Supremo desencanto


Em tempos de realidade social anônima, onde o vazio deixado pela ausência de uma ética social pretende ser preenchido exclusivamente com o direito, o STF resolveu, nas matérias que envolvem nossa combalida política, deixar o protagonismo moderador a que foi chamado em favor do vanguardismo tensionador. Em outras palavras, ao invés de jogar água na fogueira da política, tem aproveitado para despejar muita gasolina.

Esse clima de tensão tem chamado nossa atenção. Quatro parlamentares, pegos em evidências de crimes de igual gravidade, receberam tratamento diverso. A presidente impedida teria praticado desvio de finalidade ao nomear, como ministro, um ex-presidente condenado judicialmente e o atual presidente não teria feito o mesmo, quando alçou, ao mesmo cargo, um apaniguado investigado por crimes contra a improbidade administrativa, em ambos, os casos, só para lhes asseguram o foro privilegiado.

O STF autorizou a prisão de condenado em segunda instância e alguns ministros, monocraticamente, continuam a conceder habeas corpus contra a jurisprudência consolidada pelo plenário. A restrição ao foro privilegiado, que já conta com maioria favorável no julgamento, resta obstada, porque um ministro pediu vista para que o Congresso Nacional manifeste-se a respeito.

Mas não é só. Ainda temos um inédito ministro que afirma que um de seus pares “não passa na prova dos nove do jardim de infância do direito constitucional” ou “que sempre tem algo a nos ensinar”, que o outro tem “uma moral bem baixinha”, que aquele outro é “velhaco”, que aquele lá “inventou o AI-5 do Judiciário”, sem dizer que já chamou o ex-Procurador Geral da República de “delinquente” e um dos procuradores da Operação Lava Jato de “cretino absoluto”. Inclusive, é o mesmo ministro que não se dá por suspeito nos casos em que seus amigos, tanto empresários como políticos da velha guarda, são julgados pelo STF.

A lista poderia seguir adiante. Mas não quero cansar o leitor. No avultamento institucional do STF, em que esse órgão passou a ser um convidado de última hora no baile decisório entre Legislativo e Executivo, sobretudo quando resta diminuído à condição de terceira câmara legislativa ordinária ou de constante censor de atos administrativos tipicamente discricionários do Palácio do Planalto, há muitas causas concorrentes. Destaco uma: a tentação do governo de juízes ou o ativismo judicial.

Sabemos que a última palavra acerca da constitucionalidade das leis é dada pelo STF e, de fato, quando provocado, este tribunal, de certa forma, acaba por governar aqueles que governam dentro de seus limites naturalmente institucionais.

Mas, se o Executivo sempre predominou historicamente e Legislativo tem deixado de legislar e fiscalizar, quando o STF é chamado a se pronunciar nas ações em que uma dessas instituições peca pela falta ou pelo excesso, é difícil estabelecer, ainda que seja possível, uma resposta entre uma postura de joelhos e outra de dedo em riste, dada a elasticidade na interpretação desse pronunciamento.

Se o ativismo judicial tem prevalecido, isso se explica – e não se justifica – pelo crescente vácuo institucional e social que os outros poderes deixaram pelo caminho, fato que capta a sensibilidade dos ministros do STF, a ponto de, diante de uma falta de perspectiva de mudança, provocar a chamada a um estimulante e indevido protagonismo na condução de boa parte dos destinos políticos da sociedade.

Dessa forma, como já salientado nos exemplos acima citados, o STF torna-se um incansável árbitro social, porque o diálogo entre a sociedade e os outros dois poderes políticos padece de uma ética social comum, batendo-se em suas portas, em busca de uma resposta judicial, toda vez que aquele vazio de valores é notado e precisa ser preenchido.

Contudo, tomado de surpresa para a magnitude do desafio, o STF não soube reagir com prudência judicial e, ao não exercer sua função de árbitro social imparcial, passou a corroer sua própria pretensão de legitimidade sociológica.

A corte que, antes, era vista como solução do problema, transformou-se num novo problema, porque, ao tensionar e não moderar, potencializa as incertezas e acirra os conflitos entre os demais poderes e a sociedade. Enquanto essa for sua tônica institucional, o único efeito que teremos de supremo será o de nosso desencanto. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 21/02/2018, Página A-2, Opinião.