- Um breve esclarecimento.
O presente artigo tem como base uma curta palestra proferida nas Jornadas de Direito de Família e das Sucessões, ocorrida em fevereiro de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, portanto, não segue uma padrão estritamente acadêmico. O artigo é mais voltado a suscitar um debate do que apresentar uma análise exaustiva sobre o tema – o que demandaria uma tese inteira.
Assim, para o fim do presente artigo, far-se-á uma redução do tema ao papel do afeto nas relações de família formadas por afinidade, ou seja, o casamento. Assim, não entra no escopo do presente texto o problema do afeto nas relações de filiação e nem na união estável.
Nossa discussão irá se atentar à pergunta: “O que é casamento?”. Resgatado seu sentido, ficará claro que as propostas que tentam incluir o afeto/sentimento como elemento essencial da família defendem, em verdade, uma outra concepção de casamento e família. São teorias que buscam redefinir o matrimônio, instaurando verdadeira instabilidade no seio familiar, deixando os cônjuges e toda a família sujeitos ao arbítrio dos sentimentos de uma das partes.
É preciso, antes de mais nada, resgatar o verdadeiro sentido do matrimônio, tal como estava consagrado nas legislações dos Estados ocidentais até poucas décadas. Somente assim se compreenderá claramente que a introdução do afeto/sentimento como elemento essencial do conceito de casamento cria uma verdadeira paródia do matrimônio verdadeiro.
……2. O casamento nas civilizações da antiguidade: o exemplo de Roma.
O casamento e a família sofreram grandes alterações ao longo dos séculos, isso é inquestionável. A família romana[1], uma síntese das tendências da antiguidade, compreendia todos que estavam sujeitos ao patria potestas do pater famílias[2].
ULPIANO afirma que a “união” (coniunctio) denominada matrimônio, é instituto de direito natural, porque ensinada a todos os seres vivos[3]:
“D. 1,1,1,3 – O direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Pois este direito não é próprio do gênero humano, mas de todos os animais que nascem na terra ou no mar, comum também das aves. Daí deriva a união do macho e da fêmea, a qual denominamos matrimônio; daí a procriação dos filhos, daí a educação. Percebemos, pois, que também os outros animais, mesmo as feras, são guiados pela experiência deste direito.”
No mesmo sentido, se manifestava Cícero em de off., 1,4,11-12:
“11. Antes de tudo, a todos os seres vivos a natureza concedeu o instinto de conservar a si próprio, a vida e o corpo, de evitar tudo aquilo que pode prejudicar, e de buscar e procurar obter as coisas necessárias para o sustento da vida, como o alimento, os covis e outras coisas do mesmo gênero. Igualmente comum a todos é o desejo de procriar e o cuidado com a prole.(…) 12. A própria natureza, mediante a força da razão, une o homem aos outros animais, cria uma semelhança que se manifesta na linguagem e na relação de vida, inspira, principalmente, um amor extraordinário para com a prole, impele-o a desejar os agrupamentos e reuniões: por estes mesmos motivos o homem esforça-se em procurar as coisas que são necessárias ao culto e à sua subsistência, e não apenas para si mesmo, mas para a esposa, para os filhos, para os outros que ele tenha por queridos e deva proteger. (…)”
STEINWASCHER, ao analisar essas e outras fontes do Direito Romano, conclui que “O matrimônio fundamentado na expressão coniunctio maris et feminae, segundo afirma Ulpiano, influenciado pela doutrina estoica, tem o seu preceito no ius naturale e sua finalidade principal na procriação (procreatio) e na educação da prole (educatio)”[4]. E continua, citando a melhor doutrina:
“Para R. Astolfi, as concepções estoicas de matrimônio e de procriação, consideradas como “deveres públicos do cidadão”, influenciaram diretamente na elaboração e promulgação das Leis Matrimoniais de Augusto. Na opinião do autor, La concezione che il matrimonio e la procreazione sono doveri pubblici del cittadino è conforme (…) alla tradizione romana e all’etica stoica. La giurisprudenza sente l’influenza e li attua nell’interpretazione e nell’applicazione della legge. Para R. Besnier, La vieille doctrine stoïcienne du Portique fait également prevaloir l’interêt de l’Etat, elle considere le mariage comme une loi naturelle, l’homme a le devoir de perpétuer la race, dans ce but il doit se marier et procréer. Também alguns filósofos pitagóricos, principalmente Ocellus Lucanus, declaravam, já no século I a.C., que a finalidade do matrimônio é a procriação e não o mero prazer entre os cônjuges.“
No mesmo sentido, Pietro Paolo ONIDA, Professor de Sassari, afirma ainda que:
La considerazione dell’istinto alla procreazione come fattore propulsivo di società, non solo di uomini: da quella fondata sul ‘coniugium’, a quella dei ‘liberi’, e quindi a quella della ‘domus’ e delle altre ‘res communes’, costituisce le premesse perché il legame fra gli esseri animati trovi espressione nel sistema giuridico. La riflessione ciceroniana, attraverso il riferimento al tema del ‘coniugium’ e dalla ‘societas liberorum’, si pone in evidente rapporto con le problematiche relative alla ‘coniunctio’, alla ‘procreatio’ e alla ‘educatio liberorum’, richiamate nella concezione ulpianea del ‘ius naturale’, come ‘ius’ comune a uomini e animali non umani“.[5]
Percebe-se, claramente, que tanto do ponto de vista dos costumes, quanto do direito, o casamento era visto, principalmente, por sua função social e econômica: ampliar a cidade por meio da procriação e formar os futuros cidadãos. O ideal familiar, conforme coloca STEINWASCHER, é o de um casamento monogâmico e com prole numerosa, em que o cidadão romano cumpre tanto as regras da Natureza como as suas obrigações em relação à res publica.
Em outra celebre passagem de Cícero, consta:
“53. Há vários graus de sociedade humana. Para não falar, de fato, da sociedade muito numerosa que une todos os homens, considera-se mais próxima aquela constituída entre os homens do mesmo povo, nação e língua, que são os vínculos mais importantes. Ainda mais íntima é aquela entre os homens da mesma civitas; uma vez que muitas coisas são comuns aos cidadãos, a praça principal (forum), os templos, o pórtico, as estradas, as leis, os direitos, os tribunais, os sufrágios, além disso, os costumes (consuetudines), os laços de parentesco, os numerosos negócios e relações contraídos. Sociedade mais restrita, é pois, o vínculo da própria família: de fato, da imensa sociedade do gênero humano encerra-se a um círculo muito pequeno. 54. E, uma vez que em todos os animais é natural o desejo da procriação, a sociedade é constituída primeiro no próprio casamento [união conjugal], depois nos filhos; em seguida numa única casa e nas coisas comuns. Isto é o princípio da cidade e como que a origem [sementeira] da res publica”.
Comentando o referido trecho, STEINWASCHER explica que a procriação era o fundamento do sistema jurídico-religioso de Roma, pois criava uma nova família, ou seja, uma nova unidade social (no sentido ontológico do termo), chamada por Cícero de “seminarium rei publicae”, “principium urbis”, “pusilla res publica”, a pedra angular da sociedade.
Nessa toada, aclara-se, com toda força, o interesso público do matrimônio (coniugium) para a cidade. Em nenhum momento se fala do matrimônio como meio de auto realização pessoal dos cônjuges. Ao contrário, deles se exige que se empenhem em ajudar a civitas ampliando o número de cidadãos pela procriação e educando as futuras gerações. Tanto que as leis de Augusto vieram para reforçar essa característica do matrimônio.
Para realização do matrimônio exigia-se a vontade de todos os interessados, ou seja, dos nubentes e dos que tinham potestas sobre eles. A intervenção do pater (ou de quem tivesse o potestas) era fundamental, tendo ele inclusive poder de vetar o matrimônio.
Somente com as leis de Augusto que se atenuou tal exigência, exigindo-se uma justa causa para o veto do pater. Tudo com o intuito de facilitar e incentivar os casamentos. Leia-se, por exemplo, trecho de PAULO no qual afirma que:
“Os matrimônios daqueles que estão sob o poder do pai não se contraem legitimamente sem a vontade dele, porém uma vez contraídos não se dissolvem, pois se prefere a consideração da utilidade pública aos interesses dos particulares”. IP: “Estando vivos os pais, os matrimônios entre filiosfamilias não se realizam legitimamente sem a vontade daqueles. Porém se tiverem se unido, não se dissolvem, porque a antiguidade decretou que corresponde à utilidade pública que uma união realizada para procriar filhos não se deva separar”.[6]
Fica claro, assim, que a vontade dos nubentes não bastava, pois dependia, ainda da aprovação do pater. Aliás, muitos ficavam noivos enquanto crianças, podendo celebrar as núpcias somente aos 12 anos (mulheres) e 14 anos (homens), período tido como suficiente para que alcançassem a puberdade. Todavia, fosse o casamento consumado, o pater não poderia mais fazer nada, pois o interesse público prevalecia ao seu.
- Casamento: precisões terminológicas.
Importante, ainda, frisar o caráter dúplice do matrimônio. Hoje estamos acostumados com um único ato para se celebrar o matrimônio, neste mesmo ato os nubentes declaram sua vontade de se casar, festejam e depois realizam as núpcias.
Por toda antiguidade e até o século XI e XII existiam duas fases distintas: a esponsalícia e a nupcial, costume que foi decaindo aos poucos no ocidente mas que ainda é mantido em diversas culturas tradicionais. Praticamente toda cultura antiga manteve essa dualidade, tanto as civilizações semíticas, quanto a greco-romana e até mesmo os povos germânicos.
Como observa o especialista em direito matrimonial canônico, Joan CARRERAS[7], a fase esponsalícia era a fase do pacto familiar, no qual as famílias, mais que os nubentes (principalmente pelo fatos destes serem impúberes ainda) firmavam um pacto jurídico para selar a união das famílias. Após o esponsal, a menina se convertia em esposa de seu marido e não era apenas noiva, mas verdadeira esposa, aplicando-se todas consequências patrimoniais e existenciais, e.g., no que diz respeito às penas por adultério. No entanto, tal pacto era mais fácil de ser rompido pelas famílias antes da consumação do matrimônio.
Somente com a fase nupcial é que se celebrava o matrimônio com festas e se dava as núpcias, a consumação do casamento mediante a conjunção carnal entre os esposos. Normalmente a festa era acompanhada de alguma liturgia, na qual o pai da esposa dava sua benção e depois a encaminhava para a casa do marido, dando-se início à coabitação.
Assim, haviam três fases que em português se designam, indistintamente, por “casamento”: os esponsais, as núpcias (o matrimonium in fieri) e o estado de casado (matrimonium in facto esse).
CARRERAS ressalta a importância da constituição existencial do casamento mediante o ato sexual, previamente celebrado pela comunidade, em detrimento do aspecto meramente jurídico encarnado no pacto esponsalício. Continua o autor sobre o matrimônio na antiguidade e no início da era cristã:
“Tudo era mais singelo que hoje, pois os cristãos aceitavam de bom grado os ritos matrimoniais das próprias tradições jurídicas: a hebraica, a romana, a germânica etc. Em contrapartida, as tradições e os costumes matrimoniais foram muito parecidos em todas as civilizações antigas. Isso é o que ocorre, por exemplo, com as duas fases, a esponsal e a nupcial, com as quais se alcançava o casamento. O mesmo se pode dizer dos costumes e ritos próprios de cada uma das fases:
1. Na fase esponsal: A “dexterarum coniunctio” – o entrelaçamento das mãos direitas dos esposos -, e o beijo. Por esses gestos tínhamos uma significação do compromisso assumido; o presente de um anel entregue à esposa, com idêntico sentido, unido talvez a algum augúrio de fertilidade; entre povos semitas, costumava-se velar a mulher depois dos esponsais.
2. Na fase nupcial: 1) As tábulas nupciais redigidas no momento dos esponsais, mas lidas no dia da festa nupcial, em presença dos convidados e nas quais se indicava que o matrimônio era contraído para procriar filhos; 2) O sacrifício de algum animal propiciatório; 3) O banquete nupcial; 4) a domum deductio ou cortejo de acompanhamento da esposa à casa do marido, cortejo no qual não faltavam músicos e a declamação de poemas, e que se fazia por um caminho iluminado com tochas; 5) Ao chegar à casa do marido, a esposa era levada suspensa e acompanhada dentro da câmara ou do tálamo (leito) nupcial.” [8]
E, como conclui CARRERAS, “No mundo antigo, e até durante o primeiro milênio depois de Cristo, o consentimento matrimonial tinha uma importância muito pequena. As pessoas não chegavam ao casamento por ‘amor’, pois que na maioria das vezes se viam obrigadas a aceitar a pessoa que lhes era apresentada e que estava destinada a ser seu cônjuge.”[9]
Realmente, como coloca STEINWASCHER em sua monografia, o estado de casado se adquiria como se fosse posse, pela apreensão do corpus da mulher com animus ou affectio maritalis, sendo que affectio, no caso, nada tem a ver com afeto[10]:
„O matrimônio romano apresentava dois elementos constitutivos essenciais: a affectio maritalis (elemento subjetivo) e o honor matrimonii (elemento objetivo).
Devido a esses elementos constitutivos, o matrimônio era análogo à posse, esta última iniciada pela apreensão (corpus – elemento objetivo) e que gera uma situação de fato que perdura enquanto uma vontade (animus – elemento subjetivo) não a faça cessar.“
- O matrimônio cristão: a invenção do casamento por amor.
A Igreja fez o que pôde para acabar com a prática do casamento forçado. Desde Santo Ambrósio (340-397) a Igreja tem afirmado o consentimento livre como essencial para o matrimônio. Todavia, vivendo num mundo em que as pessoas eram casadas (fase esponsal) desde crianças (e, nesses casos, em razão da vontade dos pais), o Papa Nicolau I (858-867), não tendo como declarar nulo tais casamentos, sob pena de todos casamentos serem nulos, criou uma saída criativa.
Ele reconheceu como válidos os casamentos celebrados pelas famílias dos cônjuges sem o consentimento destes, mas, por outro lado, estabeleceu como fundamental que houvesse o consentimento de ambos os esposos para as núpcias. E tal consentimento era expressado pelo ato conjugal, feito após a celebração em comunidade das núpcias e a procissão levando a esposa à casa do marido. No entanto, e.g., se uma jovem fosse casada no berço com alguém e os esposos realizassem o ato conjugal antes da festa de casamento, tal ato não era considerado fornicação, mas ato verdadeiramente conjugal e expressivo do consentimento dos esposos em se casar. Eram os casamentos presumidos. E se na juventude a moça decidisse entrar para um convento? Rompia-se o vínculo, vez que o casamento não foi consumado e somente com a consumação o vínculo se torna indissolúvel, pois somente no ato conjugal os esposos se tornam “uma só carne”.[11]
E se uma jovem, casada no berço pela família, se entregasse a um jovem que amava, ambos com intenção de contrair núpcias e formar uma família? Esse foi o grande debate dos séculos XI e XII, no qual se fez valer a questão da livre escolha dos noivos e se introduziu o casamento por amor na civilização ocidental.
GRACIANO defendia que o consentimento das partes era o elemento essencial para a formação do matrimônio e tal consentimento só poderia ser feito pelas partes. A promessa dos pais não podia se sobrepor à vontade dos esposos. Assim, deu o exemplo acima citado de, mesmo feito em segredo, o casamento era válido e legítimo, desde que feito com a intenção de contrair casamento (affectio maritalis) e realizada a cópula, pois para ele “onde há união de corpos, há que ter união de almas”[12]. Assim, a formação do matrimônio não dependeria da aprovação de mais ninguém, senão dos cônjuges, nem da Igreja.
Exemplo clássico trazido por Graciano é do casamento forçado da filha de Jordano, príncipe de Capua, com Renaud Ridel, Duque de Gaeta, feito no interesse político de seu pai. A filha de Jordano recorreu ao Papa Urbano II (1088-1099) que declarou nulo o casamento, contrariando os interesses políticos da própria Igreja naquele matrimônio[13].
Já Pedro Lombardo, defendia que o casamento, para ser válido, necessitava de uma declaração de presente, verba de praesenti, declaração expressa e não meramente presumida de que um aceitava o outro como marido e mulher a partir daquele momento. Mas manteve a desnecessidade de qualquer outra formalidade ou ritual.
No entanto, tal como ocorre hoje com a união estável, não era sempre fácil discernir um relacionamento com affectio maritalis de um relacionamento qualquer, gerando a chamada crise dos casamentos clandestinos.
Foi no IV Concílio de Latrão que se fixou a declaração mais formal e solene possível de tal consentimento: de forma pública, dentro da Igreja, depois de realizada as proclamas, mutatis mutandis do mesmo modo como o código civil positivou a celebração matrimonial. No entanto, nada asseverou sobre a nulidade dos casamentos clandestinos e feitos fora da Igreja. Somente com o Concílio de Trento no século XVI se estabeleceu a cerimônia eclesiástica como formalidade ad valitatem para o matrimônio.
Enfim, é inquestionável a luta da Igreja pelo casamento livre e por amor, sendo a imposição da forma ad valitatem uma garantia da liberdade da manifestação de vontade dos cônjuges, além de ser, claro, uma forma de publicidade. E tal como afirma CARRERAS:
“Amor e consentimento iam, pois, de mãos dadas, pois o casamento era considerado fundamentalmente como um ato de amor pessoal. Estou consciente de essa afirmação poderá surpreender a mais de um: como? Poder-se-ia ponderar que a Idade Média se caracterizou precisamente pelo fato de não atribuir ao amor dos esposos a importância que ele merece; que todo o mundo sabe que é na Idade Média que o casamento se converte em um instrumento de poder nas mãos da nobreza e da burguesia que além de tudo era machista; que levamos séculos ouvindo dizer que o amor nada tem a ver com o casamento, e que bastava existir um ato de vontade negocial, pelo qual se instituísse o vínculo conjugal. Todas essas afirmações estão equivocadas. Em sentido absoluto são falsas, porque, como vimos, foram os teólogos e canonistas da Baixa Idade Média que descobriram só haver casamento verdadeiro, com maiúscula, onde houvesse um ato de amor pessoal. E esse triunfo cultural, um autêntico monumento intelectual dos pensadores cristãos, não pode ser arrebatado aos canonistas medievais. Foram eles que vincularam os dois conceitos que até esse momento estavam separados: amor e consentimento. Só o consentimento dos esposos cria o casamento.” [14]
Foi também no período medieval que surgiu o ideal de amor, também muito diferente do atual ideal hoje mais difundido. Quanto mais intangível e difícil era o amor, maior o seu valor. Tanto que a forma mais pura do amor era o amor platônico, pois mantinha-se pura a mulher amada.
O ideal do amor concebia também o sacrifício do homem pela mulher amada, daí muitos dos torneios em disputa por mulheres. Não havia maior honra para o homem do que morrer ou sofrer pela mulher amada. E isso não é apenas literatura, mas a vida real de então e, de certa forma, de todos os tempos.
Veja-se, por exemplo, trecho de HUIZINGA sobre o tema:
“O cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, são o motivo romântico mais primário e imutável que em toda parte renasce, e sempre renascerá. É a transformação imediata do impulso sensual em uma abnegação ética ou quase ética. Ele nasce diretamente da necessidade do homem de demonstrar a sua coragem para conquistar uma mulher, para correr perigos e ser forte, sofrer e sangrar: a aspiração de todo jovem de dezesseis anos. Expressar e satisfazer pelo ato heroico praticado por amor. Com isso, a morte passa a ser imediatamente uma alternativa para tornar plena a satisfação que, por assim dizer, fica garantida de ambos os lados. […] A libertação da virgem é o motivo romântico mais primordial, sempre renovado. Como é possível que uma explicação de mito tão antiquada veja nele a imagem de um fenômeno natural, enquanto o imediatismo do pensamento pode ser diariamente provado por todos? Na literatura, por causa da repetição exagerada, embora possa ser evitado durante algum tempo, o motivo sempre volta em novas formas, como por exemplo, no romantismo do cowboy dos cinemas. E na concepção amorosa individual fora da literatura, ele sem dúvida nenhuma permanece igualmente forte.” [15]
De qualquer modo, o amor não estava desligado de determinada forma de sacrifício.
Assim, foi o cristianismo que atenuou a “brutalidade” do casamento antigo, voltado somente ao interesse público, à procriação, enfim, à alguma utilidade. E, dessa maneira, passou o matrimônio a ser baseado nesses dois elementos constitutivos de sua essência: o amor e procriação (ou abertura à procriação) e a consequente educação da prole.
Claro que essa verdadeira revolução do amor no direito matrimonial demorou séculos para ser realmente implementada, pois isso exigia uma drástica mudança de cultura. Somente no século XIX e XX é que a doutrina cristã do casamento por amor se difunde amplamente até nas classes mais abastadas.
Todavia, vivemos hoje no Ocidente uma paródia dessa verdadeira conquista civilizacional, que está nos levando a um retrocesso, isso porque perdeu-se o sentido correto do amor.
- Afeto: precisões terminológicas.
Antes de tudo é preciso compreender o significado do termo “afeto”, pois ele pode designar situações distintas. Como comparar o afeto entre um casal de namorados adolescentes, com o afeto de um casal de esposos? Ou com o afeto da mãe pelo filho? Nitidamente, há diversos significados para o termo.
O psicanalista francês e professor da Universidade de Paris, TONY ANATRELLA, identifica quatro sentidos distintos para o termo afeto[16]: (i) relação de apego; (ii) relação sentimental; (iii) sedução sexual; (iv) relação amorosa.
Em apertada síntese, o primeiro sentido se refere à uma relação na qual há uma necessidade de se depender de outra pessoa, sem um projeto comum de vida, mas antes uma busca por segurança e proteção. “As relações de apego mais não fazem do que perpetuar relações primitivas que não puderam ser elaboradas, nem permitir a autonomia dos sujeitos”.
Já a relação sentimental “se assenta na troca de sentimentos e emoções, sem quaisquer outros projetos na realidade”. Neste tipo de relação há uma idealização do outro, não se aceita o parceiro pelo o que ele é, mas pela representação que se faz dele. Esse tipo de casal dificilmente resiste aos conflitos, vez que enxergam na variação dos sentimentos uma falta de amor. “Os parceiros ficam surpreendidos com o impasse em que se encontram e pensam que amam o outro, quando o único projeto que têm é o de se contemplarem nele. Confundem sentimentos com o amor. Ou seja, aquilo que cega não é o amor, é a paixão sentimental.”
O afeto também pode significar uma sedução sexual, um desejo de se exprimir sexualmente com o outro. O casal formado por esse tipo de afeto é ainda mais instável do que o casal sentimental, sua relação pode ser de apenas um dia, algumas semanas ou meses. Aqui não há um compartilhamento dos projetos de vida, mas somente de uma procura de uma expressão sexual.
Mas é à relação amorosa que todos aspiram. Leia-se na íntegra as lições do renomado psicanalista:
“Com efeito, há uma grande tendência para confundir sentimentos com uma relação amorosa, ou um apego com uma dependência alienante ou uma atracão sexual com uma qualidade relacional que não existe. Em contrapartida, a relação amorosa unifica a vida sentimental e a atracão sexual. […] Inscrever a vida sentimental e sexual na ordem do amor é querer comprometer-se e inscrever-se no tempo.”
Ressalta ainda que a palavra amor etimologicamente significa “sem morte”, isto é, amar o outro é querer durar com o outro para sempre, partilhando as alegrias e tristezas e enfrentando as provas da existência. Nessa toada, dizer que “não te amo mais”, afirma o autor, é o mesmo que dizer “nunca te amei”.
“Descobrir o sentido do amor é ser capaz de se comprometer”, ressalta.
Dessa maneira, percebe-se que o verdadeiro amor se diferencia dos demais tipos de afeto exatamente pelo elemento do comprometimento, sendo que tal sentido se aplica da mesma maneira para o amor entre pais e filhos, por exemplo.
- Matrimônio: a instituição do amor conjugal.
Praticamente todos erros modernos referentes ao casamento tem como origem uma má compreensão do significado do amor, confundindo-o ora com o apego, com a sedução e, mais comumente, com o mero sentimento ou paixão sentimental.
Seja o apego, seja a relação meramente sentimental ou de sedução, tratam-se de matérias puramente privativas das partes envolvidas, enquanto que o amor e o matrimônio são exatamente o contrário disso.
O que importa destacar é a importância do reconhecimento social do matrimônio, o fato de não ser um ato meramente privativo das partes, e a maior prova disso são as festas nupciais, existentes em todas as culturas e os ritos que normalmente acompanham a festa. É na festa que os noivos se casam perante a sociedade, perante a família e os amigos, a interferência do Estado ou da Igreja é acidental e meramente formal e utilitária.
O casamento tem como traço distintivo de outras formas de relacionamento a sua publicidade e formalidade, os cônjuges, quando se casam, querem exatamente expressar publicamente seu comprometimento, elevar tal comprometimento, que antes era limitado ao âmbito emocional e privado. Daí realizarem isso perante seus parentes e a sociedade em que vivem.
Como afirmam as sociólogas e pesquisadoras americanas Maggie GALLANGHER e Linda WAIT:
“Os americanos pensam no casamento como uma relação profundamente íntima e pessoal. E, por óbvio, isso é verdade. Mas o casamento, diferentemente de outros relacionamentos pessoais e amorosos tem um aspecto inerentemente público e social. Casamento é o que o casal faz quando quer elevar seu amor do âmbito puramente privado e emocional e fazer dele um ato social, algo visível e reconhecido por todos, dos pais aos funcionários de instituições bancárias.” [17]
E como bem ressalta o psicanalista francês:
“Partilhar sentimentos e viver juntos não tem, do ponto de vista social, o mesmo sentido que manifestá-lo numa declaração destinada a inscrever legalmente a relação do casal no tempo e na duração, bem como a colocar os filhos sob a proteção institucional da família e da sociedade.”[18]
Outro aspecto importante do matrimônio é o seu caráter institucional[19], voltado para abarcar o comprometimento amoroso dos cônjuges. O amor, no seu sentido verdadeiro, precisa ser conjugal, isto é, abarcado pela instituição matrimonial, pois ela é o que garante e viabiliza o pleno comprometimento amoroso, a doação recíproca dos cônjuges, a procriação e educação da prole.
A visão institucional se opõe a visão individualista do casamento. Em qualquer instituição, seus membros atuam no interesse comum, não no interesse próprio. E é exatamente isso que as doutrinas ditas “progressistas” tentam atacar, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana (!?).
Leia-se, por exemplo, trecho escrito por Gustavo TEPEDINO, um dos grandes expoentes “progressistas”:
“O constituinte de 1988, todavia, além dos dispositivos acima enunciados, consagrou, no art. 1§, III, entre os princípios fundamentais da República, que antecedem todo o Texto Maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família. Assim sendo, a família, embora tenha ampliado, com a Carta de 1988, o seu prestígio constitucional, deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que – e somente na exata medida em que – se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade dos seus integrantes. Dito diversamente, altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para um conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos – tendo por origem não apenas o casamento – e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros.”[20]
Nota-se claramente o deslocamento do interesse pelo bem da instituição para o bem de seus membros. Para o autor, a Constituição não deixou espaço ao sacrifício individual e transformou a família e um instrumento da “realização espiritual” de seus membros. Não são mais os indivíduos que devem se sacrificar pela família, mas esta que deve ser sacrificada pelos indivíduos.
Mas como justificar, sob esta ótica, o serviço militar obrigatório, por exemplo? Não é um nítido exemplo de que a Constituição reconhece interesses superiores aos do indivíduo? Colocar o interesse individual acima do interesse do bem comum não seria um verdadeiro regresso à barbárie?
Infelizmente é essa absurda visão que tem movido o direito de família das últimas décadas e embasado as reformas legislativas.
Nossa legislação é clara ao reconhecer na família um sujeito de direitos autônomo de seus membros, como deixa claro o art. 220, §3º da Constituição Federal, por exemplo:
“§ 3º – Compete à lei federal: II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.”
E não é outro o sentido do art. 226 da Constituição, que confere especial proteção constitucional à família.
Tem-se que ter em mente a figura da representação.[21] O marido e a mulher, enquanto na direção da sociedade conjugal, devem agir no interesse da família, não nos seus interesses egoísticos, tal como estabelece o art. 1.567 do Código Civil: “A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.”. Da mesma maneira, quando exercem o poder familiar sobre os filhos, devem buscar o melhor interesse destes, não os seus próprios.
Como já dizia sabiamente H. Capitant “il n’y a pas de place pour la notion de droit subjectif dans la réglementation juridique de la famille”[22]. Sem dúvida, a administração da sociedade conjugal não pode ser vista como uma direito subjetivo, tal como o direito de propriedade, mas como um dever, ordenado, ainda que mediatamente, à satisfação do interesse da família.
Os próprios deveres conjugais, se bem analisados, não buscam atribuir direitos subjetivos aos cônjuges, mas antes atribuir poderes-deveres a estes, todos voltados aos interesses da família, não dos cônjuges individualmente.
Percebe-se, assim, claramente, que a legislação brasileira (embora deturpada por reformas legislativas recentes) ainda estabelece e protege uma família institucionalizada e que, de forma alguma, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser usado para justificar a introdução de um individualismo exacerbado, promovendo uma privatização do direito de família ao reduzir a tutela do estado somente aos interesses e caprichos individuais, deixando de lado os interesse da família.
- Conclusão.
“Um bom casamento, se existe, recusa a companhia e os modos de viver do amor [paixão]: ele tenta imitar os da amizade. É uma doce concordância de vida plena de continuidade, de confiança e de um número infinito de úteis e sólidos serviços e obrigações mútuas..” Montaigne
Como vimos, não existe amor sem comprometimento, mas também não existe verdadeiro comprometimento sem uma tutela jurídica que reforce e garanta esse comprometimento, impondo deveres e poderes-deveres às partes, todos voltados ao melhor interesse da família enquanto sujeito de direitos distinto de seus membros, sendo que o melhor interesse da família é também o melhor interesse público, vez que é na família que se formam as futuras gerações – e é por isso que todas as civilizações sempre regularam, de uma forma ou de outra, o casamento.
Por isso, o matrimônio é a instituição do amor conjugal, isto é, o matrimônio exerce uma função enquanto instituição de altíssimo interesse público, qual seja, expandir a população e educar as futuras gerações (função esta presente em todos os tempos e povos civilizados), mas fruto do amor conjugal, que deve ser buscado pelos esposos e que, por sua vez, é o comprometimento para formar um projeto de vida em comum, livremente abraçado pelas partes.
Ou seja, o matrimônio é institucional (caráter público) e amoroso (privado). Os aspectos privados e públicos co-existem numa relação de tensão e de complementaridade. Nem só públicos são os interesses da família, e nem só privados.
E, compreendendo-se o que é o matrimônio, percebe-se claramente que reduzir o matrimônio ao mero sentimento é redefinir o matrimônio, reduzindo-o ao seu aspecto radicalmente privado e individualista. Infelizmente, é isso que tem-se prevalecido na doutrina mais recente e nas últimas reformas legislativas. A introdução do divórcio-direto é o maior exemplo disso, pois rompe-se a segurança jurídica que deve reinar em qualquer relação de longa duração, deixando as partes numa verdadeira relação de sujeição a outra. Ou pior, deixando as partes numa relação de sujeição aos sentimentos da outra…
E, assim, buscando-se uma liberdade, criou-se uma arbitrariedade: a ditadura do afeto.
Caio Martins Cabeleira, Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, com graduação parcial pela Albert Ludwig Universität Freiburg – Alemanha. Doutorando em Direito Civil na Universidade de São Paulo, Diretor Nacional da Associação de Direito de Família e das Sucessões. Advogado.
— Artigo publicado originalmente na RDFAS, v. 1, n. 1, 2014.
NOTAS:
[1] Sobre o tema, utilizaremos como base a recente monografia de STEINWASCHER, que tratou exaustivamente sobre o matrimônio romano, tanto do ponto de vista jurídico quanto cultura. Cf. STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.
[2] CRUZ, Gulherme Braga e LIMA, Fernando Andrade Pires, Direitos de Família, 3ª ed., Coimbra: Coimbra ed., 1949, pág. 1.
[3] Tradução e citação tirada de STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.
[4] A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.
[5] Studi sulla condizione degli animali non umani nel sistema giuridico romano, Torino, Giappichelli, 2002, pp.153-154. Citado por STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação… veja-se, também, outras citações do mesmo autor, acompanhadas por seus comentários sobre o tema, ipsis literis:
„M.P. Baccari, Persona e famiglia, p.34; O. Robleda, Intorno alla nozione di matrimonio nel diritto romano e nel diritto canonico, in Apollinaris 50 (1977), p.183. P.P. Onida, Studi sulla condizione cit. pp.95-96. Nesta obra de Onida, pp.104-106, o autor estabelece uma interessante analogia entre o trecho de Ulpiano (D.1,1,1,3) e um trecho de Filostrato sobre a “Vida de Apolônio de Tiana” (Philostr. Vita Apoll. 2,14). Apolônio observa o comportamento de trinta elefantes que atravessam o Rio Indo. Depois analisa diversos comportamentos comuns a todos os animais (Apolônio descreve a Damis, seu discípulo, situações análogas com as baleias, as focas, os golfinhos, os peixes, os leões, os leopardos, os tigres, as panteras, as águias, as cegonhas): o auxílio mútuo quando se encontram em situações difíceis (no caso, a travessia do Indo), o modo como eles protegem suas crias, a educação da prole, a procriação. Na opinião de M. Kaser, Ius gentium cit. (nota 12 supra), pp.86-88, estes fenômenos comuns à vida tanto dos homens quanto dos animais (e principalmente, o paralelo realizado entre as relações do macho e da fêmea, a procriação e o matrimônio liberorum procreandorum causa) são na verdade fruto de um instinto inato, um impulso natural, destinado à reprodução da espécie mediante a procriação e a educação dos filhos. A poesia e a filosofia grega deduziram regras de comportamento comuns aos homens e animais, porém falta aos últimos a compreensão “intelectual” destes fenômenos. A idéia de relações jurídicas comuns aos homens e animais e a idéia da existência de “leis naturais” parecem ter se baseado na compreensão das palavras “direito” e “lei” do termo grego νόμος. Ulpiano fundamentou seu pensamento nas fontes gregas e em Cic. de rep. 3,11,19: Pythagoras et Empedocles unam omnium animantium condicionem iuris esse denuntiant.
Caius Musonius Rufus, filósofo estóico do período neroniano (30?–101?), escritor de 700 livros segundo Prisciano, fez várias referências à “virtude própria” das relações sexuais entre os animais, que tem como finalidade a procriação e a manutenção da espécie e não os meros “prazeres”. O filósofo ressalta que nada era mais belo que a união entre o homem e a mulher, nada mais forte do que esta união para constituir uma cidade e que estas uniões agradavam as divindades como Eros e Afrodite. O criador do homem distinguiu dois órgãos reprodutores, um na fêmea e outro no macho e infundiu em ambos um forte e intenso desejo recíproco de viverem em união. Quanto ao ius commune entre homens e animais, a opinião de Musônio Rufo em relação ao aborto é muito significativa. Em suas assertivas éticas ele condena abertamente tal prática, ainda que a família com prole numerosa tivesse poucos recursos econômicos. O filósofo narra a situação de um homem pobre com muitos filhos e sem condições de mantê-los e que questiona como poderá alimentar todos eles. Musônio dá o exemplo dos passarinhos, andorinhas, rouxinóis, cotovias e melros que alimentam suas ninhadas mesmo sendo muito mais frágeis e pobres que qualquer homem.
- Laurenti, Musonio, maestro di Epitteto, in ANRW II.36 (1989), p.2141; p.2142, nota 151; M.P. Baccari, Persona e famiglia cit., p.35; P.P. Onida, Studi sulla condizione cit., pp.95-96;151-152 defendem a existência de um ius commune entre homens e animais, pois a união do macho e da fêmea, a procriação, o aleitamento, a alimentação e a educação da prole são, igualmente, relações do ius naturale também presentes nos animais. Sêneca faz referência a este ius commune a todos os seres vivos em Sen., Clem. 1,18,2 ao falar dos escravos que se refugiavam nos templos e junto às estátuas dos imperadores por sofrerem maus tratos de seus donos: Servis ad statuam licet confugere! Cum in servum omnia liceant, est aliquid, quod in hominem licere commune ius animantium vetet. “Mesmo aos escravos é permitido refugiarem-se junto a uma estátua! Embora tudo seja lícito contra os escravos, existe algo que o direito comum aos seres vivos impede utilizar contra um ser humano”. Vejam-se também Gai.1,53; Ulp. 8 de off. procons. D.1,6,2; Ulp. l.s. de off. praef. urb. D.1,12,1,1; Ulp. 1 ad ed. Aedil. Curul. D.21,1,17,12; Ulp. 5 de off. procons. D.47,11,5; Inst. 1,8,2; Coll. 3,3,1-3; 3,3,5-6.
Nas palavras de Ulpiano em D.1,1,1,3, (…) quod natura omnia animalia docuit (…). Segundo R. Laurenti, Musonio cit. pp.2.131; 2141, o termo grego συνεῖναι utilizado por Musônio Rufo em diatribe XIV indica a vontade de viver junto do casal, de um cuidar do outro e de priorizar a procriação e a educação dos filhos.
Em relação à educação, Musônio defendia sua aplicação, tanto para os meninos quanto para as meninas, baseada na ἀπόδειξις. Desde pequena, a criança já deveria aprender a discernir aquilo que é bom daquilo que é mau, o útil do prejudicial, aquilo que é permitido daquilo que é proibido, para que, por meio do costume, tenha seus atos dirigidos pela justiça e pela verdade quando tornar-se adulto. Afirma P. Veyne, L’Empire Romain. Histoire de la vie privée. I. De l’Empire Romain à l’an mil, Paris, Du Seuil, 1985, trad. it. de Maria Garin, La vita privata nell’impero romano, Roma-Bari, Laterza, 1992, pp.11-16, a finalidade da educação era fortalecer o caráter do cidadão desde criança, a transmissão dos hábitos dos antepassados pelo paterfamilias. Era justificável este cuidado com a prole por ela constituir a continuação e a manutenção do nome e da condição social desta família. A educação nos primeiros anos de vida ficava a encargo da mãe; nas famílias nobres e mais ricas, além da mãe, da nutriz (ama-de-leite); e, sob influência grega, de um pedagogo (paedagogium), geralmente um escravo ou liberto, que era encarregado de ensinar a criança a ler e a ter boas maneiras. Aos sete anos a criança passava a ser um infans maior e ingressava na escola primária (ludus litterarius) sob a autoridade do magister. De acordo com A. Calderini, Antichità private, in Vicenzo Ussani e Francesco Arnaldi (org.), Guida allo studio della civiltà romana antica, vol.2, Napoli, Istituto Editoriale del Mezzogiorno, 1954, p.23, o cuidado e a responsabilidade pela educação da criança romana era uma tarefa da família. O menino romano, para uma austera disciplina do seu corpo e do seu caráter, acompanhava seu pai em várias atividades sociais e religiosas. Se nas famílias mais ricas e nobres existia a figura do pedagogo, geralmente era tarefa do pai ensinar a criança a ler, escrever, fazer cálculos, decorar as leis e guardá-las na memória. Vejam-se M.C. Giordani, História de Roma, 16ªed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp. 166-177; G. Cipriani – P. Fedeli, Vivere a Roma antica cit. (nota 4 supra), pp.75-76; H. Bornecque – D. Mornet, Rome et les Romains, Paris, Delagrave, s.d., trad. port. de Alceu Dias Lima, Roma e os Romanos – Literatura, História, Antigüidades, São Paulo, EPU, 1977, pp.155-157.”
Para maior aprofundamento, cf. a obra completa de STEINWASCHER.
[6] D. 2,19.2 – citado e traduzido por STEINWASCHER, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.
[7] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito. Loyola: São Paulo, 2004, pág. 20 e 21
[8] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito… pág. 27 e 28.
[9] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito… pág. 35.
[10] Conforme E.C.S. Marchi, Matrimônio moderno e matrimônio clássico – divórcio e “Soneto de Fidelidade”, in Direito de Família no Novo Milênio, Estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo, São Paulo, Atlas, 2010, pág.58-59: “(…) a palavra affectio, ao invés de significar ‘afeição’, corresponderia mais propriamente, em comparação com as atuais línguas neolatinas, como o português, a ‘afecção’, vocábulo hoje a indicar ‘estado de enfermidade’ ou ‘processo constante de uma doença’, vale dizer, uma situação que perdura
[11] No direito canônico continua o entendimento de que o casamento rato, mas não consumado, pode ser dissolvido pela Igreja. Cf. Cân. 1142: „O matrimónio não consumado entre baptizados ou entre uma parte baptizada e outra não baptizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou só de uma, mesmo contra a vontade da outra.“
[12] Gies, Frances e Gies, Joseph, Marriage and Family in the Middle Ages, Harper & Row: New York, 1989, pág. 138 – tradução livre.
[13] Veja, por exemplo, o caso do. Cf. NOONAN, John T., Marriage in the Middle Ages: Power to Choose, Viator v. 4, 1973, pág. 419-420.
[14] CARRERAS, Joan, cit., pág. 41 e 42.
[15] HUIZINGA, Johann, O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos, São Paulo: Cosac Naify, 2010, pág. 116-117. Obra fundamental sobre o tema do amor na sociedade da Alta Idade Média e início da era moderna.
[16] Casal Hoje e Confusões Afectivas e Ideológicas, in Lexico da Família: Termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos, Príncipia: Caiscais, 2010.
[17] The Case for Marriage: Why married people are happier, healthier, and better off financially, Broadway books: New York, 2000, pág. 34. e-book.
[18] ANATRELLA, Tony, Casal Hoje e Confusões Afectivas e Ideológicas, in Lexico da Família: Termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos, Príncipia: Caiscais, 2010, pág. 83.
[19] Sobre o institucionalismo e a família, cf. HAURIOU, Maurice, Aux sources du droit : le pouvoir, l’ordre et la liberté, Centre de philosophie politique et juridique: Caen, 1986. Edição original foi editada por Bloud y Gay, Paris, 1933.
[20] TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares. Disponível em http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/diversos/tepedino_3.html.
[21] Sobre a representação, a personoficação e o poder-dever no direito de família, cf. especialmente GAILLARD, Emmanuel, Le pouvoir en droit privé, Econômica: Paris, 1985.
[22] Sur l’abus des droits, in R.T.D.C., 1928, p. 373.