O estudo de Tucídides e da sua famosa História da Guerra do Peloponeso nunca foi tão intenso, difundido e influente como no nosso tempo. Tucídides afirmava que a sua obra era um “patrimônio perene” com o fim de servir “aos homens que desejem ver claramente o que ocorreu e ocorrerá novamente, com toda a possibilidade humana, de maneira idêntica ou semelhante”. Mais de vinte e quatro séculos depois, líderes políticos e estudiosos da política vêem-na exatamente dessa maneira.No mundo antigo, o foco de Tucídides na política foi além do âmbito mais amplo, embora menos profundo, dos seus predecessores. Heródoto, com o seu estilo cheio de digressões e parênteses acerca dos costumes e hábitos de vários povos, e também com as suas graves considerações sobre o papel desencadeador dos deuses nos assuntos humanos, não se tornou um modelo daquilo que viria a ser considerado o melhor da historiografia na Antigüidade. Políbio e os romanos Salústio, Tito Lívio, Tácito e Amiano Marcelino foram os grandes historiadores clássicos. E escreveram sobre o seu próprio tempo, a sua própria nação e, especialmente, sobre guerra e política.Os historiadores favoritos durante a Renascença e os começos da Idade Moderna na Europa foram Políbio, cuja história da conquista do mundo mediterrânico por Roma seguiu o modelo de Tucídides, e Tácito, que tinha foco na política de Roma. No século XVII, Thomas Hobbes publicou a primeira tradução inglesa completa da História de Tucídides feita a partir do original grego. “Tucídides”, disse, “é alguém que, embora nunca se desvie do seu texto para tecer considerações, de cunho moral ou político, nem penetre no coração dos homens para além dos limites a que as próprias ações o levam indubitavelmente, é, no entanto, tido como o maior historiógrafo que já existiu”. Isto significa que ele proporciona tanto um relato como uma orientação para o entendimento dos assuntos contidos na categoria “política”: a competição política interna dentro de uma cidade-estado ou uma nação e as relações internacionais em tempos de guerra e paz.
Os escritores do século XVIII, com o seu interesse nos modos e nas civilizações mais antigas de todo o mundo, redescobriram Heródoto, embora também tenham, como filósofos da História, admirado o esforço de Tucídides por escrever uma história útil, que buscasse as causas dos eventos nos constituintes permanentes da condição e da natureza humanas. O século XIX, porém, especialmente na Alemanha, viu o triunfo da história política e o consequente eclipse de Heródoto por Tucídides.
Uma nova grande onda de interesse sobreveio com o advento da guerra fria. As pessoas viram uma semelhança impressionante entre o longo conflito de Atenas e Esparta e a concorrência dos Estados Unidos e os seus aliados da OTAN com a União Soviética e os seus satélites do Pacto de Varsóvia. Em 1947, o secretário de Estado dos EUA, George C. Marshall, disse: “Duvido seriamente de que um homem que não tenha pelo menos repassado na sua mente a época da Guerra do Peloponeso e da queda de Atenas possa refletir com plena sabedoria e profundas convicções a respeito de certos temas das relações internacionais de hoje”. Os membros das escolas “realista” e “neo-realista” de relações internacionais vêem em Tucídides o seu fundador.
De fato, a perspectiva tucidideana dominou de tal maneira os estudos históricos que foi preciso recordar a nós mesmos que a historiografia deve combinar a história da política, da diplomacia e da guerra com a história da sociedade, da cultura e da civilização, de modo que se chegou a fortalecer um movimento que visava a afastar-se da história política tucidideana. Agora, porém, o mundo da escrita da História mudou o suficiente para que tais advertências pareçam datadas. Em grande parte do mundo acadêmico americano, a “história extrapolítica” conseguiu tudo menos varrer a história política para fora. O mais famoso e influente historiador social, Fernand Braudel, desprezou a política, a diplomacia e a guerra como meros évènements, transitórios e triviais se comparados aos problemas maiores e mais duradouros postos pela geografia, a demografia e os desenvolvimentos econômicos e sociais ocorridos ao largo de extensos períodos. Na sua obra mais famosa, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe II, as decisões, eventos e desenvolvimentos políticos são de pequena monta se comparados com as forças inanimadas e impessoais que moldam as sociedades a longo prazo.
É bastante claro que tais forças existem e que possuem um impacto considerável na política, na guerra e na diplomacia, principalmente para estabelecer os limites daquilo é possível. Dentro desses limites, porém, um ou mais seres humanos tomam decisões de importância vital. E essas decisões, que são militares, diplomáticas e políticas, influenciam grupos crescentes de pessoas de maneira a afetar a própria existência de povos, nações e da raça humana. É importante compreender as forças e condições de fundo que envolvem e influenciam as escolhas feitas nesses campos decisivos, mas o historiador deve ligar esse conhecimento a fatos, decisões e eventos específicos que tomam lugar na praça pública, isto é, no mundo da política. Os historiadores “extrapolíticos” não fizeram essas ligações, preferindo assim deixar por fazer as grandes questões políticas que sempre foram a centelha a iniciar o interesse pela História desde o começo e que ainda hoje é o que inspira os amadores.
Aquilo que Tucídides chamou de “Guerra entre os atenienses e os peloponenses” e que nós chamamos de Guerra do Peloponeso estourou em 431 a.C. Um dos antagonistas principais, os espartanos, foram a cabeça da Liga do Peloponeso, uma coalizão grega que resistiu à invasão persa de 480-479, e a potência-líder da Grécia. Um pouco antes da invasão, os atenienses haviam construído uma nova esquadra grandiosa, que se mostrou o núcleo e a espinha da marinha grega que esmagou os persas nas batalhas de Salamina e de Micale. Essas vitórias elevaram Atenas a um grau de prestígio que chegou a desafiar a posição de Esparta, ainda que os espartanos tenham concomitantemente liderado os gregos na vitória decisiva na Batalha de Plateias.
O poder e a prosperidade da democracia ateniense tornaram-se dependentes do domínio sobre o seu grande império marítimo. Começou como “os atenienses e os seus aliados” (os estudiosos modernos chamam-nos de a Liga de Delos), uma aliança voluntária de estados gregos que convidaram Atenas para liderar uma continuação da guerra de libertação e vingança contra a Pérsia. Pouco a pouco, tornou-se um império que funcionava principalmente em benefício de Atenas.
Na medida em que a Liga de Delos tornou-se mais e mais forte, alguns espartanos ficaram invejosos, desconfiados e temerosos de um desafio à sua supremacia por parte de Atenas. Querelas na década de 460 levaram à Primeira Guerra do Peloponeso, que durou, entre idas e vindas, até 445. Acabou com a paz de trinta anos em que cada um dos lados reconhecia a hegemonia do outro na sua própria esfera, e ambos concordaram em submeter quaisquer desacordos futuros a um árbitro reconhecido pelas duas partes. A paz durou por mais de uma década, mas uma série de conflitos entre Atenas, por um lado, e Esparta e vários de seus aliados, por outro, conduziram à Grande Guerra. No inverno de 432-1, Tebas, aliada de Esparta, atacou Plateias, aliada de Atenas, e desencadeou a chamada Guerra Arquidamiana, devido ao nome do rei espartano que liderou as primeiras invasões.
O líder de Atenas quando da irrupção da Guerra era Péricles. A sua estratégia era evitar as batalhas por terra, fazer breves ataques ao redor do Peloponeso e esperar até que os Espartanos descobrissem que não havia uma estratégia para vencê-los — dentro de um, dois ou três anos. Em 430, contudo, uma terrível praga abateu-se sobre a cidade, causando terríveis desastres físicos, sociais e psicológicos. Os adversários políticos de Péricles convenceram os atenienses a pedir paz aos espartanos, retiraram Péricles do seu cargo e o puniram com uma pesada multa. O inimigo, porém, recusou quaisquer termos aceitáveis para a paz, de modo que a guerra continuou. Não mais sendo a paz uma opção, os atenienses reelegeram Péricles, que retomou a sua política. Ele, porém, contraiu a praga e morreu no outono de 429.
Após a morte de Péricles, nenhum líder forte emergiu para sustentar os atenienses numa política consistente. Duas facções estavam na disputa pela influência: uma, liderada por Nícias, queria manter a política defensiva; a outra, liderada por Cleonte, preferia uma estratégia mais agressiva. Em 425, a facção agressiva alcançou uma vitória significativa: quatrocentos espartanos renderam-se e Esparta propôs a paz a fim de tê-los de volta. Os atenienses, contudo, quiseram continuar a guerra, porque a paz espartana não significava nenhuma garantia real de que Atenas estaria segura.
Em 424, os atenienses levaram a cabo uma política mais agressiva, que falhou e conduziu a uma trégua em 423. No ínterim, o mais capaz dos generais espartanos, Brásidas, capturou Anfípolis, a colônia mais importante de Atenas na Trácia. Tucídides era o responsável pela esquadra ateniense nas águas daquela região e foi apontado como o responsável pela perda da cidade. Em 422, as mortes dos agressivos Cleonte e Brásidas abriram caminho para a paz de Nicias, que foi selada na primavera de 421.
A paz, que oficialmente deveria durar cinqüenta anos e que, com algumas exceções, garantia o status quo, era, de fato, frágil. Nenhum dos lados cumpriu com todos os seus compromissos e vários aliados de Esparta recusaram ratificá-la. Em 415, Alcebíades persuadiu os atenienses a atacar a Sicília e pô-la sob o domínio de Atenas. Essa empresa ambiciosa e desnecessária acabou em desastre em 413, quando toda a expedição foi destruída. Como resultado, o prestígio de Atenas foi abalado; o seu poder, reduzido; iniciaram-se revoltas e a riqueza e o poder da Pérsia entraram na Guerra ao lado de Esparta. É notável que os atenienses tenham podido continuar lutando após o desastre. Obtiveram diversas vitórias importantes no mar à medida que a guerra deslocou-se para o Egeu. Os seus aliados, porém, rebelaram-se e a Pérsia pagou as esquadras para que mantivessem a insurreição. Os recursos financeiros da Atenas encurtaram e finalmente desapareceram. Atenas não pôde construir uma nova frota depois que a sua foi apanhada cochilando, sendo destruída em Egospotamia em 405. Os espartanos, sob Lisandro, cortaram o fornecimento de comida através do Helesponto, o que fez com que os atenienses padecessem de fome até a rendição. Em 404, renderam-se incondicionalmente; derrubaram os muros da cidade, abriram mão da sua esquadra e perderam o seu império. Tucídides nunca terminou a sua História.
Quem foi esse Tucídides e qual a natureza da sua obra que continua a interessar-nos e influenciar-nos hoje? Era um aristocrata ateniense, membro de uma das mais nobres famílias, com riquezas consideráveis, e que atingiu a maioridade no ápice da grandeza da Atenas de Péricles. Nascido entre 460 e 455, estava ainda na casa dos vinte quando a Guerra do Peloponeso estourou. Morreu poucos anos após o fim dela, deixando inacabada a sua grande obra. Tucídides toma o cuidado de nos deixar saber que era maduro o suficiente para entender os acontecimentos desde o começo: “Vivi toda a guerra, tendo idade para compreender os eventos e aplicar a eles a minha mente de modo a vê-los com exatidão”. O seu pai, Olorus, carregava um nome trácio e não ateniense. Foi o mesmo nome do avô de Címon, o grande general e estadista que dominou a vida pública ateniense pelas duas décadas seguintes à invasão persa. É praticamente certo que Tucídides fosse parente de Címon e também de um outro Tucídides, filho de Melésias, que foi o mais perigoso adversário político de Péricles na década de 440. Como formulou um estudioso: “Nascido no seio da oposição a Péricles, seguiu-o com um zelo de convertido”.
Tucídides esteve em Atenas desde o começo da Guerra até 424, e nesse período contraiu a grande praga que assolou Atenas entre 430 e 427. Teve sorte em sobreviver, pois a epidemia matou um terço da população. Em 424, foi eleito general, um dos dez homens que eram os mais proeminentes líderes militares e políticos em Atenas. Comandou a força naval na região da Trácia, cuja principal cidade era a colônia ateniense de Anfípolis, local de grande importância econômica e estratégica. Possivelmente, fora escolhido para o posto devido à sua influência na região. Ele mesmo diz-nos que controlava minas de ouro lá e “tinha uma grande influência entre os líderes” da região. Quando o brilhante general espartano Brásidas tomou a cidade num ataque surpresa, os atenienses culparam Tucídides e condenaram-no por traição. Foi forçado a exilar-se pelos vinte anos que a Guerra ainda duraria. Tamanho infortúnio teve as suas vantagens, especialmente para nós, os seus leitores, porque o permitiu “saber o que estava a ser feito em ambos os lados, especialmente do lado peloponense… E esse tempo livre permitiu-me obter um melhor entendimento do curso dos eventos”.
Tucídides não foi o primeiro a escrever história. Os gregos acreditavam que os poemas épicos de Homero – a Ilíada e a Odisséia –, apesar de compostos com métrica e repletos de personagens mitológicos e divindades – relatavam eventos e pessoas reais de um passado distante. Mesmo um cabeça-dura como Tucídides usou-os como evidência para a história primitiva dos gregos. No século sexto, porém, uma nova maneira de pensar emergiu entre as cidades gregas da Jônia, na costa oeste da Ásia e, especialmente, em Mileto. Não será exagero dizer que essa nova perspectiva trocou o mito pelo pensamento racional, científico até, como meio para explicar o universo.
Essa revolução intelectual ocorreu em algum momento entre o poeta Hesíodo, que descreveu boa parte da mitologia grega por volta do ano de 700, e Hecateu de Mileto, que viveu cerca de dois séculos mais tarde. Hecateu, diferentemente dos primeiros pensadores milésios que especularam sobre questões filosófico-científicas como a natureza e a composição do universo, tratou de temas mais tangíveis. Produziu o primeiro mapa do qual se tem notícia, uma “Descrição da Terra”. Também pesquisou a experiência passada dos seres humanos na forma de Genealogias, nas quais examinava racionalmente os mitos heroicos do passado. Hecateu abordou com juízo crítico as histórias das famílias nobres, que reclamavam para si uma ascendência divina. As suas Genealogias começam com um desafio à tradição: “Eu, Hecateu, direi o que penso ser verdade: as histórias dos gregos são muitas e ridículas”. Isto não o levou a inventar qualquer história que lhe apetecesse ou a se desesperar para encontrar a verdade. Levou-o a interrogar e a pesquisar e à busca racional por conhecimento e entendimento precisos – ou seja, a sua busca levou-o à História.
Não é a Hecateu, contudo, que chamamos o pai da História, mas a Heródoto, nascido em Halicarnasso, na mesma costa egéia da Ásia Menor, em 484. Heródoto faleceu em cerca de 425, vários anos após o começo da Guerra do Peloponeso. Não escreveu sobre o seu próprio tempo, como Tucídides, mas apoiou-se principalmente naquilo que lhe foi dito sobre os tempos passados. Hecateu parece haver se limitado à comparação e à crítica racional daquilo que se supunha ser conhecido. Heródoto levou a cabo novas pesquisas, chegou mesmo a viajar a outros países para coletar novas evidências. Objetivava não apenas conservar as tradições, mas descobrir fatos novos. Ambos os autores precisaram de um novo método que exigia não apenas a ponderação racional das probabilidades, mas também a avaliação da confiabilidade da evidência.
Heródoto, contudo, não foi visto pelos escritores da Antiguidade como alguém que se preocupava com a exatidão, a veracidade e a objetividade dos seus relatos. Apontavam-lhe as imprecisões factuais; muitos o chamaram abertamente de mentiroso e Plutarco escreveu um ensaio sobre a sua “malignidade”, em que o acusava de falta de patriotismo e preconceito em favor de Atenas. De fato, dizem do “Pai da História” que ele lia a sua obra em apresentações públicas, como a poesia épica, para o deleite das suas platéias. Foi Tucídides, um jovem contemporâneo de Heródoto, que reinventou a História, abordando-a de uma maneira completamente distinta. Criticou Heródoto sem nomeá-lo diretamente e corrigiu alguns dos seus erros factuais, menosprezando a obra do historiador das Guerras Médicas como “um texto de encomenda apenas válido para o momento” se comparado ao seu próprio esforço.
Não é fácil entender as idéias de Tucídides. Ele não escreveu um tratado político ou filosófico apresentando os seus pontos de vista e os seus argumentos em favor deles. Escreveu uma história, almejando a maior objetividade possível, prendendo-se seriamente ao tema da guerra do Pelopoloneso e evitando digressões ao máximo. São importantes os momentos em que afirma a sua opinião diretamente; são a base mais apropriada para a compreensão do seu pensamento. Algumas dessas afirmações tratam do seu método de pesquisa e outras, da sua visão dos processos usuais da vida política.
Considerando as idéias incorporadas na História, parece útil e interessante comparar Tucídides com o seu grande predecessor Heródoto. Tucídides parece ter dado um salto espetacular rumo à modernidade. Não aceitava nem racionalizava os mitos, mas os ignorava ou os analisava com sangue frio. Não buscava na vontade dos deuses as explicações para o comportamento humano e, algumas vezes, não as buscava sequer na vontade dos indivíduos, mas numa análise geral do comportamento dos homens em sociedade. Tucídides, porém, não era um tipo que aparecia milagrosa e inexplicavelmente na cena. Refletia o crescimento das faculdades intelectuais, que vieram a exercer uma influência importante na vida grega no século V, e que no seu todo são algumas vezes chamadas de “o Iluminismo grego”.
Dois elementos de tal movimento parecem ter afetado com força o pensamento de Tucídides: o movimento sofista e a escola de escritores médicos ao redor de Hipócrates de Quios. De modos diferentes, cada uma era um ramo da árvore da pesquisa racional sobre o universo radicada nas cidades gregas da Ásia Menor no século sexto. Tales, Anaximandro, Anaxímenes e os seus sucessores diferiam dos primeiros pesquisadores da natureza do mundo e da sua origem por terem intuições inteiramente naturalistas. Tales, por exemplo, propôs uma teoria da origem da Terra em que tudo se desenvolvia naturalmente, sem intervenção divina, a partir de uma água primeva num processo parecido com as cheias do Nilo.
Essa tradição de teorizar em termos naturalistas deu origem tanto à Ciência como à Filosofia, que não se diferenciavam uma da outra nas primeiras especulações acerca do mundo físico. O pensamento sobre a Física parecia ter ido o mais longe possível por volta do século V. O que permanecia vivo e potente era o espírito de investigação de cunho naturalista. O sentimento da nova época é que o próprio homem é o que deveria ser estudado pelo homem. Os sofistas interessaram-se profundamente pelo papel do homem na sociedade; a escola hipocrática de medicina preocupava-se com o bem-estar físico do homem. Ambas continuavam a evitar explicações não naturais ou sobrenaturais e a buscar um entendimento do ser humano que levasse em conta apenas a sua própria natureza.
O campo de pesquisa de Tucídides não era a natureza física do universo nem a natureza física do homem, mas a sociedade do homem que vive na polis. Política, no mais amplo sentido, a busca da compreensão do comportamento do homem em sociedade, era o seu interesse transcendente. Nisso ele se distinguia dos físicos, dos sofistas e dos hipocráticos, mas as idéias deles ajudaram a moldar a sua mente. Como todos eles, começou pela observação dos fenômenos e passou a identificar e descrever o padrão racional que emergia deles. Os seus dados eram as ações históricas dos homens no passado, remoto ou muito recente. Quando suficientemente multiplicados e propriamente compreendidos, os dados davam origem a regras gerais do comportamento humano que poderiam ser úteis aos homens no futuro. O estudioso do comportamento social — isto é, o historiador — tem uma dupla responsabilidade: primeiro, buscar com diligência e exatidão a verdade sobre o passado e, depois, interpretar os eventos com sabedoria e entendimento, fazendo assim uma contribuição perene. A parte de estabelecer os fatos (ta erga) tinha importância vital, mas estava subordinada à formulação das interpretações (logoi) que dela emergiam.
Tucídides era mais e menos que qualquer tipo de cientista, mas ninguém que leia o relato do historiador da grande praga em Atenas poderá deixar de ver sua grande dívida para com os hipocráticos com relação a tal doença, que ele mesmo contraiu. Ele oferece uma descrição precisa dos sintomas e da evolução de modo a que ela “quiçá possa ser reconhecida pelo estudioso, no caso de um novo surto”. A implicação clara disso é que um relato preciso do que ocorreu pode ser usado no futuro para ajudar a deter o progresso da doença ou, pelo menos, preparar as pessoas para lidarem com os sintomas dela.
Mas Tucídides é um estudioso da sociedade e a sua descrição da praga inclui mais coisas do que as suas conseqüências físicas. O efeito de um choque tão grande no espírito de uma sociedade tinha mais interesse. Na medida em que a morte e o desespero enfraqueciam a fibra moral da comunidade, os escrúpulos legais e religiosos normais dos homens pararam de atuar e os atenienses entregaram-se a um hedonismo irrestrito que talvez tenha sido mais danoso à sua causa do que o mero sofrimento físico. A descrição da praga não é apenas uma digressão humanitária e útil, mas um componente necessário dos erga que ajudará a justificar o resultado da guerra.
Mas a descrição e análise cuidadosas da praga não iluminam apenas o curso futuro da Guerra do Peloponeso. Um entendimento apropriado dos eventos pode contribuir para uma melhor compreensão de toda a história humana. As revoluções que perturbaram a Grécia durante a Guerra, como por exemplo em Córcira, trouxeram consigo calamidades terríveis, “tais como as que já houve e sempre haverá, enquanto a natureza da humanidade permanecer a mesma, embora de maneiras mais severas ou mais brandas e com variados sintomas de acordo com a variedade de casos particulares”.
Para o exame da descrição e análise da política que inventou, Tucídides trouxe ferramentas fornecidas pelos sofistas e pelos hipocráticos. Uma das idéias características do sofismo era a distinção de dois elementos que determinam o comportamento do homem em sociedade: physis (natureza) e nomos (costume ou lei). Na visão dos sofistas, physisrepresenta a tendência inata do homem a satisfazer os seus quereres, enquanto nomos é o mecanismo pelo qual a sociedade se protege dos impulsos anti-sociais da physis humana. A sociedade grega baseava-se na aceitação geral donomos como algo sagrado; o radicalismo dos sofistas está em ampla medida na sua atitude cética com relação a isso. Tucídides não aceitava a iconoclastia extremista dos sofistas, mas julgava a distinção entre physis e nomos uma ferramenta útil para a análise política. Como compreender as atrocidades aterrorizantes que os homens cometem em tempos de guerra civil? Como explicar a transformação de cidadãos que normalmente respeitam a lei em animais de rapina movidos por paixões incontroláveis? “No meio da confusão em que a vida foi lançada nas cidades, a natureza humana (hê anthropeia physis), sempre a rebelar-se contra a lei e agora contra o seu mestre, mostrou-se com alegria desgovernada pelas paixões, acima do respeito pela justiça e inimiga de toda a superioridade”.
Essa passagem é um exemplo esplêndido do método de Tucídides: assumir a natureza essencialmente uniforme do ser humano, neste caso, a inveja e a desconfiança com relação a qualquer distinção e superioridade. Sob circunstâncias normais, a lei e o costume a controlam, mas quando as circunstâncias — no caso, prolongadas pela guerra — permitem, os elos artificiais desfazem-se e os homens retornam ao seu estado natural. Um diagnóstico analítico apropriado é capaz de prever a sua aparição e o seu desenvolvimento da mesma maneira que um médico que conheça os sintomas do seu paciente pode predizer com grande chance de acerto a evolução da doença, visto que ele conhece as suas características gerais e o seu curso natural.
Tamanha austeridade, tamanha aproximação aos métodos das ciências naturais, podem dar a impressão de deixar Tucídides vulnerável a acusação de ser demasiado científico e, por isso, anti-histórico. É, contudo, errado dizer que Tucídides pouco se importava com os eventos; a sua própria proximidade com a idéia hipocrática supõe uma preocupação cuidadosa com os eventos específicos que constituem o todo do seu objeto de estudo. Além do mais, ninguém que leia o relato brilhante e comovente que Tucídides faz da campanha na Sicília, desde o seu leviano planejamento até o seu final trágico, pode duvidar do seu gênio narrativo ou do seu amor de historiador pelos eventos em si. É errado, ainda por cima, reprovar Tucídides por buscar padrões na História: é um equívoco ver a sua tentativa de produzir um estudo empírico rigoroso sobre a política como a procura por “uma verdade eterna e imutável”. Tucídides buscou apenas o grau de certeza e consistência possível no estudo dos eventos da sociedade humana, não nos elementos da natureza.
As afirmações do próprio Tucídides deixam claro que o seu entendimento dos eventos humanos nada tem que ver com leis como as da Física ou as verdades “absolutas” de tipo filosófico. A visão tucidideana da análise política não apresenta a corrente diamantina do determinismo e, de fato, reconhece verdadeiramente a existência do inexplicável. Em diversos pontos cruciais da sua História, explica eventos importantes referindo-se à tychê (fortuna), embora tais casos não sejam evidência de que acreditasse na essencial irracionalidade do mundo. Pelo contrário, o historiador acreditava que o mundo era passível de uma análise racional, apenas não com uma certeza absoluta ou científica. Pessoas inteligentes com dotes extraordinários poderiam, mediante um estudo cuidadoso e sistemático do comportamento humano, fazer estimativas úteis da provável reação das pessoas, especialmente en masse.
A concepção tucidideana do estudo do comportamento político distingue-se do determinismo que supostamente é a base das ciências naturais de um modo ainda mais básico. Tucídides dá grande ênfase ao papel do indivíduo na História e na capacidade que ele tem de mudar o seu curso. O aspecto didático da sua obra, a tentativa de identificar padrões subjacentes, quer oferecer aos indivíduos perspicazes o insight (gnômé) com que ver e controlar os eventos políticos. E tais líderes políticos perspicazes existiam.
Temístocles, por exemplo, “era o melhor juiz para aquilo que estava próximo de acontecer e o mais sábio para prever o que aconteceria num futuro distante” e podia “prever brilhantemente aquilo de melhor e de pior que estava oculto num futuro obscuro”. Como conseqüência, “superava a todos os outros na capacidade de responder intuitivamente numa emergência”. É ainda mais clara a convicção de Tucídides de que os dotes especiais de Péricles afetaram o curso da Guerra. Péricles possuía as qualidades da antevisão, do patriotismo e da incorruptibilidade: “Durante todo o tempo em que esteve à frente do Estado no período de paz, buscou uma política moderada e conservadora, e no seu tempo a grandeza atingiu o seu ápice”, mas foi sucedido por homens que careciam dos seus dotes e desviaram-se das suas sábias políticas. “E, no entanto,” diz Tucídides,
“ainda resistiram por dez anos aos seus inimigos originais… e aos seus próprios aliados… e contra Ciro, filho do rei da Pérsia… E não desistiram enquanto não se destruíram a si próprios por causa dos seus conflitos internos. Os recursos com que Péricles contava na época eram tão imensamente grandiosos que ele previu uma vitória fácil para Atenas sobre os peloponenses apenas”.
Não pode haver acordo mais claro com a idéia de que os homens sábios podem fazer planos precisos e bem fundamentados para o futuro.
É precisamente essa expectativa de que tais homens acharão o seu relato útil no futuro que explica a sua extraordinária ênfase na exatidão do trabalho do historiador. Com exceção das raras afirmações diretas, as opiniões do próprio historiador podem ser vistas nos discursos que ele põe na boca dos seus personagens. Tucídides conta-nos a respeito do seu tratamento dos discursos:
“Em todos os casos, sempre foi muito difícil guardá-los palavra por palavra na memória, então o meu hábito foi fazer com que os oradores dissessem aquilo que na minha opinião esperava-se deles nas diferentes ocasiões, claro que se prendendo o máximo possível ao sentido geral do que eles realmente disseram”.
Este é a declaração do propósito de registrar os discursos como foram realmente pronunciados, não os inventados pelo historiador, na tentativa de deixá-los o mais fidedignos possível. Se Tucídides fizesse qualquer outra coisa, se inventasse discursos ou inserisse neles as suas próprias idéias em vez de tentar preservar os assuntos abordados pelo orador como era seu costume, teria mentido aos seus leitores. Deve-se assumir aqui que Tucídides quis dar às suas palavras exatamente o seu sentido mais óbvio: esses discursos que ele provavelmente ouviu pessoalmente devem ser tomados como um registro preciso e razoável das idéias do orador. Os discursos que ele provavelmente não ouviu e de que provavelmente não recebeu um relato confiável, se os há, podem ser tomados como expressão das idéias de Tucídides.
Após explicar o seu método de registrar os discursos, Tucídides conta ao leitor os grandes trabalhos que teve para certificar-se do curso dos eventos:
“No que diz respeito aos fatos dos eventos da Guerra, julguei que seria certo relatá-los não como me deparei com eles nem de acordo com as minhas pré-disposições, mas apenas depois de investigá-los com a maior exatidão possível, tanto os eventos em que estive presente como aqueles de que fui informado por outros. E o empenho em descobrir a verdade desse fatos significou um trabalho muito duro, porque aqueles que foram testemunhas oculares dos mesmos eventos não relataram as mesmas coisas. Os relatos diferiam por causa da parcialidade em favor de um ou de outro lado ou também por causa das falhas na memória deles.
“E, talvez, por carecer de contos fabulosos, o meu relato será considerado pouco agradável àqueles que o ouvirem, mas se for julgado útil para aqueles que buscam um conhecimento exato do passado como um auxílio à interpretação do futuro – que no curso das coisas humanas parecerá com ele, quando não o refletir – dar-me-ei por satisfeito.”
Poucos notaram que o último parágrafo está intimamente ligado ao que vem antes e é o seu complemento necessário. Explica o porquê de Tucídides ter se submetido a tantos trabalhos para apresentar os fatos da sua História da maneira mais exata possível. Apenas assim ela poderia cumprir o seu propósito de servir de material para que os sábios do futuro possam estudar o padrão do comportamento humano, especialmente em circunstâncias tão tensas, tirar lições disso, e conseqüentemente tomar melhores decisões. Se os fatos do seu relato estiverem errados, suas interpretações também estarão e tampouco servirão para fomentar a sabedoria política.
A magnífica História de Tucídides toca pontos que permanecem vitais em áreas de importância crônica para o seu tema: Política, Relações Internacionais e Guerra. Elas continuam a ser inescapáveis e cruciais para o entendimento e condução dos assuntos humanos, independentemente das modas intelectuais do nosso tempo. Tucídides foi o primeiro a tratar dessas questões de significância permanente usando a razão e o mais árduo e cuidadoso exame da história do seu tempo para jogar uma luz sobre elas.
Donald Kagan é professor de Clássicos e História na Universidade de Yale. “The student of political behavior” é um excerto de Thucydides: The Reinvention of History (Viking Adult, 2009).
Tradução de Cristian Clemente.
Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 4, Dez/2009. Disponível [online] no link: <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-4/tucidides-o-estudioso-do-comportamento-politico/>
Imagem: Estátua de Tucídides em frente ao Parlamento em Viena. Foto de Marco Woschitz, neste link.