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Stockhausen e o começo da música eletroacústica – por Victor Lazzarini

Música | 07/12/2017 | | IFE BRASIL

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Imagem: © Claude Truong-Ngoc / Wikimedia Commons

 

O compositor Karlheinz Stockhausen, falecido no final de 2007, foi uma das figuras mais influentes do cenário musical da segunda metade do século XX. Talvez uma das suas contribuições mais duradouras e significantes tenha sido a maneira com que conduziu o desenvolvimento da Elektronische Musik e introduziu nela vários elementos daquilo a que hoje chamamos música eletroacústica. Foi um dos primeiros compositores a tentar a fusão de práticas e técnicas anteriormente tidas como incompatíveis na música eletroacústica.

Nos meados da década de 1950, a vanguarda européia era dominada pela música serial de raiz estruturalista. Essa corrente emergiu das cinzas da música do pós-guerra, influenciada por Webern, Berg e, em menor medida, Schoenberg. As técnicas de composição dodecafônica, trazidas novamente à tona por René Leibowitz em finais da década de 1940, e a parametrização do material musical por Messiaen serviram de base para uma nova forma de escrever música que não tem precedentes na história. O serialismo, defendido por jovens compositores como Boulez, Goeyvaerts e Stockhausen, resume-se no uso de vários métodos de permuta e transformação ad hoc a um conjunto de parâmetros musicais (conjuntos de pitch, de duração, intensidade, etc…) como base para a composição. Nas suas formas mais extremas, o serialismo chega a desprezar os limites da percepção humana e a maneira com que tentamos organizar a nossa experiência sonora como ouvintes.

A música eletrônica é um fato desde 1948 e o pioneiro Concert à bruits, de Schaeffer, transmitido pela Radio France. O seu Musique concrète foi produto de um grupo de pesquisa inicialmente pequeno, o Club d’essai, mantido pela radiodifusora nacional francesa em Paris. A partir de 1952, o grupo passou a expandir-se e chegou a ser muito influente na Europa; as idéias de Schaeffer acerca da música baseada na manipulação de objets sonores tornar-se-iam um dos lados do primeiro embate estético a dominar os começos da música eletrônica. Foi o estúdio de Schaeffer que deu a Stockhausen a sua primeira amostra do meio, quando ele completou lá a gravação da sua Étude, em 1953.

O outro lado da batalha era representado pela Elektronische Musik encabeçada por Herbert Eimert, em Colônia, sob os auspícios da Rádio da Alemanha Ocidental (WDR). Eimert pregava uma música eletrônica desprovida de associações com o mundo real e de sons anedóticos, baseada em procedimentos seriais e construída estritamente com tons gerados eletronicamente. Ele via esse meio como o veículo natural da composição serial, uma vez que permitia que a parametrização e a estruturação descessem ao nível mais baixo, aos tijolos do som. Uma vez que a própria matéria-prima para a música poderia ser construída por geradores sonoros eletrônicos, as técnicas seriais poderiam ser aplicadas a todo o processo de geração. Para Eimert, estragar essa oportunidade fazendo gravações musicais de trens e sirenes, como em Musique concrète, era inadmissível. No entanto, ele também desprezava a primazia da audição no pensamento musical de Schaeffer, o que fará com que a primeira produção musical de Colônia seja muito difícil de ser ouvida.

Após completar o seu tempo nos estúdios da Radio France, Stockhausen voltou para Colônia e juntou-se ao grupo de Eimert. E logo de começo embarcou em duas experiências musicais que resultaram nas suas Studien I e II, que marcam um momento-chave na Elektronische Musik. Apesar do desejo contrário dos proponentes desse tipo de música, talvez a importância das Studien tenha mais a ver com o fato de eles revelarem aspectos negativos mais do que as potencialidades a serem exploradas nessa música.

Studien I & II

Parece claro que, em 1953, Stockhausen já estava convencido de que o caminho para o avanço da música devia estar baseado no formalismo e nas estruturas permutacionais da música serial. O primeiro estudo na música eletrônica é uma tentativa de aplicação da técnica ao meio, sendo as regras ditadas por Eimert, o diretor do estúdio. Essas regras básicas consistem em: I) Usar senóides puras como fonte sonora de nível mais baixo; II) gerar tons (combinação de tons) a partir da adição de uma dessas senóides (o que, mais tarde, seria chamado de síntese aditiva); III) Os parâmetros das suas fontes sonoras (freqüência, amplitude, duração, etc.) seriam determinados por métodos seriais (ou seja, permutas de uma ou mais séries ou proporções de valores). Uma vez estabelecidos os princípios da série e da transformação, a peça “compor-se-ia sozinha”. O trabalho que sobrava era a montagem da peça a partir das gravações-fonte, o que não era tarefa fácil: todos os diferentes tipos de senóide deveriam ser gravados numa fita (com o uso de um gerador de freqüência simples) que seria cortada em tamanhos diferentes (de acordo com a duração prevista no plano) e os pedaços misturados a fim de criar as combinações de tom. Essas combinações seriam unidas para dar origem à seqüência final de sons. Uma tarefa muito trabalhosa e pouco gratificante, mas que precisava ser feita por todo aquele que trabalhasse com o meio àquela época.

Studie I é uma peça muito frustrante no que concerne à audição. Curiosamente, a sua falta de qualidades musicais é análoga à sua capacidade de suportar análises, fato que abunda na literatura do gênero. É como se a peça tivesse sido escrita com o único propósito de servir de objeto para estudos analíticos. Os métodos seriais usados na composição dessa peça não oferecem um resultado interessante, não importa quão interessante possam ser do ponto de vista puramente estrutural. Um dos erros da peça é o resultado sonoro não ser devidamente considerado em nenhum momento. O que ouvimos é na verdade uma seqüência de sons similares aos de sinos que permanecem indistintos a maior parte do tempo. Isso por causa da crueza com que a síntese aditiva foi planejada, sem levar em conta o modo como o timbre é percebido. Stockhausen nunca foi muito claro acerca da sua visão sobre essa peça quando da sua composição, mas provavelmente viu a necessidade de algumas adaptações metodológicas e, na peça seguinte, empregou uma maneira mais interessante para a criação de combinações de tons, o que terá um significado impactante na qualidade do trabalho final.

O próximo estudo traz uma nova maneira de juntar as misturas de tons, que lhes confere um caráter menos estático. Stockhausen continua a criar os seus sons tendo senóides puras como base, mas dessa vez o método de mistura é mais ingênuo. Ele criou na fita um looping que reúne cinco segmentos de senóide mais um trecho em branco. Toca-se esse looping num espaço que produza eco e os resultados são gravados de volta no looping. Os segmentos originais então são descartados, mantendo-se apenas o trecho recém-gravado. A reverberação cria um som muito mais “vivo”. Por fim, os segmentos de fita são usados na combinação final da peça. Outro aspecto interessante da Studie II é a existência de uma partitura, com todas as instruções necessárias para a reprodução de toda a peça. Essa peça é de um modo geral muito mais interessante que a sua antecessora; é também mais curta, o que talvez nos ajude a suportá-la melhor. Contudo, nenhuma das duas é satisfatória do ponto de vista da musicalidade e ambas estão longe de ser obras-primas. Para isso, teríamos de esperar pelo próximo trabalho de Stockhausen.

Gesaenge der Juenglinge

A mudança de direção que se pode ver na peça seguinte de Stockhausen é extraordinária. Ele não apenas quebrou as convenções da Elektronische Musik que pregavam o uso somente de sons sintetizados, usando gravações de um garoto soprano, mas também buscou um equilíbrio entre a estrutura e a sonoridade. O resultado é provavelmente a primeira obra-prima eletrônica: Gesänge der Jünglinge  (“Canções dos aprendizes”) é um avanço no desenvolvimento do gênero, com a sua mistura de sons sintetizados e vocais. Stockhausen pôs muito cuidado em criar uma variedade de contextos para a voz: solos, corais, linhas de contraponto, manipulação dos fonemas do texto e transições entre essas diferentes texturas sonoras.

O começo da obra determina o tom da peça logo de começo, com uma “nuvem” de “grãos” que se fundem num ruído estreito e filtrado, que cria o pano de fundo para a primeira aparição da voz do garoto. Nalguns momentos, ouvimos os tons sintetizados fundirem-se com os sons vocais e se tornarem quase indistintos deles. Em contrapartida, as transformações aplicadas às gravações algumas vezes fazem com que soem “eletrônicas”. Essa cuidadosa exploração dos lugares sonoros põe essa peça quilômetros à frente dos seus Studien e dos Dogmas de Eimert. Nela, encontramos um compositor que quer valer-se de um universo sonoro mais amplo. O seu uso de construções sonoras dinâmicas e envolventes, não mais limitadas à combinação estática dos tons presente nos primeiros trabalhos, é particularmente importante e influente.

No que toca o plano estrutural, não encontramos nos Gesänge a mesma abordagem rigidamente serial dos Studien. A estrutura usada é mais complexa de muitas maneiras, mas também fornece uma experiência sonora mais variada. Tendo como base um conjunto maior de materiais sonoros, os métodos de Stockhausen preocuparam-se mais com aspectos da percepção, como a “complexidade tonal” e o uso do serialismo foi guiado por uma forte intenção composicional. Em todo o caso, o que temos é uma nova abordagem à idéia de composição serial, uma abordagem baseada no movimento e nas mudanças dinâmicas de estado.

Como já foi dito, os Gesänge são um avanço na história da música eletrônica. Podemos dizer que é o marco inicial da música eletroacústica, por fundir a escola francesa e a alemã de música eletrônica. Os Gesänge foram também o prenúncio do futuro trabalho numa outra dimensão da composição: aquela que enxerga o espaço como um parâmetro de som musical. Os Gesänge foram compostos numa fita multicanal (5, depois reduzidos para 4 canais) e usam o movimento espacial do som como parte integrante do discurso musical. Essa dimensão tornou-se cada vez mais importante na música eletroacústica, com o desenvolvimento de maneiras cada vez mais flexíveis de mover e posicionar as fontes sonoras no espaço. Uma primeira obra-prima para o meio, a peça preparou o caminho para o tour de force que representou o seu trabalho eletrônico seguinte: Kontakte.

Kontakte

Stockhausen passou dois anos trabalhando na sua próxima peça, completada em 1960, que não apenas incorporava sons que pareciam de origem instrumental (ainda que sintetizados), mas que usava instrumentos ao vivo (piano e percussão) além da parte eletrônica. O curto título da peça, Kontakte, refere-se aos “pontos de contato”, que são múltiplos: entre os sons eletrônicos e instrumentais, entre pitch, timbre e duração (alguma das dimensões musicais manipuladas pelo compositor), entre os Momente (“momentos” composicionais autônomos, a base da estrutura da peça) e entre os modos de movimento espacial. Nessa obra, o músico compendiou toda a sua qualidade técnica e musical, criando algo muito além do que já havia sido composto para o meio eletrônico.

A qualidade de alguns dos seus sons é incrível, tendo em conta os limitados meios de sintetização de som de que se dispunha (geradores de ondas quadradas e senóides, fontes de ruído e alguns filtros). Se tomarmos, por exemplo, o trecho mais aclamado da peça, por volta dos dezessete minutos, temos um bom exemplo da perícia do compositor: o tom de uma onda quadrada de baixa freqüência surge e diminui o pitch até atingir a faixa subsônica. Nesse ponto, não ouvimos o som contínuo original, mas uma série de ataques curtos em que o pitch se torna o ritmo. Por fim, esses curtos tons percussivos dilatam-se pelo acréscimo da reverberação, revelando então um pitch próprio que depois se torna novamente contínuo: pitch percussivo vira pitch constante. Construir trechos assim com o uso de sons sintetizados por computador já é uma tarefa complicada; imagine, então, criá-las gravando os tons numa fita para depois editar e combinar o resultado. Não é só a natureza complexa do procedimento que é um problema, mas os riscos de se trabalhar num estúdio analógico também são consideráveis: o ruído que acompanha a geração seqüencial de fitas, problemas na estabilidade mecânica do gravador, a necessidade de evitar que a fita estrague por causa do tempo ou desmagnetize-se, etc. É realmente impressionante como Stockhausen foi capaz de criar tamanha variedade de tons sintetizados de alta qualidade para essa peça.

Ela também marca um verdadeiro distanciamento do compositor com relação às suas raízes seriais. A obra apóia-se na sua já mencionada idéia dos momentos (Momente-form), que é muito menos rígida no que toca àquilo que o compositor pode ou não fazer. De fato, é bem o contrário: permite a Stockhausen tratar cada seção isoladamente, de acordo com o que ela deve soar naquele momento independentemente do que veio antes e do que virá depois. O que demanda uma nova maneira de ouvir a peça, que leve em conta as qualidades musicais de cada momento, que podem ser desfrutadas individualmente em vez de percebidas como a culminação de idéias anteriores ou como o caminho para uma nova seção. O sucesso da peça provavelmente deve-se a isso: durante os seus trinta e cinco minutos de duração, não nos desgastamos na tentativa de encontrar as ligações entre o material sonoro que ouvimos e o que vamos ouvir.

Conclusão

Stockhausen percorreu um caminho bastante longo e proveitoso nos seus primeiros trabalhos eletrônicos. Foi capaz de desvencilhar-se do serialismo que dominava o estúdio de Colônia para produzir duas obras-primas dos começos da música eletroacústica. Não seria exagero dizer que ele lançou as bases do gênero (com a ajuda de alguns colegas compositores), uma vez que foi capaz de chegar a uma síntese entre a Elektronische Musik e a musique concrète. Stockhausen ainda compôs mais alguns trabalhos excepcionais (tais como Telemusik e Hymnen) e abriu caminho para muitos compositores jovens que passaram a dedicar-se ao meio eletrônico. Depois de começos muito humildes, o gênero cresceu até oferecer uma vasta gama de possibilidades artísticas. Em grande medida, graças ao trabalho de Karlheinz Stockhausen.

 

Victor Lazzarini é doutor, Senior Lecturer do Departamento de Música e diretor do Laboratório de Tecnologia Musical da National University of Ireland. Estuda Música de Computador, principalmente processamento de sinais musicais e linguagens musicais de computação. Já lançou desde peças inspiradas no jazz (The Trane Thing, 2000) até peças para orquestra (Magnificat, 1996). Em 2006, recebeu o Mostly Modern International Composition Prize.

Tradução de Cristian Clemente

Tradução publicada na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3, Junho/2009.