Correr para as montanhas?

Sem Categoria | 08/03/2017 | | IFE CAMPINAS

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No ano passado, no intervalo de um curso sobre filosofia política, um aluno desabafou dizendo que o homem faliu, a sociedade foi à bancarrota e, como Deus está morto, o negócio é correr para as montanhas, bem longe do que restou de nosso estágio civilizatório. Segundo ele, o projeto da modernidade esgotou-se e não haveria um sucedâneo capaz de fazer uma reinvenção do homem.

De fato, na “problemática”, nosso aluno fez um diagnóstico acertado da realidade que vivemos: o homem passou o século XX realizando macabras experiências antropológicas aqui e acolá e instrumentalizando o próprio homem em prol de projetos políticos, sociais e econômicos que oscilavam entre a redução ou a aniquilação de sua própria dignidade. Campos de concentração, gulags, bomba atômica, genocídios, nacionalismos, desastres ecológicos, manipulação genética e intervencionismo estatal, entre outros.

Evidente que, depois dessas aulas de laboratório antropológico, o relatório final não poderia ser dos mais agradáveis. Um generalizado ceticismo, quando não um pessimismo, tomou conta de nossas mentes. Habermas e Ratzinger, cada qual a seu modo, já prenunciavam esse quadro patológico para os albores do século XXI e, além disso, novos milenarismos, visões apocalípticas e metanarrativas sobre o fim da história que surgiriam como remédios, dispostos e prontos para consumo na gôndola dos pensamentos padrão fast food.

Nossa tarefa, diante de tantos e novos desafios, é histórica. Aliás, a tarefa do homem sempre foi assim e, como tal, permanece. No século XX, vivemos o auge da absolutização da autonomia do homem. Positivismo, romantismo, marxismo, niilismo, estruturalismo, cada qual, entre erros e acertos, criou sua visão prometeica do homem. E a resultante dessa feijoada de ideias foi bem indigesta: uma grave desordem nos diferentes âmbitos da existência humana.

Qual será o remédio para o homem que, depois do ocaso do projeto moderno, está imerso numa busca de sentido para sua existência? Algumas tendências culturais têm o sincero desejo de superar os becos sem saída que esse projeto nos legou. Nos âmbitos político e econômico, notamos tendências de integração entre os povos, o reforço dos princípios da subsidiariedade contra a centralização estatal e da solidariedade contra o individualismo libertário.

No âmbito científico, existe um despertar de consciência dos perigos da tecnologia aplicada sem pontos de referência éticos, sobretudo no que concerne ao respeito ao meio ambiente e ao trato humano na engenharia genética. No âmbito cultural, o etnocentrismo do homem branco ocidental vem sendo suplantado por um pluralismo aberto à diversidade estética.

São tendências que tendem a superar a matriz teórica do século XX. Abrem muitos caminhos para uma autêntica personalização dos indivíduos no seio social. Todavia, permanecem muitas ambiguidades em nosso panorama civilizatório.

Ainda há muito economicismo, hedonismo e relativismo moral, a globalização pode derivar para uma massificação cultural mundial a partir desses elementos e, no espectro religioso, muitos propõem uma espécie de religião humanizada, que não mira o transcendente, mas a auto-redenção do homem.

A “problemática”, por assim dizer, permanece e, no fundo, envolve, fundamentalmente, a crise sobre a verdade do homem. Durante muito tempo, acreditou-se ser o homem uma criatura livre e, ao mesmo tempo, miserável, na acepção mais genuína do termo, a depender constantemente dos influxos do transcendente, tanto horizontal quanto vertical. Hoje, o homem é supremo para si mesmo.

Como já dito, nossa tarefa é histórica e, nessa órbita, paira a sombra senhorial divina. Porém, a mesma história consiste no produto das livres decisões de cada um dos homens. Como isso se compagina, é um grande mistério e, em certa medida, lembra um pouco a relação entre os deuses homéricos e os homens: o bardo da Ilíada canta a história de deuses e homens e não histórias de deuses e histórias de homens. A nós, no bojo daquele mistério, resta apenas, como “solucionática”, fazer um uso responsável de nossa liberdade. Sem precisar correr para as montanhas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 08/03/2017, Página A-2, Opinião.