê-la esposa de outro. Decisão impregnada de lealdade e bom senso que Bogart assina, sem dar-se importância, de modo característico: “Não quero parecer nobre; mas não é preciso muito para ver que os problemas de três pessoas não passam de um punhado de feijão neste mundo nosso”. Em tradução livre, é mais ou menos isso.

O sentimento se debate e o espectador com ele. Ilsa pede uma explicação que satisfaça o coração: “Mas…e nós?” E Rick: “Nos teremos sempre Paris”. Isto é, teremos sempre a lembrança do nosso ideal, de um amor nobre, claro, sem subterfúgios, livre de culpa. Ilsa vai-se consolada. E o espectador segura o coração -juiz cego- e assente para o que sabe ser correto.

É essa experiência de atravessar o dilema guiado apenas pelo coração, hesitando nos sentimentos de Ilsa até perder a noção da verdade -“não sei mais o que é direito; você terá de pensar por nós dois”- para depois ser confirmado na opção certa por Rick, uma vez e outra, o que me faz rever Casablanca sem enjoar. Rick, que pensou por eles dois, por nós todos, nos oferece a solução certa. O cínico, o indiferente, aquele que não sabíamos em que time jogava, mostra-nos que joga no nosso; ou melhor, que nós jogamos no dele, porque ele é indiscutivelmente o líder. Sentimos, com o inspetor Renault, que “é o começo de uma grande amizade”, com Rick, naturalmente.

A cena do aeroporto, que passei inúmeras vezes nas minhas aulas e conferências para ilustrar a necessidade da reflexão -alguém tem que pensar, e nos ajudar a pensar- teve muitos desdobramentos. Lembro de uma aluna, há muitos anos, que me disse: “O difícil, professor, é subir no avião. Ninguém pode subir por nós. E muitas vezes, sabemos que é o certo, mas custa, custa demais”. Quando apresentei a tese doutoral -sobre cinema e educação médica, que continha na capa uma foto de Casablanca- lembro que essa mesma aluna, me deu de presente um pequeno pôster com a cena do aeroporto. Não sei o que foi feito da aluna, perdi a pista, mas o pôster está lá na parede do nosso terraço.

Quem sabe revendo sempre Casablanca, os homens -os que fazem e os que assistem cinema- aprendam a degustar os valores impressos no filme. Repararíamos -entre muitos outros recados- que deixar-se levar apenas pelo sentimento é solução pouco madura, injusta com os semelhantes. Que o final feliz, o da vida de cada um, entranha decisões custosas que, como no filme, se lembram com carinho especial. E que deixar-se levar pelo que apetece, colocar a lealdade e o compromisso no arquivo morto, é saída fácil. Podemos até gostar “hoje, amanhã, mas algum dia…”

Se apesar de tudo, os homens do cinema são impermeáveis aos ideais nobres -razoes deste teor não convencem quem procura apenas lucro- revendo Casablanca aprenderão, no mínimo, a produzir um cinema de classe. Esse cinema que o público precisa, que o engrandece arrancando-o da mediocridade. Um cinema dedicado a ele, ao público, como somente Ilsa e Rick sabiam fazê-lo. Here’s looking at you kid, quer dizer, “pensando sempre em você”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em http://www.pablogonzalezblasco.com.br, em 28/05/2018.

 

9º Seminário IFE Campinas/ACL

Seminários IFE | 15/11/2018 | | IFE CAMPINAS

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MEDO E ESPERANÇA

Existe a possibilidade de superar os medos que nos dominam?

Seminário, 24 de Novembro de 2018, Sábado, 14h00, na ACL

 

A era dos medos

Henrique Elfes
Filósofo, professor, formado em Letras pela PUC-PR, palestrante, ensaísta, cofundador do IFE e da revista “Dicta&Contradicta”. Trabalha como editor em São Paulo e é coordenador-geral do Instituto de Formação e Educação (IFE).

15h40 – Coffee-break

Você tem medo de ter medo?

Cecília Prada
Jornalista profissional, Prêmio ESSO de Reportagem/1980 pela “Folha de São Paulo”. Ficcionista, com 4 prêmios literários, dramaturga, crítica literária e teatral, tradutora. Ex-diplomata de carreira e membro da ACL. Dentre outros, autora de “Entre o itinerário e o desejo” (2012) e “Profissionais da solidão” (2013).


Evento:

9º Seminário IFE Campinas/ACL

Local:
Academia Campinense de Letras
Rua Marechal Deodoro, 525, Centro, Campinas/SP

ENTRADA FRANCA. Convide familiares e amigos.

INSCRIÇÕES ATRAVÉS DO LINK: https://goo.gl/forms/un5wrEgZSsCk9SoA2

Organização e parceria:
IFE Campinas e Academia Campinense de Letras

 

Os maniqueísmos historiográficos e o debate em torno dos 130 anos de abolição (por Beatriz Piva Momesso)

História | 15/11/2018 | | IFE CAMPINAS

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Libertação dos Escravos, 1889, Pedro Américo.

 

“Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra.” Esta é uma das frases mais célebres do abolicionista Joaquim Nabuco, e em si mesma, tem poder explicativo. Talvez por essa constatação, ao fazermos memória dos 130 anos da Lei Áurea pensemos que ainda há um longo caminho a percorrer.  Sendo assim, ao olhar o passado como um espaço de nossa experiência presente, surgem perguntas sobre como se deu a abolição da escravidão no Brasil e quem foram os protagonistas dessa história.

Hoje em dia, no meio intelectual, predomina ainda o debate maniqueísta.  De um lado estão aqueles que obscurecem ou suprimem o papel dos escravos como agentes de sua própria libertação, do outro os que subestimam a importância da conjuntura internacional, da política de ações governamentais e das personagens imperiais no processo, sobretudo a atuação da Princesa Isabel. Tais posturas repercutem num embate que perpassa as arcadas acadêmicas e ecoa também entre os leigos e o público em geral.

Estudos das duas últimas décadas demonstraram que escravos não eram simplesmente peças de um sistema ou de um “modo de produção”.  Apesar dos sérios condicionamentos, eles exercitavam o livre arbítrio e agiam de modo a buscar a liberdade nas brechas do sistema. Há vários exemplos de trabalhos fundados em extenso material de pesquisa guardado em arquivos sobre esse procedimento, e não é difícil mencionar alguns deles.  O historiador João José Reis tratou com propriedade da dimensão da Revolta dos Malês, ocorrida em  1835 em Salvador. Um grande movimento de rebelião impartido pela associação de escravos e libertos em sua grande maioria originários do Golfo de Benin, no sudoeste da atual Nigéria.  Unidos pela religião islâmica e comunicando-se através do árabe, tentaram implantar uma república negra em certo paralelismo com os moldes da revolução no Haiti ocorrida décadas antes. Uma ameaça à ordem política local. A partir de 1871 com a Lei do Ventre, os escravos, sobretudo os que viviam na cidade, destacaram-se em seu protagonismo ao negociar a liberdade com seu senhor através do chamado “pecúlio”. Tratava-se de uma quantia que o escravo poderia acumular para comprar sua liberdade. Era fruto de parte do dinheiro obtido com o trabalho de venda de quitutes, temperos, refrescos nas ruas e de serviços de barbeiro. Muitos compraram assim sua alforria. Há inclusive o famoso e curioso caso citado pela historiadora Mary Karasch do astuto cativo no Rio de Janeiro que, durante o período em que juntava seu pecúlio, comprou outro escravo para assim acelerar o processo de compra da liberdade. Ao ver-se livre, gozava, ao mesmo tempo, de nova propriedade. Ao que se sabe, o pecúlio foi aceito pelos senhores a fim de impedir a fuga dos escravos.

No entanto, a própria conjuntura diplomática e o que alguns chamariam de “atuação da elite” tem lá seu peso na História.  Dom Pedro II deixou-se influenciar  diretamente pela grande potência do século XIX, a Inglaterra industrial.  O poderio inglês era nítido no Brasil desde a chegada da família real portuguesa, que, aliás, fugira de Napoleão Bonaparte escoltada pela esquadra inglesa. A Inglaterra, pasmem, foi pioneira na abolição do tráfico humano de africanos e da escravidão. Sobre o porquê disso, já antecipamos que há divergências que deixaremos para discutir em outra ocasião. De todos os modos, especialistas internacionais não se contentam mais com a explicação de que a escravidão emperrava os interesses capitalistas ingleses, já que escravo “não consumia”. O site The Aboltition Project evoca essa versão, através de fontes históricas. (http://abolition.e2bn.org/index.). Pelo contrário, o uso do trabalho escravo nas colônias britânicas ia ao encontro e complementava os exorbitantes lucros da indústria. Prova disse foram os esforços descomunais que um grupo liderado pelo político Wiliam Wilbforce teve que empreender, sobretudo no parlamento, em 25 de março de 1807, para abolir primeiramente o tráfico de escravos.  Deve-se ressaltar que desde 1792, Wilbforce vinha tentando incansavelmente e sem nenhum êxito aprovar projeto pelo fim daquele comércio na Câmara dos Comuns. Idealista incansável, espirituoso, filantropo e preocupado com a situação social de seu tempo de modo inédito para a época, o parlamentar conheceu Thomas Clarckson um intelectual de raízes cristãs quackers, que em 1785 em Cambridge venceu um concurso de ensaios, com um trabalho denominado na tradução ao português “É legal escravizar aquele que é inconsciente dessa condição?” Ao terminar o ensaio, Clarckson, que era muito místico, disse que por acreditar firmemente no conteúdo de sua obra tinha o dever em consciência de dedicar todas sua vida para a abolição do tráfico de escravos.  E assim o fez. Primeiro publicou o escrito em forma de panfleto o que garantiria uma rápida e popular divulgação. Formou junto com outros quackers o Comitte for the Abolition of Slave Trade, que não obteve êxito político até a parceria com Wilbforce, no final do século XVIII. O Comitê divulgou aos quatro ventos a história de vida de Olaudah Equiano, ex escravo que comprou a liberdade em 1763 e escreveu uma autobiografia contando os horrores da escravidão. Somente em 26 de julho de 1833, três dias antes da morte de Wiliam Wilbforce, os ingleses aprovaram com muito custo o projeto de abolição da escravidão mediante indenização paga aos senhores.

Essa corrente de ideias inglesas de teor mais humanístico e cristão influenciou também a luta pelo fim da escravidão através da via parlamentar no Brasil. Já no final da década de 1860, o jovem Joaquim Nabuco traduzia para seu pai Nabuco de Araújo, ministro da justiça e relator da Lei pela Emancipação Gradativa ou Lei do Ventre Livre, jornais ingleses que tratavam da luta na Inglaterra e no mundo pelo fim da escravidão, entre eles o Anti-Slavery Reporter. Em 1868, Nabuco de Araújo, então, incluiu pela primeira vez num programa de partido brasileiro a proposta da emancipação gradativa.

O Império temia ficar excluído das redes de relações diplomáticas europeias, já que a partir de finais da década de 1860, as chamadas “nações civilizadas” viam como maus olhos países que tinham escravos como principal força de trabalho. Era como se vivessem uma fase superada já há tempos pelos membros do velho continente. Foi a partir dessa preocupação que em 1867, D. Pedro II enfatizou, em uma de suas Falas ao Trono, a necessidade de pensar a substituição do “elemento servil”, eufeminismo usado para evitar usar expressões que evocassem a barbárie (escravo.)

Durante a viagem do pai a Europa, a Princesa Regente Isabel Cristina, provavelmente de comum acordo com o monarca, aboliu a escravidão pela pena.  A participação do arcebispo Dom José Pereira da Silva Barros, capelão-mor de dom Pedro II, conhecido como “o bispo abolicionista” parece ter provocado forte influência na princesa, conforme atesta partes do seu diário e de uma de suas missivas publicada na Revista do Instituto Archeológico e Geográfico de Pernambuco em 1891.     

Alguns historiadores viram uma atitude oportunista de Isabel, já que, afirmaram eles, a escravidão já estava falida, restando pouca mão de obra escrava ativa em 1888. No entanto, há pelo menos dois fatores que podem levar inverter a reflexão.  Em primeiro lugar é evidente que através desse ato Isabel colocou em risco a sobrevivência do sistema imperial. Não o faria se não fosse por convicção. A famosa máxima do Barão de Cotegipe por ocasião da proclamação da Lei Áurea atesta o fato. Dirigindo-se a princesa afirmou: “Libertaste uma raça, mas perdeste a coroa.” De fato no ano seguinte, o Império foi abaixo pelo golpe republicano de 1889.

Em segundo lugar, quase todos possuíam escravos no Brasil. Apesar da recente  substituição da força de trabalho escravo pelo assalariado, os grupos de proprietários do Sudeste sentiram-se ameaçados pela nova lei. Segundo o mesmo Joaquim Nabuco em Minha formação, o grupo de fazendeiros do Vale do Paraíba chegou  ameaçar apoiar à República caso a lei viesse à tona. Ademais, a adesão explícita da princesa ao catolicismo romano incomodava as elites liberais.

Sendo assim, propõe-se a consideração de um equilíbrio historiográfico. Os africanos e seus descendentes escravos poderiam não ter a liberdade de ir e vir, mas conservavam a liberdade interior da escolha e empreenderam importantes ações em busca da abolição da escravidão. O livre – arbítrio nunca foi atributo apenas dos senhores ou dos escravos, é dom estrutural da humanidade. Percorrer o caminho até o fim da escravidão foi tarefa desempenhada pelos próprios escravos, mas também o foi pelos personagens da monarquia por aqueles pertencentes a extratos intelectuais ou parlamentares,  influenciados pelas ideias e pela conjuntura estrangeira. O passo foi dado em 1888, embora ainda há muito o que fazer para acabar com a “obra de escravidão”.

A riqueza da História reside em superar a esfera de heróis e vilões e adentrar à investigação meticulosa e profunda sobre os motivos pelos quais se moviam cada um desses personagens, que a nossos olhos podem  parecer mais ou menos nobres. Tal ação exige rigor na investigação e a busca de informações em fontes primárias que nem sempre reafirmam convicções políticas pessoais do historiador e, por ora, podem até contrariá-las. Se por um lado, a hipóteses iniciais instauradas no início da pesquisa podem ser desconstruídas pela pesquisa documental, por outro enriquecem o nosso entendimento sobre humanidade, contingência e liberdade ….e História é justamente isso e não outra coisa!

Beatriz Momesso é Historiadora pela UNICAMP, professora e doutora em História pela UERJ. Pesquisa, entre outros, historiografia oitocentista e jornalismo político. Atualmente, exerce atividades de docência e de pesquisa como bolsista de Pós-Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Do “Reino da Necessidade” ao “Reino da Liberdade”: considerações sobre a técnica na origem da civilização (por Marcus Boeira)

Filosofia | 15/11/2018 | | IFE BRASIL

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Informações e créditos da imagem: Great Sphinx of Giza and the pyramid of Khafre. Most likely Hamish2k, the first uploader. Wikimedia Commons, link.

 

Dentre as causas históricas da civilização humana, há duas reconhecidas universalmente: a origem mito-poética, de matriz especulativa, e a origem produtiva, de raiz material. A primeira condiz com a importância dos símbolos para a formação das sociedades humanas. A segunda, com as diversas formas de conexão entre os seres humanos e a natureza. Ambas são tributárias da técnica, um tipo específico de raciocínio voltado para a atividade produtiva. A técnica indica habilidade, prescrição, método, enfim, o rigor com que alguém produz um bem exterior ao procedimento empregado. Em termos gerais, tanto o termo grego tecné como o latino ars designam um tipo de racionalidade endereçada à fabricação e construção de um objeto qualquer, estático ou dinâmico. Está, em outros termos, no campo semântico do verbo “fazer”.

Do ponto de vista especulativo, a técnica foi fundamental para a simbolização das narrativas originárias das sociedades humanas, para a constituição dos mitos e das genealogias divinas. Platão distingue o âmbito mimético, onde reside a imitatio e a criação universal das possibilidades universais do gênio humano e da imaginação, e o âmbito ético, em que as virtudes conduzem os habitantes da pólis a um nível superior de existência. O âmbito mimético é concebido pela ars poetica, pela técnica empregada na poiesis, e tem como escopo a representação de uma ação universal condizente com um mundo pleno de sentido e fonte de toda ordem para os habitantes do mundo concreto. Platão pinçou a arte poético-mimética em sua filosofia, mas não a aprofundou como o estagirita. Foi Aristóteles quem o fez, com proficiência ímpar. A remissão da ars poetica e, sob certo aspecto, da ars inveniendi ao universal desenvolveu-se pelo papel imprescindível da mimesis na configuração simbólica das sociedades. No fundo, a poética articulou as narrativas originárias, aquelas que explicitavam ao ser humano preso ao tempo e ao espaço a razão e a fundação de sua sociedade, bem como o sentido meta-histórico de sua própria existência. Dentre as diversas funções desempenhadas pelos símbolos e mitos nas antigas sociedades, três despontavam como principais: (i) a atribuição de sentido para a existência histórica, (ii) a sondagem genealógica dos deuses e heróis ancorada no princípio da existência cósmica e (iii) a idealização de um destino para os seres humanos, através da mediação entre o princípio e o termo da civilização. Estas funções eram vertidas ao auditório cultural dos povos pela sacralidade das composições poéticas, pela musicalidade evocada em seus intervalos, métricas e hexâmetros. A vocação do poeta estava devotada em apresentar à civilização seus rudimentos originais, antes presos pelo silêncio dos séculos e agora libertos através do domínio da técnica poética, manifesta pelo ato contemplativo da imagística e pela versificação. A ars poetica deflagrou a busca de sentido, uma etapa indispensável no itinerário intelectual dos povos, e atraiu as civilizações para a simbolização da ordem e a auto-interpretação de suas respectivas sociedades, traçando um fio condutor entre os símbolos, a linguagem e a consciência objetiva da realidade histórica.

O simbolismo das coisas que estão por trás da natureza submeteu a própria natureza ao seu escopo focal, supondo um nível intermediário entre a matéria e o espírito, entre a natureza propriamente dita e os personagens involucrados nas narrativas mencionadas. A abstração universal sopesada pela mimesis e lançada sobre a civilização instaurou uma tensão existencial intermitente, resolvida pelo irrompimento da estética. Da poética à simbolização, as formas de delineamento da beleza e da representação do “perfeito e inefável” ocuparam o espaço outorgado pela ars poetica, abastecendo as sociedades com ritos, práticas e instituições.

Do ângulo material, a técnica é igualmente indispensável. Foi Lucien Blaga, o grande intelectual romeno, quem erigiu dos escombros da história do experimento científico a manifestação teórica da imprescindibilidade da técnica para a construção da civilização artificial. Constatou que embora a antiguidade não tenha legado uma metodologia robusta e formalmente consistente para o desenvolvimento dos processos de conhecimento empírico da natureza, desempenhou, contudo, papel inegável na emancipação do domínio mitológico. Somente quando os elementos da natureza passaram a ser tomados como bastante em si mesmos, quando a natureza ocupou o lugar central na condição material de subsistência da espécie humana foi então possível o crescente apreço pela produção. A natureza passou a ser vista principalmente pelo que continha como ambiente material, mesmo ante a persistência da tendência mito-especulativa, que a designava por alusão a outro mundo. A observação da natureza foi enrijecida pelo cotidiano de cada sociedade, pela práxis experimental mediante a qual os seres humanos conectavam-se de algum modo à natureza e, por esta razão, propiciaram a lenta ascensão de uma noção arcaica de método, de alguma técnica primitiva destinada a facilitar a extração natural e viabilizar o primeiro salto abstrativo, a saber, a posse do conhecimento produtivo. A produção é, como a ação e a contemplação, objeto correspondente à taxonomia dos tipos de raciocínio humano. Produzir é operação típica do raciocínio técnico. Agir é próprio do raciocínio prático. E contemplar é raciocínio de tipo teorético/contemplativo.

Nós os seres humanos lidamos, portanto, com três modos de racionalidade: a racionalidade produtiva, própria da técnica, a racionalidade prática, própria da ação, e a racionalidade contemplativa, correspondente aos raciocínios teóricos. Entre elas, subsiste uma escala de abstração, mediada pela faculdade intelectiva e terminada no objeto causal a que cada operação racional tende. Assim, a primeira escala de abstração antes mencionada é de tipo tecnológico: permite ao ser humano tomar posse de um conhecimento produtivo, apto a estabelecer processos contínuos e duradouros no trato com a natureza.

É curioso que algumas civilizações primitivas tivessem desprezo pelo trabalho manual, encerrando os méritos e as honrarias na vida política e contemplativa. As aristocracias normalmente conferiam maior importância aos afazeres sociais e espirituais, residindo justamente nesses âmbitos de atividade a figura do homo sacer, o ser humano separado, diferenciado do restante da sociedade para dedicar-se aos assuntos mais relevantes, de acordo com a época. Coube ao ser humano rude, primitivo na acepção mais radical da expressão, a vocação social para a técnica. Os critérios por meio dos quais as atividades humanas eram reconhecidas giravam em torno da diferença entre o lúdico e o simbólico, entre as tarefas ociosas e as funções sociais fundamentais. Ao nobre, o esporte e a política. Ao pedagogo, a poética e a retórica. Ao não cidadão, apenas a arte de produzir os meios de subsistência e edificar as cidades. No fundo, o paradoxo entre o desprezo pela técnica e sua imprescindibilidade elucida uma tensão existencial de fundo no princípio das sociedades humanas: a de que os seres humanos transitam entre o mundo da técnica e o mundo que dela depende: a sociedade artificial.

A conquista da civilização só foi possível pela passagem do nível mais primitivo de envolvimento dos seres humanos com a natureza para outro, mais exigente, em que a natureza é contemplada desde fora, por imagens e impressões, através da primeira escala de abstração. A partir de então, o estado letárgico de indiferenciação das atividades é transfigurado em um cenário mais complexo, em que as ações produtivas são compreendidas no interior de um horizonte mais amplo, onde são diferenciadas e setorizadas. O contato cada vez mais profundo com a natureza conduziu a tal diferenciação, pelo que a dualidade entre experiência e conhecimento produtivo acarretou a crescente ocupação com o método.

As atividades técnicas, simultaneamente criativas e produtivas, constituíram o “reino da necessidade”: porque a civilização ancorou seus modos de vida primitivos na subsistência, o aperfeiçoamento da técnica foi perpendicular ao desenvolvimento intelectual das sociedades. Ou seja, a matéria foi condição para que, sob seus rudimentos, fosse soerguida a civilização ativa e contemplativa, própria de um nível mais denso de existência humana, lugar-comum da filosofia e da política, o que Hannah Arendt chama de “reino da liberdade”.

O “reino da liberdade” pode ser visto como aquele que, sustentado pelo da necessidade, dinamiza-se e desenvolve-se por dois modelos gerais de existência: o modelo social, pelo que os seres humanos dependem uns dos outros e reconhecem-se reciprocamente pelo que são e representam socialmente, como também pelo modo como agem; e o modelo intelectual, uma forma de vida inteiramente introspectiva, de acordo com a qual o sentido de vida é conquistado pela busca da sabedoria mediante a contemplação.

A vita activa e a vita contemplativa são dimensões enraizadas na condição humana. A primeira é própria da existência política e realizada no espaço público da palavra e da ação, no agir conjunto dos seres humanos. A segunda, uma forma sui generis de vida, entroniza-se em um âmbito reflexivo mais profundo, onde os sentidos e significados da existência são divididos e rearticulados em um esteio intelectivo mais amplo e permanente, um lugar em que as ideias são condensadas e fornecem subsídios existenciais para os que as possuem. O contemplativo tende à ciência das causas e dos princípios, de onde parte para desvelar as entidades, retirando da quietude as verdades e constatações do espírito para expô-las à humanidade. Apoia-se na máxima de Virgilio “felix qui potuit rerum cognoscere causas”(Georgicon 2, 490). Das duas dimensões brota o ideal de liberdade.

Obviamente, a ideia de liberdade pode ser vista também como princípio do primeiro reino – o da necessidade-, no sentido de que há uma liberdade específica que explica e fundamenta a liberdade produtiva. Ainda assim, a história das ideias e a história intelectual da liberdade normalmente convergem para definir e a analisar a liberdade a partir das modalidades de existência típicas do segundo reino, reduzindo o seu escopo filosófico a uma noção menos vital (nos sentidos vegetativo e apetitivo) e mais intelectual.

O reino da liberdade é dividido entre a sociedade política e a sociedade intelectual. A política e a filosofia coincidem em identificar que a ação e a contemplação reificam o ser humano de uma maneira distinta do modus operandi próprio da subsistência material. O reino da necessidade, embora condição material para a liberdade, a aprisiona ao labor, ao campo onde os seres humanos não podem prescindir de habitar e depender. Somente pela elevação humana ao reino da liberdade é possível tomar posse de um modo de vida mais autêntico e genuíno, menos efêmero e mais duradouro, menos instantâneo e mais pleno de sentido. O reino da necessidade não é capaz por si de conferir aos humanos um âmbito propício para uma vida dotada de sentido, para uma compreensão de si mais radical e menos vulnerável em que possam dedicar-se a perseguir certos fins, a tomar determinados bens como finalidades e adaptá-los aos respectivos modos de vida. A produção oferece o primeiro degrau da sobrevivência, constituindo-se como o espaço peculiar da economia, do oikos grego. Somente na transição do reino da necessidade para o mundo da liberdade, como alude Hannah Arendt, na articulação de um espaço público da palavra e da ação com outra esfera em que os seres humanos contemplam o cosmos e descobrem um sentido para si e para os demais é possível perquirir sobre os significados profundos designados pela palavra liberdade.

Liberdade é palavra polissêmica. Pode designar as mais variadas experiências, ideias, ideais, ideologias, condições, estados-de-coisas, capacidades e operações. Ante uma galeria semântica assaz complexa e multifacetada, ousamos distinguir liberdade e liberdades. No singular, a palavra liberdade pode ser vista, do ponto de vista universal, como a condição através da qual os seres humanos atingem um grau de plenitude mediante a derrota dos empecilhos e a conquista de um plano imaterial de sentido. Nessa acepção, liberdade é uma condição genuína, um atributo antropológico compartilhado pela humanidade ante a mera verificação da existência humana concreta. A liberdade é, por isso, condição para o reino da necessidade e para o da liberdade, conforme o que dissemos antes. A liberdade é requisito para o reino da necessidade porque apenas o ser humano é capaz de produzir e abstrair o modo e a forma de relacionar-se com a natureza, erigindo a partir disso um processo composto de etapas e procedimentos específicos, discernindo o “fazer” e o utilizando em outros experimentos de mesmo cariz. A produção “em larga escala” não é, nesses termos, uma conquista singular da sociedade industrial, mas, substancialmente falando, uma qualidade ontológica do mundo produtivo. Como se pode ver, é a economia a ciência moderna posterior erigida para dar conta do conhecimento destes processos, como também o são as ciências naturais em grande medida.

As liberdades, todavia, coincidem com as várias formas de expressão da experiência humana na história. No âmbito do que designamos como “reino da liberdade” reside diversas dimensões da existência, como a política e a filosofia, que aludem cada qual a tipos de liberdades correspondentes: a liberdade política de deliberar e decidir e a liberdade de pensamento, opinião e expressão. Há, todavia, outros tipos de liberdade que dependem para sua consumação destas liberdades mencionadas, como a liberdade de associação, reunião e locomoção.

O engenho humano foi, desde o princípio das sociedades, capaz de articular estas dimensões e modelos, inclusive empregando processos de simbolização para elevar e dignificar cada um dos reinos analisados. A natureza, por exemplo, foi tomada como caminho para o paraíso, imagem do lugar de plenitude, símbolo da ordem criada, figura da perfeição, objeto das leis cósmicas, etc. A abstração da qual falamos no início levou o ser humano a contemplar a natureza desde fora, presentada aos sentidos como imagem ampliada, simbolizada e significada por atributos e propriedades adicionadas, em suma, como um retrato destinado a remeter a outro mundo, ao paraíso perdido, em alusão ao épico de J. Milton.

Do ponto de vista civilizatório, a natureza pavimentou a transposição do espírito humano da necessidade à liberdade, erigindo a partir de então uma miríade de concepções de liberdade: a liberdade econômica, nascida pela imprescindibilidade do reino da necessidade; a liberdade política, condizente com a vida social. A liberdade em sentido filosófico, atinente à vida contemplativa. A história intelectual da humanidade costurou estas dimensões, alocando o ideal de liberdade para os reinos da existência humana.

Marcus Boeira é Professor de Filosofia Política e Filosofia do Direito, membro da Confraria de Artes Liberais (http://artesliberais.com.br/).