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A história esquecida da pós-modernidade (por Rein Staal)

Filosofia | 30/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em fevereiro de 1943, no Sportpalast de Berlim, diante de milhares de leais membros do partido nazista, Josef Goebbels fez apelo à “guerra total”. A guerra total veio, e poucos anos depois o Sportpalast era parte das ruínas fumegantes do movimento nacional-socialista.

Martin Heidegger, um dos ex-membros mais famosos do movimento, disse que  “a verdade e a grandeza internas” da visão nazista “consistiam no encontro do homem moderno com a tecnologia global”. Ao observar os destroços desse encontro que ficaram depois da guerra, o escritor alemão Romano Guardini viu neles também o corolário e o colapso do projeto damodernidade. Os anseios que inspiraram os fundadores do pensamento moderno – a conquista da natureza por meio da ciência e, em última análise, a conquista da natureza humana por meio da ciência e conseqüentemente a emancipação do poder com relação a qualquer limite moral – foram concretizados de uma maneira que ultrapassou mesmo os sonhos mais loucos. E esse sucesso transformou-se em cinzas antes de poder ter sido desfrutado.

Guardini sentiu-se compelido a escrever o seu clássico trabalho O fim dos tempos modernos e o seu complemento Poder e responsabilidade. A essência da modernidade, afirmava, repousa no “divórcio entre poder e pessoa”. Depois de séculos de reducionismo e espoliação, a pessoalidade foi reduzida à mera subjetividade, à delgada afirmação de valores sem ancoragem ou horizonte. O poder lançou sua sombra sobre o homem por meio de instituições impessoais e processos que seguiam a sua própria lógica desalmada. “Não há ser que não tenha um mestre”, e o poder demoníaco preencheu o vácuo deixado pelo eclipse da responsabilidade pessoal. Uma vez dissipado o capital moral do cristianismo, restou aos modernos pouco que gastar.

Ultimamente, diante das nossas próprias ruínas, temos visto por toda a parte um raciocínio aparentemente similar: o pensamento moderno percorreu o seu caminho, deixando para trás apenas um ceticismo penetrante acerca de toda a visão significativa da natureza e do destino humanos. Tanto o pós-modernismo acadêmico como o popular estabelecem um tabu contra o exame da realidade última das coisas, justificando-se com um relativismo tão leviano que faria Protágoras corar. E, no entanto, Guardini viu que a verdadeira lição corre no sentido contrário: apenas um entendimento cristão pode dar sentido à condição humana pós-moderna.

Noutras palavras, a crise da modernidade foi atingida bem antes dos modismos acadêmicos do nosso tempo. O pós-modernismo que domina a atmosfera intelectual hoje é um fenômeno secundário, algo derivado e não verdadeiramente radical. Guardini viu isso e foi além: fez um apelo a uma nova antropologia filosófica, que pudesse retomar o entendimento cristão da pessoa como agente participativo numa realidade compartilhada e também como um locus de responsabilidade.

Havia outros pensadores trabalhando na mesma seara. Esse renascimento teísta, esse pós-modernismo primevo brotou das reflexões de um grupo de pensadores europeus que encontraram a resposta para a crise da modernidade no patrimônio espiritual do Ocidente. Nenhum deles viu as patologias da modernidade como a expressão final ou real do significado do Ocidente. Pelo contrário, afirmaram que o fim da modernidade revela a realidade radical da liberdade e dignidade humanas. Viram também que o embate entre o reducionismo naturalista moderno e o subjetivismo pós-moderno é uma briga de família prenunciada pelo eclipse da pessoa.

A maior parte desses pensadores eram figuras marginais no seu tempo. Poucos tinham atuação política e nenhum deles demonstrava simpatia pelo nacional-socialismo ou pelo comunismo soviético. Todos – com a ambígua exceção de José Ortega y Gasset – eram teístas. Alguns deles estavam a meio caminho entre o judaísmo e o cristianismo e quase todos tinham consciência da sua dívida para com uma visão cristã da natureza humana e do destino.

Assim, por exemplo, no outono de 1940, na Paris ocupada pelos alemães, Henri Bergson, já idoso e adoentado, ficou horas em pé sob uma chuva gelada à espera da estrela amarela que seria o seu estigma na nova Europa. Um dos poucos filósofos a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, Bergson recusou a proteção do governo Vichy e escolheu abraçar o destino do seu povo. Ele viria a falecer dentro de poucos meses, mas não sem antes renunciar, em meio a protestos, a todos os seus postos e glórias, num passo profundo para alguém que antes tinha sido professor de filosofia numa das maiores universidades da Europa. Não quis converter-se totalmente ao cristianismo, convencido de que a sua cruz na Europa nazista era morrer judeu.

Num francês primoroso, valendo-se de imagens penetrantes e intuições que desafiavam os sistemas e as definições da filosofia técnica, Bergson ofereceu uma crítica contínua ao que nomeou “razão eleática” da modernidade, por causa da cidade natal dos antigos metafísicos gregos Parmênides e Zenão: o desejo de explicar tudo por meio de categorias intelectuais pré-formadas que não deixam espaço para as experiências humanas – a liberdade, a memória, o amor, o drama e a comédia – que resistem à razão fria e impessoal.

A sua última grande obra, As duas fontes da moral e da religião, publicada em 1932, propunha que toda sociedade, tal como toda alma, podia estar “fechada” ou “aberta” à experiência da transcendência pela qual os seres humanos são capazes de romper os ciclos e processos naturais. Essa abertura, concluía Bergson, só podia fundamentar-se, em última análise, num entendimento cristão da pessoa e da fraternidade universal. E foi para expressar tal fraternidade que ele escolheu morrer usando a estrela amarela.

Mais ou menos na mesma época, um tipo simples que vivia uma vida simples nos Alpes suíços chegou a uma conclusão similar à de Bergson, mas ainda mais radical, revestida de uma linguagem mais poética. Em 1934, uma obra memorável intitulada A fuga de Deus foi publicada por Max Picard, um judeu que mais tarde se converteria ao cristianismo.

Picard viu o Ocidente secular e moderno como um sistema de amnésia espiritual que se autoperpetua: histericamente ocupado sem realizar nada, cheio de comunicação mas falto de diálogo, cheio de brilho e sons altos mas ao mesmo tempo sem sentido e mudo. O amor, a amizade e a lealdade existem apenas como fragmentos no mundo em fuga de Deus: retalhos evanescentes de experiências que vêm e vão. Eis o porquê de as palavras, nos tempos modernos, se terem tornado meros sinais, sem conexão com a pessoa que as pronuncia: “sussurros e sinais substituem as palavras no mundo da fuga… Se dois navios desejam comunicar-se, pequenas bandeiras são içadas numa corda; assim também as palavras tremulam nas frases. Quando dois homens falam um com o outro usando sinais em vez de palavras, a distância entre eles é tão grande quanto a distância entre dois navios: há todo um oceano entre eles, o oceano da fuga”.

A desconstrução impessoal supõe a reconstrução pessoal. As palavras dispersas e fragmentadas devem ser reunidas em oração e enviadas a Deus, pois “apenas diante dEle que é eterno e completo em Si mesmo os mortos e fragmentados podem tornar-se um todo novamente”. Apenas num mundo constituído pela fé num Deus pessoal as relações entre as pessoas humanas desenvolvem consistência e integridade.

Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Picard publicou Hitler em nós mesmos, em que diagnosticava aquilo que Hannah Arendt viria a caracterizar como a “banalidade do mal”. Picard detém-se na figura do nazista cumpridor que, no contexto da sua ocupação profissional como atendente, seria capaz de atravessar a rua correndo para devolver uma moeda a alguém que a tivesse esquecido no balcão de sua loja, mas que seria capaz, noutras circunstâncias, de levar a cabo com a mesma facilidade uma ordem de homicídio em massa. E Picard vai mais longe: vê o nazismo como a expressão última e demoníaca da fragmentação humana, da redução da pessoa a uma entidade aleijada e fechada, apenas capaz de relacionar-se com os outros quando os manipula como objetos.

Enquanto Picard viveu e escreveu na sua montanha na Suíça, os cafés e salões de Paris eram o ponto nevrálgico da história intelectual do século XX, enriquecidos por montes de pensadores émigrés – principalmente russos na década de 1920 e judeus de toda a Europa na década de 1930. Um dos maiores dentre eles foi um judeu russo chamado Lev Shestov, cujos últimos escritos falavam de “cavaleiros da fé” como São Paulo e Martinho Lutero. Shestov está entre os mais ferrenhos críticos do racionalismo nas letras do século XX. Exilado da Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques, via a Primeira Guerra Mundial e as penúrias do país natal como uma lição acerca da loucura do orgulho humano, especialmente a pretensão intelectual de que a razão humana por si só pode organizar e controlar toda a realidade.

Shestov anunciava a necessidade, nas suas palavras, de uma “filosofia bíblica”, que renunciaria à busca filosófica pela explicação da razão necessária das coisas e, em vez disso, poria ênfase na liberdade humana que deriva da liberdade ilimitada de Deus. A filosofia começa não no maravilhamento, mas no desespero, na noite do silêncio e no deserto da solidão. Shestov tomou o Salmo 130 como ponto de partida: “Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração… Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra”.

O último livro de Shestov chama-se Atenas e Jerusalém, em que o autor contrasta o templo da razão auto-suficiente com a cidade da justiça e mede forças com todos os filósofos, de Heráclito a Husserl. Voluntariamente cego para a possível síntese entre razão e revelação, Shestov falou em voz profética a um mundo em que a vida intelectual foi consistentemente desarraigada das suas fundações espirituais. O seu pesadelo de um mundo moldado pelo racionalismo foi descrito por seu amigo Nicolai Berdiaev como “um universo arredondado em que não há mais individualidade, risco ou criação nova”.

Para pensadores mais jovens como Walter Benjamin, Leo Strauss e Alexandre Kojève, Shestov foi a alternativa teísta mais sólida em meio às correntes atéias dominantes. Benjamin escreveu para Gerhard Scholem acerca do poder do fideísmo de Shestov. Strauss viria a escrever mais tarde um livro sutil em que inverteria o título da obra final de Shestov e Kojève tornar-se-ia um teórico e ativista daquilo que descreveria como “o estado universal e homogêneo”. É possível que a visão de Strauss sobre a história da filosofia política, bem como a sua visão de uma ordem tecno-burocrática universal no fim da História, tenham surgido em parte como uma reação à filosofia bíblica e personalista de Shestov.

Outra voz proeminente da Paris do entre-guerras foi Gabriel Marcel, que passou gradualmente do racionalismo neo-hegeliano à Igreja Católica e estabeleceu-se como um grande filósofo cristão. Em relativa obscuridade (ele não publicou nada sequer remotamente sistemático até a década de 1940), Marcel esboçou os grandes temas da filosofia teísta pós-moderna. A condição humana, pensava, deve ser entendida nos termos de uma participação que transcende a antítese entre sujeito e objeto que infestava a filosofia moderna. Cada existência humana participa de uma realidade marcada pela tensão entre sujeito e objeto: isolemos um deles e estaremos excluindo o outro. E então só restará uma abstração, que é um indivíduo solipsista ou um objeto impessoal.

A existência humana é essa tensão realmente vivida; podemos distinguir o sujeito do objeto, mas não podemos concebê-los isoladamente. Os seres humanos não têm outra natureza que não seja viver uma condição. A sua natureza e a sua liberdade são inextricáveis. Embora seja freqüentemente rotulado como o fundador do existencialismo, Marcel é melhor entendido como alguém que construiu a sua filosofia sobre uma compreensão cristã da pessoa como um “ser encarnado”, que não é nem tem um corpo, mas que é inconcebível fora da sua misteriosa relação com um corpo.

Como o grande filósofo judeu amigo de Shestov, Martin Buber, Marcel acreditava que a realidade pessoal recebe a sua expressão mais clara quando um ser dirige-se a outro usando o vocativo, a segunda pessoa. A primeira pessoa, o eu, pode ser apenas uma máscara para sensações e impulsos transitórios, ao passo que identificar as pessoas como ele,ela ou eles é começar a transformá-las em objetos. A condição de presença mútua, a segunda pessoa, o tu ou o vós, é o pressuposto de qualquer relação marcadamente pessoal: amor, amizade, fraternidade, cidadania e louvor. Deus é o Tu absoluto, que é uma presença pessoal, ainda quando escondida, e que nunca pode ser para nós um simples objeto, ou seja, um ídolo.

Todas as teorias que afirmam explicar a causalidade da ação humana acabam por ser uma abstração pessoal da razão de quem as pensa. Eis a mais pura verdade acerca dos diferentes tipos de relativismo e reducionismo, que ostentam uma espécie de “exceção garantida por contrato” que lhes confere um status epistemológico que é negado aos outros. “Mistério”, para Marcel, denota essas experiências que desafiam qualquer explicação baseada na razão instrumental ou causalidade natural. Nesse sentido, sobressaem as realidades da identidade pessoal e da ação humana, inclusive o pensamento.

Também o espanhol Miguel de Unamuno, que passou parte da década de 1920 exilado em Paris, escreveu uma obra memorável às vésperas da Primeira Guerra Mundial: Do sentimento trágico da vida. Nela, como Shestov, faz um apelo por uma filosofia que venha das profundezas do abismo. Na sua crítica à civilização secularista contemporânea, Unamuno comparou o típico intelectual moderno a um parasita intestinal que nega a existência da visão e da audição porque sobrevive sem ambos. Por séculos, os modernos desfrutaram das compensações da liberdade e da dignidade enquanto propunham teorias que as excluíam. Numa formulação particularmente elegante e perigosa ao mesmo tempo, Unamuno escreveu (jogando com a semelhança entre os verbos espanhóis creer e crear) que os homens criam Deus quando crêem num Deus pessoal, um Deus que por sua vez já os criou.

O outro grande pensador espanhol da época, José Ortega y Gasset, proclamou, à sua maneira mais leve e jocosa, a morte daquilo que chamava de “tradição moderna” – as tentações gêmeas do pensamento moderno: o relativismo e o racionalismo. Ortega viu que os sistemas racionalistas predominantes no pensamento moderno eram tirânicos, que mascaravam a ambição de subordinar a contingência e a espontaneidade da vida à lógica da teoria. Ortega y Gasset também identificou o  relativismo como “teoria suicida”, hipócrita e inconsistente em si mesma. A sensibilidade moderna é “desconfiança e desprezo por qualquer coisa espontânea e imediata; entusiasmo por todas as construções da razão”.

A fim de superar as teorias modernas intelectualmente falidas, Ortega propôs uma doutrina que chamou por vezes de “razão vital”. A verdade do relativismo é que cada pessoa é dona de um ponto de vista único; a verdade do racionalismo é que tais pontos de vista miram uma realidade suprapessoal. Embora use um vocabulário distinto, Ortega elaborou uma teoria da participação similar à de Marcel. No epílogo da Idade Moderna, o Ocidente precisa aprender a reconhecer as raízes da patologia da modernidade tardia, escrita em toda a fisionomia assustada do século XX.

Há uma série de razões pelas quais esses pensadores não são mais discutidos hoje. Apesar de alguns deles terem se conhecido, não formaram uma escola organizada de pensamento. Embora alguns tenham sido professores universitários, escreveram em sua maioria como intelectuais públicos, não como acadêmicos profissionais. A maior parte deles dominava com maestria a prosa em sua língua, o que suscitava suspeita entre os acadêmicos profissionais. Poucos eram ativistas políticos. Nenhum deles aderiu ao comunismo ou ao nazismo.

Além do mais, todos esses pensadores – novamente com a possível exceção de Ortega -acreditavam em Deus. O seu pensamento foi sendo formado nas décadas que culminaram com a Segunda Guerra e cristalizou-se logo após o seu fim. Os traços mais críticos do retrato que fizeram da modernidade e da pós-modernidade talvez tenham sido melhor capturados pelo psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz Viktor Frankl, que escreveu que a sua geração pode conhecer a existência humana como algo que abrangia tanto o ser que inventou as câmaras de gás como aquele que entrou naquelas câmaras de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael”.

Na tentativa de uma explicação, Frankl diagnosticou as patologias siamesas da “objetivação da existência” e da “subjetivação do logos”. A primeira descreve a redução do homem a um joguete das forças impessoais e que não é conhecido como um tu. A segunda descreve a redução do sentido à subjetividade humana. O racionalismo e o relativismo, como notou Ortega, são um duplo aspecto do pensamento impessoal a conspirar em favor do esfacelamento da identidade pessoal e da erosão da responsabilidade pessoal.

É neste contexto que podemos apreciar toda a força do alerta feito por Guardini, de que o homem moderno defronta o chamado de dominar o poder. Esses pensadores, de uma maneira ou de outra, contemplavam a existência humana como uma forma de participação. O trabalho deles reflete, em certo sentido, o que hoje chamaríamos de sensibilidade pós-moderna, mas que está fundamentada numa antropologia filosófica inconcebível fora de uma compreensão cristã da pessoa.

O pensamento impessoal empala a mente ou num dos dois chifres do dilema esboçado acima – no caso do pensador realmente rigoroso – ou em ambos simultaneamente, o que é mais provável.

O fim da modernidade não marcou uma guinada do racionalismo iluminista em direção à subjetividade pós-moderna. A própria modernidade pôs o homem face a face com tudo aquilo que estava em jogo na oposição entre pessoal e impessoal. O que foi desacreditado não foi a razão, mas a hybris dos grandes sistemas impessoais, seja o reducionismo naturalista do cientificismo moderno, seja o ilusionismo dialético que as ideologias modernas operam na mente.

A intuição central dessa renascença teísta – desse pós-modernismo primevo – é a irredutibilidade da pessoa. As patologias da vida moderna, desde a atrocidade da guerra total até a banalidade da burocracia, trouxeram à luz a demanda de uma existência pessoal. Esses escritores teístas viam a condição humana como um universo aberto constituído de individualidade, risco e novas criações. O fim da modernidade escancarou a realidade radical da liberdade e dignidade humanas entre as tentativas, práticas e teóricas, de aniquilá-las.

O aviso de Guardini de que não há um ser sem um mestre captura o caráter dual da Imago Dei que está no cerne do mistério da identidade pessoal. Como seres encarnados e arraigados na nossa própria natureza, somos responsáveis por honrar essa natureza em todas as nossas obras. A história do mundo moderno termina com uma nota que não é de cinismo nem de resignação, mas de esperança e responsabilidade.

Copyright © 2008 First Things (dezembro de 2008).

 Rein Staal é professor de Ciências Políticas no William Jewell College.

Tradução de Grace Guimarães Mosquera, bacharel em Lingüística pela FFLCH-USP.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Jun/2009. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/a-historia-esquecida-da-pos-modernidade/

Ateus, sob a proteção de Deus

Opinião Pública | 01/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Vejo nos periódicos que uma associação composta por ateus e agnósticos propôs uma ação civil pública para impedir que um caminhão do corpo de bombeiros fosse utilizado para conduzir uma imagem mariana durante uma procissão em prol da chuva, por ser um ato religioso discriminatório, fundando sua pretensão nos argumentos oitocentistas de Feuerbach. Leio o teor da inicial da ação, que mais lembra um panfleto jurídico anticlerical, e observo o mais do mesmo: confundir estado laico com estado ateu. Secularização com secularismo.

A dita associação manuseia um argumentário tipicamente jacobino: a religião não pode entrar na esfera pública e é preciso salvaguardar o ambiente secularizado da amada pátria brasileira. Nenhuma democracia sobrevive se ficar chocando o ovo da serpente jacobina, porque o atual liberalismo deixou de ser somente político e tornou-se moral, ao ponto de nossa democracia fomentar uma bela polifonia de valores, cujos pressupostos, por outro lado, a mesma democracia não é capaz de sustentar sozinha. Uma verdadeira e preocupante contradição.

Interpretar uma procissão religiosa como uma forma de ato discriminatório e não como uma genuína manifestação cultural do povo brasileiro não é somente uma desonestidade intelectual, mas também uma violência moral que envergonha uma democracia liberal como a nossa. Exatamente como seria uma vergonha se um credo religioso resolvesse impedir uma procissão da “deusa da razão”, entronizada no mesmo caminhão dos bombeiros, e promovida por ateus e agnósticos. Acreditar na tal procissão da chuva como um ato sacro de cunho discriminatório é não entender bem o que significa o fenômeno da secularização.

A secularização, quando propõe o banimento radical de qualquer manifestação religiosa em público acaba por descambar em sua versão reducionista, o secularismo. Vale a pena lembrar os autores clássicos sobre a matéria, como, por exemplo, Durkheim, para quem a expressão pública de uma religião é parte da liberdade religiosa que uma democracia liberal deve proteger e assegurar os mecanismos concretos para seu exercício pelo cidadão.

A separação entre politica e religião não significa o apagamento da religião. Significa, sobretudo, que o poder político rege-se por princípios próprios e autônomos e não estritamente religiosos. Em outras palavras, não há mais espaço para as figuras historicamente distorcidas do cesaropapismo, regalismo e teocracia.

Convém também lembrar que somos laicos graças ao cristianismo: o monismo político-religioso do mundo pagão, simbolizado pela unificação dos dois poderes – o político e o religioso – na pessoa do soberano de plantão, foi cindido – uma ironia pronta – pelo famoso enunciado evangélico que determina dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nada mais intelectualmente incômodo para a réplica do argumentário racional de um ateu militante.

“Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” não é bem o que os ateus e agnósticos da dita associação – além de seus irmãos jacobinos espalhados pela maioria dos partidos do espectro político brasileiro –imaginam: colocar César em todas as legítimas ou tradicionais manifestações religiosas do povo brasileiro, reflexos de nossa cultura, e até mesmo na consciência de cada um.

Mal sabe a dita associação que, ao propor a citada ação civil pública, agiu “sob a proteção de Deus”, porque esse direito está assegurado pela Constituição Federal (artigo 129, inciso III, §1º), que foi promulgada, nos dizeres de seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Outra ironia pronta. E, mesmo “sob a proteção de Deus”, ao se apresentar publicamente como a única voz de uma suposta e moderna racionalidade esclarecida, a associação dos não-crentes, na verdade, pretende impor um ideário que mais lembra o clamor de um ultrapassado racionalismo iluminista.

Em sua defesa judicial da secularização e do estado laico, confundido com secularismo e estado ateu, o que a dita associação e seus parentes intelectuais da cartilha jacobina fazem, no fundo, é elevar um princípio ideológico a uma nova forma de religião e, assim, ao lado – mais outra ironia pronta – dos fundamentalistas religiosos, passam a compor o conjunto dos piores inimigos da secularização e do estado laico. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal “Correio Popular”, 01.04.2015, Página A-2, Opinião.

Pensar o Direito (Parte IV de VI): “Resgate da essência do Direito”

Direito | 23/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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IV – RESGATE DA ESSÊNCIA DO DIREITO

Há vários modos de se pensar o direito. Uns pensam que o direito resume-se às decisões do Estado ou do burocrata de plantão. Outros pretendem que o direito seja extraído exclusivamente daquilo que é usual fazer-se ou não fazer-se em sociedade, reduzindo-o a uma espécie de chancelador formal e obrigatório.

Outros veem o direito apenas como uma ciência de deduções: se a união estável homossexual foi admitida, vamos estendê-la para o casamento e, depois, permitir o divórcio, a separação e a possibilidade de adoção. Afinal, a premissa deve ser vista de maneira neutra e todas as consequências dela nada mais são que o resultado de um desdobramento lógico.

Mas todos eles partilham da ideia fundamental de que o direito não é regido por princípios fundamentais que decorrem da natureza das coisas. Só reconhecem o direito dos códigos e das leis escritas. E recomendo-lhes especial atenção com os parlamentares, porque, de um dia para o outro, mudam os códigos e eles ficam sem saber mais nada. Com uma penada do legislador, bibliotecas inteiras vão parar no sebo.

Mas o direito não se esgota no papel escrito. O direito dos códigos deve refletir o direito da ordem natural das coisas, concretizando seus princípios segundo as circunstâncias sociais e históricas. Devem caminhar de mãos juntas e não em direções opostas.

E o leitor mais cético poderia perguntar quais seriam os tais princípios. São numerosos, motivo pelo qual eles estão também escritos nas leis, reforçando sua extrema importância, mas seu reconhecimento não dependeria necessariamente disso, pois o estudo do direito, ao longo dos tempos, vai incorporando-os sob o nome de princípios gerais de direito.

Eis alguns deles: não faça aos outros aquilo que não quer para si; ninguém pode ser condenado sem prévio processo;  na dúvida, o réu deve ser inocentado; todo homem é capaz de assumir direitos e obrigações; os contratos são obrigatórios e a vontade dos contratantes deve ser pautada pela boa-fé e pelo equilíbrio contratual; a família é a célula social elementar e o excesso de exercício do direito consiste em seu abuso.

Este fenômeno de empobrecimento do direito, uma realidade tão rica e que o povo romano soube captar de maneira tão exemplar, a ponto de, junto com a filosofia grega, sustentar as bases da civilização ocidental até hoje, é fruto da somatória de muitas linhas de pensamento – nominalismo, empirismo, racionalismo, subjetivismo, relativismo, voluntarismo, imanentismo – que impregnam profundamente a cultura de nossa sociedade.

Não cabe aqui analisar o significado de cada um daqueles fatores nem o complexo processo histórico de formação e consolidação daquela forma míope de se ver o direito. Contudo, na base desse processo, estão causas de ordem religiosa (imanentismo, secularismo e ateísmo), de natureza moral (ligada a uma falsa ideia de liberdade e a consequente crise de valores) e deficiências sérias no ensino de filosofia e de direito.

A superação desta corrosiva doença não será feita por complexos expedientes de reengenharia político-jurídica, porque essa patologia é radical e, como uma metástase, atinge a essência, os fins e os fundamentos do ordenamento jurídico e se dissemina por todo o corpo da sociedade.

A depuração dessa forma deturpada de direito demanda um resgate das noções de justiça, de equidade e de prudência, elementos essenciais da ordem jurídica. Esta tem uma vinculação elementar à justiça, é ordem de justiça dirigida à realização objetiva do justo concreto.

A equidade, por sua vez, opera como critério corretivo de adequação da solução justa ao caso concreto ou mesmo de moderação dos rigores da justiça. O direito romano já reconhecia que o máximo do direito é o máximo da injustiça.

A prudência, a virtude por excelência do jurista, é a sabedoria prática que o capacita para a decisão justa, segundo os princípios e normas que regem uma dada situação e em respeito às suas circunstâncias. A prudência também envolve o reto agir do legislador, na escolha das medidas legislativas e normativas mais convenientes.

Estes elementos, quando conjugados, produzem decisões que atendem aos princípios gerais de direito, à letra fria dos códigos e às peculiaridades do caso concreto. O direito romano foi um acabado exemplo disso: por intermédio do trabalho dos jurisconsultos, que talhavam suas sentenças com os instrumentos da justiça, equidade e prudência, criou uma série de soluções jurídicas de surpreendente perenidade. Porque, antes de aplicar o direito, eles o pensavam com a cabeça inteira.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

Pensar o Direito (Parte IV de VI): "Resgate da essência do Direito"

Direito | 23/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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IV – RESGATE DA ESSÊNCIA DO DIREITO

Há vários modos de se pensar o direito. Uns pensam que o direito resume-se às decisões do Estado ou do burocrata de plantão. Outros pretendem que o direito seja extraído exclusivamente daquilo que é usual fazer-se ou não fazer-se em sociedade, reduzindo-o a uma espécie de chancelador formal e obrigatório.

Outros veem o direito apenas como uma ciência de deduções: se a união estável homossexual foi admitida, vamos estendê-la para o casamento e, depois, permitir o divórcio, a separação e a possibilidade de adoção. Afinal, a premissa deve ser vista de maneira neutra e todas as consequências dela nada mais são que o resultado de um desdobramento lógico.

Mas todos eles partilham da ideia fundamental de que o direito não é regido por princípios fundamentais que decorrem da natureza das coisas. Só reconhecem o direito dos códigos e das leis escritas. E recomendo-lhes especial atenção com os parlamentares, porque, de um dia para o outro, mudam os códigos e eles ficam sem saber mais nada. Com uma penada do legislador, bibliotecas inteiras vão parar no sebo.

Mas o direito não se esgota no papel escrito. O direito dos códigos deve refletir o direito da ordem natural das coisas, concretizando seus princípios segundo as circunstâncias sociais e históricas. Devem caminhar de mãos juntas e não em direções opostas.

E o leitor mais cético poderia perguntar quais seriam os tais princípios. São numerosos, motivo pelo qual eles estão também escritos nas leis, reforçando sua extrema importância, mas seu reconhecimento não dependeria necessariamente disso, pois o estudo do direito, ao longo dos tempos, vai incorporando-os sob o nome de princípios gerais de direito.

Eis alguns deles: não faça aos outros aquilo que não quer para si; ninguém pode ser condenado sem prévio processo;  na dúvida, o réu deve ser inocentado; todo homem é capaz de assumir direitos e obrigações; os contratos são obrigatórios e a vontade dos contratantes deve ser pautada pela boa-fé e pelo equilíbrio contratual; a família é a célula social elementar e o excesso de exercício do direito consiste em seu abuso.

Este fenômeno de empobrecimento do direito, uma realidade tão rica e que o povo romano soube captar de maneira tão exemplar, a ponto de, junto com a filosofia grega, sustentar as bases da civilização ocidental até hoje, é fruto da somatória de muitas linhas de pensamento – nominalismo, empirismo, racionalismo, subjetivismo, relativismo, voluntarismo, imanentismo – que impregnam profundamente a cultura de nossa sociedade.

Não cabe aqui analisar o significado de cada um daqueles fatores nem o complexo processo histórico de formação e consolidação daquela forma míope de se ver o direito. Contudo, na base desse processo, estão causas de ordem religiosa (imanentismo, secularismo e ateísmo), de natureza moral (ligada a uma falsa ideia de liberdade e a consequente crise de valores) e deficiências sérias no ensino de filosofia e de direito.

A superação desta corrosiva doença não será feita por complexos expedientes de reengenharia político-jurídica, porque essa patologia é radical e, como uma metástase, atinge a essência, os fins e os fundamentos do ordenamento jurídico e se dissemina por todo o corpo da sociedade.

A depuração dessa forma deturpada de direito demanda um resgate das noções de justiça, de equidade e de prudência, elementos essenciais da ordem jurídica. Esta tem uma vinculação elementar à justiça, é ordem de justiça dirigida à realização objetiva do justo concreto.

A equidade, por sua vez, opera como critério corretivo de adequação da solução justa ao caso concreto ou mesmo de moderação dos rigores da justiça. O direito romano já reconhecia que o máximo do direito é o máximo da injustiça.

A prudência, a virtude por excelência do jurista, é a sabedoria prática que o capacita para a decisão justa, segundo os princípios e normas que regem uma dada situação e em respeito às suas circunstâncias. A prudência também envolve o reto agir do legislador, na escolha das medidas legislativas e normativas mais convenientes.

Estes elementos, quando conjugados, produzem decisões que atendem aos princípios gerais de direito, à letra fria dos códigos e às peculiaridades do caso concreto. O direito romano foi um acabado exemplo disso: por intermédio do trabalho dos jurisconsultos, que talhavam suas sentenças com os instrumentos da justiça, equidade e prudência, criou uma série de soluções jurídicas de surpreendente perenidade. Porque, antes de aplicar o direito, eles o pensavam com a cabeça inteira.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras.

*Próximos artigos da série “Pensar o Direito”:

Parte V : “Direito e Filosofia: Cara e Coroa”

Parte VI: “Justiça, Filosofia e Virtude”

*Já publicados:

Parte I: “Pensando o Direito”  – para ler clique AQUI

Parte II: “Direito e Ordem Natural” – para ler clique AQUI

Parte III: “A crise do Direito” – para ler clique AQUI

A complementaridade entre razão e religião no âmbito democrático e os desafios do mundo contemporâneo: dez anos do debate Habermas-Ratzinger, por Tarcísio Amorim

Filosofia | 12/02/2015 | | IFE RIO

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No inverno de 2004, dois renomados pensadores da atualidade – o filósofo Jürgen Habermas e o teólogo Joseph Ratzinger – reuniram-se para um debate na Academia Católica de Baviera, em Munique, na Alemanha. Com o título Dialética da Secularização: sobre Razão e Religião, o diálogo abordou temas como o secularismo político, direitos humanos, bioética e terrorismo religioso.

De um lado, o filósofo buscou conciliar a defesa de fundamentos seculares para o Estado democrático com a possibilidade de acomodação dos argumentos religiosos para fins deliberativos. Em sua visão, a democracia não dependeria de nenhuma base transcendental para justificar-se, mas as razões religiosas poderiam – e deveriam – contribuir para o debate público por meio de conceitos e imagens de mundo que viriam a ser apropriadas pela razão secular, especialmente através da filosofia. De fato, Habermas sublinhou que, no Ocidente, o entrelaçamento das tradições cristãs com a metafísica grega influenciou as intuições morais com conceitos como o de responsabilidade, despojamento, justificação e recomeço, além da própria crença na semelhança do homem com Deus, cuja transposição para a noção de igual dignidade ainda preserva seu valor nos dias atuais[1].

Como um filósofo político liberal, em seu sentido amplo, Habermas acredita que a democracia se baseia no exercício livre de uma razão que questiona seus próprios fundamentos, estabelecendo redes comunicativas das quais o consenso político em torno do melhor argumento deve emanar, depois de sucessivas transformações nas percepções e interpretações pessoais da realidade. Nesse sentido, em vista de sua igualdade jurídica, os argumentos morais provindos de indivíduos ou grupos religiosos devem ser acolhidos, pois “a neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada”[2].

Por sua vez, o teólogo Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (hoje Papa emérito Bento XVI), enfatizou a necessidade de princípios normativos de direito que evitem tanto o extremismo religioso quanto um cientificismo desprovido de restrições morais. Igualmente, seria preciso prevenir o jogo de poder das maiorias, que na história já mostraram ser capazes de usar de instrumentos democráticos para oprimir as minorias. Assim, além de um exercício de mútua purificação por meio do confronto de razões religiosas e seculares, Ratzinger defendeu o reconhecimento da existência de valores intrínsecos “que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência”[3].

Embora tivesse sublinhado que tal princípio ainda encontrava sua expressão nos chamados direitos humanos – ininteligíveis sem o pressuposto de uma concepção universalista do homem que envolva a razão natural – Ratzinger, aproveitando-se das reflexões de Habermas e de seu pragmatismo, preferiu utilizar-se de sua lógica deliberativa para ressaltar o fato de que a visão democrática secular não pode ser generalizada, mas deve engajar-se no diálogo com as perspectivas religiosas. De fato, além das interpretações cristãs que continuam a influir no Ocidente, as grandes culturais do mundo (islâmica, indiana, africana e ameríndia) permanecem avançando intepretações teístas da realidade. Uma vez que a democracia pressupõe o pluralismo e a interculturalidade, seria preciso incluir todas essas perspectivas “na tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e fé” [4].

A ocorrência desse encontro entre Habermas e Ratzinger em 2004 foi oportuna por vários motivos. Dentre eles, o fato de que os fluxos imigratórios entre o Oriente o Ocidente vieram a reforçar o questionamento das bases seculares do pensamento liberal europeu. Com efeito, um mês após o 11 de Setembro, em um discurso proferido por ocasião do Prêmio da Paz da Associação de Editores Alemães, Habermas pontuou que o desenvolvimento de uma linguagem comum que reconhece a fluidez das fronteiras entre razões seculares e religiosas é fundamental para que a sociedade possa ir “além do violento silêncio dos terroristas e dos mísseis” e evitar “a batalha das culturas” [5]. De acordo com o filósofo, a visão do processo de secularização como um jogo de soma zero entre as forças progressistas da ciência e as correntes conservadoras da religião “não se enquadra em uma sociedade pós-secular que busca adaptar-se à contínua existência de comunidades religiosas” [6]. Ao contrário, a secularização para Habermas é um processo dialético no qual a atitude racional permanece autônoma, mas sem desprezar as perspectivas oferecidas pelas razões religiosas.

As reflexões sobre a secularização no Ocidente também ganharam alento devido ao processo de integração da Comunidade Europeia. O papel da religião para a construção de sua identidade cultural mostrava-se uma questão controvertida, e a rejeição à proposta de menção ao cristianismo na Carta Europeia naquele mesmo ano de 2004 não esvaziou o debate. Ao receber o Prêmio São Bento para a Promoção da Vida e da Família em 2005, Joseph Ratzinger afirmou que a oposição a tal referência se relacionava com o contexto cultural do Ocidente, que vinha privilegiando uma perspectiva positivista, e por tanto, antimetafísica, na qual as questões sobre Deus e sobre os fins últimos da vida humana não têm lugar. Para o teólogo, esta filosofia não expressaria a razão humana em sua totalidade, constituindo-se como o verdadeiro obstáculo para a união entre o Ocidente e as grandes civilizações não cristãs, especialmente aquelas formadas no seio do islamismo [7]. Vale recordar que em 2011, durante a presidência Húngara da União Europeia, um evento reunindo lideranças políticas dos países membros foi organizado na cidade de Gödöllo, região metropolitana de Budapeste, em vista da reflexão sobre a cooperação entre cristãos, judeus e muçulmanos na Europa e no mundo. O então vice-primeiro-ministro, Zsolt Semjén, sublinhou que a separação entre Igreja e Estado não exclui as relações entre religião e sociedade e que “o ser humano está aberto para os infinitos horizontes da existência, levantando questões que vão além das coisas visíveis, ansiando por explorar a vida última” [8].

Hoje, dez anos depois daquele encontro, as mesmas questões que delinearam as diretrizes do debate ainda se fazem presente nas nossas sociedades democráticas. Em meio à relativização dos discursos morais que permeia o âmbito do Direito, os dois autores apresentam uma perspectiva comum quanto ao papel da razão para o estabelecimento de normas democráticas: a rejeição do chamado “contextualismo”, como defendido pelo filósofo Richard Rorty, no qual definições de verdade e de justiça são reduzidas aos resultados de práticas culturais de justificação. Mesmo para Habermas, que situa as razões religiosas e seculares em igualdade no processo deliberativo, a justiça não é um arranjo nacional ou comunitário, mas é fruto de um processo de aprendizagem no qual a razão se expressa orientada pela verdade, transcendendo os contextos locais. Na percepção do filósofo, a concepção de um progresso sócio-cultural como resultado do desenvolvimento moral pela razão seria, a princípio, independente da religião, mas acabaria por ter de confrontar as razões transcendentes que desafiam suas bases durante o exercício deliberativo.

Nesse sentido, a lacuna entre o pensamento do filósofo para com a teologia de Ratizinger – embora persistente – acaba por se estreitar no resultado do processo democrático – se não na forma, ao menos no conteúdo. Pois, a partir do momento em que as razões religiosas (metafísicas) questionam os fundamentos profanos da democracia, elas introduzem uma crítica à forma do modelo de Habermas, crítica que o próprio sistema democrático – como esboçado pelo filósofo – teria que admitir.

Em todo o caso, tanto um quanto o outro endossam o potencial racional dos argumentos religiosos e metafísicos. Para Ratzinger, trata-se também de reconhecer que os direitos humanos podem estar em risco a partir do momento em que já não se define mais o que é o homem, tendo em conta sua origem e seu fim. Em Fé, Verdade e Tolerância, o teólogo reflete sobre esse ponto a partir do embate entre liberdade e solidariedade na demanda de alguns setores do movimento feminista em prol da autonomia do corpo. Como explicita, o feto constitui um ser-de que, por sua vez, reclama um ser-para (a mãe) a fim de se desenvolver. Mesmo após o nascimento – ainda que seja entregue a outro lar – ele continuará a depender dessa figura antropológica, assim como o adulto deverá também se reportar aos outros, como um ser em relação que é. A liberdade, então, abrange não somente direitos negativos (aquilo que podemos fazer sem a interferência de outros), mas também direitos positivos (aquilo que devemos fazer em vista da própria existência pessoal e comunitária). Dessa forma, contraponto a demanda feminista em favor do livre uso do corpo, Ratzinger afirma que a liberdade do homem apenas pode constituir-se na coexistência ordenada de liberdades, que acarreta, por si mesmo, a referência ao outro, pois toda subsistência e desenvolvimento da vida humana se apoia na interdependência das relações entre liberdade e solidariedade. Nos termos do teólogo: “se a verdade sobre o homem não existe, então ele também não possui nenhuma liberdade. Somente a verdade liberta” [9].

Como se percebe, o debate sobre razão e religião é fundamental em uma época em que novas demandas culturais reivindicam uma redefinição do lugar da religião nas democracias contemporâneas. De modo particular, ele se faz cada vez mais importante no Brasil, onde a percepção da organização política de grupos religiosos e a persistência de símbolos cristãos na esfera pública têm estado em pauta. Por um lado, como destacou Habermas, os cidadãos que partem de uma visão do mundo secularizada “não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates públicos servindo-se de uma linguagem religiosa” [10]. Por outro, os cidadãos que avançam razões religiosas devem apresentá-las em uma linguagem racional que, sem perder seu caráter transcendente, seja acessível aos outros participantes do processo deliberativo.

Como ressalta a filósofa irlandesa Maeve Cooke, essa universalidade não deve referir-se ao tipo de linguagem empregada, na tentativa de reduzir os argumentos religiosos a uma razão secular, mas à própria racionalidade do processo comunicativo, pois – conforme a própria lógica habermasiana – quando os argumentos são confrontados, o resultado de um consenso não resulta necessariamente na conversão à perspectiva do outro, mas em uma nova perspectiva, diferente de ambas, na qual as razões metafísicas podem seguir desempenhando um papel fundamental [11]. Nesse contexto, as reflexões de Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger podem ser úteis, não tanto para questionar o ideal democrático, mas para assegurar seus próprios fundamentos, prevenindo-se o relativismo que atenta contra a dignidade humana, bem como o extremismo religioso que se fecha ao diálogo racional.

Por fim, suas ideias também podem trazer luz sobre o tenebroso contexto de violência religiosa no Iraque e em outras partes do mundo. Com a ascensão do Estado Islâmico e o surgimento de um novo conflito internacional, pode-se questionar como um diálogo público seria capaz de reconciliar visões tão díspares acerca do papel da religião e do Estado na vida civil. Sobre esse ponto, Razinger sublinha que, assim como não há um discurso homogêneo acerca do secularismo político no Ocidente, também a esfera cultural islâmica se divide quanto ao tema, com posturas que vão desde “o absolutismo fanático de um Bin Laden” até aquelas que estão abertas a uma racionalidade tolerante [12].

Como demonstra Abdulaziz Sachedina, no que diz respeito aos direitos humanos o pensamento no mundo muçulmano tem se divido entre o tradicionalismo legal dos defensores da Declaração do Cairo (que contempla somente os seguidores da Sharia), e as abordagens teológico-políticas que levam em conta a racionalidade prático-filosófica na formulação da jurisprudência islâmica (fiqh), bem como sua contingência em termos de cultura, tempo e espaço. Acadêmicos como Muḥammad al-Ghazālī, Yūsuf al-Qarāḍāwī, Aytollah Jawādī Āmolī e Allāma Muḥammad Taqī Jafarī Tabrīzī, entres outras autoridades sunitas e xiitas, vêm defendido uma visão universalista de Direitos Humanos, buscando um diálogo que permita o reconhecimento das origens teológicas da concepção de Dignidade Humana, explicitada na Declaração da ONU, por meio de uma ética filosófica inclusivista e multicultural [13].

Como bem pontou Maeve Cooke, um secularismo excludente não apresentaria nenhuma consistência para o tratamento das questões levantadas pelo islamismo político, ou pela constante imigração para o Ocidente de povos cujas visões de mundo são fortemente marcadas pelo senso religioso – e para os quais a experiência secular ocidental é amplamente remota ou completamente estranha. Ao contrário, a inerente abertura do processo de aprendizagem, combinada com o princípio de autonomia política que permite que cada indivíduo busque a autorrealização em concordância com os próprios valores, sugere que é tempo de reconsiderar os argumentos em prol de fundamentos exclusivamente seculares da autoridade política [14]. Dessa forma, razão e religião devem caminhar juntas, aparando-se e aperfeiçoando-se mutualmente, provendo novos discursos de moralidade pública e atualizando as fontes ético-jurídicas do Estado democrático.

Dez anos após o encontro de Munique, o diálogo entre Habermas e Ratzinger ainda repercute no mundo acadêmico, e suas reflexões se fazem cada vez mais atuais em meio ao ressurgimento religioso testemunhado não só nos países orientais, mas também em partes da Europa, África e América Latina. A foto acima mostra o Parlamento da República da Polônia, onde uma moção destinada a remover o crucifixo sob o argumento da laicidade foi derrubada em 2013 pela Corte de Varsóvia. A decisão converge com julgamento da Corte de Estrasburgo, sobre a exposição de crucifixos nas escolas publicas italianas em 2011, levando em conta aspectos da cultura nacional. Na Ucrânia, o levante que derrubou o governo de Yanukovich – embora diversificado em sua natureza – foi marcado por uma forte presença do clero, além de diversas manifestações religiosas em sítios públicos.

Como se percebe, a ideia de secularização como um processo linear ao longo da história destoa tanto das recentes reflexões acadêmicas acerca da pós-secularidade quanto da realidade sócio-política das democracias contemporâneas. Nesse sentido, o debate Habermas e Ratzinger torna-se significativo ao ilustrar o encontro da reflexão filosófica com a razão religiosa em prol de uma sociedade universalmente solidária e de uma cultura política legitimamente democrática.

[1] HABERMAS, Jürgen. Fundamentos pré-políticos do Estado de direito democrático?. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 50.
[2] Ibidem, p. 57.
[3] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 68.
[4] Ibidem, p. 90.
[5] HABERMAS, Jürgen. Faith and knowledge. 2001. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2014.
[6] Ibidem.
[7] RATZINGER, Joseph. La última conferencia de Ratzinger: Europa en la crisis de las culturas. 2005. Disponível em . Acesso em: 4 jan. 2014.
[8] Hongaars Voorzitterschap benadrukt belang van vrijheid van religie (en). Europa Nu, 2 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 4 jan. 2014.
[9] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, p. 222-232.
[10] HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2007, p. 57.
[11] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 224-238.
[12] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 90.
[13] SACHEDINA, Abdulaziz. Islam and the Challenge of Human Rights. New York: Oxford University Press, 2009.
[14] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 233-234.

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: http://www.dicta.com.br/a-complementaridade-entre-razao-e-religiao-no-ambito-democratico-e-os-desafios-do-mundo-contemporaneo-dez-anos-do-debate-habermas-ratzinger/