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[RESENHA] Liberdade Religiosa e Discriminação

Direito | 13/08/2018 | | IFE SÃO PAULO

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Debating Religious Liberty and Discrimination (John Corvino, Ryan T. Anderson e Sherif Girgis, USA, Oxford University Press, 2017)

As sociedades atuais apresentam relevantes conflitos de visões. Alguns dos mais complexos relacionam-se com discriminação e liberdade religiosa. Ainda que não seja novidade a existência de debates sobre estes assuntos, com as mudanças na concepção sobre família e casamento novas polêmicas surgiram e ainda irão emergir, não raro afetando a vida e o cotidiano de pessoas.

O livro Debating Religious Liberty and Discrimination merece atenção daqueles que refletem e se engajam nestas questões, mesmo que baseado na experiência concreta americana.

Inclusive, considerando que tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo se deu de forma similar, por meio das Cortes Constitucionais (Obegerfell v Hodges, e ADI 4277 e ADPF 132), o pano de fundo dos novos debates é similar nos dois países.

A obra não trata diretamente do casamento entre homossexuais, mas é a partir do reconhecimento legal da união entre pessoas do mesmo sexo que surgem novos conflitos relativos à tolerância, liberdade religiosa e discriminação.

O livro foi escrito em forma de debate. John Corvino militou pela legalização do casamento gay. Ryan T. Anderson e Sherif Girgis advogaram pela manutenção da visão tradicional do casamento.

Nesse novo debate, porém, não existem apenas dois lados. Os três jovens autores concordam em diversos pontos, mas divergem em questões essenciais. Todos são favoráveis à garantia da liberdade religiosa e contrários à discriminação. A controvérsia está na definição e nos limites destes conceitos.

Corvino destaca que as tentativas de se garantir objeções de consciência para indivíduos e grupos religiosos que se opõem ao matrimônio de pessoas do mesmo sexo não raro configuram privilégios, implicando a legalização da liberdade para discriminar homossexuais. No mais, em um país plural como os Estados Unidos, se todas as acomodações morais e religiosas fossem admitidas, as pessoas se tornariam “leis para si próprias”, impondo inúmeros danos e ônus a terceiros, e a própria força de normas que deveriam se aplicar a todos acabaria enfraquecida.

Anderson e Girgis, por sua vez, defendem que os direitos de consciência e a integridade moral dos cidadãos são valores intrínsecos e fundamentais a serem tutelados pelo Estado. A liberdade religiosa corre risco de ser anulada a partir de leis anti-discriminação, que, na verdade, representariam um “novo puritanismo”, perseguindo aqueles que moral ou religiosamente se opõem ao novo modelo familiar.

As visões opostas dos autores são ilustradas ao longo do livro por diversos conflitos que têm surgido nos Estados Unidos, a maioria após o caso Obegerfell. Estas situações trazem ao debate de temas como: um oficial de registro ou um juiz poderia se recusar, por razões religiosas, a reconhecer um casamento entre pessoas do mesmo sexo? Confeitarias e floriculturas que, por objeção de consciência, se recusem a fazer bolos ou arranjos de flores para casamentos entre homossexuais devem ser multados? O Estado deve permitir a existência de agências de adoção católicas que somente atendem casais heterossexuais, garantindo maiores chances de adoção a crianças, ou estas devem ser proibidas de atuar?

Um dos casos apresentados no livro e que ilustra a complexidade do debate é o de Barronelle Stutzman. Stutzman empregava gays e lésbicas em sua floricultura e por 10 anos vendeu arranjos de flores para um casal homossexual que posteriormente a processou. Ela não tinha objeções a pessoas homossexuais[1], faria arranjos para o aniversário de seus clientes ou mesmo para que um presenteasse ao outro, mas acreditava, por motivos religiosos, que o casamento somente era possível entre pessoas de sexos opostos. Quando seus clientes lhe pediram para fazer o arranjo de flores para seu casamento, ela se recusou e foi processada.

Em uma sociedade plural, com diversas opções de floriculturas disponíveis, Stutzman deveria ter garantido seu direito de atuar conforme sua visão cristã? A recusa dela é discriminatória? Nesses novos casos a objeção de consciência deve ser garantida, como se fez com a questão do aborto, ou estes comportamentos são equiparados à discriminação por racismo? São questões como esta que têm emergido nos Estados Unidos, sendo que a Suprema Corte recentemente se pronunciou em um caso envolvendo um confeiteiro cristão que se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal de homens (Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission). A decisão foi favorável ao confeiteiro, mas, em razão de peculiaridades do caso, não solucionou de forma geral os debates tratados no livro, que provavelmente retornarão à Corte.

O mesmo debate deve ganhar volume no Brasil nos próximos anos, afetando diretamente indivíduos, igrejas, clubes, escolas e empresas. Contudo, não deixa de chamar a atenção de quem lê o livro que a intensidade dos conflitos surgiu de forma muito mais rápida e extrema nos Estados Unidos, quando no Brasil também existe relevante divisão quanto a estes assuntos[2]. O brasileiro seria mais tolerante e dialogaria melhor, criando consensos e acomodações? Ou será que não nos levamos tão a sério como os americanos?

De qualquer forma, outro ponto de destaque do livro é a capacidade de seus autores de manterem um diálogo civilizado mesmo divergindo em diversos temas sensíveis. O próprio livro, como um exercício de tolerância – no sentido verdadeiro de respeito àqueles que discordam de nossas crenças mais importantes – parece ser um dos caminhos para se buscar soluções possíveis e não excludentes em nossas sociedades divididas.

[1] https://www.seattletimes.com/opinion/why-a-good-friend-is-suing-me-the-arlenes-flowers-story/

[2] http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2014/noticia/2014/09/maioria-e-contra-legalizar-maconha-aborto-e-casamento-gay-diz-ibope.html

Editores IFE São Paulo

Ativismo, aborto e Estado de Direito

Direito | 06/08/2018 | | IFE SÃO PAULO

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O STF irá apreciar uma ação que discute a criminalização do aborto. É notória a polêmica que envolve o tema no Brasil e no mundo. Em consequência, os lados pró-vida e pró-escolha estão se movimentando, manifestando e debatendo.

O problema é que novamente a sociedade entra em conflito em razão do mérito de processos que chegam ao Supremo, esquecendo-se de um problema preliminar.

Caso o aborto seja legalizado pela via judicial, muitos dos que se alinham ao lado pró-escolha irão comemorar. Mas faz sentido comemorar uma decisão nesse sentido?

A questão é que a legalização através do STF representaria mais uma lamentável manifestação de ativismo judicial. A Constituição Federal protege a vida como direito fundamental, não fazendo qualquer permissão ao aborto (como o faz em relação à possibilidade de pena de morte nos casos de guerra). Ainda, o Pacto de San José da Costa Rica, norma de status supralegal, prevê expressamente que a vida deve ser protegida desde a concepção. O legislador ordinário, no Código Penal, regulamentou a proteção à vida, prevendo como crimes o homicídio, o infanticídio e o aborto – permitindo sua prática em apenas duas hipóteses: risco de vida para a mãe e gravidez decorrente de estupro.

Considerando as normas acima expostas, é evidente que somente “saltos triplos carpados hermenêuticos” poderiam justificar a ampliação, à revelia do Congresso, da permissão do aborto no país. Qualquer exercício honesto de interpretação das normas vigentes confirma que não há nenhuma inconstitucionalidade na criminalização da conduta, tanto que eventual decisão nesse sentido necessariamente se baseará somente em uma mistura confusa de princípios abstratos.

Uma decisão com estes fundamentos poderia ser traduzida da seguinte forma: a Constituição é aquilo que os Ministros dizem que ela é.

Quantas decisões semelhantes não temos visto nos últimos anos? Financiamento público de campanha, casamento entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão criminal etc.

A Corte se inclina, por vezes, para um ativismo progressista, outras para um ativismo conservador. A sociedade, impotente frente a este poder ilimitado, aplaude ou vaia conforme as preferências pessoais. Até quando?

Enquanto não percebermos que o papel do STF é interpretar a Constituição – e não criar uma nova -, estaremos endossando um sistema político que se distancia da Democracia e do Estado de Direito (com seus procedimentos e limitações a poderes). Em um de seus famosos votos, o falecido juiz da Suprema Corte americana, Antonin Scalia, resumiu de forma brilhante a gravidade de nos submetermos a um regime em que alguns juízes não eleitos decidem, de forma ilimitada, o que é constitucional ou não: “A decisão de hoje diz que meu governante, e o governante de 320 milhões de americanos costa-a-costa, é uma maioria dos nove juízes da Suprema Corte. (…) Essa prática de revisão constitucional por um comitê não eleito de nove, sempre acompanhada (como hoje) por um extravagante louvor à liberdade, rouba do povo a mais importante liberdade afirmada na Declaração de Independência e conquistada na Revolução de 1776, a liberdade para se autogovernar”.

Salvo em situações excepcionais, é dever de todos respeitar as leis que existem em nosso país, bem como os trâmites legais para alterações e mudanças normativas. Não se olvida que a vida, a saúde, a liberdade e a intimidade são direitos fundamentais.
Mas também é fundamental para a vida em sociedade que os procedimentos sejam respeitados, que as decisões tomadas pelo povo sejam observadas, que estas se deem de acordo com uma Constituição que, apesar de defeituosa, não estabelece um regime totalitário ou injusto e, por fim, que nenhum poder torne-se ilimitado.

Editores IFE São Paulo

Stockhausen e o começo da música eletroacústica – por Victor Lazzarini

Música | 07/12/2017 | | IFE BRASIL

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Imagem: © Claude Truong-Ngoc / Wikimedia Commons

 

O compositor Karlheinz Stockhausen, falecido no final de 2007, foi uma das figuras mais influentes do cenário musical da segunda metade do século XX. Talvez uma das suas contribuições mais duradouras e significantes tenha sido a maneira com que conduziu o desenvolvimento da Elektronische Musik e introduziu nela vários elementos daquilo a que hoje chamamos música eletroacústica. Foi um dos primeiros compositores a tentar a fusão de práticas e técnicas anteriormente tidas como incompatíveis na música eletroacústica.

Nos meados da década de 1950, a vanguarda européia era dominada pela música serial de raiz estruturalista. Essa corrente emergiu das cinzas da música do pós-guerra, influenciada por Webern, Berg e, em menor medida, Schoenberg. As técnicas de composição dodecafônica, trazidas novamente à tona por René Leibowitz em finais da década de 1940, e a parametrização do material musical por Messiaen serviram de base para uma nova forma de escrever música que não tem precedentes na história. O serialismo, defendido por jovens compositores como Boulez, Goeyvaerts e Stockhausen, resume-se no uso de vários métodos de permuta e transformação ad hoc a um conjunto de parâmetros musicais (conjuntos de pitch, de duração, intensidade, etc…) como base para a composição. Nas suas formas mais extremas, o serialismo chega a desprezar os limites da percepção humana e a maneira com que tentamos organizar a nossa experiência sonora como ouvintes.

A música eletrônica é um fato desde 1948 e o pioneiro Concert à bruits, de Schaeffer, transmitido pela Radio France. O seu Musique concrète foi produto de um grupo de pesquisa inicialmente pequeno, o Club d’essai, mantido pela radiodifusora nacional francesa em Paris. A partir de 1952, o grupo passou a expandir-se e chegou a ser muito influente na Europa; as idéias de Schaeffer acerca da música baseada na manipulação de objets sonores tornar-se-iam um dos lados do primeiro embate estético a dominar os começos da música eletrônica. Foi o estúdio de Schaeffer que deu a Stockhausen a sua primeira amostra do meio, quando ele completou lá a gravação da sua Étude, em 1953.

O outro lado da batalha era representado pela Elektronische Musik encabeçada por Herbert Eimert, em Colônia, sob os auspícios da Rádio da Alemanha Ocidental (WDR). Eimert pregava uma música eletrônica desprovida de associações com o mundo real e de sons anedóticos, baseada em procedimentos seriais e construída estritamente com tons gerados eletronicamente. Ele via esse meio como o veículo natural da composição serial, uma vez que permitia que a parametrização e a estruturação descessem ao nível mais baixo, aos tijolos do som. Uma vez que a própria matéria-prima para a música poderia ser construída por geradores sonoros eletrônicos, as técnicas seriais poderiam ser aplicadas a todo o processo de geração. Para Eimert, estragar essa oportunidade fazendo gravações musicais de trens e sirenes, como em Musique concrète, era inadmissível. No entanto, ele também desprezava a primazia da audição no pensamento musical de Schaeffer, o que fará com que a primeira produção musical de Colônia seja muito difícil de ser ouvida.

Após completar o seu tempo nos estúdios da Radio France, Stockhausen voltou para Colônia e juntou-se ao grupo de Eimert. E logo de começo embarcou em duas experiências musicais que resultaram nas suas Studien I e II, que marcam um momento-chave na Elektronische Musik. Apesar do desejo contrário dos proponentes desse tipo de música, talvez a importância das Studien tenha mais a ver com o fato de eles revelarem aspectos negativos mais do que as potencialidades a serem exploradas nessa música.

Studien I & II

Parece claro que, em 1953, Stockhausen já estava convencido de que o caminho para o avanço da música devia estar baseado no formalismo e nas estruturas permutacionais da música serial. O primeiro estudo na música eletrônica é uma tentativa de aplicação da técnica ao meio, sendo as regras ditadas por Eimert, o diretor do estúdio. Essas regras básicas consistem em: I) Usar senóides puras como fonte sonora de nível mais baixo; II) gerar tons (combinação de tons) a partir da adição de uma dessas senóides (o que, mais tarde, seria chamado de síntese aditiva); III) Os parâmetros das suas fontes sonoras (freqüência, amplitude, duração, etc.) seriam determinados por métodos seriais (ou seja, permutas de uma ou mais séries ou proporções de valores). Uma vez estabelecidos os princípios da série e da transformação, a peça “compor-se-ia sozinha”. O trabalho que sobrava era a montagem da peça a partir das gravações-fonte, o que não era tarefa fácil: todos os diferentes tipos de senóide deveriam ser gravados numa fita (com o uso de um gerador de freqüência simples) que seria cortada em tamanhos diferentes (de acordo com a duração prevista no plano) e os pedaços misturados a fim de criar as combinações de tom. Essas combinações seriam unidas para dar origem à seqüência final de sons. Uma tarefa muito trabalhosa e pouco gratificante, mas que precisava ser feita por todo aquele que trabalhasse com o meio àquela época.

Studie I é uma peça muito frustrante no que concerne à audição. Curiosamente, a sua falta de qualidades musicais é análoga à sua capacidade de suportar análises, fato que abunda na literatura do gênero. É como se a peça tivesse sido escrita com o único propósito de servir de objeto para estudos analíticos. Os métodos seriais usados na composição dessa peça não oferecem um resultado interessante, não importa quão interessante possam ser do ponto de vista puramente estrutural. Um dos erros da peça é o resultado sonoro não ser devidamente considerado em nenhum momento. O que ouvimos é na verdade uma seqüência de sons similares aos de sinos que permanecem indistintos a maior parte do tempo. Isso por causa da crueza com que a síntese aditiva foi planejada, sem levar em conta o modo como o timbre é percebido. Stockhausen nunca foi muito claro acerca da sua visão sobre essa peça quando da sua composição, mas provavelmente viu a necessidade de algumas adaptações metodológicas e, na peça seguinte, empregou uma maneira mais interessante para a criação de combinações de tons, o que terá um significado impactante na qualidade do trabalho final.

O próximo estudo traz uma nova maneira de juntar as misturas de tons, que lhes confere um caráter menos estático. Stockhausen continua a criar os seus sons tendo senóides puras como base, mas dessa vez o método de mistura é mais ingênuo. Ele criou na fita um looping que reúne cinco segmentos de senóide mais um trecho em branco. Toca-se esse looping num espaço que produza eco e os resultados são gravados de volta no looping. Os segmentos originais então são descartados, mantendo-se apenas o trecho recém-gravado. A reverberação cria um som muito mais “vivo”. Por fim, os segmentos de fita são usados na combinação final da peça. Outro aspecto interessante da Studie II é a existência de uma partitura, com todas as instruções necessárias para a reprodução de toda a peça. Essa peça é de um modo geral muito mais interessante que a sua antecessora; é também mais curta, o que talvez nos ajude a suportá-la melhor. Contudo, nenhuma das duas é satisfatória do ponto de vista da musicalidade e ambas estão longe de ser obras-primas. Para isso, teríamos de esperar pelo próximo trabalho de Stockhausen.

Gesaenge der Juenglinge

A mudança de direção que se pode ver na peça seguinte de Stockhausen é extraordinária. Ele não apenas quebrou as convenções da Elektronische Musik que pregavam o uso somente de sons sintetizados, usando gravações de um garoto soprano, mas também buscou um equilíbrio entre a estrutura e a sonoridade. O resultado é provavelmente a primeira obra-prima eletrônica: Gesänge der Jünglinge  (“Canções dos aprendizes”) é um avanço no desenvolvimento do gênero, com a sua mistura de sons sintetizados e vocais. Stockhausen pôs muito cuidado em criar uma variedade de contextos para a voz: solos, corais, linhas de contraponto, manipulação dos fonemas do texto e transições entre essas diferentes texturas sonoras.

O começo da obra determina o tom da peça logo de começo, com uma “nuvem” de “grãos” que se fundem num ruído estreito e filtrado, que cria o pano de fundo para a primeira aparição da voz do garoto. Nalguns momentos, ouvimos os tons sintetizados fundirem-se com os sons vocais e se tornarem quase indistintos deles. Em contrapartida, as transformações aplicadas às gravações algumas vezes fazem com que soem “eletrônicas”. Essa cuidadosa exploração dos lugares sonoros põe essa peça quilômetros à frente dos seus Studien e dos Dogmas de Eimert. Nela, encontramos um compositor que quer valer-se de um universo sonoro mais amplo. O seu uso de construções sonoras dinâmicas e envolventes, não mais limitadas à combinação estática dos tons presente nos primeiros trabalhos, é particularmente importante e influente.

No que toca o plano estrutural, não encontramos nos Gesänge a mesma abordagem rigidamente serial dos Studien. A estrutura usada é mais complexa de muitas maneiras, mas também fornece uma experiência sonora mais variada. Tendo como base um conjunto maior de materiais sonoros, os métodos de Stockhausen preocuparam-se mais com aspectos da percepção, como a “complexidade tonal” e o uso do serialismo foi guiado por uma forte intenção composicional. Em todo o caso, o que temos é uma nova abordagem à idéia de composição serial, uma abordagem baseada no movimento e nas mudanças dinâmicas de estado.

Como já foi dito, os Gesänge são um avanço na história da música eletrônica. Podemos dizer que é o marco inicial da música eletroacústica, por fundir a escola francesa e a alemã de música eletrônica. Os Gesänge foram também o prenúncio do futuro trabalho numa outra dimensão da composição: aquela que enxerga o espaço como um parâmetro de som musical. Os Gesänge foram compostos numa fita multicanal (5, depois reduzidos para 4 canais) e usam o movimento espacial do som como parte integrante do discurso musical. Essa dimensão tornou-se cada vez mais importante na música eletroacústica, com o desenvolvimento de maneiras cada vez mais flexíveis de mover e posicionar as fontes sonoras no espaço. Uma primeira obra-prima para o meio, a peça preparou o caminho para o tour de force que representou o seu trabalho eletrônico seguinte: Kontakte.

Kontakte

Stockhausen passou dois anos trabalhando na sua próxima peça, completada em 1960, que não apenas incorporava sons que pareciam de origem instrumental (ainda que sintetizados), mas que usava instrumentos ao vivo (piano e percussão) além da parte eletrônica. O curto título da peça, Kontakte, refere-se aos “pontos de contato”, que são múltiplos: entre os sons eletrônicos e instrumentais, entre pitch, timbre e duração (alguma das dimensões musicais manipuladas pelo compositor), entre os Momente (“momentos” composicionais autônomos, a base da estrutura da peça) e entre os modos de movimento espacial. Nessa obra, o músico compendiou toda a sua qualidade técnica e musical, criando algo muito além do que já havia sido composto para o meio eletrônico.

A qualidade de alguns dos seus sons é incrível, tendo em conta os limitados meios de sintetização de som de que se dispunha (geradores de ondas quadradas e senóides, fontes de ruído e alguns filtros). Se tomarmos, por exemplo, o trecho mais aclamado da peça, por volta dos dezessete minutos, temos um bom exemplo da perícia do compositor: o tom de uma onda quadrada de baixa freqüência surge e diminui o pitch até atingir a faixa subsônica. Nesse ponto, não ouvimos o som contínuo original, mas uma série de ataques curtos em que o pitch se torna o ritmo. Por fim, esses curtos tons percussivos dilatam-se pelo acréscimo da reverberação, revelando então um pitch próprio que depois se torna novamente contínuo: pitch percussivo vira pitch constante. Construir trechos assim com o uso de sons sintetizados por computador já é uma tarefa complicada; imagine, então, criá-las gravando os tons numa fita para depois editar e combinar o resultado. Não é só a natureza complexa do procedimento que é um problema, mas os riscos de se trabalhar num estúdio analógico também são consideráveis: o ruído que acompanha a geração seqüencial de fitas, problemas na estabilidade mecânica do gravador, a necessidade de evitar que a fita estrague por causa do tempo ou desmagnetize-se, etc. É realmente impressionante como Stockhausen foi capaz de criar tamanha variedade de tons sintetizados de alta qualidade para essa peça.

Ela também marca um verdadeiro distanciamento do compositor com relação às suas raízes seriais. A obra apóia-se na sua já mencionada idéia dos momentos (Momente-form), que é muito menos rígida no que toca àquilo que o compositor pode ou não fazer. De fato, é bem o contrário: permite a Stockhausen tratar cada seção isoladamente, de acordo com o que ela deve soar naquele momento independentemente do que veio antes e do que virá depois. O que demanda uma nova maneira de ouvir a peça, que leve em conta as qualidades musicais de cada momento, que podem ser desfrutadas individualmente em vez de percebidas como a culminação de idéias anteriores ou como o caminho para uma nova seção. O sucesso da peça provavelmente deve-se a isso: durante os seus trinta e cinco minutos de duração, não nos desgastamos na tentativa de encontrar as ligações entre o material sonoro que ouvimos e o que vamos ouvir.

Conclusão

Stockhausen percorreu um caminho bastante longo e proveitoso nos seus primeiros trabalhos eletrônicos. Foi capaz de desvencilhar-se do serialismo que dominava o estúdio de Colônia para produzir duas obras-primas dos começos da música eletroacústica. Não seria exagero dizer que ele lançou as bases do gênero (com a ajuda de alguns colegas compositores), uma vez que foi capaz de chegar a uma síntese entre a Elektronische Musik e a musique concrète. Stockhausen ainda compôs mais alguns trabalhos excepcionais (tais como Telemusik e Hymnen) e abriu caminho para muitos compositores jovens que passaram a dedicar-se ao meio eletrônico. Depois de começos muito humildes, o gênero cresceu até oferecer uma vasta gama de possibilidades artísticas. Em grande medida, graças ao trabalho de Karlheinz Stockhausen.

 

Victor Lazzarini é doutor, Senior Lecturer do Departamento de Música e diretor do Laboratório de Tecnologia Musical da National University of Ireland. Estuda Música de Computador, principalmente processamento de sinais musicais e linguagens musicais de computação. Já lançou desde peças inspiradas no jazz (The Trane Thing, 2000) até peças para orquestra (Magnificat, 1996). Em 2006, recebeu o Mostly Modern International Composition Prize.

Tradução de Cristian Clemente

Tradução publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3, Junho/2009.

[cinema] Paterson: A poesia no quotidiano

Cinema | 02/12/2017 | | IFE BRASIL

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Fazia tempo que não publicávamos uma crítica de cinema. Pois bem, voltamos com uma crítica de nosso parceiro Pablo González Blasco.

Paterson. (2016). Diretor: Jim Jarmusch. Adam Driver, Golshifteh Farahani, Kara Hayward, Sterling Jerins, William Jackson Harper. 112 min.

Paterson - coverTinha lido a crítica no jornal e chamou-me a atenção o motorista poeta. Depois chegou um desafio desses que, como sem querer, te lançam no grupo de colegas da faculdade, por ter criado uma fama imerecida de crítico de cinema. Dizia mais ou menos assim: “Assisti a um filme minimalista do Jim Jarmusch “Paterson” que indico. Curiosamente, pelo site de cinema ImDb acessei uma crítica do filme em espanhol cujo resenhista se chama Pablo Blasco…embora sei que não é você”. Recolhi a luva, e a guardei para ver a melhor ocasião para o duelo. Pouco depois outro amigo me espetou: “Tenho o filme para você. Paterson. Veja e me diga o que lhe parece”. Não havia mais o que esperar, agora com duas luvas no bolso. O duelo -um modo de dizer- estava lançado, quase que em simultânea, como aquele primeiro onde D’Artagnan enfrenta os três mosqueteiros, chegam os guardas de Richelieu e acaba conquistando a confiança de Athos, Porthos e Aramis.

Sentei para ver o filme e respondi a estocada da segunda luva, de bate pronto. “Assisti Paterson. Impactante. Mas para público seleto. A poesia do quotidiano. A rotina que vira verso. Desprendimento e simplicidade contundente. E a força da vocação e da arte que nunca morre. Páginas em branco são sempre excelentes oportunidades”. Depois continuei pensando sobre o filme, e os pensamentos cristalizam nestas linhas, atrasadas, mas decantadas na serenidade rodeada da poesia que nos cuida e nos cura.

Paterson - 1Não sei se o filme seria a poesia no quotidiano ou melhor, transformar o afazer quotidiano em poesia, o que é muito mais difícil. Fazer da prosa diária poesia, como dizia um santo contemporâneo. Em qualquer caso, temos diante um ensaio que faz pensar, mas não é um filme intelectual, porque o quotidiano -a rotina mais chã- inunda todos os fotogramas. Um motorista de ônibus, interpretado por um ator de sobrenome Driver. Coincidência? O nome do protagonista é o mesmo da cidade onde vive e dirige o seu ônibus: Paterson. Também é o mesmo nome de uma série de poemas de William Carlos Williams que era nascido na região e, naturalmente, um ícone admirado pelo motorista.

Paterson - 2Rotinas tremendas, que se sucedem dia após dia, com uma meticulosidade que dá para ajustar o relógio. Tempos curtos, espremidos, do horário de trabalho, para alinhavar alguns versos no caderno que Paterson carrega sempre consigo. Enquanto esquenta o ônibus, depois do almoço, numa parada ao voltar para casa. E em casa está Laura, a esposa, sempre mudando o visual, mas sem sair dos tons em branco e preto. Uma variedade desafiante do que é possível fazer apenas com duas cores. A mulher que quer mudar tudo, transforma, mas não sai do bicolor. Como um avião na pista, corre, supera o carro de fórmula 1, mas falta-lhe puxar do mancho para decolar. O mancho é justamente a poesia, que permite ver as coisas com perspectivas diferentes, com altura, volume, relevo, enfim, profundidade insuspeitada.

Paterson - 3Houve conversas sobre o filme, que acabam decantando nestas linhas. Alguém me disse: “E o que você achou do contraste entre ele (sempre a mesma rotina) e a esposa (constante mutação), do tipo Parmênides X Heráclito?” Confesso que o touché que me chegou nesta comparação com os filósofos pré-socráticos fez-me pensar. E tive de responder à estocada com o primeiro que me veio à cabeça, também em moldes filosóficos:  “Sim, o branco e preto constante da Laura (que tem o nome da mulher ideal de Petrarca, não por acaso) é algo que me fez pensar. Ela muda, sim; mas conserva o padrão branco e preto, e com ele transforma absolutamente tudo. Não sei se é Heráclito e Parmênides, ou mais Aristóteles e Tomás de Aquino com a essência, substancia e os acidentes. Tem o que permanece e o que muda. Mas o fundo está lá”.

Paterson - 4Diz Fernando Pessoa, que muito entendia de poesia: “A vida é terra, e vive-la é lodo / Tudo é maneira, diferença ou modo/ Em tudo quanto faças sé só tu/ Em tudo quanto faças sé tu todo”. Somos rotina, pouca coisa, terra que os primeiros pingos das adversidades, transformam os sonhos em barro, nos melecamos por inteiro. Não há como evitar a condição de que somos pó, um recado bíblico, e voltaremos ao pó. A diferença é por nossa conta, a atitude que consegue transformar o pó rotineiro em verso romântico. A poesia conduz à reflexão que busca sentido no que faz diariamente, e justamente porque o encontra, dedica-se com afinco. A rotina -disse alguém- não é fazer as coisas de sempre, mas fazê-las ‘como sempre’. O que nos arranca da modalidade -do ‘como sempre’- é justamente o olhar poético. E essa atitude nos protege das vicissitudes -do lodo- que sempre chega, dos imprevistos, porque conseguimos chegar mais longe com a perspectiva poética.

Paterson - 5Sem perder a condição de pó sofredor, de poeira que outros pisam ao caminhar, mas com a dignidade de quem sabe se elevar por cima do rasteiro e trivial. Vem à minha mente -esse é o risco da poesia, que uma puxa outra- os versos do poeta espanhol, Quevedo, quando fala da morte, e que estampo no original pela força que leva dentro: “Cerrar podrá mis ojos la postrera sombra que me llevare el blanco día (…)Alma a quien todo un Dios prisión ha sido, venas que humor a tanto fuego han dado/ médulas que han gloriosamente ardido, su cuerpo dejará, no su cuidado/ serán cenizas, mas tendrán sentido/ polvo serán, mas polvo enamorado”. Reduzidos a pó, após a morte, mas com o palpitar presente que fazem dos restos pó enamorado, cinzas com sentido, nas que permanece o mesmo cuidado estético e apaixonado.

Paterson - 6A poesia do quotidiano, o caderno do motorista Paterson, evoca aqueles flash-mobs que encontramos no Youtube, onde no meio de uma praça, no mercado municipal, começam a soar acordes e de repente surge o brinde de La Traviata, o coro dos peregrinos de Nabuco, o Hino da Alegria, da nona sinfonia de Beethoven. E lá, entre o açougue e a peixaria, com roupas do ofício, marcadas e fétidas, tenores, sopranos e barítonos configuram um cenário lírico impensável em aquelas circunstâncias. E some o cheiro a peixe, a sujeira, enquanto o gari se transforma em Alfredo que convida a Violeta (até o momento a feirante de frutas) a abandonar a vida frívola e acompanha-lo nas aventuras do amor. Sem trocar de roupa, sem cenários, ao natural, porque a enxurrada artística releva os detalhes da rotina.

Paterson - 7Houve quem disse que depois de Auschwitz a poesia não teria vez. E outros que, diante das carências humanas, se perguntavam qual o sentido da poesia em tempos de miséria, pois não enche as barrigas. Vendo Paterson e sentindo a dimensão da poesia fica claro que a colocação é justamente a contrária: a poesia nos salva do naufrágio no quotidiano, da miséria humana -própria e alheia- porque é alavanca que permite levantar-se sobre a poeira que nos cega e irrita. Outra lembrança abre-se espaço na memória: a figura de Mandela preso na cela, naquele filme superior de Clint Eastwood, Invictus, enquanto se escutam os versos de Henley: “Eu sou o mestre do meu destino, eu sou o capitão da minha alma”.

Paterson - 8

Os clássicos afirmavam que o homem é um ser que esquece. E para remediar esta quase amnésia vital, Zeus, o rei dos deuses, criou as musas e as artes como recurso para recordar. Esquecemos sim, mas não dos detalhes e das bobagens, nem das ofensas que levamos com cuidadosa contabilidade no coração que vai se azedando. Esquecemos do essencial: quem somos, para que servimos, qual é o sentido da nossa vida. E nos redemoinhos da desorientação, buscamos absurdamente respostas no Google, mendigamos consolos nas redes sociais, corremos sem nos perguntar onde vamos. “Bene curris, sed extra viam” -dizia Santo Agostinho, em frase de impacto que dispensa a tradução. E esquecemos que as respostas estão no poema, no quadro, na música.

Anota Wittgenstein que daquilo que não se pode falar, melhor é calar. Do que não se pode falar de maneira científica, é melhor calar e mostrar: o amor, a piedade, a luta pelo bem, a mística. Calar-se para viver com obras, com sentimentos, com alegrias e tristezas, todo esse capítulo humano para o qual não existe ciência, mas sim sabedoria. Essa é a dimensão que a poesia nos oferece. Essas são as páginas em branco do caderno de Paterson, que vai recheando no meio do tedioso itinerário do ônibus, e as que cada um de nós tem de preencher para fazer da nossa vida, simples, um belo poema que encante, anime os outros, e faça um mundo melhor. Sim, precisamos de poesia, justamente hoje: essa é a diferença e o modo que Pessoa nos recomenda para safar-se do lodo. Uma decisão que vale a pena -diz ele- se temos magnanimidade, se a alma não é pequena.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente em <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2017/12/01/paterson-a-poesia-no-quotidiano/> Acesso em 01/12/2017.

O “métier perdido” e a arte – por Affonso Romano de Sant’Anna

Artes | 17/11/2017 | | IFE BRASIL

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Museu do Louvre, em Paris (Le Louvre et sa Pyramide, de nuit, Free On-Line Photos (FOLP), image 2269)

 

“A pintura neste fim de século está mal. Para quem ama a pátria dos quadros não restará em breve mais que o interior dos museus, como para quem ama a natureza só restarão reservas de praças, para aí cultivar a nostalgia daquilo que não existe mais” (Jean Clair).

 

O que tem a antropologia a nos dizer sobre a crise das artes plásticas no século 20? Venho me fazendo esta pergunta, dentro do clima de celebração, em 2009, dos cem anos de Lévi-Strauss, e depois de ler e reler um texto seu, pouco divulgado: “Le métier perdu” (“O ‘métier’ perdido”). Reli este texto, há alguns anos, no volume Tout l’art contemporain est-il nul? (“Toda a arte contemporânea é nula?”). Neste livro há uma série de autores como Lévi-Strauss, Tom Wolfe, Jean Clair, Henri Meschnnic, Jean Phillippe Domecq, Marc Le Bot, Jean Baudrillard, Luc Ferry e alguns outros, pensando a arte de nosso tempo, essa que se quer “contemporânea” e “pós-moderna”.

O referido texto de Lévi-Strauss é sintomático da complexidade da questão que há cerca de cem anos enfrentamos. Não se pode dizer que este autor seja um “forasteiro” em termos de arte, como em geral retrucam os que não aceitam qualquer critica à arte oficial de nossos dias [1]. Ao contrário, Lévi-Strauss além de ser o mais notável antropólogo do século XX é um bom conhecedor de música (que aplica em suas análises antropológicas) e igualmente conhecedor de literatura e de artes em geral. É um pensador, um artista, um filósofo na pele do antropólogo que, como tal, influenciou o pensamento contemporâneo.

O texto de Lévi-Strauss, primeiramente nos incita a uma re/visão da pintura impressionista, essa arte, esses pintores que se tornaram representantes de uma revolução na pintura e que são tanto cotadíssimos pelo mercado quanto amados pelo público. Ele assinala que “a despeito das obras maravilhosas que produziu, o impressionismo conduziu a um impasse” [2] e que os epígonos não tinham a “ciência” e o talento dos impressionistas primeiros. Por isso, para ele, depois de um século “a história da pintura chegou a um paradoxo” e um “saber precioso hoje desapareceu”.

Além disto, o antropólogo nos sugere, além de uma certa cautela quanto à revolução impressionista, que é preciso pensar na questão de um métier que se foi perdendo no correr do século 20, de tal modo que, já há algum tempo, em muitas escolas de arte, a palavra “ desenho”, “gravura”, “modelo vivo”, se tornaram estranhas, malditas e sinônimo de algo retrógrado a ser definitivamente esquecido e enterrado.

É possível que alguém alegue que Lévi-Strauss não tenha podido apreender algo novo que estava surgindo e que ele tenha generalizado seu severo julgamento sobre a modernidade. Mas há no seu texto algo intrigante que está exatamente na área da antropologia, e só um antropólogo poderia entrar neste assunto mencionando “o métier perdido”.

Com efeito, há um certo consenso dentro da modernidade, um pressuposto meio axiomático de que a história seria a história de um sucessão de técnicas sempre superadas por outras técnicas. Este é o pensamento do homem comum e de alguns pensadores e artistas encharcados de modernidade e do conceito retilíneo de progresso. No entanto, dois subentendidos intrigantes e complexos estão aí e não se sustentam:

1. Primeiro evidencia-se um conceito “linear” de história, uma noção de “progresso”, que se aplica muito mais à indústria do que às artes. São muitos os autores, são incontáveis os tratados dos que já se dedicaram a diferenciar “arte” de “indústria”. Isto está tanto num filósofo como Platão quanto em Virginia Woolf. Aqui e ali explica-se, por exemplo, que o conceito de um modelo de carro novo em oposição a um carro antigo, não se aplica ao confronto entre Picasso e Rembrandt. Nas artes tais comparações são assimétricas. Por exemplo: o exército americano, com razão, porque é “moderno”, não usa no Iraque ou no Afeganistão as quadrigas de guerra dos romanos, nem lanças, espadas e escudos do exército ao tempo de Felipe II. Não obstante, nós podemos assistir a Sófocles e ler Homero, Shakespeare ou Cervantes com igual ou maior deleite e proveito que os contemporâneos deles. E podemos gostar tanto de Piero della Francesca quanto de Chagal, tanto de Bach quanto de jazz.

Portanto, os que, em termos de arte, pressupõem “superação” de estilos e formas devem ser mais cautelosos em não misturar séries diferentes do saber e da representação simbólica. A melhor arte inscreve-se além do tempo e do espaço cronológico.

2. Outro mal-entendido no bojo da questão, além da “linearidade”, é pensar a história apenas em termos de “exclusão”. Este conceito foi predominante até há algumas décadas, antes que se percebesse que os “excluídos” também têm história. Os personagens e fatos “pequenos” têm tanto interesse quanto os “grandes”. Neste sentido, uma “nova história” nos ensinou a lidar com o que tinha sido “relegado”, “oculto”, “refugado” e começou-se a perceber que a compreensão da(s) história(s) exige a “inclusão” daquilo que havia sido afastado ao se privilegiar o centramento ideológico e simbólico.

3. Por isto, há uma outra observação que pode ser desentranhada do lamento de Lévi-Strauss. E aqui eu começo a introduzir outros elementos para ampliar (por minha conta e risco) a observação feita pelo antropólogo.

Consideremos, antes de retomarmos frontalmente essa questão, a palavra “esquizofrenia” e a expressão “sabedoria perdida”. Aparentemente “esquizofrenia” e “sabedoria perdida” não têm nada a ver entre si. Mas é na junção delas, e em busca de um elo perdido entre elas, que poderemos prosseguir na análise de nossa cultura.

É enriquecedor trazer um outro antropólogo do século XX para esta discussão. Refiro-me a Gregory Bateson. A partir de alguns de seus textos poderemos corrigir, expandir e talvez entender melhor a questão do “métier perdido” e da arte de nosso tempo.

Gregory Bateson, que foi casado com Margareth Mead e com ela trabalhou entre os primitivos na Nova Guiné nos anos 30, desenvolveu um trabalho transdisciplinar que, vindo da antropologia, passou pela biologia (seu pai também era biólogo) e pela psicanálise. A partir dos anos 50 e 60, Bateson foi formulando mais claramente uma teoria correlacionando a “mente” e a “natureza”. Ele vinha também de estudos sobre cibernética, mas sua obra conflui naturalmente para uma teoria estética do conhecimento.

Não, ele não se referiu expressamente ao “métier perdido”. De novo, o risco teórico vai por minha conta, pois a formulação de Bateson talvez faça avançar o que está contido ou insinuado no pensamento de Lévi-Strauss. Ou, então, pode corrigir o que de incompleto e criticável ainda se poderia localizar no pensamento do antropólogo francês. Bateson não se refere necessariamente a Lévi-Strauss; no entanto, disserta sobre uma “sabedoria” ou “saber perdido”, algo que tem a ver com o “métier perdido” de Lévi-Strauss. Assinala, por exemplo, que ignoramos “parte da nossa mente” e, perseguindo propósitos estreitos, “perdemos a sabedoria de nos conhecermos melhor”. Isto que ocorre individual e psicologicamente, segundo ele, ocorre também socialmente, porque perdemos o saber na nossa relação com o mundo natural.

Em 1960, quando a situação climática da Terra não estava tão comprometida, quando ainda não se falava muito dos pesticidas, quando as geleiras não estavam visível e ameaçadoramente se derretendo, enfim, quando a palavra “poluição” não tinha entrado para o vocabulário comum, ele advertia que valorizando extremadamente a “consciência” e a “racionalidade” estávamos implementando a nossa própria destruição. E adiantava algo que poderia parecer utópico, mas que cinqüenta anos depois é a opção que muitos perseguem para evitar um apocalipse global: “Eu não sei qual o remédio, mas a coisa é a seguinte: a consciência pode se alargar bastante através da arte, da poesia, da música, por exemplo. E através da história natural, dos aspectos da vida que a civilização industrial deprecia e ignora” [3]. Dito isto, saindo da teoria para a vida prática, fechava sua advertência com um conselho político para o cidadão seu contemporâneo: “Nunca vote numa pessoa que não seja um poeta, um artista ou um observador de pássaros” [4]. Interessado em religar o individuo ao cosmos, à natureza e a si mesmo através de um diálogo entre a parte e o todo, Bateson nos dá um elemento a mais para trabalhar a problemática da cultura de nosso tempo quando ele, antropólogo e psicanalista, operacionaliza os termos “totalidade” e “esquizofrenia”.

Por isto, dando alguns “passos para uma ecologia da mente” ele vai dizer claramente que a sobrevivência do organismo está ligada ao ambiente e “que estamos aprendendo através de uma experiência amarga que o organismo que destrói o ambiente se destrói a si mesmo” [5].

Para entender a vitalidade da proposta de Bateson, cada vez mais adequada e urgente à nossa cultura na virada do século XX para o século XXI, façamos um movimento inverso, retrocedamos cerca de cem anos, ao que sucedeu após o impressionismo, quando os movimentos futuristas e modernistas em todo o mundo, da Rússia ao Brasil, passando por Paris e Nova York, acreditavam soberana e desdenhosamente que a história e a arte fosse uma sucessão de técnicas que se superam linear e continuamente.

É forçoso lembrar, neste ano de 2009, quando o futurismo de Marinetti completa cem anos de vida, que uma das falácias do futurismo e da modernidade foi acreditar na “máquina” como substituta do “homem”. Chegou- se até a propugnar, como Corbusier, que as casas fossem “máquinas de morar”. A produção em série de automóveis da Ford, surgida naquela época, introduziu como padrão simbólico e ideológico o que chamo de “efeito metonímico”. Ou seja, a troca da parte pelo todo e do homem pela máquina, da quantidade em vez da qualidade. E a arte que sempre foi predominantemente metafórica passou a correr o risco de ser apenas metonímica; ou seja, produto de uma linha de montagem, simples objeto sem sujeito, objeto que substitui outro objeto. Enfim, objeto sem sujeito, mesmo porque a sofisticação da modernidade levaria certo pensamento ocidental a propalar a “morte do homem”, a morte do “autor” e a morte da “história”. Coincidência reveladora é que isto surge congeminado com a vulgata que decretou a “morte da arte”. Disto tratei em O enigma vazio (Ed. Rocco, 2008) ao falar da mórbida tanatologia do século XX, que saiu dizimando pessoas e raças, mitos e conceitos e chegou enfim aos gêneros artísticos.

Mas aqui me interessa destacar outro aspecto. O “homem modernista e futurista” jubilosamente mecanizado, aspirou ser um autômato conferindo esteticidade ao complexo industrial militar. E esse “homem” era um personagem tão totalitário e machista, que decretou que a mulher, esse “outro” ameaçador para o macho futurista, se convertesse num “mesmo” metonímico ou numa máquina. Este é um dos equívocos mais retrógrados e elucidativos da modernidade. A rigor não foi ainda estudado devidamente esse item: a conversão (que o imaginário artístico dos machos fez) das mulheres em máquinas. Estaria ocorrendo apenas a atualização de um comportamento arcaico de dominação. São muitos os exemplos. E se quisermos mencionar, ainda que de passagem, uma obra emblemática, tomemos o “Grande Vidro” de Marcel Duchamp, obra “definitivamente inacabada” entre 1912 e 1922. Diga-se de passagem que o crítico inglês Robert Hughes é dos poucos que indiciam esse tema, ou seja, de como o amor à máquina foi um quesito ideológico e erótico que predominou na arte do princípio do século XX, dentro daquela ideologia guerreira que forneceu exemplares como Marinetti e outros.

Assim foi preciso esperar muitas décadas no século passado para que se começasse a falar não mais de “homem” (incluindo passivamente as mulheres), mas a substituir “homem” por “pessoa humana”. Igualmente tivemos que “desautomatizar” o discurso e deixar de, “maquinal” e “metonimicamente”, falar do homem como se mulher fosse um apêndice.

As alterações discursivas são sintomas de processos de transformação histórica. Pois foi em torno dos anos 60 que o discurso dos “gêneros” começou a se desautomatizar, a perder sua mecânica totalitária e machista louvada “naturalmente” pelo futurismo e pelo modernismo. Mas foi também a partir dos anos 60 que se tornaram mais visíveis as reações contra o capitalismo selvagem e contra a sociedade afluente que havia colocado a quantidade e o consumo como objetivo final. Iniciou-se (e não é preciso me alongar sobre isto, pois já pertence ao acervo de nossa cultura) a redescoberta da natureza e dentro dela uma revalorização não mais escamoteada e pejorativa do “feminino”. Alguns críticos de arte, como Susan Gablick [6], estudam a emergência do aspecto “feminino” na arte pós-anos 60.

Adicionemos, porém, um outro raciocínio capaz de complementar o que estamos indiciando. A ecologia parece que tem algo a nos dizer sobre a questão da arte e do “métier perdido”. E aqui vemos ressurgir, de novo, a questão da interdisciplinaridade como enfoque indispensável ao esclarecimento do “enigma” contemporâneo. A ecologia, e não apenas a psicanálise, a sociologia, a economia, a teoria literária, tem algo a nos dizer. Já nos acostumamos a ver na imprensa movimentos para salvar, proteger certas espécies em extinção: no caso brasileiro, a tartaruga, a baleia, a ararinha azul, o mico leão dourado. Enfim, cada país começou a descobrir em seu espaço algumas espécie ameaçadas de extinção. Simples cidadãos, ONGs e políticas governamentais indicaram uma redescoberta da natureza como forma não apenas de sustentabilidade, mas como ultimato para salvar também a humanidade. Isto decorreu não apenas de um idealismo, mas impôs-se pela percepção objetiva de que a vida no planeta está organizada em forma de sistema e que a deterioração de parte do sistema afeta a todos. Daí as tentativas de acordos internacionais, a urgência de combater a extermínio da camada de ozônio, de deter o derretimento das geleiras na Groenlândia ou na Antártica.

O conceito de “alienação” que o pensamento marxista fez circular, advertia para a fratura entre o indivíduo e o mundo, ponderava que era preciso aproximar o ser humano de si mesmo para que ele não se transformasse em puro objeto entre outros objetos. É nesta acepção que as noções de esquizofrenia e de “double bind” (laço duplo/ambíguo), externadas por Bateson podem ser aplicadas num sentido histórico e social. A dualidade clássica entre “natureza” e “cultura”, da qual a antropologia se aproveitou para formular alguns modelos, deve ser operacionalizada como um ponto de partida e não como ponto de chegada. A melhor e mais produtiva análise antropológica não deve pressupor a superioridade da cultura sobre a natureza, mas um outro patamar de observação. Os dois conjuntos –
natureza e cultura – deveriam manter um diálogo de auto-regulação, não mais entendidas, colonizadoramente, como se a cultura e natureza fossem inimigas.

Esta noção colonizadora foi a que predominou no pensamento branco ocidental até que o século XX, inclusive com Lévi-Strauss, começou a ter uma nova visão dessa dualidade. Anteriormente, nossa sociedade ao escolher o modelo do “capitalismo selvagem”, ao decretar que a natureza era para ser “subjugada” e até “destruída”, criou problemas que nos levaram a patéticos impasses na passagem do século XX para o XXI. Daí muitos prognósticos científicos trazerem já para a nossa geração o apocalipse, caso persistamos serrando o próprio galho em que estamos sentados ou envenenando a própria água que tomamos e o alimento que comemos.

Procurando aproximar estética e ecologia Bateson estava combatendo a esquizofrenia de nossa cultura machista e autodestrutiva. Ele chega a falar de “epidemiologia da esquizofrenia”. Nisto aproximava-se tanto de um pensador como Aldous Huxley quanto de um poeta como Walt Withman, os quais procuravam a unidade ou a “graça”. Evidentemente esse termo “graça”, por mais que Bateson tenha tentado tirar dele toda a carga religiosa, insistindo num religare [7] não místico, mas vinculado aos “processos primários” de nossa natureza, esse termo está por demais carregado de significados religiosos [8].

Para Bateson, a arte é um modo de nos conectar com a natureza. A natureza externa e nossa natureza interna. Neste sentido, o nosso inconsciente não seria somente a sede da repressão, como viu Freud, mas algo muito mais poderoso e complexo. Em suma, Bateson, que tanto valorizava a metáfora como algo capaz de dizer mais objetivamente aquilo que a objetividade racional não conseguia, considerava que essa força natural é como a poesia, e “a poesia não é a prosa torcida. É o contrário disto: prosa é poesia que foi submetida à lógica”[9].

O que isto tem a ver com a arte de nosso tempo e com o pensamento de Lévi-Strauss?

Quando se fala de “métier perdido”, corre-se o risco de se pensar em algo morto, empalhado. Penso, ilustrativamente, no magnífico Museu de Artes e Ofícios (de Belo Horizonte), onde estão objetos, instrumentos, saberes antigos de séculos passados, que foram “arquivados” e não encontram mais uso na sociedade tecnológica de hoje. Ir a esse precioso museu é evidentemente visitar o passado, admirando-o, mas não com o desejo necessário de voltar ao século XVIII e ter a extração de dentes feita por um boticão de farmacêutico, como o era ao tempo de Tiradentes.

Pode-se pensar também, ao falar de “métier perdido”, em algo como taxidermia, coleções onde borboletas, pássaros, peixes, toda série de insetos e animais aparecem mortos, empalhados, espetados ou em repouso nos vidros com formol e álcool. Esses seres estão parados no espaço e no tempo. Vê-los, deste modo, é como achar um pedaço de cerâmica numa escavação: pura memória de ontem.

Mas é de outra coisa que se fala e outra coisa que se pode pensar quando retomamos a relação entre arte e antropologia, a partir da advertência de Lévi-Strauss. E para esclarecer ainda mais o que tenho a dizer, vou reinserir um texto do crítico Jean Clair que de algum modo ilustra essa problemática, ainda que sem resolvê-la. Dizia ele: “A pintura neste fim de século está mal. Para quem ama a pátria dos quadros não restará em breve mais que o interior dos museus, como para quem ama a natureza só restarão reservas de praças, para aí cultivar a nostalgia daquilo que não existe mais” [10].

Então nos perguntamos: será que devemos olhar as obras de “ontem” como um taxidermista desconsolado ou como uma melancólico antropólogo? Será que estamos mesmo num “museu de artes e ofícios” repassando a história à distância? Ou será que é possível uma outra visão, exatamente a partir da mudança de perspectiva que a ecologia propiciou desde os anos 60? Ora, o que os movimentos de preservação da natureza trouxeram, a grande novidade, é que não nos devíamos conformar com a idéia de ir aos museus de história natural para ver o mundo de ontem, mas transformar a natureza, ainda que tardiamente, num museu vivo, ou seja, num antimuseu, numa “negação” do museu, posto que seria a reintegração do espaço da vida na própria vida, e não mais friamente armazenada, condensada, segregada, empalhada atrás de uma vitrina.

A ecologia é um passo adiante da taxidermia. Ela é realmente “contemporânea”, pois coloca a natureza no mesmo tempo & espaço do observador.

Com efeito, duas anomalias ocorrem no espaço das artes hoje. Primeiro, alguns artistas e teóricos que se julgam pós-modernos pretendem que a história da arte seja uma repetição da taxidermia, ou seja, julgam que os museus de arte são uma espécie de “museus de história natural” onde só existem coisas mortas, paralisadas no tempo e no espaço. Ali estariam alojados espécimes que não têm mais função. Neste sentido, chegam a olhar o museu pejorativamente, como se fossem um entrave ao “progresso” da “cultura”. Esta posição ecoa uma das frases mais patéticas, infelizes e danosas de Marcel Duchamp: “É preciso acabar com a arte enquanto é tempo”.

Tal frase parece dizer: temos que acabar com os dinossauros, os elefantes, os inimigos do homem enquanto é tempo. Alguém poderia alegar que era uma boutade. Não era. E isto está demonstrado na análise que fiz de sua obra e de seus textos em “O enigma vazio”. Seria a arte, então, como quer esse pensamento duchampiano, uma inimiga do homem e da cultura? Este é o conceito implícito quando se fala de “métier perdido” em termos de arte e quando a encaramos como um ramo da taxidermia

É incontornável lembrar que os futuristas, comandados por Marinetti, propunham a queima dos museus (como outros ainda incendeiam florestas). Mas existe um paradoxo que é necessário desentranhar dentro da esquizofrenia de nossa época, pois as pessoas continuam indo aos museus para sentirem “no passado” o que não mais sentem diante das obras de seu tempo.

Alguém erroneamente poderia dizer que essas pessoas estão indo ao cemitério. (Duchamp dizia que um quadro morria depois de cinqüenta anos). Que estariam indo depositar flores nos túmulos de Da Vinci, Matisse, Van Gogh, Lucas Cranach. Seria isto verdade? Os museus são um espaço de necrofilia ou o espaço onde a cultura retoma os elos, constrói a totalidade da compreensão do fenômeno humano através do mistério da arte e de seus “processos primários”?

Mas nos museus contemporâneos ocorre algo sintomático que tem tudo a ver com a esquizofrenia entre o indivíduo e a cultura dominante. Algumas salas, por sinal as que vão da Renascença até o princípio do século XX, estão sempre cheias de visitantes, por oposição ao constrangedor vazio que existe nas salas mais “contemporâneas”. Será então que certas obras de ontem são mais contemporâneas que algumas obras de hoje?

A essa questão, viciosa e precariamente, alguns respondem dizendo que o artista vem sempre à frente do seu tempo. Este é um mito da modernidade. Mito romântico e vanguardista. Mais um mito da modernidade que tem de ser revisto por uma nova epistemologia; pois de tanto querer vir “à frente” e anunciar o “futuro”, muitos acabam não anunciando nada, afastando-se de si mesmos e da temporalidade de seu tempo.

As teorias da “evolução” e do “progresso” vindas de outros séculos dominaram subreptícia e arrogantemente o século XX. A arte não escapou dessa jubilosa ideologia que trabalha com a exclusão. Certos artistas e teóricos, exercitando uma utopia perversa, alardearam uma alucinada autonomia da arte, como se ela não tivesse nada a ver com a comunidade, com a história, com o contexto e com os indivíduos. Assim, perdeu-se até a lição daqueles artistas que, no princípio da arte moderna, foram buscar na arte primitiva e na tradição novos elementos de trabalho.

A história é um constante reprocessar de técnicas, fazeres e saberes.

Não há métier perdido. Há artistas perdidos, e pior, sem métier.

Affonso Romano de Sant’Anna é poeta, escritor e ensaísta. Autor de mais de 50 livros sendo o último Perdidos na Toscana (L&PM Editores, 2009).


[1] Em 2002 a propósito de uma série de artigos publicado em O Globo, e que depois reuni em Desconstruir Duchamp (Ed. Vieira & Lent, Rio, 2003), fui acusado de “forasteiro” pelos que não tinha argumentos para rebater minhas formulações críticas sobre a arte de nosso tempo. Na ocasião, respondi com o artigo “O forasteiro e a cidadela”, também incluído no mencionado livro.

[2] Idem, p. 73.

[3] Charlton, Noel G. Understanding Gregory Bateson (State University of New York Press, New York, 2008, p. 100).

[4] Ibidem.

[5] Bateson, Gregory. Steps to an ecology of mind (The University Chicago Press, 1972, p. 491).

[6] Ver da autora The Reenchantment of Art e Modernism, ambos da Thames and Hudson.

[7] Edgar Morin também trabalhou sobre esse tema. Ver: A religação dos saberes-desafio do século XXI (Ed. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2002).

[8] Eu preferiria usar a idéia estética e psicológica de “epifania”, de percepção, como acontece em alguns autores que já estudei (Clarice Lispector e Carlos Drummond) e que embrionariamente estava também em James Joyce.

[9] Understanding Gregory Bateson, ob. cit., p 106.

[10] Clair, Jean. Considèrations sur l’état des beaux arts (Gallimard. Paris, 1983, p 11).

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Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro/2009. Disponível no link <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/o-metier-perdido-e-a-arte/>.