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Panteísmo, ateísmo e ciência

Opinião Pública | 31/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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Em um artigo anterior (A Ciência Contemporânea e a Fé), publicado nesta mesma página 2 no dia 26/06/2019, começamos a esboçar as consequências teóricas que decorrem da recusa em admitir – em face das descobertas da ciência moderna – a existência de um Deus transcendente ao universo, livre e criador de tudo o mais. Se o surgimento do universo por si mesmo a partir do nada absoluto é uma contradição (com efeito, como aquilo que não é nada daria a si mesmo o ser? Ademais, o nada absoluto é algo contraditório, impensável), resta a possibilidade de que ele seja eterno. Examinemos as consequências disso em face dos dados atuais da ciência. As teses aqui expostas foram desenvolvidas no instigante livro Comment se pose aujourd’hui le problème de l’existence de Dieu, de Claude Tresmontant.

Em primeiro lugar, assumir hoje que o universo seja eterno sem mais não é uma possibilidade, pois o suprimento de hidrogênio nele existente é finito e a transformação deste elemento em hélio é irreversível, pelo menos em quantidades relevantes. Portanto, para sustentar de modo consistente a eternidade do universo, é necessário assumir que seu desenvolvimento é cíclico e que esses ciclos jamais tiveram começo, e que jamais terão fim.

Uma tal tese foi defendida na história do pensamento pelas antigas teosofias indianas e por alguns filósofos pré-socráticos, notadamente Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso: para eles, o próprio universo é o Ser, a Divindade, portadora de toda a sabedoria e todo o poder (o nome disso é panteísmo). É também comum a esses pensadores apresentarem-se como portadores de um saber de ordem sobrenatural, que ultrapassaria infinitamente a capacidade de compreensão dos reles mortais. A pergunta que então deixamos no ar é a seguinte: cientistas modernos sérios, com verdadeiro compromisso de compreender a realidade, estariam dispostos a assumir hoje, diante da imagem do universo descoberta por suas respectivas ciências, uma tese de ordem mística como essa?

Uma vez que o método científico, quando levado a sério, só nos permite tirar conclusões amparadas por sólidas evidências empíricas, e que estas apontam cada vez mais no sentido de que as transformações presentes no universo são de caráter irreversível, torna-se difícil sustentar essa opinião sem extrapolar as evidências disponíveis. Resta, contudo, para quem deseja se manter fiel à ciência e ao mesmo tempo fazer profissão de fé no ateísmo, o caminho escolhido pelos antigos atomistas gregos: Leucipo, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. Para esses autores, o universo é composto de átomos eternos e indestrutíveis, que estariam perpetuamente em movimento e cuja combinação – que se daria ao acaso – seria a causa da existência de todos os entes complexos. Esse posicionamento implica, diante dos dados atuais da ciência, consequências que o colocam numa posição insustentável. Examinemo-las brevemente.

Do ponto de vista da organização dos corpos, o acaso é incapaz de explicar a formação de um mero aminoácido. Sobre isso, os biólogos são hoje unânimes. Se assim é, forçosamente não poderá explicar o surgimento de um organismo vivo vegetal, menos ainda o de um organismo vivo animal e, muito menos ainda, o da inteligência humana. Mas isso não é tudo: uma teoria como o atomismo deixa justamente de responder às perguntas fundamentais da filosofia (pois aqui se trata de uma investigação filosófica, visto que se debruça sobre a estrutura última da realidade): quais são as causas do movimento e do ser?

Ora, o fato é que na história do pensamento há uma solução bastante sólida para essas perguntas: a metafísica bíblica, segundo a qual o universo é criado por um Deus onipotente, inteligente e absolutamente livre. Esta crianção não se daria “por necessidade”, mas pela exclusiva bondade de Deus, que, como Ser Infinito e Onipotente, não necessita de nada além de si mesmo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 31 de Julho de 2019, página A2 – Opinião.

Ateus, sob a proteção de Deus

Opinião Pública | 01/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Vejo nos periódicos que uma associação composta por ateus e agnósticos propôs uma ação civil pública para impedir que um caminhão do corpo de bombeiros fosse utilizado para conduzir uma imagem mariana durante uma procissão em prol da chuva, por ser um ato religioso discriminatório, fundando sua pretensão nos argumentos oitocentistas de Feuerbach. Leio o teor da inicial da ação, que mais lembra um panfleto jurídico anticlerical, e observo o mais do mesmo: confundir estado laico com estado ateu. Secularização com secularismo.

A dita associação manuseia um argumentário tipicamente jacobino: a religião não pode entrar na esfera pública e é preciso salvaguardar o ambiente secularizado da amada pátria brasileira. Nenhuma democracia sobrevive se ficar chocando o ovo da serpente jacobina, porque o atual liberalismo deixou de ser somente político e tornou-se moral, ao ponto de nossa democracia fomentar uma bela polifonia de valores, cujos pressupostos, por outro lado, a mesma democracia não é capaz de sustentar sozinha. Uma verdadeira e preocupante contradição.

Interpretar uma procissão religiosa como uma forma de ato discriminatório e não como uma genuína manifestação cultural do povo brasileiro não é somente uma desonestidade intelectual, mas também uma violência moral que envergonha uma democracia liberal como a nossa. Exatamente como seria uma vergonha se um credo religioso resolvesse impedir uma procissão da “deusa da razão”, entronizada no mesmo caminhão dos bombeiros, e promovida por ateus e agnósticos. Acreditar na tal procissão da chuva como um ato sacro de cunho discriminatório é não entender bem o que significa o fenômeno da secularização.

A secularização, quando propõe o banimento radical de qualquer manifestação religiosa em público acaba por descambar em sua versão reducionista, o secularismo. Vale a pena lembrar os autores clássicos sobre a matéria, como, por exemplo, Durkheim, para quem a expressão pública de uma religião é parte da liberdade religiosa que uma democracia liberal deve proteger e assegurar os mecanismos concretos para seu exercício pelo cidadão.

A separação entre politica e religião não significa o apagamento da religião. Significa, sobretudo, que o poder político rege-se por princípios próprios e autônomos e não estritamente religiosos. Em outras palavras, não há mais espaço para as figuras historicamente distorcidas do cesaropapismo, regalismo e teocracia.

Convém também lembrar que somos laicos graças ao cristianismo: o monismo político-religioso do mundo pagão, simbolizado pela unificação dos dois poderes – o político e o religioso – na pessoa do soberano de plantão, foi cindido – uma ironia pronta – pelo famoso enunciado evangélico que determina dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Nada mais intelectualmente incômodo para a réplica do argumentário racional de um ateu militante.

“Dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” não é bem o que os ateus e agnósticos da dita associação – além de seus irmãos jacobinos espalhados pela maioria dos partidos do espectro político brasileiro –imaginam: colocar César em todas as legítimas ou tradicionais manifestações religiosas do povo brasileiro, reflexos de nossa cultura, e até mesmo na consciência de cada um.

Mal sabe a dita associação que, ao propor a citada ação civil pública, agiu “sob a proteção de Deus”, porque esse direito está assegurado pela Constituição Federal (artigo 129, inciso III, §1º), que foi promulgada, nos dizeres de seu preâmbulo, “sob a proteção de Deus”. Outra ironia pronta. E, mesmo “sob a proteção de Deus”, ao se apresentar publicamente como a única voz de uma suposta e moderna racionalidade esclarecida, a associação dos não-crentes, na verdade, pretende impor um ideário que mais lembra o clamor de um ultrapassado racionalismo iluminista.

Em sua defesa judicial da secularização e do estado laico, confundido com secularismo e estado ateu, o que a dita associação e seus parentes intelectuais da cartilha jacobina fazem, no fundo, é elevar um princípio ideológico a uma nova forma de religião e, assim, ao lado – mais outra ironia pronta – dos fundamentalistas religiosos, passam a compor o conjunto dos piores inimigos da secularização e do estado laico. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal “Correio Popular”, 01.04.2015, Página A-2, Opinião.