Museu do Louvre, em Paris (Le Louvre et sa Pyramide, de nuit, Free On-Line Photos (FOLP), image 2269)
“A pintura neste fim de século está mal. Para quem ama a pátria dos quadros não restará em breve mais que o interior dos museus, como para quem ama a natureza só restarão reservas de praças, para aí cultivar a nostalgia daquilo que não existe mais” (Jean Clair).
O que tem a antropologia a nos dizer sobre a crise das artes plásticas no século 20? Venho me fazendo esta pergunta, dentro do clima de celebração, em 2009, dos cem anos de Lévi-Strauss, e depois de ler e reler um texto seu, pouco divulgado: “Le métier perdu” (“O ‘métier’ perdido”). Reli este texto, há alguns anos, no volume Tout l’art contemporain est-il nul? (“Toda a arte contemporânea é nula?”). Neste livro há uma série de autores como Lévi-Strauss, Tom Wolfe, Jean Clair, Henri Meschnnic, Jean Phillippe Domecq, Marc Le Bot, Jean Baudrillard, Luc Ferry e alguns outros, pensando a arte de nosso tempo, essa que se quer “contemporânea” e “pós-moderna”.
O referido texto de Lévi-Strauss é sintomático da complexidade da questão que há cerca de cem anos enfrentamos. Não se pode dizer que este autor seja um “forasteiro” em termos de arte, como em geral retrucam os que não aceitam qualquer critica à arte oficial de nossos dias [1]. Ao contrário, Lévi-Strauss além de ser o mais notável antropólogo do século XX é um bom conhecedor de música (que aplica em suas análises antropológicas) e igualmente conhecedor de literatura e de artes em geral. É um pensador, um artista, um filósofo na pele do antropólogo que, como tal, influenciou o pensamento contemporâneo.
O texto de Lévi-Strauss, primeiramente nos incita a uma re/visão da pintura impressionista, essa arte, esses pintores que se tornaram representantes de uma revolução na pintura e que são tanto cotadíssimos pelo mercado quanto amados pelo público. Ele assinala que “a despeito das obras maravilhosas que produziu, o impressionismo conduziu a um impasse” [2] e que os epígonos não tinham a “ciência” e o talento dos impressionistas primeiros. Por isso, para ele, depois de um século “a história da pintura chegou a um paradoxo” e um “saber precioso hoje desapareceu”.
Além disto, o antropólogo nos sugere, além de uma certa cautela quanto à revolução impressionista, que é preciso pensar na questão de um métier que se foi perdendo no correr do século 20, de tal modo que, já há algum tempo, em muitas escolas de arte, a palavra “ desenho”, “gravura”, “modelo vivo”, se tornaram estranhas, malditas e sinônimo de algo retrógrado a ser definitivamente esquecido e enterrado.
É possível que alguém alegue que Lévi-Strauss não tenha podido apreender algo novo que estava surgindo e que ele tenha generalizado seu severo julgamento sobre a modernidade. Mas há no seu texto algo intrigante que está exatamente na área da antropologia, e só um antropólogo poderia entrar neste assunto mencionando “o métier perdido”.
Com efeito, há um certo consenso dentro da modernidade, um pressuposto meio axiomático de que a história seria a história de um sucessão de técnicas sempre superadas por outras técnicas. Este é o pensamento do homem comum e de alguns pensadores e artistas encharcados de modernidade e do conceito retilíneo de progresso. No entanto, dois subentendidos intrigantes e complexos estão aí e não se sustentam:
1. Primeiro evidencia-se um conceito “linear” de história, uma noção de “progresso”, que se aplica muito mais à indústria do que às artes. São muitos os autores, são incontáveis os tratados dos que já se dedicaram a diferenciar “arte” de “indústria”. Isto está tanto num filósofo como Platão quanto em Virginia Woolf. Aqui e ali explica-se, por exemplo, que o conceito de um modelo de carro novo em oposição a um carro antigo, não se aplica ao confronto entre Picasso e Rembrandt. Nas artes tais comparações são assimétricas. Por exemplo: o exército americano, com razão, porque é “moderno”, não usa no Iraque ou no Afeganistão as quadrigas de guerra dos romanos, nem lanças, espadas e escudos do exército ao tempo de Felipe II. Não obstante, nós podemos assistir a Sófocles e ler Homero, Shakespeare ou Cervantes com igual ou maior deleite e proveito que os contemporâneos deles. E podemos gostar tanto de Piero della Francesca quanto de Chagal, tanto de Bach quanto de jazz.
Portanto, os que, em termos de arte, pressupõem “superação” de estilos e formas devem ser mais cautelosos em não misturar séries diferentes do saber e da representação simbólica. A melhor arte inscreve-se além do tempo e do espaço cronológico.
2. Outro mal-entendido no bojo da questão, além da “linearidade”, é pensar a história apenas em termos de “exclusão”. Este conceito foi predominante até há algumas décadas, antes que se percebesse que os “excluídos” também têm história. Os personagens e fatos “pequenos” têm tanto interesse quanto os “grandes”. Neste sentido, uma “nova história” nos ensinou a lidar com o que tinha sido “relegado”, “oculto”, “refugado” e começou-se a perceber que a compreensão da(s) história(s) exige a “inclusão” daquilo que havia sido afastado ao se privilegiar o centramento ideológico e simbólico.
3. Por isto, há uma outra observação que pode ser desentranhada do lamento de Lévi-Strauss. E aqui eu começo a introduzir outros elementos para ampliar (por minha conta e risco) a observação feita pelo antropólogo.
Consideremos, antes de retomarmos frontalmente essa questão, a palavra “esquizofrenia” e a expressão “sabedoria perdida”. Aparentemente “esquizofrenia” e “sabedoria perdida” não têm nada a ver entre si. Mas é na junção delas, e em busca de um elo perdido entre elas, que poderemos prosseguir na análise de nossa cultura.
É enriquecedor trazer um outro antropólogo do século XX para esta discussão. Refiro-me a Gregory Bateson. A partir de alguns de seus textos poderemos corrigir, expandir e talvez entender melhor a questão do “métier perdido” e da arte de nosso tempo.
Gregory Bateson, que foi casado com Margareth Mead e com ela trabalhou entre os primitivos na Nova Guiné nos anos 30, desenvolveu um trabalho transdisciplinar que, vindo da antropologia, passou pela biologia (seu pai também era biólogo) e pela psicanálise. A partir dos anos 50 e 60, Bateson foi formulando mais claramente uma teoria correlacionando a “mente” e a “natureza”. Ele vinha também de estudos sobre cibernética, mas sua obra conflui naturalmente para uma teoria estética do conhecimento.
Não, ele não se referiu expressamente ao “métier perdido”. De novo, o risco teórico vai por minha conta, pois a formulação de Bateson talvez faça avançar o que está contido ou insinuado no pensamento de Lévi-Strauss. Ou, então, pode corrigir o que de incompleto e criticável ainda se poderia localizar no pensamento do antropólogo francês. Bateson não se refere necessariamente a Lévi-Strauss; no entanto, disserta sobre uma “sabedoria” ou “saber perdido”, algo que tem a ver com o “métier perdido” de Lévi-Strauss. Assinala, por exemplo, que ignoramos “parte da nossa mente” e, perseguindo propósitos estreitos, “perdemos a sabedoria de nos conhecermos melhor”. Isto que ocorre individual e psicologicamente, segundo ele, ocorre também socialmente, porque perdemos o saber na nossa relação com o mundo natural.
Em 1960, quando a situação climática da Terra não estava tão comprometida, quando ainda não se falava muito dos pesticidas, quando as geleiras não estavam visível e ameaçadoramente se derretendo, enfim, quando a palavra “poluição” não tinha entrado para o vocabulário comum, ele advertia que valorizando extremadamente a “consciência” e a “racionalidade” estávamos implementando a nossa própria destruição. E adiantava algo que poderia parecer utópico, mas que cinqüenta anos depois é a opção que muitos perseguem para evitar um apocalipse global: “Eu não sei qual o remédio, mas a coisa é a seguinte: a consciência pode se alargar bastante através da arte, da poesia, da música, por exemplo. E através da história natural, dos aspectos da vida que a civilização industrial deprecia e ignora” [3]. Dito isto, saindo da teoria para a vida prática, fechava sua advertência com um conselho político para o cidadão seu contemporâneo: “Nunca vote numa pessoa que não seja um poeta, um artista ou um observador de pássaros” [4]. Interessado em religar o individuo ao cosmos, à natureza e a si mesmo através de um diálogo entre a parte e o todo, Bateson nos dá um elemento a mais para trabalhar a problemática da cultura de nosso tempo quando ele, antropólogo e psicanalista, operacionaliza os termos “totalidade” e “esquizofrenia”.
Por isto, dando alguns “passos para uma ecologia da mente” ele vai dizer claramente que a sobrevivência do organismo está ligada ao ambiente e “que estamos aprendendo através de uma experiência amarga que o organismo que destrói o ambiente se destrói a si mesmo” [5].
Para entender a vitalidade da proposta de Bateson, cada vez mais adequada e urgente à nossa cultura na virada do século XX para o século XXI, façamos um movimento inverso, retrocedamos cerca de cem anos, ao que sucedeu após o impressionismo, quando os movimentos futuristas e modernistas em todo o mundo, da Rússia ao Brasil, passando por Paris e Nova York, acreditavam soberana e desdenhosamente que a história e a arte fosse uma sucessão de técnicas que se superam linear e continuamente.
É forçoso lembrar, neste ano de 2009, quando o futurismo de Marinetti completa cem anos de vida, que uma das falácias do futurismo e da modernidade foi acreditar na “máquina” como substituta do “homem”. Chegou- se até a propugnar, como Corbusier, que as casas fossem “máquinas de morar”. A produção em série de automóveis da Ford, surgida naquela época, introduziu como padrão simbólico e ideológico o que chamo de “efeito metonímico”. Ou seja, a troca da parte pelo todo e do homem pela máquina, da quantidade em vez da qualidade. E a arte que sempre foi predominantemente metafórica passou a correr o risco de ser apenas metonímica; ou seja, produto de uma linha de montagem, simples objeto sem sujeito, objeto que substitui outro objeto. Enfim, objeto sem sujeito, mesmo porque a sofisticação da modernidade levaria certo pensamento ocidental a propalar a “morte do homem”, a morte do “autor” e a morte da “história”. Coincidência reveladora é que isto surge congeminado com a vulgata que decretou a “morte da arte”. Disto tratei em O enigma vazio (Ed. Rocco, 2008) ao falar da mórbida tanatologia do século XX, que saiu dizimando pessoas e raças, mitos e conceitos e chegou enfim aos gêneros artísticos.
Mas aqui me interessa destacar outro aspecto. O “homem modernista e futurista” jubilosamente mecanizado, aspirou ser um autômato conferindo esteticidade ao complexo industrial militar. E esse “homem” era um personagem tão totalitário e machista, que decretou que a mulher, esse “outro” ameaçador para o macho futurista, se convertesse num “mesmo” metonímico ou numa máquina. Este é um dos equívocos mais retrógrados e elucidativos da modernidade. A rigor não foi ainda estudado devidamente esse item: a conversão (que o imaginário artístico dos machos fez) das mulheres em máquinas. Estaria ocorrendo apenas a atualização de um comportamento arcaico de dominação. São muitos os exemplos. E se quisermos mencionar, ainda que de passagem, uma obra emblemática, tomemos o “Grande Vidro” de Marcel Duchamp, obra “definitivamente inacabada” entre 1912 e 1922. Diga-se de passagem que o crítico inglês Robert Hughes é dos poucos que indiciam esse tema, ou seja, de como o amor à máquina foi um quesito ideológico e erótico que predominou na arte do princípio do século XX, dentro daquela ideologia guerreira que forneceu exemplares como Marinetti e outros.
Assim foi preciso esperar muitas décadas no século passado para que se começasse a falar não mais de “homem” (incluindo passivamente as mulheres), mas a substituir “homem” por “pessoa humana”. Igualmente tivemos que “desautomatizar” o discurso e deixar de, “maquinal” e “metonimicamente”, falar do homem como se mulher fosse um apêndice.
As alterações discursivas são sintomas de processos de transformação histórica. Pois foi em torno dos anos 60 que o discurso dos “gêneros” começou a se desautomatizar, a perder sua mecânica totalitária e machista louvada “naturalmente” pelo futurismo e pelo modernismo. Mas foi também a partir dos anos 60 que se tornaram mais visíveis as reações contra o capitalismo selvagem e contra a sociedade afluente que havia colocado a quantidade e o consumo como objetivo final. Iniciou-se (e não é preciso me alongar sobre isto, pois já pertence ao acervo de nossa cultura) a redescoberta da natureza e dentro dela uma revalorização não mais escamoteada e pejorativa do “feminino”. Alguns críticos de arte, como Susan Gablick [6], estudam a emergência do aspecto “feminino” na arte pós-anos 60.
Adicionemos, porém, um outro raciocínio capaz de complementar o que estamos indiciando. A ecologia parece que tem algo a nos dizer sobre a questão da arte e do “métier perdido”. E aqui vemos ressurgir, de novo, a questão da interdisciplinaridade como enfoque indispensável ao esclarecimento do “enigma” contemporâneo. A ecologia, e não apenas a psicanálise, a sociologia, a economia, a teoria literária, tem algo a nos dizer. Já nos acostumamos a ver na imprensa movimentos para salvar, proteger certas espécies em extinção: no caso brasileiro, a tartaruga, a baleia, a ararinha azul, o mico leão dourado. Enfim, cada país começou a descobrir em seu espaço algumas espécie ameaçadas de extinção. Simples cidadãos, ONGs e políticas governamentais indicaram uma redescoberta da natureza como forma não apenas de sustentabilidade, mas como ultimato para salvar também a humanidade. Isto decorreu não apenas de um idealismo, mas impôs-se pela percepção objetiva de que a vida no planeta está organizada em forma de sistema e que a deterioração de parte do sistema afeta a todos. Daí as tentativas de acordos internacionais, a urgência de combater a extermínio da camada de ozônio, de deter o derretimento das geleiras na Groenlândia ou na Antártica.
O conceito de “alienação” que o pensamento marxista fez circular, advertia para a fratura entre o indivíduo e o mundo, ponderava que era preciso aproximar o ser humano de si mesmo para que ele não se transformasse em puro objeto entre outros objetos. É nesta acepção que as noções de esquizofrenia e de “double bind” (laço duplo/ambíguo), externadas por Bateson podem ser aplicadas num sentido histórico e social. A dualidade clássica entre “natureza” e “cultura”, da qual a antropologia se aproveitou para formular alguns modelos, deve ser operacionalizada como um ponto de partida e não como ponto de chegada. A melhor e mais produtiva análise antropológica não deve pressupor a superioridade da cultura sobre a natureza, mas um outro patamar de observação. Os dois conjuntos –
natureza e cultura – deveriam manter um diálogo de auto-regulação, não mais entendidas, colonizadoramente, como se a cultura e natureza fossem inimigas.
Esta noção colonizadora foi a que predominou no pensamento branco ocidental até que o século XX, inclusive com Lévi-Strauss, começou a ter uma nova visão dessa dualidade. Anteriormente, nossa sociedade ao escolher o modelo do “capitalismo selvagem”, ao decretar que a natureza era para ser “subjugada” e até “destruída”, criou problemas que nos levaram a patéticos impasses na passagem do século XX para o XXI. Daí muitos prognósticos científicos trazerem já para a nossa geração o apocalipse, caso persistamos serrando o próprio galho em que estamos sentados ou envenenando a própria água que tomamos e o alimento que comemos.
Procurando aproximar estética e ecologia Bateson estava combatendo a esquizofrenia de nossa cultura machista e autodestrutiva. Ele chega a falar de “epidemiologia da esquizofrenia”. Nisto aproximava-se tanto de um pensador como Aldous Huxley quanto de um poeta como Walt Withman, os quais procuravam a unidade ou a “graça”. Evidentemente esse termo “graça”, por mais que Bateson tenha tentado tirar dele toda a carga religiosa, insistindo num religare [7] não místico, mas vinculado aos “processos primários” de nossa natureza, esse termo está por demais carregado de significados religiosos [8].
Para Bateson, a arte é um modo de nos conectar com a natureza. A natureza externa e nossa natureza interna. Neste sentido, o nosso inconsciente não seria somente a sede da repressão, como viu Freud, mas algo muito mais poderoso e complexo. Em suma, Bateson, que tanto valorizava a metáfora como algo capaz de dizer mais objetivamente aquilo que a objetividade racional não conseguia, considerava que essa força natural é como a poesia, e “a poesia não é a prosa torcida. É o contrário disto: prosa é poesia que foi submetida à lógica”[9].
O que isto tem a ver com a arte de nosso tempo e com o pensamento de Lévi-Strauss?
Quando se fala de “métier perdido”, corre-se o risco de se pensar em algo morto, empalhado. Penso, ilustrativamente, no magnífico Museu de Artes e Ofícios (de Belo Horizonte), onde estão objetos, instrumentos, saberes antigos de séculos passados, que foram “arquivados” e não encontram mais uso na sociedade tecnológica de hoje. Ir a esse precioso museu é evidentemente visitar o passado, admirando-o, mas não com o desejo necessário de voltar ao século XVIII e ter a extração de dentes feita por um boticão de farmacêutico, como o era ao tempo de Tiradentes.
Pode-se pensar também, ao falar de “métier perdido”, em algo como taxidermia, coleções onde borboletas, pássaros, peixes, toda série de insetos e animais aparecem mortos, empalhados, espetados ou em repouso nos vidros com formol e álcool. Esses seres estão parados no espaço e no tempo. Vê-los, deste modo, é como achar um pedaço de cerâmica numa escavação: pura memória de ontem.
Mas é de outra coisa que se fala e outra coisa que se pode pensar quando retomamos a relação entre arte e antropologia, a partir da advertência de Lévi-Strauss. E para esclarecer ainda mais o que tenho a dizer, vou reinserir um texto do crítico Jean Clair que de algum modo ilustra essa problemática, ainda que sem resolvê-la. Dizia ele: “A pintura neste fim de século está mal. Para quem ama a pátria dos quadros não restará em breve mais que o interior dos museus, como para quem ama a natureza só restarão reservas de praças, para aí cultivar a nostalgia daquilo que não existe mais” [10].
Então nos perguntamos: será que devemos olhar as obras de “ontem” como um taxidermista desconsolado ou como uma melancólico antropólogo? Será que estamos mesmo num “museu de artes e ofícios” repassando a história à distância? Ou será que é possível uma outra visão, exatamente a partir da mudança de perspectiva que a ecologia propiciou desde os anos 60? Ora, o que os movimentos de preservação da natureza trouxeram, a grande novidade, é que não nos devíamos conformar com a idéia de ir aos museus de história natural para ver o mundo de ontem, mas transformar a natureza, ainda que tardiamente, num museu vivo, ou seja, num antimuseu, numa “negação” do museu, posto que seria a reintegração do espaço da vida na própria vida, e não mais friamente armazenada, condensada, segregada, empalhada atrás de uma vitrina.
A ecologia é um passo adiante da taxidermia. Ela é realmente “contemporânea”, pois coloca a natureza no mesmo tempo & espaço do observador.
Com efeito, duas anomalias ocorrem no espaço das artes hoje. Primeiro, alguns artistas e teóricos que se julgam pós-modernos pretendem que a história da arte seja uma repetição da taxidermia, ou seja, julgam que os museus de arte são uma espécie de “museus de história natural” onde só existem coisas mortas, paralisadas no tempo e no espaço. Ali estariam alojados espécimes que não têm mais função. Neste sentido, chegam a olhar o museu pejorativamente, como se fossem um entrave ao “progresso” da “cultura”. Esta posição ecoa uma das frases mais patéticas, infelizes e danosas de Marcel Duchamp: “É preciso acabar com a arte enquanto é tempo”.
Tal frase parece dizer: temos que acabar com os dinossauros, os elefantes, os inimigos do homem enquanto é tempo. Alguém poderia alegar que era uma boutade. Não era. E isto está demonstrado na análise que fiz de sua obra e de seus textos em “O enigma vazio”. Seria a arte, então, como quer esse pensamento duchampiano, uma inimiga do homem e da cultura? Este é o conceito implícito quando se fala de “métier perdido” em termos de arte e quando a encaramos como um ramo da taxidermia
É incontornável lembrar que os futuristas, comandados por Marinetti, propunham a queima dos museus (como outros ainda incendeiam florestas). Mas existe um paradoxo que é necessário desentranhar dentro da esquizofrenia de nossa época, pois as pessoas continuam indo aos museus para sentirem “no passado” o que não mais sentem diante das obras de seu tempo.
Alguém erroneamente poderia dizer que essas pessoas estão indo ao cemitério. (Duchamp dizia que um quadro morria depois de cinqüenta anos). Que estariam indo depositar flores nos túmulos de Da Vinci, Matisse, Van Gogh, Lucas Cranach. Seria isto verdade? Os museus são um espaço de necrofilia ou o espaço onde a cultura retoma os elos, constrói a totalidade da compreensão do fenômeno humano através do mistério da arte e de seus “processos primários”?
Mas nos museus contemporâneos ocorre algo sintomático que tem tudo a ver com a esquizofrenia entre o indivíduo e a cultura dominante. Algumas salas, por sinal as que vão da Renascença até o princípio do século XX, estão sempre cheias de visitantes, por oposição ao constrangedor vazio que existe nas salas mais “contemporâneas”. Será então que certas obras de ontem são mais contemporâneas que algumas obras de hoje?
A essa questão, viciosa e precariamente, alguns respondem dizendo que o artista vem sempre à frente do seu tempo. Este é um mito da modernidade. Mito romântico e vanguardista. Mais um mito da modernidade que tem de ser revisto por uma nova epistemologia; pois de tanto querer vir “à frente” e anunciar o “futuro”, muitos acabam não anunciando nada, afastando-se de si mesmos e da temporalidade de seu tempo.
As teorias da “evolução” e do “progresso” vindas de outros séculos dominaram subreptícia e arrogantemente o século XX. A arte não escapou dessa jubilosa ideologia que trabalha com a exclusão. Certos artistas e teóricos, exercitando uma utopia perversa, alardearam uma alucinada autonomia da arte, como se ela não tivesse nada a ver com a comunidade, com a história, com o contexto e com os indivíduos. Assim, perdeu-se até a lição daqueles artistas que, no princípio da arte moderna, foram buscar na arte primitiva e na tradição novos elementos de trabalho.
A história é um constante reprocessar de técnicas, fazeres e saberes.
Não há métier perdido. Há artistas perdidos, e pior, sem métier.
Affonso Romano de Sant’Anna é poeta, escritor e ensaísta. Autor de mais de 50 livros sendo o último Perdidos na Toscana (L&PM Editores, 2009).
[1] Em 2002 a propósito de uma série de artigos publicado em O Globo, e que depois reuni em Desconstruir Duchamp (Ed. Vieira & Lent, Rio, 2003), fui acusado de “forasteiro” pelos que não tinha argumentos para rebater minhas formulações críticas sobre a arte de nosso tempo. Na ocasião, respondi com o artigo “O forasteiro e a cidadela”, também incluído no mencionado livro.
[2] Idem, p. 73.
[3] Charlton, Noel G. Understanding Gregory Bateson (State University of New York Press, New York, 2008, p. 100).
[4] Ibidem.
[5] Bateson, Gregory. Steps to an ecology of mind (The University Chicago Press, 1972, p. 491).
[6] Ver da autora The Reenchantment of Art e Modernism, ambos da Thames and Hudson.
[7] Edgar Morin também trabalhou sobre esse tema. Ver: A religação dos saberes-desafio do século XXI (Ed. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2002).
[8] Eu preferiria usar a idéia estética e psicológica de “epifania”, de percepção, como acontece em alguns autores que já estudei (Clarice Lispector e Carlos Drummond) e que embrionariamente estava também em James Joyce.
[9] Understanding Gregory Bateson, ob. cit., p 106.
[10] Clair, Jean. Considèrations sur l’état des beaux arts (Gallimard. Paris, 1983, p 11).
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Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro/2009. Disponível no link <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/o-metier-perdido-e-a-arte/>.