RESENHA: “O poder da religião na esfera pública”


PoderReligiónEsferaPublica-LibroQuatro grandes intelectuais contemporâneos dialogaram no ano de 2010 sobre o sentido e o alcance do papel da religião na esfera pública. O encontro sediado em Nova Iorque reuniu Jürgen Habermas, Charles Taylor, Judith Butler e Cornel West, ocasião em que debateram sobre este tema e a presente obra literária recolhe as intervenções de cada um dos pensadores, acrescentando uma extensa entrevista com o filósofo alemão e um epílogo de Craig Calhoun.

O livro propõe que, para além das polêmicas sobre laicidade e laicismo e os problemas concretos em que a política e a religião disputam um protagonismo decisório, em termos estritamente filosóficos, a religião segue sendo um recurso muito importante.

Para a realidade brasileira, alguns destes intelectuais podem ser pouco ou sequer conhecidos, mas todos são expoentes de primeira ordem mundial e têm chamado a atenção, em seus trabalhos acadêmicos, sobre as incongruências e as aporias de um sistema político que, como o liberal, relega a religião ao âmbito estritamente privado e de um Estado que, como efeito desta premissa, assegura a liberdade religiosa mais como uma concessão estatal tolerante do que como um direito inalienável à liberdade de expressão. Num e noutro caso, parte-se do pressuposto da religião sem qualquer relevância social ou política.

Contudo, para todos estes grandes pensadores, a religião pode ajudar a regenerar o tecido moral de nossas sociedades, num momento atual em que vivemos uma profunda crise de valores sociais. Na obra, Habermas explica que, a partir de 2004, declarou-se partidário da dimensão pública das crenças religiosas, revendo sua cosmovisão agnóstica e a ideia de que a filosofia deveria substituir a fé.

No ano seguinte, o pensador alemão comenta o rico encontro que teve com o então cardeal Joseph Ratzinger, oportunidade em que concordou com a proposição de que as crenças religiosas constituem um valioso instrumento para nortear a moral pública nas sociedades pós-capitalistas, postura que vem sendo por ele mantida e reforçada não só a partir de uma apreciação positiva das religiões no cenário público, mas considerando também todos os déficits da própria teoria social reinante, tendenciosamente laicista.

Ao invés da recuperação de uma obsoleta teologia política, na linha inaugurada por Carl Schmitt, Habermas denuncia a decantação totalitária de uma cosmovisão política que dita seus próprios juízos morais, sem qualquer referência à uma moralidade externa transcendente. Com sua respeitosa atenção às religiões, Habermas pretende superar as forças que ameaçam a desintegração da vida social, mormente aquelas que, acentuando um individualismo existencial, evitam as referências religiosas ao considerá-las incompatíveis com o postulado da neutralidade estatal.

O herdeiro da Escola de Frankfurt afirma estar consciente da necessidade de se revisar o processo de secularização, que mais lembra um secularismo que não tem nada de neutro, mas de neutralizador, assinalando que as tradições religiosas podem servir politicamente em prol do fomento de uma ética laica. Para isso, o conteúdo religioso deve ser “traduzido”, isto é, seu núcleo moral central deve ser extraído e depurado racionalmente, o que não é novo, como ressalta Habermas, pois a filosofia desenvolveu-se historicamente graças aos impulsos e às intuições intelectivas provenientes de muitos dos ensinamentos evangélicos e da tradição moral religiosa ocidental.

Entretanto, Habermas aponta, nessa tarefa de “tradução”, ser curioso o fato de que, no atual estágio do processo de secularização, a obrigação de “traduzir” os conteúdos argumentativos (religiosos) para uma linguagem secular compete tão somente aos cidadãos crentes e os não crentes permanecem numa acomodada posição de apenas receber tais conteúdos “traduzidos” e julgá-los convenientes ou não para o incremento do debate público em muitas questões.

Para Habermas, isso é um erro, porque afasta um imperativo de simetria na relação dialógica, somado ao fato de que, muitas vezes, os argumentos religiosos, mesmo depois de “traduzidos”, ainda continuam sendo rotulados de religiosos, em razão da natureza espiritual de sua premissa e, por conseguinte, tidos por ilegítimos na órbita da opinião pública. Segundo Habermas, aos não crentes também compete igual esforço de abertura cognitiva às propostas “traduzidas” dos crentes, gerando, assim, uma “carga cognitiva equitativa que afasta a atual assimetria dialogante”.

Por sua vez, o pensador canadense Charles Taylor compartilha a crítica habermasiana ao modelo liberal de John Rawls, mas sua apresentação sobre a necessidade de uma redefinição radical da secularização vai mais além da reflexão do pensador alemão e, de certo modo, supera-a. Taylor não acredita ser bom considerar a diversidade religiosa como algo extraordinário e distinto do pluralismo ideológico, cultural ou mesmo étnico.

O filósofo canadense considera que favorecer tal distinção é insistir num pensamento aferrado obsessivamente ao religioso como um problema. Por outro lado, a resposta política à diversidade religiosa não pode ser estabelecida sem atender ao contexto cultural em concreto. Isso significa dizer que cada sociedade tem que resolver os problemas religiosos que surjam, atendendo sua história, sua tradição e objetivos sociais.

Ao final de sua exposição, Taylor recorda de um problema filosófico de maior calado: acusa o laicismo reinante de fomentar preconceitos religiosos e de criar uma ilegítima distinção entre um “uso público racional” e um “uso privado religioso”, este inferior cognoscitivamente àquele, sendo fator de criação de uma “sub-classe” de cidadãos, pois os crentes teriam que se despir de suas convicções pessoais no caso de tomarem parte do debate público.

As intervenções de Butler e de West são mais abstratas e tratam de aspectos menores da problemática tematizada na obra. Butler propõe ampliar o debate e incluir, na categoria religiosa, experiências que excedem a tradição cristã ocidental. Aludindo à diáspora judaica e refletindo sobre o sentido de pertença ao judaísmo, Butler recupera o conceito de coabitação para propor uma solução ao problema da violência no Oriente Médio.

West, mais emotivamente, critica o dogmatismo laicista daqueles que buscam desterrar a crenças religiosas e faz um libelo da necessidade do testemunho religioso, único que revela o sentido da experiência da dor, do perdão e da debilidade, de sorte que as tradições religiosas tornam-se importantes meios de uma tomada de consciência coletiva acerca da condição existencial daqueles que mais sofrem e são excluídos da repartição dos frutos da sociedade capitalista.

El poder de la religión en la esfera pública é, ao cabo, um importante livro para saber por quais caminhos filosóficos transitam a laicidade e o laicismo e as propostas de respostas de cada um deles para os problemas enfrentados atualmente nas sociedades ocidentais entre a esfera política e a esfera espiritual que, enriquecido pelo epílogo de Calhoun, no qual ele repassa, historicamente, a perene e rica complementaridade entre fé religiosa, política e filosofia, assume a condição de obra imprescindível para os estudiosos do assunto.

INFORMAÇÕES DO LIVRO: El poder de la religión en la esfera pública – Jürgen Habermas, Charles Taylor, Judith Butler y Cornel West. Eduardo Mendieta e Jonathan Vanantwerpen (eds.). Editorial Trotta, Madrid, 2012, 152 págs., 17 €. Traducción: José María Carabante y Rafael Serrano.