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Aylan Kurdi

Opinião Pública | 09/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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IN MEMORY OF AYLAN KURDI SEPTEMBRE 3, 2015 ·PHOTOGRAPHIC ART ·BY ACHRAF BAZNANI

IN MEMORY OF AYLAN KURDI
SEPTEMBRE 3, 2015 ·PHOTOGRAPHIC ART ·BY ACHRAF BAZNANI

 

Assistimos aos desdobramentos da guerra civil na Síria. As estatísticas crescentes de mortos, desaparecidos e refugiados oscilam, mas todas estão na macabra casa dos seis dígitos. O papa Francisco já convocou até um dia de jejum e de oração pelos mortos civis e pelo fim da luta fratricida que por lá campeia. Parece que isso não sensibilizou muito as vontades dos membros das facções em luta. Continuam a se digladiar como se não existisse o amanhã.

Não quero falar sobre guerras, embora acredite que elas são e serão inevitáveis, porque, como assinala Tucídides, o primeiro “repórter de guerra” da história, “a natureza humana permanece sendo a mesma”. Não quero falar sobre esse pacifismo de moda, a brandir cartazes com slogans “Nunca mais a guerra!” ou coisas do gênero. Não evitaram e continuarão não evitando conflitos armados.

Também não quero falar sobre ditaduras políticas, mas sugiro aos ditadores e tiranetes de plantão que mudem suas posturas, renunciando e submetendo-se à Corte de Haia ou, simplesmente, matem-se. A humanidade agradece ao favor feito. Quero falar sobre o pequeno Aylan Kurdi, o menino refugiado sírio de três anos, egresso de uma cidade que, no seio do conflito sírio, fora tomada por indivíduos que mereceriam estar no sétimo círculo do inferno dantesco.

Sua morte por afogamento consternou o mundo, não só pelo forte simbolismo da imagem em si, mas pelas circunstâncias que se deram. Ele, por intermédio de seus pais, teve que optar entre a barbárie da guerra e o calvário mirim da fuga. Uma fuga motivada, à semelhança de muitos outros sírios, pela vida, porque, atrás dele, só havia morte. Morte patrocinada por uma liderança política que nunca leu Agostinho: sem justiça, qual a diferença entre um governo e uma quadrilha de assassinos?

Imagino, daqui, toda a invencível trajetória da viagem. Ameaçada a família, a “Europa” virou sinônimo de “segurança”, mas, até lá, era preciso atravessar um mar, que havia se transformado em sinônimo de “cemitério”, por meio de um bote, que poderia atender pelo sinônimo de “caixão”, onde, graças à ganância do traficante, que poderia ser sinônimo de “coveiro”, carregaria cinco vezes mais pessoas, com base num bilhete de ida, que poderia ser sinônimo de “atestado de óbito”. Ao cabo, virado o bote e depois do afogamento, o cadáver insepulto seria sinônimo de “delicatessen” marinho.

Lênin, certo e erradamente, disse que a morte de uma pessoa é uma tragédia e, a de milhões, uma estatística. Errado: a morte de milhões é um drama. Drama em escala estatística. Certo: a morte de um só é uma desgraça. Desgraça pela comoção de uma narrativa de vida suprimida abruptamente. No caso de Aylan, estupidamente. Toda morte de uma criança inocente é sempre um supremo roubo de Deus.

E, por falar em números, quanta estatística carrega uma criança morta na praia, porque fugia de uma guerra civil alimentada por um bando de insanos com uma cosmovisão político-religiosa historicamente caduca, por um ditador fratricida e por uma indiferente diplomacia ocidental no trato dos refugiados?
Desconfio que a resposta passa pela estatística incomensurável da impotência e da miséria da condição humana.

Há pouco nos referimos ao simbolismo da imagem do cadáver do pequeno Aylan estirado na areia do quebra-mar, justamente onde crianças costumam divertir-se com seus pais em dias de verão.
Nessa mesma imagem chocante, notamos também que ele estava tão bem vestido naquela camiseta vermelha com calça azul e sapatinhos com meias, que parecia ter se aprontado para a festa de uma vida nova. Até Poseidon revoltou-se com o fato dele ter sido barrado no baile, ao devolvê-lo à areia dura, para que nos despertasse desta hybris que provocamos.

Paul Ricoeur, de quem tive a grata satisfação de estudo no doutorado, recorda-nos que o simbolismo é algo que nos conduz ao pensar e um imaginário repleto de elementos simbólicos é requisito fundamental para pensarmos e agirmos no mundo com a consciência daquilo que fazemos. O pequeno Aylan já fez, involuntariamente, sua parte. Resta, agora, saber se queremos fazer a nossa, sob pena de, nas palavras do papa Francisco, continuarmos a trilhar pela “globalização da indiferença”. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 9/9/2015, Página A-2, Opinião.

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta.