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Ativismo, aborto e Estado de Direito

Direito | 06/08/2018 | | IFE SÃO PAULO

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O STF irá apreciar uma ação que discute a criminalização do aborto. É notória a polêmica que envolve o tema no Brasil e no mundo. Em consequência, os lados pró-vida e pró-escolha estão se movimentando, manifestando e debatendo.

O problema é que novamente a sociedade entra em conflito em razão do mérito de processos que chegam ao Supremo, esquecendo-se de um problema preliminar.

Caso o aborto seja legalizado pela via judicial, muitos dos que se alinham ao lado pró-escolha irão comemorar. Mas faz sentido comemorar uma decisão nesse sentido?

A questão é que a legalização através do STF representaria mais uma lamentável manifestação de ativismo judicial. A Constituição Federal protege a vida como direito fundamental, não fazendo qualquer permissão ao aborto (como o faz em relação à possibilidade de pena de morte nos casos de guerra). Ainda, o Pacto de San José da Costa Rica, norma de status supralegal, prevê expressamente que a vida deve ser protegida desde a concepção. O legislador ordinário, no Código Penal, regulamentou a proteção à vida, prevendo como crimes o homicídio, o infanticídio e o aborto – permitindo sua prática em apenas duas hipóteses: risco de vida para a mãe e gravidez decorrente de estupro.

Considerando as normas acima expostas, é evidente que somente “saltos triplos carpados hermenêuticos” poderiam justificar a ampliação, à revelia do Congresso, da permissão do aborto no país. Qualquer exercício honesto de interpretação das normas vigentes confirma que não há nenhuma inconstitucionalidade na criminalização da conduta, tanto que eventual decisão nesse sentido necessariamente se baseará somente em uma mistura confusa de princípios abstratos.

Uma decisão com estes fundamentos poderia ser traduzida da seguinte forma: a Constituição é aquilo que os Ministros dizem que ela é.

Quantas decisões semelhantes não temos visto nos últimos anos? Financiamento público de campanha, casamento entre pessoas do mesmo sexo, possibilidade de cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da decisão criminal etc.

A Corte se inclina, por vezes, para um ativismo progressista, outras para um ativismo conservador. A sociedade, impotente frente a este poder ilimitado, aplaude ou vaia conforme as preferências pessoais. Até quando?

Enquanto não percebermos que o papel do STF é interpretar a Constituição – e não criar uma nova -, estaremos endossando um sistema político que se distancia da Democracia e do Estado de Direito (com seus procedimentos e limitações a poderes). Em um de seus famosos votos, o falecido juiz da Suprema Corte americana, Antonin Scalia, resumiu de forma brilhante a gravidade de nos submetermos a um regime em que alguns juízes não eleitos decidem, de forma ilimitada, o que é constitucional ou não: “A decisão de hoje diz que meu governante, e o governante de 320 milhões de americanos costa-a-costa, é uma maioria dos nove juízes da Suprema Corte. (…) Essa prática de revisão constitucional por um comitê não eleito de nove, sempre acompanhada (como hoje) por um extravagante louvor à liberdade, rouba do povo a mais importante liberdade afirmada na Declaração de Independência e conquistada na Revolução de 1776, a liberdade para se autogovernar”.

Salvo em situações excepcionais, é dever de todos respeitar as leis que existem em nosso país, bem como os trâmites legais para alterações e mudanças normativas. Não se olvida que a vida, a saúde, a liberdade e a intimidade são direitos fundamentais.
Mas também é fundamental para a vida em sociedade que os procedimentos sejam respeitados, que as decisões tomadas pelo povo sejam observadas, que estas se deem de acordo com uma Constituição que, apesar de defeituosa, não estabelece um regime totalitário ou injusto e, por fim, que nenhum poder torne-se ilimitado.

Editores IFE São Paulo

Os novos juízes

Opinião Pública | 18/04/2018 | | IFE CAMPINAS

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Muito se fala sobre juízes e desembargadores que atuam nas diversas fases e cidades em que a operação “Lava Jato” toma a cena judicial. Tento ler e ouvir tudo que esses julgadores têm produzido a título de decisão, seja singular ou colegiada. É uma nova onda de profissionais que destoa completamente da postura de muitos ministros do STF, dados ao protagonismo cênico nas inúmeras “sessões da tarde” a que já assistimos.

Não há competição pessoal ou ideológica entre os membros dessa nova geração judicial. Nem louvores recíprocos e cada um é si próprio. Não há troca de críticas veladas ou exercício de claque desnecessária. Não existe exibicionismo e nem pedantismo intelectual ou mesmo bacharelismo rococó. Esses novos julgadores não se valem de doutrinas exóticas plantadas e regadas no além mar. Não existe remissão constante a autores ou abstrações estrangeiras.

Contudo, essa onda não é recente. A nova geração de julgadores, em sua maioria já com duas décadas de carreira dedicada ao serviço público, têm se comportado assim há tempos, com a diferença de que, agora, os holofotes da mídia fecham seu foco sobre eles, em razão da qualidade dos réus que frequentam seus processos, notavelmente marcados pelo desfile no capítulo do Código Penal destinado aos crimes contra a administração pública.

O cidadão fica encantado com a performance desses novos profissionais, porque, em regra, a única experiência judicial que ele teve foi uma audiência de conciliação pré-processual que terminou na composição do litígio ou uma sessão de julgamento do STF assistida pela metade com direito a bate-boca entre ministros. A nova geração de juízes, aprovada na meritocracia do concurso público de provas e títulos, preocupa-se em analisar fatos e dar o direito de cada um.

Os novos juízes, forjados no árido cotidiano forense, estão focados em resolver a lide e não em fazer masturbação intelectual com teses alienígenas no bojo da sentença. São melhores julgadores, pois proferem sentenças diretas, nas quais escrevem o necessário e, ao final, prudentemente entregam aos litigantes aquilo que foram buscar: a solução do conflito e não seu tensionamento.

Os novos juízes foram submetidos, sob lento e constante calor, no cadinho da sapiência judicial: decidiram, desde o primeiro dia da carreira, todos os tipos de casos, problemas pessoais e coletivos, ações de alimento e de improbidade, crimes e divórcios e isso os destilou, como um vinho de guarda, para uma ampla gama de conhecimento sobre a beleza e a tragédia do homem e para o fardo e a responsabilidade de se decidir sobre a vida alheia.

Os novos juízes, finalmente, atraíram o foco da mídia, usualmente antenada nas cortes superiores, cuja composição é feita a partir da indicação política do presidente, para quem a reputação ilibada e o notório saber jurídico, não raro, são substituídos pelo puro e espúrio apadrinhamento político. Logo, foi notada a profunda diferença de mundivisão jurídica havida entre aqueles que entraram pela porta da frente e aqueles que optaram pela entrada lateral do Poder Judiciário.

Os novos juízes, em sua maioria, não se deixam contaminar por vertentes ideológicas, interesses políticos e econômicos, nem se abalam com insinuações midiáticas ou querem a todo custo angariar o beneplácito da mídia, porque têm, em alto grau de consciência, o sentido de fazer honrar sua toga e de, a partir do ordenamento jurídico, colaborar, modesta e silenciosamente, para o alcance de uma ordem social justa.

Nesse louvável afã, pouco importam a condição econômica ou o poderio político do réu: a lei é para todos. Seja o presidente. Seja o servente. Platão, na boca de Sócrates, já nos recordava que o juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar segundo a lei. A demagogia nunca caiu bem para a toga. É esse o abismo que separa o sentir jurídico dos novos juízes das posturas de muitos dos ministros do STF nos julgamentos que envolvem, como réus, os altos escalões de nossa combalida política tupiniquim.

Os novos juízes, sobretudo aqueles que conduzem os destinos da operação “Lava Jato”, seguem cumprindo seu papel constitucional e social, mesmo que isso incomode os donos do poder em confronto com a lei. Urge, cada vez mais, trazer à tona a atuação dos novos juízes, a fim de que o cidadão, destinatário de nossa jurisdição, tenha a exata noção da realidade decisória de uma nova magistratura que, sendo a verdadeira, pede passagem. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 18/04/2018, Página A-2, Opinião.

Supremo desencanto

Opinião Pública | 21/02/2018 | | IFE CAMPINAS

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Em tempos de realidade social anônima, onde o vazio deixado pela ausência de uma ética social pretende ser preenchido exclusivamente com o direito, o STF resolveu, nas matérias que envolvem nossa combalida política, deixar o protagonismo moderador a que foi chamado em favor do vanguardismo tensionador. Em outras palavras, ao invés de jogar água na fogueira da política, tem aproveitado para despejar muita gasolina.

Esse clima de tensão tem chamado nossa atenção. Quatro parlamentares, pegos em evidências de crimes de igual gravidade, receberam tratamento diverso. A presidente impedida teria praticado desvio de finalidade ao nomear, como ministro, um ex-presidente condenado judicialmente e o atual presidente não teria feito o mesmo, quando alçou, ao mesmo cargo, um apaniguado investigado por crimes contra a improbidade administrativa, em ambos, os casos, só para lhes asseguram o foro privilegiado.

O STF autorizou a prisão de condenado em segunda instância e alguns ministros, monocraticamente, continuam a conceder habeas corpus contra a jurisprudência consolidada pelo plenário. A restrição ao foro privilegiado, que já conta com maioria favorável no julgamento, resta obstada, porque um ministro pediu vista para que o Congresso Nacional manifeste-se a respeito.

Mas não é só. Ainda temos um inédito ministro que afirma que um de seus pares “não passa na prova dos nove do jardim de infância do direito constitucional” ou “que sempre tem algo a nos ensinar”, que o outro tem “uma moral bem baixinha”, que aquele outro é “velhaco”, que aquele lá “inventou o AI-5 do Judiciário”, sem dizer que já chamou o ex-Procurador Geral da República de “delinquente” e um dos procuradores da Operação Lava Jato de “cretino absoluto”. Inclusive, é o mesmo ministro que não se dá por suspeito nos casos em que seus amigos, tanto empresários como políticos da velha guarda, são julgados pelo STF.

A lista poderia seguir adiante. Mas não quero cansar o leitor. No avultamento institucional do STF, em que esse órgão passou a ser um convidado de última hora no baile decisório entre Legislativo e Executivo, sobretudo quando resta diminuído à condição de terceira câmara legislativa ordinária ou de constante censor de atos administrativos tipicamente discricionários do Palácio do Planalto, há muitas causas concorrentes. Destaco uma: a tentação do governo de juízes ou o ativismo judicial.

Sabemos que a última palavra acerca da constitucionalidade das leis é dada pelo STF e, de fato, quando provocado, este tribunal, de certa forma, acaba por governar aqueles que governam dentro de seus limites naturalmente institucionais.

Mas, se o Executivo sempre predominou historicamente e Legislativo tem deixado de legislar e fiscalizar, quando o STF é chamado a se pronunciar nas ações em que uma dessas instituições peca pela falta ou pelo excesso, é difícil estabelecer, ainda que seja possível, uma resposta entre uma postura de joelhos e outra de dedo em riste, dada a elasticidade na interpretação desse pronunciamento.

Se o ativismo judicial tem prevalecido, isso se explica – e não se justifica – pelo crescente vácuo institucional e social que os outros poderes deixaram pelo caminho, fato que capta a sensibilidade dos ministros do STF, a ponto de, diante de uma falta de perspectiva de mudança, provocar a chamada a um estimulante e indevido protagonismo na condução de boa parte dos destinos políticos da sociedade.

Dessa forma, como já salientado nos exemplos acima citados, o STF torna-se um incansável árbitro social, porque o diálogo entre a sociedade e os outros dois poderes políticos padece de uma ética social comum, batendo-se em suas portas, em busca de uma resposta judicial, toda vez que aquele vazio de valores é notado e precisa ser preenchido.

Contudo, tomado de surpresa para a magnitude do desafio, o STF não soube reagir com prudência judicial e, ao não exercer sua função de árbitro social imparcial, passou a corroer sua própria pretensão de legitimidade sociológica.

A corte que, antes, era vista como solução do problema, transformou-se num novo problema, porque, ao tensionar e não moderar, potencializa as incertezas e acirra os conflitos entre os demais poderes e a sociedade. Enquanto essa for sua tônica institucional, o único efeito que teremos de supremo será o de nosso desencanto. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 21/02/2018, Página A-2, Opinião.

Na frente do nariz

Opinião Pública | 31/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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Hoje, temos um assunto na pauta e que tem tirado meu sono desde que entramos na alça de mira de boa parte da imprensa, alimentada por declarações infelizes de dois ministros do STF sobre os subsídios dos juízes: um conhecido por seu destempero verbal e, a outra, pela sinuosidade no trato das questões corporativas.
O leitor sabe do peso de nosso papel social, numa época em que fomos alçados à condição de árbitros sociais de contendas que, no passado, eram resolvidas por uma ética social comum que, atualmente, está bem esgarçada, quando não, em muitos assuntos, já superada por um caleidoscópio de valores conflitantes.

O leitor sabe das responsabilidades que carregamos diariamente: profissionais, morais e éticas, ainda que estas duas últimas lembrem mais um código normativo kantiano e, por isso, de certa forma, não ajude a nos conduzir, naturalmente, à aquisição das virtudes próprias de um juiz, como a prudência, a excelência que potencializa um agir justo no caso concreto, na medida em que cria as disposições pessoais necessárias para se discernir e assinalar o que deve ser dado a cada um.

O leitor sabe que, na qualidade de servidores públicos, podemos e devemos dar à sociedade a “prestação de contas” de nosso ofício, dimensão que pode ser melhor compreendida pela noção anglosaxã de accountability. Há vários modos de fazê-lo e as cúpulas dos tribunais escolheram um modelo que, a meu ver, confunde eficiência com eficientismo. Embora discorde desse modelo, pelo menos demonstra uma reta vontade em dar transparência no trato da coisa pública.

O leitor sabe, pelo menos na geração de juízes a que pertenço, não haver mais espaço para uma instituição monolítica e hermética, distanciada da sociedade e que não quer com ela dialogar. Para isso, as próprias cúpulas dos tribunais têm fomentado o protagonismo do profissional da base, cada vez mais sensível à ideia de que, de justo concreto em justo concreto, colabora-se, em nível macro, para os ditames de justiça social.

O leitor sabe dos desafios estruturais que enfrentamos diariamente: funcionalismo com baixa autoestima, acúmulo invencível de processos, excesso de atribuições, estrutura arcaica, inexistência de canais de comunicação, pressões da classe advogada, quando não riscos de vida reais e imediatos para si e para seus familiares.

E o que o leitor não sabe? Não sabe que a mentalidade judicial cada vez mais abandona a ideia do “juiz autocrata” e, como efeito, cada vez mais ruma em direção à ideia do “juiz pacificador”. Não sabe que, no ano passado, mais de cem milhões de processos estiveram sob nossa responsabilidade, acrescidos de outros novos 28 milhões, que só não aumentaram o acervo, porque 30 milhões de processos foram concluídos.

Não sabe que somos quase 17 mil magistrados que, em média, no ano passado, responsabilizaram-se por 6 mil processos e julgaram, em média, quase 2 mil feitos, num tempo de trabalho espremido entre os despachos, a administração forense, o atendimento às partes e aos advogados. Aliás, o leitor não sabe que não temos jornada de trabalho e, por isso, não sabemos o que é hora extra, salvo nossos familiares, que sentem na pele a subtração do tempo de convívio devido.

O leitor não sabe que, comparando-se com outras médias mundiais tidas como altas, os juízes italianos sentenciam, em média, mil processos por ano, os espanhóis, 700, e os portugueses, 400. Ou seja, produzimos quase o dobro dos italianos, mais que o dobro dos espanhóis e cinco vezes mais do que os portugueses. Por isso, o leitor não sabe que somos os juízes mais produtivos do mundo.

Espero que o leitor, agora, possa ver a questão do subsídio com outros elementos, que foram curiosamente ignorados pelos jornalistas que assinaram as reportagens que mais lembram um conteúdo de panfleto estudantil de centro acadêmico. Ainda que, ao final, não mude sua convicção, pelo menos, em respeito ao leitor, as coisas foram colocadas em seu devido lugar.

Sem problema. Aliás, o verdadeiro problema é nosso e passa pela adoção de outro critério de seleção para a presidência de nossa Suprema Corte, a privilegiar os ministros que, mesmo nunca tendo sido juízes de carreira, gastem seu palavrório para prestigiar a corporação e não denegri-la gratuitamente. Ver a realidade que temos na frente do nariz, já dizia Orwell, talvez seja o exercício mais complexo de todos. Até mesmo para a dupla de ministros. Mas devemos tentar. Sem destempero ou sinuosidade. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, Página A2 – Opinião, edição de 31 de Agosto de 2016.