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Reformistas conformistas

Opinião Pública | 01/02/2017 | | IFE CAMPINAS

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Uma das maiores reivindicações das mulheres atualmente – expressa não apenas publicamente nos movimentos feministas, mas também em confidências sobre relacionamentos – diz respeito à objetificação da mulher. As propagandas de cerveja, a indústria pornográfica e os casos de estupro comprovam, de forma explícita, o fenômeno. No entanto, a questão não se restringe a tais abomináveis situações, também se apresenta, de forma menos patente, nas relações pessoais.

Apesar de se creditar a objetificação da mulher à mentalidade machista, seu fundamento é anterior, tem como princípio os ideais utilitários. O utilitarismo, que configura hoje um sistema filosófico, se manifesta – usualmente de maneira inconsciente – na forma de conduta da sociedade moderna. Ao considerar o prazer como único e maior bem ao qual o ser humano aspira e, por conseguinte, como o fim de sua existência, concebe-o também como único parâmetro da norma moral das ações humanas. Dessa forma, tudo é tido como meio para atingir o fim máximo do prazer, inclusive a pessoa humana.

A despeito de sua presença em diversas épocas, a mentalidade utilitarista assumiu uma forma especialmente perniciosa no campo da sexualidade, principalmente com a chamada “liberação sexual”. Tornamo-nos “livres” para usar e sermos usados. Desse modo, o “amor” converte-se numa fusão de egoísmos: cada um defende o próprio egoísmo e aceita servir ao egoísmo alheio, sob a exigência de que o outro se disponha a satisfazer o seu. A pessoa rebaixa-se à condição de instrumento, uma vez que trata o outro como tal. A reciprocidade no egoísmo – cujos interesses podem ser a satisfação sexual, afetiva ou qualquer outra – em certo momento, revela seu caráter frágil de conveniência passageira.

Como antítese ao ideal utilitarista, está o princípio personalista, segundo o qual a pessoa é um bem que não se coaduna com a utilização e, portanto, não pode ser tratada como um objeto de prazer. O valor da pessoa não está, pois, subordinado à sua utilidade. O prazer desfrutado não é um fim em si, mas uma consequência da única atitude à altura do valor da pessoa humana: o amor. “Não basta desejar a pessoa como um bem para si mesmo, é preciso, além disso e sobretudo, querer o bem para ela. Esta orientação da vontade e dos sentimentos, altruísta por excelência, é chamada por S. Tomás de “amor benevolentiae” ou simplesmente “benevolentia”. O amor de uma pessoa por outra deve ser benevolente para ser verdadeiro, caso contrário, não será amor, só egoísmo.”, assinala um dos principais propagadores do personalismo, Karol Wojtyla – posteriormente Papa e hoje São João Paulo II.

Na luta interior de todo ser humano, a comodidade de voltar-se para si e, por consequência, usar-se dos demais, promove satisfações momentâneas, mas corrói as relações, que se tornam fugazes e descartáveis. Por outro lado, optar por fazer-se dom para o outro exige sacrifícios mas, ao contrário, além de suscitar alegria duradoura, constrói relações verdadeiras e maduras.

O combate à objetificação da mulher, e da pessoa humana no geral, requer, evidentemente, a recriminação da indústria pornográfica, cinematográfica, da moda e do marketing que mercantilizam o corpo feminino. Porém, reclama também o questionamento de nossa inserção enquanto agentes atuantes desta realidade cultural, e não como entes externos, alheios ao problema ou meras vítimas do “sistema”.

Parece cômodo ignorar que a objetificação consentida, permanece objetificação – o consentimento pode tornar o ato juridicamente legal, mas moralmente persiste como uma afronta à dignidade da pessoa. Parece conveniente desprezar nossa condescendência com formas menos evidentes de objetificar ou ser objetificado e culpabilizar tão somente instituições ou ideologias, sem que isso demande uma mudança de conduta própria. Mas, infelizmente, de reformistas em relação à sociedade e conformistas em relação a si mesmos, o mundo já está repleto. Revolucionários de passeata há muitos, estão em falta revolucionários no amor.

Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e membro do IFE Campinas.

Ensinar X Doutrinar

Opinião Pública | 04/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Pertence ao senso comum a ideia segundo a qual um ensino intelectualmente honesto deve fomentar nos alunos a aptidão para o pensamento independente dos vícios e das ideologias, ao passo que a chamada “doutrinação” consiste na imposição, pelo professor, de uma doutrina na qual ele acredita e para a qual deseja ganhar a adesão dos alunos. Sem pretender esgotar o tema, pretendo, aqui, convidar os educadores a refletirem mais a fundo sobre a prática da doutrinação para que, assim, possam melhor contribuir para a formação daqueles cujo aprendizado foi a eles confiado.

No livro “A Doutrinação”, escrito na década de 1970, o filósofo Olivier Reboul aponta dois sentidos para essa prática: a doutrinação de tipo conformista, que consiste no reforço de preconceitos já existentes na cabeça do educando, e a doutrinação de tipo sectário, marcada pelo ataque frontal aos preconceitos existentes na cabeça do educando e sua substituição por outros. Enquanto o conformismo impede que o educando elabore grandes projetos, cresça como pessoa e, assim, contribua para o bem social como um todo, o sectarismo está na raiz dos movimentos de negação radical da realidade, que frequentemente resultam em violência e grandes tragédias pessoais e/ou coletivas.

Talvez um dos grandes desafios com que se defronta o educador seja diagnosticar, na própria prática pedagógica, se seu ensino está ou não trilhando o caminho da doutrinação. Para melhor nos situarmos, sugiro tomarmos como ponto de referência alguns sintomas claros da doutrinação apontados por Reboul: fazer propaganda do partido político A ou B, impor um tipo de conhecimento que poderia ser compreendido (o famoso “porque sim”), lançar mão do argumento de autoridade quando não é o único possível, elaborar um ensino com base em preconceitos e, paralelamente, manipular fatos para que a doutrina ensinada aparente ser a única possível são indícios claros de que se está a doutrinar e não a ensinar.

Mesmo que o educador, ao olhar para essa lista, creia firmemente que não pratica nenhuma das condutas arroladas, ainda assim é possível que o faça sem saber. Acrescenta-se a isso o fato de que todo educador possui – e é legítimo que possua – suas crenças e convicções pessoais de ordem política e de valores morais e que um conjunto de aulas interessantes e atraentes podem implicar na adesão irrefletida do aluno ao ponto de vista do professor pela simples associação da opinião com a pessoa. Como, então, se resguardar desse perigo?

A resposta que proponho pode parecer um truísmo, mas, em tempos de recrudescimento ideológico e partidário como os nossos, se faz necessária: o educador deve ter a prática contínua e disciplinada do estudo, associada sempre à honestidade intelectual de expor o maior número de pontos de vista que um assunto comporta e as possíveis conseqüências que a adoção de cada um deles pode acarretar.

O caminho mais fácil para ser um professor “popular” parece ser, cada vez mais, o do sectarismo, sobretudo por este se revestir de uma aparência de coerência entre o ensinar e o agir. Com efeito, o militante político e o fanático vivem aquilo que ensinam com grande fervor, mas não cumprem sua função de educadores, que consiste, sobretudo, em abrir as portas do pensamento responsável e nunca em fechá-las.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é advogado, professor de Filosofia e gestor do Núcleo de História do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 04 de Fevereiro de 2015, Página A2 – Opinião.