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A lei de Gerson: alguém se lembra? – por Iura Breyner Botelho

Opinião Pública | 15/09/2017 | | IFE CAMPINAS

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Quem nasceu depois de 1976 não sabe; a tal “Lei de Gerson” foi uma expressão criada naquele ano, por causa de uma propaganda de cigarro em que Gerson, famoso jogador da Seleção Brasileira, campeã da Copa de 70, diz com um carregado sotaque carioca, que “goshtava de levarr vantagem em tudo, cerrto?“. Terminava assim: “faça como eu: fume Villa Rica.”

Imediatamente o público brasileiro associou a expressão com o tal “jeitinho brasileiro“, que faz “drible” em leis e regras ou faz uso delas para conseguir o que quer – o tal levar vantagem em tudo.  Mais tarde o jogador disse ter se arrependido de ter feito o comercial, pois, vira o seu nome associado a toda e qualquer ação pouco ética por meio da expressão “Síndrome de Gerson” ou “Lei de Gerson”.

Nunca como agora esta “lei” foi tão posta em prática, ainda que o termo tenha caído em desuso. Os meios de comunicação e as rodas de conversa presenciais e virtuais soltam comentários indignados sobre a corrupção em Brasília, mas, e as pequenas ou grandes trapaças do dia a dia de cada um de nós, quem assume?

Vejamos se você ou eu não presenciamos todos os dias pessoas que furam filas, que dão uma de “espertinhos” no trânsito ou na vida, que param ou estacionam em frente de uma garagem ou em fila dupla por mera conveniência pessoal… sem contar com os que não cumprem com um compromisso ou acordo, que trabalham mal ou sem empenho, que levam um certificado ou diploma na base da cola e outras trapaças… a lista, infelizmente, é bem longa. Talvez, provavelmente em algum momento, para a vergonha dos que a temos, nos vejamos a nós próprios entre alguma dessas ações, se não agora, ao menos em algum passado de nossa história.

“querer levar vantagem” não é vergonha exclusiva dos brasileiros, como se pensa por aí, nem tão pouco, fenômeno recente na humanidade. A má esperteza a serviço do egoísmo vigora desde Adão e Eva em todo lugar onde haja seres humanos. O Super-Homem criado pelo filósofo Nietzsche, bem ao contrário do Super-Herói dos quadrinhos e telas, é um ser solitário, triste e unicamente preocupado consigo mesmo. Para tais homens vale bem a sentença daquele outro filósofo, Jean Paul Sartre, de que “o inferno são os outros”.

O que acontece é que o ser humano não nasce de chocadeira; está ligado a outros humanos do início ao fim de sua existência. Se se desliga, tentando construir sua felicidade sem levar em conta a dos demais, assina sua própria sentença de infelicidade; a pior “desvantagem” que se pode levar na vida.

Se por um lado, a tendência ao egoísmo nos puxa para baixo, por outro, a possibilidade de mudar de atitude e a liberdade para tal, está inegavelmente ao nosso alcance. Então, o que ocorre é que temos que escolher para que lado apontamos; se o dos honestos; se o dos desonestos; não dá para ficar no meio!

Não se trata de ser o “certinho”; cumpridor de regras; só para não ficar mal diante dos demais ou de si mesmo. Regras só têm sentido quando se leva em conta a vida de cada um em relação aos demais nos diversos agrupamentos sociais, nem mais e nem menos. O importante – e este é o cerne da cidadania – é a consciência individual dos próprios direitos e deveres em cada núcleo social do qual se faça parte, seja família, escola, clube, igreja, condomínio, bairro, cidade, País. Há que se desenvolver o critério em relação ao que é honesto e o bom senso para aplicá-lo em cada circunstância.

A liberdade de espírito é justamente o fruto direto deste esforço. Desdobra-se em duas facetas: a da sinceridade – uma sinceridade selvagem, como costumava dizer um espanhol famoso do Séc. XX – e a da responsabilidade, aquela capacidade das pessoas maduras de assumirem plenamente todas as consequências das próprias escolhas e decisões.  Pessoas interiormente livres não nadam na corrente do “politicamente correto” ou do que todo mundo acha e faz; não seguem “modas”, antes as lançam; não são influenciados, antes influenciam.

Por outro lado, estamos em um tempo em que a mídia domina o geral da opinião pública. Os nada edificantes exemplos que ela exalta nos dão uma falsa ideia de que só se é feliz se se tem posses, fama e/ou influência. Então se passa a acreditar cada vez mais que, nesta “selva de pedra”, é preciso garantir o seu interesse a qualquer custo por cima do dos demais. Para esta sociedade o importante é ser um “vencedor”; um “homem de sucesso”, custe o que custar.

Por conta desta mentalidade competitiva a sociedade vai perdendo tanto o sentido da dignidade da pessoa como o do exercício da cidadania. A sociedade individualista gera sempre infelicidade em forma de neuroses, desconfianças, frustrações, inimizades, medos, opressões e toda a gama de sentimentos negativos que a acompanham. Este homem lobo-do-homem apregoado pela mídia torna-se, no fim das contas, lobo de si mesmo, seu próprio e mortal inimigo em última instância.

Voltemos à Lei do Gerson. A Cultura do “levar vantagem em tudo” é consequência direta das duas ilusões acima citadas. A primeira – felicidade na posse, na fama e no poder –, desmascaramos ao concluir que o homem é o que é; não o que possui ou o que pode diante dos outros. A segunda – a felicidade própria em detrimento da do outro –, a desmentimos definindo o homem como um ser relacional que se realiza, não no atropelamento e na instrumentalização do outro, mas na busca e construção do bem comum, que engloba o outro e o indivíduo mesmo.

Se todos concordamos em que uma sociedade é melhor e mais feliz à medida que vive princípios de honestidade pessoal e solidariedade mútua, o que falta para mudarmos o mundo em que vivemos? Nós – não outros – fabricamos para esta sociedade os políticos e os homens de liderança que execramos, pois eles não saíram de outro lugar, que não dos lares que construímos (ou desconstruímos) ao longo dos anos.

Se a desonestidade entre os homens públicos existe na mesma proporção da que pilhamos entre os demais homens comuns da sociedade, a grande revolução da honestidade e da solidariedade em todos os seus setores começa pela pequena retificação de atitude de cada cidadão – você e eu – em cada circunstância. Então… o que estamos esperando?

Homens responsáveis, livres e respeitosos educam seus filhos nestes valores e também fermentam todos os ambientes em que se movem com eles. São homens que constroem uma sociedade responsável, livre e respeitosa, capaz de gerar administradores, cientistas, engenheiros, pais, mães, empregados, patrões e homens públicos à altura.

Sem dúvida, ser, formar e influenciar pessoas nestes padrões custa trabalho, e muito. Tudo que vale à pena custa. Se não dermos agora mesmo um passo definitivo neste sentido, jamais poderemos pensar em uma cultura ou uma sociedade em que possamos viver num padrão mínimo de segurança, liberdade e paz. Em última instância, cada um deve começar por assumir um compromisso pessoal e inadiável com a boa formação da própria consciência. Sócrates, Platão e Aristóteles podem nos dar umas boas pistas!

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – pela FPA (Faculdade Paulista de Artes) em 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas.