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[sátira] Carreiras para nossos filhos – por Evelyn Waugh

Literatura | 03/11/2017 | | IFE BRASIL

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O jornalista completo.

Segredos do sucesso na imprensa

Na semana passada, contei a você como tornar-se um repórter junto a um dos nossos jornais populares. Em um mês, mais ou menos, você estará apto a identificar-se com aquela inefável organização de influência oculta e regeneração moral, “A Imprensa”; você estará apto a fazer um telefonema a pessoas totalmente estranhas usando o mágico “Daily Excess falando” e terá a certeza de que será ouvido respeitosamente; a sua palavra mais singela reverberará até a última mesa de café da província, constituindo e depondo governos, criando novos estilos para a decoração das mesas e para o mobiliário dos berçários, censurando romances, descobrindo assassinos, dissecando os segredos mais profundos da vida nacional. Ao redor da sala dos repórteres você verá também jornalistas. Perdido em sonhos de poder oriental, você espera ser chamado para tomar parte no trabalho.

Pode ser que você tenha de esperar um bom tempo. Qualquer dia, num dos escritórios do periódico, pode ser que um velhinho seja visto revirando os arquivos com um olhar de expectativa e, de vez em quando, virando-se para a porta do editor. Ele tinha sido contratado temporariamente durante a guerra, na época em que os jornalistas eram um produto escasso. Até obteve certa vez um quarto de coluna com uma entrevista com um chefe de estação cujo filho tinha capturado um espião. Desde então o jornal mudou de dono, editores vieram e se foram, mas ele continua a alimentar esperanças de conseguir mais uma “matéria”.

Muito depende de como você passa os primeiros dias no escritório. Há um certo número de pessoas que conseguem ficar sem fazer nada por um longo período sem parecerem entediadas. A seu tempo, essas almas privilegiadas serão presenteadas com todas as manifestações da prosperidade mundana. Enquanto espera por trabalho, você é confrontado com o duplo problema de manter-se animado e de permanecer sóbrio. Só aos repórteres mais experientes é permitido ficar bêbado no escritório.

Eventualmente uma “matéria” lhe será concedida. Você verá o editor do jornal se aproximando: “Ei, Waugh”, dirá talvez ele, “acabaram de achar um cadáver de mulher em uma das Salas de Escultura da Academia Real. Você pode sair e ir atrás do assassino”, ou “Aqui está um novo romance escrito por um cara que uma vez esnobou o editor. É só sentar aí e banir o livro, pode ser? Bom garoto”, ou então “Estou te mandando hoje à noite de avião para o Porto Said. Queremos uma série de artigos sobre a vida noturna na parte nativa”.

É possível que ele peça algo assim; mas é mais provável que seja algo do tipo, “Ei, dá pra ir até o zoológico e escrever uma matéria sobre como os animais estão se preparando para o Natal?” (na verdade essa é uma das favoritas dos editores), ou “Estão abrindo uma nova represa em Hendon. Acho que não deve dar uma matéria, mas seria bom você aparecer a fim de evitar que alguém se afogue”, ou “Dizem que vai haver uma nova moda em matéria de suíças para homens. Consiga algumas opiniões a esse respeito – uma atriz, um bispo, uns fidalgos”.

Em casos desse tipo, o procedimento correto é ficar imediatamente de pé, tomar o chapéu e o guarda-chuva e cair fora do escritório como quem corre apressadamente para o cinema mais próximo. Geralmente de nada adianta entrevistar pessoas. Se se tratar de gente interessante, eles não vão querer encontrar você; e se eles recusaram uma entrevista, é bem possível que dêem uma olhada no seu jornal no dia seguinte. O que se deve fazer é simplesmente ir até um cinema, sentar-se por uma hora ou algo assim, fumar um cachimbo e pensar no que poderiam ter dito. Mesmo que o bispo em questão de fato olhe o seu jornal no dia seguinte e descubra que ele está fazendo o possível para banir o uso de suíças na sua diocese, é improvável que ele vá fazer algo a respeito.

O jornalismo das colunas sociais é uma arte à parte, algo com o qual qualquer homem ou mulher jovens podem ganhar muito dinheiro. Duros comentários são feitos sobre a “venda de amigos” por aqueles que nunca são vendidos. A verdade, é claro, é que a sociedade secretamente adora a publicidade a seu respeito. Quando você se tornar conhecido como o “Sr. Fofoca do Daily Express” a sua publicidade social estará assegurada, e então convites vindos de gente completamente estranha cobrirão a decoração da sua lareira.

Aquela idéia popular de um convidado não desejado, escondido atrás de cortinas e palmeiras usando roupas de aluguel para eventos noturnos, rabiscando os escândalos dos grandes em seu bloco de anotações, pode ter tido o seu fundamento no passado; mas hoje as coisas são bem diferentes. Sua maior dificuldade é evitar ferir os sentimentos daquelas coisinhas espertas que clamam pela sua atenção. “Pobre Peter”, elas dizem, “ele realmente não está bem de vida, e é tão corajoso tentando se sustentar. Seria uma boa ajudá-lo quando for possível. Quer saber? Vou ligar para ele e dizer o que vou usar hoje na casa da Sra. C.”. Clubes noturnos “fechados” imploram para que ele peça admissão; restaurantes lhe oferecem refeições; famosos retratistas oferecem surpreendentes detalhes sobre as suas vidas privadas. Seu telefone toca continuamente enquanto vozes ansiosas trazem “rumores” sobre seus próprios relacionamentos; todos estão loucos para ajudá-lo.

Entretanto, a sua carreira durará pouco. E lá estão as baronesas alucinadas lutando por um lugar nas animadas danças-da-cadeira da Fleet Street. Nomes tendem a se repetir na sua coluna na medida em que as pessoas da sua relação se tornam mais insistentes; ele colocará uma fotografia da fidalga viúva Lady C. com a inscrição “Lady C., uma das Pessoas Jovens de Destaque que pode ser vista todas as noites no Cocktail Club”. Algo dará errado e ele terá de procurar uma nova carreira.

Literatura.

O caminho para a fama

Há muito o que dizer em favor das Artes. O que elas têm de exclusivo é oferecer a única carreira em que o fracasso comercial não é, necessariamente, algo negativo. Uma aparência desgastada e uma vida irregular são não só perdoáveis ao artista, mas também algo que se espera dele. A Arte oferece a justificativa certa para uma preguiça profunda e prolongada, e em caso de sucesso traz uma recompensa bastante desproporcional ao esforço despendido.

De todas as Artes, a mais recomendada ao jovem iniciante é a literatura. A pintura é uma bagunça; a música é barulhenta; e as artes aplicadas e o artesanato exigem um certo nível de habilidade. Já a arte de escrever é limpa, silenciosa, e pode ser praticada em qualquer lugar, a qualquer tempo e por qualquer pessoa. Tudo aquilo de que você precisa é um pouco de tinta, uma folha de papel, uma caneta e um vago conhecimento de ortografia. Até esta última não é necessária caso você empregue um datilógrafo competente.

Tudo o que você precisa fazer é escrever “Capítulo Um” no cabeçalho da sua folha de papel e de agora em diante, para o melhor ou para o pior, você é um escritor. Muitos não irão além disso.

O melhor livro para se começar é uma biografia. Se você quer ser bem sucedido com ela, escolha como assunto alguém muito famoso sobre o qual se tem escrito muitos livros. Muitos escritores jovens cometem o erro de escolher algum clérigo do período carolíngio ou um viajante do século XVIII. Eles acabam ficando profundamente interessados no seu tópico de estudo, passam dias sombrios na Sala de Leitura do Museu Britânico e escrevem uma obra elegante, cuidadosamente documentada. Mas ela faz sucesso? Não. A razão é que ou o editor nunca ouviu falar do seu clérigo ou viajante, e deste modo não se dá ao trabalho de mandar escrever uma resenha do livro, ou então ele caiu nas mãos de alguém que pessoalmente se tinha sentido atraído pelo personagem, sabe a respeito dele tanto como você e achou melhor escrever ele mesmo o livro. Nesse caso ele pulará sobre todas as inevitáveis inexatidões com terrível severidade.

Por outro lado, se você escolhe alguém como Disraeli ou Shakespeare ou Pitt, o Velho [1], pode ter certeza de que terá o que chamam uma “acolhida respeitosa”. Isso significa que todos os críticos famosos que escrevem artigos semanais em periódicos eruditos verão no seu livro uma deliciosa oportunidade de mais uma vez emitir as suas excelentes opiniões sobre Disraeli ou Pitt, ou sobre quem quer que seja que você tenha escolhido. Toda vez que a vida de alguém realmente famoso é publicada, eles vêm com aquele velho artigo que escreveram quando estudavam em Oxford. São duas colunas fáceis para eles e, se estiverem se sentindo amáveis, mostrarão a sua gratidão escrevendo um prefácio aos seus ensaios com alguma pequena alusão ao seu livro. “Um novo escritor, vindo ao seu mister com jovial exuberância mas maduro entendimento”, eles escreverão, “novamente trouxe a lume a sempre atual e fecunda questão que envolve Pitt, o Velho”.

Você não ganhará muito dinheiro com esse primeiro livro, mas irá obter toda uma lista de comentários gentis que o seu editor poderá estampar na contracapa do próximo a ser publicado. Este deverá ser um romance, de preferência um que seja levemente perturbador. Sua biografia fez de você um “homem de letras” e deixou clara a sua integridade de propósitos. Editores que viram a referência respeitosa a você feita por alguns críticos de nota sofrerão de letargia ao pensarem em banir o seu livro.

As resenhas não preocupam muito quando se trata de um romance. O importante é fazer as pessoas falarem dele. Você pode fazê-lo forçando a sua entrada nos jornais de outro modo. Tente atravessar o Canal; seja preso injustamente em um parque público; desapareça. Há inumeráveis meios de atrair a atenção do público. De qualquer modo, um grave acidente em um vendaval deve ser suficiente para assegurar-lhe uma comissão para uma série de artigos sobre “A Igreja” ou tópico semelhante.

Daí em diante a sua fama está assegurada. Pedirão o seu conselho por telefone a respeito de questões atuais; fotógrafos oferecerão poses complementares; você será inundado de cartas de viúvas de clérigos morrendo de fome oferecendo-se para trabalhar para você como datilógrafas, caso ganhem uma máquina de escrever e um curso por correspondência. Pedirão a você que dê uma palestra nos Estados Unidos e que dê consultoria especializada nos tribunais, e os restaurantes lhe pagarão para colocar no seu próximo livro cenas de sedução envolvendo seus estabelecimentos.

Finalmente, após uma vida feliz e plena, você poderá esperar um título de nobreza, uma pensão na Listagem Civil e um funeral na Abadia de Westminster, desde que você jogue as suas cartas com sucesso no início.

Educação.

Algumas verdades sobre o ensino

Uma coisa esplêndida na educação é que todo mundo a deseja; e, assim como a gripe, ela pode ser transmitida a qualquer pessoa sem que nos livremos dela. Quando chegamos à idade em que nos tornamos insuportáveis em casa, somos mandados às escolas e lá retidos enquanto nossos pais ainda tenham dinheiro. Se eles são realmente ricos, podem continuar “educando-nos” por toda a sua vida, mandando-nos de universidade a universidade pelo mundo afora. Do ponto de vista deles, as vantagens da educação são enormes. Através de um expediente muito simples eles se livram das responsabilidades morais e inconvenientes físicos de nos terem em casa. Quando acabamos na cadeia, eles podem dizer: “Muito bem, muito bem, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Nós lhe demos uma excelente educação”.

Tendo sido educado, você nunca passará fome; você pode sempre, chegando a sua vez, educar. Por irregular, mal pago e muitas vezes absurdamente ridículo que seja o emprego de professor, ele está sempre acessível – sejam quais forem os nossos fracassos na vida. É o grande privilégio, que não pode ser perdido por nenhuma desventura ou desgraça. É o orgulhoso direito do inglês instruído de instruir os outros.

Certa feita, tive a oportunidade de conversar com um homem de meia idade que parecia já ter sofrido todos os infortúnios que podem atingir um homem na vida civilizada. Ele fora expulso da sua escola pública por roubo e mandado a Cambridge em razão de um alcoolismo crônico; fora réu em dois casos de divórcio e cumprira pena de trabalhos forçados por chantagem; fora privado do seu salário durante a guerra por crimes demasiado terríveis para serem aqui mencionados e salvo da pena de morte em razão de deserção por intervenção do Armistício. “Então veja só”, concluiu ele, “não havia outra saída a não ser me tornar professor”. Naquela ocasião ele dava aulas de futebol e geometria numa escola particular de sucesso. “Não ficarei muito tempo nesse emprego”, ele admitiu, “mas eles sempre me mandam embora com uma boa recomendação e a ficha limpa. O senhor compreende, eles não ousam admitir terem empregado um sujeito tão perverso como eu. Isso é ruim para a reputação da escola”.

Nunca se deve pensar que é fácil a vida de um professor de escola. Bem ao contrário. As escolas particulares inglesas são para as classes instruídas o que os miseráveis asilos paroquiais [2] são para os miseráveis. O alívio é oferecido a todos os que queiram se aproximar, mas concedido na forma mais intragável que seja possível. As primeiras horas, a relação próxima com homens tão degradados e banidos do reino da Esperança como você, as risadas sarcásticas e o desprezo de garotinhos incansáveis, a grosseira petulância das matronas e das esposas dos diretores, tudo isso e muitos outros incômodos menores, demasiado numerosos para serem referidos aqui, são o preço que você precisa pagar apenas para sobreviver.

Os diretores, ao contratá-lo, admitirão livremente que “não há futuro nisso aí”. Ninguém sabe como ou onde os diretores de escolas particulares morrem; talvez, quando se tornam muito velhos para ir adiante, sejam discretamente incinerados pelos alunos.

Todavia, algumas escolas são menos ruins do que outras, e um velho guerreiro sempre acaba por descobrir meios de mitigar alguns dos desconfortos mais agudos. A coisa mais fácil do mundo é conseguir um emprego. Você se inscreve numa agência e ela o apresenta a alguns diretores. Vista-se limpa e pacificamente para a entrevista e escolha a gravata para garotos de alguma escola pública de boa reputação. Não deixe o diretor interrogá-lo a respeito da sua pessoa. Tome a iniciativa e comece a perguntar-lhe a respeito da sua escola. Qual o tamanho da piscina? Qual a porcentagem dos garotos que aprendem música? Quantas partidas eles ganharam no último período? Quais são as chances de se conseguir um jogo de golfe de quando em vez? O vigário local é da High Church? [3]

Deixe muito claro que é você que o está entrevistando. Depois de uns 10 minutos, diga: “Bem, tive uma boa impressão a respeito da sua escola, e acho que ficarei contente por trabalhar lá. Quando começa o próximo período letivo?” Ele dirá um tanto hesitante, “Ah, e sobre o salário?” Diga: “Mil e quinhentos, mais lavanderia”. Então ele dirá: “Está bem”.

Quando chegar à escola, lembre-se de se comportar como um homem mundano diante de seus colegas. Compare a escola com as outras em que você já esteve de modo desfavorável, e sugira que você só permanecerá nela por um ano mais ou menos, até que o seu tio venha a falecer deixando-lhe uma bela fazendinha no norte. Eles não lhe darão crédito, mas esse é o tipo de malandragem que eles esperam de você; ela preserva a auto-estima da sala dos professores. Narre alguns dos seus bons “excessos” nos lugares “quentes” e sugira alguns casos amorosos.

Com os garotos é essencial assumir uma atitude de severidade inflexível desde o início. Qualquer sugestão de bom humor ou humanidade contribuirá para o seu descrédito. Castigue o primeiro garoto que cochilar ou deixar cair um livro. O uso desse método durante aproximadamente uma semana estabelece a correta atmosfera de submissão hostil. A partir disso você conseguirá fazer com que as coisas sigam o seu curso natural. Certa feita eu tive aulas com um professor de matemática cuja fórmula invariável, logo ao entrar na sala, era “Abram os seus livros de Álgebra na página 116. Leiam a explicação sobre as equações simples. Façam o máximo que conseguirem de cada exercício. Confiram as suas respostas e me entreguem as suas anotações ao final de uma hora”. A seguir, abria um dos romances do Sr. Nat Gould [4] e passava o resto do tempo em paz.

É de boa praxe escrever um tipo qualquer de diagrama na lousa em caso de inspeção. A maioria dos diretores, entretanto, acaba por chegar à conclusão de que esse tipo de visita mais atrapalha do que melhora a reputação da escola.

Crime.

Como ser rico e desonesto

Afinal de contas, não há profissão que ofereça melhores oportunidades aos rapazes e moças de iniciativa e bom senso do que o crime. Evidentemente, nos dias que correm, a última moda em legislação fez de todos nós, em certo grau, criminosos. O mero ato de violar a lei não tem em si mesmo valor algum para ninguém. Ninguém se aproxima da prosperidade comprando cigarros tarde da noite ou estacionando o carro em frente à porta do vizinho.

Não tenho a intenção de recomendar uma carreira de ofensas menores desse tipo, e nem uma que envolva aquelas soberbas orgias de degradação aptas a levar os nossos lordes do comércio às estonteantes alturas de uma declaração do imposto de renda de sete dígitos. Eu me refiro na verdade a uma estável rotina de desonestidade e violência por meio da qual qualquer jovem de capacidade pode, com razoável boa sorte, sustentar-se com algum conforto e assegurar uma velhice repleta de lazer.

Apenas essa carreira permite a um jovem de boa educação e instrução regular iniciar já numa posição superior à dos seus rivais. Em todas as grandes nações, com exceção de uma, essa vocação constitui ainda hoje uma ligeira afronta em virtude de um resquício dos dias teocráticos da Idade das Trevas. Os adiantados Estados Unidos conseguiram superar esse preconceito, e por isso lá o crime é praticado abertamente por pessoas de sentimentos refinados e posição social elevada. Mas na Inglaterra, com algumas honrosas exceções, a classe criminosa provém quase inteiramente de pessoas de poucos recursos. Existem mil vezes mais Bill Sikes [5] do que Raffles [6]. Iniciar-se no crime com portentosos antecedentes de classe-média; estar preparado, em caso de flagrante, com um fácil “Boa noite, seu guarda”; ter um ou dois primos na carreira episcopal prontos a darem testemunho de que você possui boa índole; tudo isso, embora não pareça importante, conta muito para os padrões da sociedade atual.

Outra grande vantagem que o crime oferece sobre outras atividades e profissões são os feriados. Não se trata de um trabalho de período integral. Alguns dos nossos delinqüentes mais bem-sucedidos passam os seus dias como tutores universitários ou condutores de ônibus.

É uma boa começar de uma vez com algo ambicioso. Muitos jovens entram para o crime com uma série de especulações precipitadas e pouco frutuosas: uma nota de dez shillings de um caixa não vigiado, seis moedas na caneca de um mendigo cego, uma ou duas jardas de seda de uma loja de tecidos. Só depois de terem sido descobertos e repreendidos é que se decidem a construir a sua carreira a sério, mas nesse momento a sua reputação, que representa nove décimos do seu capital, já está arruinada.

O assassinato é, evidentemente, o rei dos crimes. Mas o homicídio com vistas ao lucro raramente dá certo, pois ele naturalmente atrai a atenção para o seu autor. De longe o melhor, o mais básico dos crimes de utilidade é o roubo cometido com violência. Tudo o que você precisa fazer é armar-se com um martelo, cobrir a parte inferior do seu rosto com um lenço e esconder-se atrás de uns arbustos numa área rural pouco freqüentada. Espere até alguém passar, certificando-se de que ele ou ela esteja decentemente vestido e apresente uma débil constituição física. Então saia do seu esconderijo, acerte-os em suas cabeças, pegue o dinheiro e volte para casa a tempo de tomar um banho antes do jantar. Talvez seja a própria simplicidade do processo que encoraje tantas pessoas a tentar algo mais elaborado. Naturalmente ele tem a desvantagem do lucro incerto; mas isso é esperado em todos os crimes, com exceção do suicídio.

O seguinte crime genial pode ser cometido mais ou menos uma vez por ano. Você entra em um hotel e pede uma bebida que se possa pagar com uma nota de cinco libras. Quando o garçom voltar com o seu troco, diga a ele que, com toda segurança, você lhe tinha dado uma nota de dez libras. Ele dirá que com certeza foi uma nota de cinco libras. “Bem”, você diz, “eu sei que se trata de uma nota de dez porque descontei essa manhã um cheque de 30 libras. Eis as outras duas. Veja, elas têm números consecutivos. Dê uma olhada no caixa e veja se não há uma nota de dez libras com um número consecutivo”. O garçom vai até lá, descobre que há e volta com abundantes desculpas e o troco de cinco libras, o qual você dividirá, de acordo com uma proporção que julgue razoável, com o seu cúmplice que, dez minutos antes de você entrar, trocara uma nota de dez libras no balcão.

Outro crime cometido com surpreendente freqüência consiste em ir a uma loja Cartier e dizer: “Sou o Lorde Beaverbrook. Por favor, me dê aí uns diamantes”, e então sair e vendê-los. Esse expediente chama-se “falsidade ideológica com o desiderato de lograr, quando à evidência de culotes não se tratar, que estes manifestamente, e com emprego de ardil, enganados sejam”.

A invasão de domicílio é mais um artesanato do que uma arte, e não deve ser tentada sem a assistência de um entendido. Uma valiosa dica, quando se empreende um trabalho desse tipo, é vestir um pijama e calçar umas pantufas; assim, se alguém o interromper, você pode fingir que é um sonâmbulo.

Outra precaução similar que se deve ter antes de arriscar invasões a domicílio à luz do dia é ter por perto um amigo usando o uniforme de um sanatório. Se você for pego, basta que ele se aproxime e diga, “Perdão pelo incômodo, senhor. O cara tem um parafuso solto. Pensa que é o Charles Peace” [7], e o coloque imobilizado num táxi.

Uma última coisa: depois de cada crime, uma boa é ferrar o seu cúmplice. Se você não o fizer, mais tarde é ele quem vai ferrá-lo.

Título original ‘Careers for our Sons’, impresso na coletânea A Little Order, Ed. Donat Gallagher, 1978.

Tradução de Julio Lemos.


[1] William Pitt (1708-1778), primeiro Conde de Chatham. Estadista inglês que liderou o país durante a Guerra dos Sete Anos, conhecido como The Great Commoner por se ter recusado durante muito tempo a aceitar um título de nobreza.[2] O autor refere-se aos Union Workhouses, temidos pensionatos para viúvas, orfãos e anciãos estabelecidos na Inglaterra desde o século XVI.

[3] Ala da Igreja Anglicana mais próxima à Igreja Católica, também conhecida como anglo-católica.

[4] Nathaniel Gould (1857-1919), jornalista e romancista inglês, autor de alguns best-sellers.

[5] Personagem de Charles Dickens presente em Oliver Twist, famoso pela sua maldade; um homem de modos violentos e de “baixa extração social”.

[6] Arthur J. Raffles, personagem criado por E. W. Hornung, era um ladrão de jóias que vivia na companhia da alta sociedade vitoriana.

[7] Famoso ladrão e assassino inglês.

Publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro/2009. Disponível em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/carreiras-para-nossos-filhos/>. Acesso em 03/11/2017.

VIDA HUMANA E CRIATIVIDADE | 8º Seminário IFE Campinas/ACL

Seminários IFE | 20/10/2017 | | IFE CAMPINAS

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No próximo sábado, 28 de Outubro, acontece a oitava edição dos seminários IFE/ACL. O evento tem um duplo tema, que abarca duas diferentes palestras e que, no entanto, complementam-se ao abordarem aspectos da vida humana. Temos, então, vida humana e criatividade. As palestras serão com Tiago Amorim e Antônio Suárez Abreu. Confira detalhes abaixo.

VIDA HUMANA E CRIATIVIDADE | 8º Seminário IFE Campinas/ACL

PALESTRAS:

MAPA DO MUNDO PESSOAL
por Tiago Amorim: professor e escritor, autor de livros na área de filosofia e literatura, e atualmente mestrando em Antropologia no ISCTE-Lisboa. É estudioso da filosofia espanhola do séc. XX (Ortega y Gasset, Julián Marías, Xavier Zubiri).

15h40 – Coffee break

CRIATIVIDADE E INOVAÇÃO: UM PONTO DE VISTA COGNITIVO
por Antônio Suárez Abreu: professor universitário, doutor em Linguística pela USP, prof. colaborador da UNESP e membro da ACL. Tem experiência nos seguintes temas: linguística cognitiva, gramática e argumentação.

Local:
Academia Campinense de Letras
Rua Marechal Deodoro, 525, Centro, Campinas/SP

Dia e horário:
Sábado, 28 de Outubro de 2017, as 14h00

INSCRIÇÕES:
Clique aqui para fazer sua inscrição: https://goo.gl/forms/FcIFkGX33LHL5TGG2

ENTRADA FRANCA.

Realização:
IFE Campinas

Parceria:
Academia Campinense De Letras
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A lei de Gerson: alguém se lembra? – por Iura Breyner Botelho

Opinião Pública | 15/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Quem nasceu depois de 1976 não sabe; a tal “Lei de Gerson” foi uma expressão criada naquele ano, por causa de uma propaganda de cigarro em que Gerson, famoso jogador da Seleção Brasileira, campeã da Copa de 70, diz com um carregado sotaque carioca, que “goshtava de levarr vantagem em tudo, cerrto?“. Terminava assim: “faça como eu: fume Villa Rica.”

Imediatamente o público brasileiro associou a expressão com o tal “jeitinho brasileiro“, que faz “drible” em leis e regras ou faz uso delas para conseguir o que quer – o tal levar vantagem em tudo.  Mais tarde o jogador disse ter se arrependido de ter feito o comercial, pois, vira o seu nome associado a toda e qualquer ação pouco ética por meio da expressão “Síndrome de Gerson” ou “Lei de Gerson”.

Nunca como agora esta “lei” foi tão posta em prática, ainda que o termo tenha caído em desuso. Os meios de comunicação e as rodas de conversa presenciais e virtuais soltam comentários indignados sobre a corrupção em Brasília, mas, e as pequenas ou grandes trapaças do dia a dia de cada um de nós, quem assume?

Vejamos se você ou eu não presenciamos todos os dias pessoas que furam filas, que dão uma de “espertinhos” no trânsito ou na vida, que param ou estacionam em frente de uma garagem ou em fila dupla por mera conveniência pessoal… sem contar com os que não cumprem com um compromisso ou acordo, que trabalham mal ou sem empenho, que levam um certificado ou diploma na base da cola e outras trapaças… a lista, infelizmente, é bem longa. Talvez, provavelmente em algum momento, para a vergonha dos que a temos, nos vejamos a nós próprios entre alguma dessas ações, se não agora, ao menos em algum passado de nossa história.

“querer levar vantagem” não é vergonha exclusiva dos brasileiros, como se pensa por aí, nem tão pouco, fenômeno recente na humanidade. A má esperteza a serviço do egoísmo vigora desde Adão e Eva em todo lugar onde haja seres humanos. O Super-Homem criado pelo filósofo Nietzsche, bem ao contrário do Super-Herói dos quadrinhos e telas, é um ser solitário, triste e unicamente preocupado consigo mesmo. Para tais homens vale bem a sentença daquele outro filósofo, Jean Paul Sartre, de que “o inferno são os outros”.

O que acontece é que o ser humano não nasce de chocadeira; está ligado a outros humanos do início ao fim de sua existência. Se se desliga, tentando construir sua felicidade sem levar em conta a dos demais, assina sua própria sentença de infelicidade; a pior “desvantagem” que se pode levar na vida.

Se por um lado, a tendência ao egoísmo nos puxa para baixo, por outro, a possibilidade de mudar de atitude e a liberdade para tal, está inegavelmente ao nosso alcance. Então, o que ocorre é que temos que escolher para que lado apontamos; se o dos honestos; se o dos desonestos; não dá para ficar no meio!

Não se trata de ser o “certinho”; cumpridor de regras; só para não ficar mal diante dos demais ou de si mesmo. Regras só têm sentido quando se leva em conta a vida de cada um em relação aos demais nos diversos agrupamentos sociais, nem mais e nem menos. O importante – e este é o cerne da cidadania – é a consciência individual dos próprios direitos e deveres em cada núcleo social do qual se faça parte, seja família, escola, clube, igreja, condomínio, bairro, cidade, País. Há que se desenvolver o critério em relação ao que é honesto e o bom senso para aplicá-lo em cada circunstância.

A liberdade de espírito é justamente o fruto direto deste esforço. Desdobra-se em duas facetas: a da sinceridade – uma sinceridade selvagem, como costumava dizer um espanhol famoso do Séc. XX – e a da responsabilidade, aquela capacidade das pessoas maduras de assumirem plenamente todas as consequências das próprias escolhas e decisões.  Pessoas interiormente livres não nadam na corrente do “politicamente correto” ou do que todo mundo acha e faz; não seguem “modas”, antes as lançam; não são influenciados, antes influenciam.

Por outro lado, estamos em um tempo em que a mídia domina o geral da opinião pública. Os nada edificantes exemplos que ela exalta nos dão uma falsa ideia de que só se é feliz se se tem posses, fama e/ou influência. Então se passa a acreditar cada vez mais que, nesta “selva de pedra”, é preciso garantir o seu interesse a qualquer custo por cima do dos demais. Para esta sociedade o importante é ser um “vencedor”; um “homem de sucesso”, custe o que custar.

Por conta desta mentalidade competitiva a sociedade vai perdendo tanto o sentido da dignidade da pessoa como o do exercício da cidadania. A sociedade individualista gera sempre infelicidade em forma de neuroses, desconfianças, frustrações, inimizades, medos, opressões e toda a gama de sentimentos negativos que a acompanham. Este homem lobo-do-homem apregoado pela mídia torna-se, no fim das contas, lobo de si mesmo, seu próprio e mortal inimigo em última instância.

Voltemos à Lei do Gerson. A Cultura do “levar vantagem em tudo” é consequência direta das duas ilusões acima citadas. A primeira – felicidade na posse, na fama e no poder –, desmascaramos ao concluir que o homem é o que é; não o que possui ou o que pode diante dos outros. A segunda – a felicidade própria em detrimento da do outro –, a desmentimos definindo o homem como um ser relacional que se realiza, não no atropelamento e na instrumentalização do outro, mas na busca e construção do bem comum, que engloba o outro e o indivíduo mesmo.

Se todos concordamos em que uma sociedade é melhor e mais feliz à medida que vive princípios de honestidade pessoal e solidariedade mútua, o que falta para mudarmos o mundo em que vivemos? Nós – não outros – fabricamos para esta sociedade os políticos e os homens de liderança que execramos, pois eles não saíram de outro lugar, que não dos lares que construímos (ou desconstruímos) ao longo dos anos.

Se a desonestidade entre os homens públicos existe na mesma proporção da que pilhamos entre os demais homens comuns da sociedade, a grande revolução da honestidade e da solidariedade em todos os seus setores começa pela pequena retificação de atitude de cada cidadão – você e eu – em cada circunstância. Então… o que estamos esperando?

Homens responsáveis, livres e respeitosos educam seus filhos nestes valores e também fermentam todos os ambientes em que se movem com eles. São homens que constroem uma sociedade responsável, livre e respeitosa, capaz de gerar administradores, cientistas, engenheiros, pais, mães, empregados, patrões e homens públicos à altura.

Sem dúvida, ser, formar e influenciar pessoas nestes padrões custa trabalho, e muito. Tudo que vale à pena custa. Se não dermos agora mesmo um passo definitivo neste sentido, jamais poderemos pensar em uma cultura ou uma sociedade em que possamos viver num padrão mínimo de segurança, liberdade e paz. Em última instância, cada um deve começar por assumir um compromisso pessoal e inadiável com a boa formação da própria consciência. Sócrates, Platão e Aristóteles podem nos dar umas boas pistas!

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – pela FPA (Faculdade Paulista de Artes) em 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas. 

 

[RESENHA] Além do embuste, aquém da qualidade – por Luiz Felipe Estanislau do Amaral

Política e Sociologia | 09/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Dados técnicos: Alan Sokal, Beyond the Hoax: Scien-ce, Philosophy and Culture. Oxford University Press, 465 págs.

 

A história é famosa, ou pelo menos foi durante um tempo: em 1996, Alan Sokal, um físico da Universidade de Nova York, enviou para uma revista acadêmica de destaque um artigo com páginas e páginas de besteirol pós-moderno sem sentido, cheio de jargões e expressões de significado pouco preciso, com pitadas de Derrida e Lacan, elogios aos editores da revista, um contexto tosco de interdisciplinaridade e, obviamente, nenhuma contribuição para o conhecimento humano. Surpreendentemente ou não, o artigo foi publicado. Não é necessário dizer que meses depois da publicação, exposta a farsa, os editores da revista-alvo, a Social Text (isso mesmo, “Texto Social”), ficaram um tanto quanto bravos, enquanto Sokal ficou um tanto quanto famoso (talvez o máximo que um especialista em mecânica estatística possa ficar). Em Beyond the Hoax: Science Philosophy and Culture, Sokal promete, como diz o título, ir além do embuste. Não chega muito longe.

O livro se divide em três partes. Na primeira, The Social Text Affair, de longe a mais interessante, Sokal revisita o caso que lhe deu fama, além de tecer comentários sobre o pós-modernismo e sua relação com a ciência. Na segunda, Science and Philosophy, de longe a mais útil para o leitor, Sokal passeia pela filosofia da ciência e defende suas posições sobre o assunto. Na terceira, Science and Culture, de longe a mais desastrada, Sokal estraga um livro que, até então, rendia boa leitura.

Infelizmente, o livro começa no seu pico. O primeiro capítulo, The Parody, Annotated é a reimpressão do artigo publicado na Social Text, com exaustivas notas de Sokal sobre sua escrita, sobre a veracidade (e até mesmo a inteligibilidade!) dos seus parágrafos e sobre a construção do seu título: Transgressing the boundaries: Towards a transformative hermeneutics of quantum gravity (Transgredindo as fronteiras: Rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica), um clássico instantâneo. Entretanto, é preciso que fique claro que não são apenas as piadas que trazem qualidade ao capítulo: as notas de Sokal sobre a construção do artigo jogam luz em problemas sérios pelos quais as humanidades passam atualmente. O autor dá exemplos e exemplos de raciocínios logicamente improcedentes, de definições pouco precisas (propositadamente, talvez), da transposição incorreta de conceitos de uma área do conhecimento para outra etc.

Mas uma vez observado o embuste, fica a impressão de que há em Sokal um lado “espírito de porco”. Entretanto, parece muito defensável a posição segundo a qual, em determinadas ocasiões, um espírito de porco é necessário. E no caso de Sokal, ou melhor, de universidades assoladas pelo relativismo, desconstrucionismo etc., um desses espíritos é de fato necessário. Grande decepção é saber, nos capítulos seguintes, que a motivação de Sokal é política: combater tendências intelectuais “inimigas dos valores e do futuro da esquerda” (página 95). Deve haver um ditado sobre fazer a coisa certa pelos motivos errados…

Contudo, pelo menos é nisso que gosto de acreditar, as motivações políticas não tiram o valor das ações de Sokal, da mesma forma que sua confissão não tira o valor da primeira parte do livro. No quarto capítulo, por exemplo, o autor discorre sobre os science studies, uma área do conhecimento cujos proponentes pretendem explicar a evolução do conhecimento científico por meio de fatores sociais e incentivos intrínsecos aos cientistas, sendo a busca pela verdade algo secundário. E é a partir de tal premissa que se chega à necessidade de uma ciência livre de preconceitos sociais como o machismo. É com muita delicadeza que Sokal expõe os problemas de uma tal visão de ciência.

De forma geral, não há muito conteúdo na primeira parte do livro, mas sua leitura ainda vale pela crítica às tendências pós-modernas nas humanidades e pela hilária leitura de Transgressing the Boundaries. A segunda parte, Science and Philosophy, conserta esse defeito específico da primeira.

Science and Philosophy tem dois capítulos: Cognitive relativism in the philosophy of science e Defense of a modest scientific realism. O primeiro deles é o que torna o livro mais do que a mera revisão de uma situação engraçada ocorrida anos atrás. O capítulo busca entender o fundamento de um vício intelectual da atualidade: a noção de relativismo cognitivo, isto é, a noção de que afirmações factuais objetivas sobre o mundo não são passíveis de serem classificadas como verdadeiras ou falsas, a idéia de que uma teoria é verdadeira para determinado grupo de pessoas ou dentro de um contexto específico. Com isso, Sokal também introduz o leitor em temas atualmente em debate na filosofia da ciência.

Nesse texto, fica patente uma das grandes vantagens do estudo sério e dedicado das ciências exatas. Sokal é muito claro em suas definições e extremamente consciente dos limites dos seus argumentos, algo que torna o capítulo didático e confere-lhe um tom de honestidade intelectual muito forte. De modo muito interessante, nos capítulos finais do livro, nos quais trata de questões culturais, políticas e religiosas, as definições de Sokal perdem precisão e os argumentos sérios perdem espaço para piadinhas. Mas força é convir que Cognitive relativism in the philosophy of science faz um trabalho sério ao rejeitar posições epistemológicas extremas como o solipsismo e o relativismo, e aborda com clareza certas questões da filosofia da ciência. Em um tempo em que o gênero popular science toma de assalto as listas de best-sellers, a idéia de popular epistemology ganha muito valor.

Fecha a segunda parte do livro um capítulo sobre duas lutas: uma entre os que acreditam no conhecimento científico e aqueles que não acreditam, e outra entre diferentes visões do conhecimento científico. Quanto à primeira, não há nada que não esteja presente nos capítulos anteriores; quanto à segunda, o autor identifica diferentes meios de entender a ciência. Sokal expõe, por exemplo, as vantagens e desvantagens do realismo científico, opondo-o à visão instrumentalista, que também é criticada. Ao final, fica a defesa de um “modesto realismo científico”, que pretende entender como o mundo é de fato, mas que compreende que tal empreitada possui muitos obstáculos e pode nunca chegar a alcançar plenamente seu objetivo. Assim como o capítulo anterior, este constitui leitura interessante e útil.

Mas o que há de interessante e útil no livro pára na modesta defesa do realismo científico. A última parte de Beyond the Hoax não passa de um espaço para Sokal dar suas opiniões sobre política e religião, nada mais. Ao ponto, inclusive, de deixar o leitor imaginando o que ocorreu com o capítulo sobre futebol (para ser perfeitamente honesto, contudo, devo avisar que há uma nota de rodapé mencionando a existência de David Beckham e uma ou outra metáfora sobre baseball ao longo dos capítulos).

No primeiro capítulo da terceira parte, por exemplo, Sokal tenta estabelecer a relação entre o pós-modernismo e as pseudociências. Depois de definir convenientemente tanto um quanto o outro termo, ele parte para dar exemplos abundantes de como os dois fenômenos caminham juntos e presenteia o leitor com cinqüenta páginas sobre as relações entre o pós-modernismo e as pseudociências na enfermagem e no nacionalismo hindu. Mas ao menos Sokal admite que não foi capaz de dar os exemplos abundantes que imaginou de início. Portanto, ele parte para o próximo alvo: as religiões; porque para Sokal as religiões são pseudociências e ele faz questão de demonstrá-lo no apêndice do capítulo oito (mais precisamente na nota de rodapé número 274). Contudo, deve-se supor que o físico não faz um trabalho razoável ao incluir as religiões em uma definição de pseudociência que ele próprio cunhou.

Logo em seguida, em Religion, politics and survival, Sokal volta a atacar as religiões, mas dessa vez misturando o assunto com política e tomando o cuidado de advogar um melhor entendimento de seus mecanismos. O motivo é simples: os EUA são um país extremamente religioso e a esquerda americana não pode ignorar esse fato para colocar em prática sua agenda progressiva. É nesse ponto que ficam claros os elogios que o livro recebe de Noam Chomsky na contracapa.

Obviamente, não se trata de criticar Sokal por suas idéias sobre política ou religião. Tampouco é o caso de criticá-lo por incluir esses assuntos em um livro sobre ciência: para o autor, suas visões sobre religião e política estão relacionadas ao lugar que ele acredita que a ciência deve assumir na sociedade e ele argumenta nesse sentido. Entretanto, fica a impressão de que o caso da Social Text não é o embuste ao qual o título se refere. Ao tratar de política, Sokal comete os mesmos erros dos humanistas que critica, fazendo uso de conceitos sem significado preciso (não é possível que alguém que reclame do uso incorreto de “linearidade” use o termo “capitalismo” acreditando que está se referindo a algo bem demarcado). E ao tratar de religião, Sokal não vai além da leitura da Bíblia. Mas, em retrospecto, devemos lembrar que a grande motivação do caso da Social Text foi política.

Um último comentário se faz necessário, mas não sobre o conteúdo do livro. Os capítulos que compõem Beyond the Hoax são, em sua grande maioria, ensaios publicados em livros e revistas diferentes, mas todos sobre assuntos próximos. Infelizmente, isso torna o livro um tanto quanto cansativo e repetitivo. Existem citações e definições repetidas, além de, inclusive, um parágrafo praticamente idêntico em dois capítulos diferentes. Contudo, tais repetições, para o leitor paciente, não chegam a estragar a leitura. Pelo menos a leitura das primeiras partes do livro.

Resenha publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 2, Dezembro de 2008.

 

Transformando com Direito – por Isabela Castro

Direito | 01/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Há três anos tive a oportunidade de compartilhar as angustias vividas por mim na escolha de curso universitário. À época, com 17 anos, me vi obrigada tomar a difícil decisão de direcionar meu futuro profissional, optei pelo direito. É claro que a decisão veio precedida de reflexão, contudo, tão nova e sem referências familiares na área, não sabia ao certo o que me esperava pela frente. Atualmente, no quarto ano do curso, já começo a me despedir da vida universitária, saudosista, mas convicta de que fiz a escolha certa.

Esta certeza nasce do fato de que, pessoalmente, para me sentir realizada, preciso contribuir de alguma maneira para transformação positiva do mundo que me cerca e no direito encontro esta possibilidade.

Prova disto é que o objeto primordial da vida do jurista é a Constituição. Para os leigos, peço licença para elaborar analogia: nossa Constituição arrola uma série de valores a serem concretizados para formação de um Brasil ideal, em outras palavras, significa dizer que a Constituição é a despensa dos juristas (cozinheiros), lá encontram-se os ingredientes disponíveis para preparação de um prato sublime (estado democrático e social). Entretanto, os operadores do direito por muito tempo limitaram-se a reproduzir receitas prontas, muitas vezes até ignorando ingredientes; sem compreender que todos aqueles ingredientes, sem exceção, deveriam ser harmonizados da melhor forma possível.

Tenho sorte de vivenciar um novo tempo, em que o dogmatismo linear vem sendo oxigenado pela releitura do Direito à luz da Constituição Federal. E, em tempos de crise, vislumbro no direito um proveitoso instrumento de transformação social, que precisa ser usado com responsabilidade, mas também com coragem, coragem para rejeitar receitas prontas e perseguir o “prato ideal”. Isto é, o legislador e o operador do direito não podem ser acomodados, precisam ser conscientes da aptidão do direito para modificar a realidade social e a partir disto inovar, valendo-se sempre de sensibilidade ética e cumprindo a função promocional do direito.

Em tese, o discurso é muito belo e aparentemente fácil, na prática, não é tão simples como aparenta. De fato, o direito é um poderoso instrumento e de fato, é possível construir um novo futuro quando não se ignora sua capacidade de transformação. Entretanto, para inovar e transformar com o direito é indispensável responsabilidade e conhecimento, sob pena de desvirtuamento de sua função promocional de valores. Não podemos perder de vista que o mesmo direito que sustenta o Estado Democrático já foi usado no passado como pretexto para legitimar atrocidades e regimes autoritários. Por este motivo que afirmo que a transformação da realidade a partir do direito requer responsabilidade, para que não desacreditemos nas instituições democráticas.

Por outro lado, para transformar é necessário também inovar e para inovar é indispensável conhecimento. Neste ponto as Universidades cumprem um importante papel, papel de produtoras de conhecimento, conhecimento para subsidiar a inovação e, portanto, promover a transformação.

As Universidades são fonte de esperança! Vejo esperança nas Universidades que formam não reprodutores de “receitas”, mas genuínos “chefes de cozinha”, Universidades comprometidas, que estimulam a produção de conhecimento e a autonomia intelectual a partir da pesquisa.

Em suma, me realizei no direito porque sinto que com ele posso transformar, como ele posso contribuir para formação de um Brasil melhor, seja com a produção de conhecimento ou com a operação do direito. Em tempos de crise, me conforta saber que poderei canalizar meus inconformismos lidando profissionalmente com um instrumento capaz de modificar a realidade que me inquieta. Mesmo que minha futura atuação, considerada individualmente, pareça ter baixo poder de transformação, sei que cresce o número de juristas conscientes e, sobretudo, corajosos. Alem disso, como disse Maria Teresa de Calcuta: “sei que meu trabalho é uma gota no oceano, mas sem ele o oceano seria menor.

Isabella Castro é graduanda em Direito e colaboradora do IFE Campinas.

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, Página A-2, Edição de 29/08/2017.

 

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