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Platão e o Ocidente (II): Da Cristandade à sociedade de massas – por Marcelo Consentino

Filosofia | 20/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Escola de Atenas (1509-10), de Raphael. No centro e à esquerda, Platão; à sua direita, Aristóteles.

“Escola de Atenas” (1509-10), de Raphael. No centro e à esquerda em pé, Platão; à sua direita, também em pé, Aristóteles.

“Our passions give life to the world. Our collective passions constitute the history of mankind… The heart of man either falls in love with somebody or something, or it falls ill. It can never go unoccupied. And the great question for mankind is what to be loved or hated next, whenever an old love or fear has lost its hold”.

(Eugen Rosenstock-Huessy, Out of Revolution).

 

As três fontes do Ocidente

No despertar da civilização ocidental três grandes povos despontam no horizonte: Grécia, Roma e Israel. Três grandes reis que vêm depositar no berço da civilização nascente seus dons mais preciosos.

A oferta da civilização grega pode ser resumida em uma palavra: humanismo. Com uma liberdade inaudita a todas as antigas culturas orientais, os gregos destacaram contra o panorama cósmico o corpo, o rosto e a alma humana em toda sua plenitude. Na Grécia a figura humana ganhou finalmente contornos, peso e densidade dignos da sua condição. A cultura helênica se inicia com um grande herói humano e se encerra com outro, o primeiro mítico, o último real: Aquiles e Alexandre. A resposta de Édipo ao enigma da Esfinge é “Homem”! Sob o sol mediterrâneo, o mármore claro e a geometria da arquitetura grega criaram espaços perfeitamente adequados à escala humana. As artes plásticas, especialmente a escultura, conquistaram o domínio perfeito da representação do corpo humano com todos os seus nervos, elasticidade e força atlética. Na política vislumbra-se pela primeira vez a idéia de um governo realizado pelos homens e para os homens: a democracia. “Conhece-te a ti mesmo!”, diz ao homem o oráculo de Delfos, enquanto Píndaro conclama, “Torna-te quem és!”. Sua mitologia antropomórfica é ainda hoje um fascinante teatro das paixões humanas. Na Grécia, diz Schiller, “enquanto os deuses se tornavam mais humanos, os homens se tornavam mais divinos”. Entrando na psique, seus poetas saíram com os germes da poesia lírica e da psicologia. E, acima de tudo, a filosofia se lança com convicção na aventura do conhecimento. Fundando os alicerces da metafísica, das ciências naturais e da ética, sua confiança na capacidade do homem de conhecer verdades e valores universais – válidos para todos os homens em qualquer tempo e lugar – legaria para todos os séculos posteriores o ideal do perene, do “clássico”. Em suma, a Grécia explorou com audácia todo o universo da criação humana em seus mais diversos recantos, modelando de algum modo cada uma das formas que compõem aquilo que hoje chamamos de cultura.

Mas caberia a outro povo mediterrâneo a missão de plasmar os valores ideais da cultura helênica em instituições e leis reais. Roma realizou aquilo que os gregos jamais conseguiram: uma unidade política de fato. A formidável capacidade técnica e o instinto pragmático dos romanos expandiram a cidade (urbs) pela Europa, África, Oriente Médio e Ásia, enfim, por quase todo o mundo conhecido (orbe), movida pelo ideal de uma cidade universal regida por uma lei comum e imparcial – uma “casa comum” para os homens (oikoumene). A idéia de um Estado civil é sem dúvida a grande dádiva dos romanos ao Ocidente e à história universal.

Por último, o povo aparentemente mais desprezível dos três traz escondido sob sua túnica semita o maior e mais arcano de todos os dons. Israel revela ao mundo o Deus único: um só Criador para todas as criaturas, um só Senhor para todos os homens. A fé dos patriarcas, a Aliança de Moisés no Sinai e a voz solitária dos profetas revelam que as vidas humanas não estão simplesmente abandonadas à roda trituradora dos ciclos cósmicos. O homem é chamado a selar um pacto de união com o Altíssimo, “aquele que é, foi e será”, aquele que está acima do cosmos e o domina com sua potência – Adonai, o Senhor! Não estamos à deriva. Há uma Providência, um caminho, e todas as estórias humanas se entretecem numa única História, um drama universal entre os homens e Deus.

Mas junto com seus dons, isto é, suas convicções mais profundas, cada um desses povos levava consigo a consciência amarga de um falimento e a esperança de renovação.

Como se disse, a cultura grega jamais teve a força intrínseca de unir seu conglomerado de poleis numa nação. As únicas vezes em que isso aconteceu foram ante a ameaça extrínseca dos persas. Mas logo em seguida, as disputas fratricidas entre Atenas e Esparta arrastariam todas as cidades do Peloponeso a uma terrível espiral de violência e vingança, ao mesmo tempo em que as tragédias de Ésquilo e Sófocles lamentavam a força demolidora do Destino. E a ficção se tornaria realidade na condenação de Sócrates pela assembléia ateniense. Ao receber o veneno de suas mãos o velho mestre, sempre generoso, não deixou de retribuir com uma advertência: “Está na hora de partirmos, vocês para a vida, eu para a morte. Quem de nós está indo para o melhor destino, só mesmo os deuses sabem”. Conhecemos bem o destino de Sócrates. O da cidade seria sucumbir diante de macedônios, romanos, turcos e assim por diante, até ser reduzida às ruínas que hoje recortam a colina da acrópole.

Sabemos que sob a pax civil desfrutada pelos cidadãos romanos havia uma vasta massa de escravos esmagada pelo poderio militar da República, a qual despejava todos os anos milhares de homens em seus circos, onde eram devorados por bestas e mutilados entre si só para satisfazer o sadismo do patriciado, não menos que da plebe. A habilidade política e militar de Júlio César o ergueria ao posto de imperador e a piedade calculada de Augusto à condição de um deus e sumo-pontífice, mas logo depois o Império tornar-se-ia rapidamente instrumento de arbitrariedade e tirania, ao longo de uma série quase ininterrupta de imperadores incapazes, dementes e homicidas. Roma não foi invadida pelos bárbaros – apodreceu a partir de dentro.

E quanto a Israel, a maior parte de sua liderança religiosa consumiu-se numa paixão obsessiva pela interpretação e aplicação da letra da Lei. Separando rigidamente a justiça da compaixão, envolveram a consciência do povo com uma malha tão apertada de deveres legais, escrúpulos morais e prescrições religiosas que a própria Lei corria o risco de se petrificar no mais opressivo dos ídolos, enquanto a aventura iniciada pelo pai Abraão, por Isaac e Jacó, parecia se engessar por completo. Contra este moralismo farisaico ergueu-se a voz dos profetas – “Basta de sacrifícios e oblações! Não suporto mais seus bodes e touros. Quero um coração misericordioso”, clama Yaweh pela boca de um deles. Mas também os profetas seriam perseguidos, calados e assassinados, não raro com o consentimento do povo.

A civilização ocidental nasce em uma atmosfera de angústia e incerteza. À medida que Roma declinava a olhos vistos, milhares de pessoas se abandonavam à dissolução moral e ao culto do cinismo. De outra parte, ventos vindos do Oriente envolviam os corações com um sombrio ar fatalista. Assim, para quem não fosse insensível como um estóico, inconseqüente como um epicurista ou prepotente como um gnóstico – de resto, todas elas tentativas diversas de evasão diante de um mesmo fundo pessimista e mórbido – restava somente a vaga nostalgia de uma comunidade que fosse unificada (como o ideal romano), consagrada por Deus e a Deus (como Israel), e orientada por princípios universais (como o ideal grego). Esta era exatamente a Novidade (evangélion) que mensageiros vindos da Palestina vinham anunciar: uma comunidade (ekklésia) una, santa e universal (katholiké). Esta era a mensagem proclamada, em língua grega, por apóstolos como Paulo de Tarso, judeu de nascimento, fariseu por formação e cidadão romano: a promessa de um novo reino, o Reino de Deus, governado por um homem, o homem novo Jesus Cristo.

A essência do Cristianismo

A fé dos primeiros cristãos não se fundava em fórmulas abstratas, mas na crença em um acontecimento concreto revelado pelo nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo: a perfeita união entre o homem e Deus. Eis o mistério da Encarnação: Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus. Cristo é não só Filho de Deus, mas filho de Maria; não só luz que vem do alto, dos céus, mas criatura que surge de baixo, da terra; não só graça de Deus aos homens, mas oferenda dos homens a Deus. Jesus Cristo “perfeito Deus, perfeito homem” é o dogma fundamental e único do qual se desdobram todos os outros dogmas cristãos e é a rocha contra a qual se bateram todas as heresias. Em sua fórmula final entalhada no século V pelo Concílio ecumênico da Calcedônia, o dogma da Encarnação enuncia-se como a perfeita união, sem confusão, de duas naturezas distintas, mas não separadas: a divina e a humana. Aponto ao leitor que união sem confusão e distinção sem separação compõem a própria definição de amor, de modo que o corolário desta fórmula é que, em Cristo, Deus e o homem se encontram reunidos em um perfeito, íntimo e absoluto laço de amor.

Compreendo que tal fórmula pareça a uns absurda, a outros inaceitável ou a outros ainda, como eu, imensamente misteriosa. Mas o que ninguém poderá negar e que é simples… extraordinariamente simples. Não tenho a intenção aqui de convencer ninguém de sua verdade. Mas – para o bem ou para o mal – é um fato empírico, histórico e indisputável que nossa civilização foi construída a partir desta crença – por homens que viveram e morreram por ela. Crença segundo a qual Cristo – manifestando a potência do Pai e a ação do Espírito Santo – revela plenamente não só o Deus que Israel anunciava, como também o Homem que a Grécia buscava. E, sendo o verdadeiro Deus-homem – em contraste com a divindade auto-outorgada dos imperadores romanos –, é também o verdadeiro mediador (pontifex) entre os homens e Deus e, portanto, a cabeça de uma nova humanidade e raiz de uma nova Criação.

Penetrando profundamente as estruturas das sociedades antigas, esta fé atingiu seus conflitos mais radicais, colidindo com as contradições intrínsecas pelas quais Grécia, Roma e Israel agonizavam. Os gregos contemplaram num céu estrelado e harmonioso as idéias eternas e universais, mas entre nosso mundo precário e esta galáxia luminosa havia um abismo instransponível e, na prática, jamais conseguiram estender estes valores aos outros homens, o que significaria ultrapassar a cisão radical entre helenos e bárbaros. Do mesmo modo, todo o zelo dos romanos pelo Direito e pela Justiça – por uma constelação de leis comuns, imparciais e equânimes –, jamais chegou ao ponto de romper as correntes que aprisionavam a multidão de escravos pela Cidade e pelo Império. Se Roma queria construir uma “casa comum”, queria-a com escravos. E, por fim, a paixão dos profetas hebreus por cumprir a vocação israelita de ser a “luz das nações” apresentando-lhes os tesouros do Templo, tampouco foi capaz de erradicar o nojo atávico que os judeus sentiam pelos pagãos – tão atávico que o próprio São Pedro, antes de se decidir pela aceitação dos não-judeus à jovem comunidade cristã, é acometido por uma visão em que observa uma imensa toalha descer do céu repleta de “répteis e quadrúpedes de todas as partes da Terra” e ouve por três vezes a voz do Senhor que lhe diz: “Engole!”

Helenos (cultos) e bárbaros (incultos); cidadãos (livres) e escravos (prisioneiros); judeus (consagrados, eleitos, puros) e gentios (profanos, rejeitados, impuros) – diante de Cristo, diz São Paulo, todas estas diferenças se dissolvem, pois Deus não faz acepção de pessoas. Aos olhos da eternidade, há somente uma distinção que importa: entre o homem novo e o homem velho; entre o homem espiritual e o homem carnal; entre aquele que busca o bem e aquele que serve ao mal.

Intermezzo. Novamente os princípios platônicos

Tendo isto em mente, é hora de rolarmos a roda do tempo e acompanharmos os desdobramentos da civilização ocidental até os nossos dias. Mas antes, convém lembrar as premissas categóricas de análise estabelecidas na primeira parte deste artigo (v. Dicta & Contradicta 2, pp. 88-97).

O homem é uma criatura tripartite – relaciona-se com três dimensões da realidade que, embora distintas, encontram-se íntima e ontologicamente unidas: a dimensão natural, a dimensão propriamente humana e a dimensão divina. Uma abaixo de si, outra em si e diante de si e a terceira acima de si. Há, decerto, ateus que negam esta última dimensão. Mas por mais que o agnosticismo e o ateísmo tenham nos últimos tempos se disseminado por toda a nossa cultura, vistos no conjunto total das sociedades humanas desde a pré-história até os nossos dias representam um fenômeno tão ínfimo e infrutífero – diga-me o leitor quantos monumentos conhece erguidos às glórias do ateísmo? –, tão infrutífero, dizia, que podem ser considerados uma anomalia cultural, não podendo ser tomados como termo de medida da condição humana, do mesmo modo que a patologia de um lunático que dissesse que o céu é vermelho não invalidaria a crença comum de que é azul. De resto, um ateu que olha para o alto e diz que não há nada, de todo modo olha e diz algo – relaciona-se com o transcendente, ainda que de maneira puramente negativa, simplesmente para negá-lo como fez o pobre Nietzsche antes de mergulhar em sua demência. Há um impulso natural para o alto e isto é um fato histórico. A religiosidade – ou espiritualidade como queiram –, por mais variadas e obtusas que sejam suas expressões, pertence à estrutura essencial do ser humano, à própria dinâmica de sua existência.

Tanto quanto na vida individual, a vida coletiva se organiza na relação com estas três dimensões. Há em primeiro lugar comunidades naturais, como a família, e, além disso, associações de pessoas que se organizam com vistas a atuar sobre os recursos naturais de toda ordem a fim de obterem bens particulares – tais são as corporações privadas. A produção e troca destes bens formam a dimensão econômica da sociedade. Além disso, os indivíduos e seus grupos formam ainda uma estrutura comum destinada a tutelar precisamente um bem comum dentro de um certo tempo histórico e um certo espaço geográfico comuns. Esta estrutura configura o Estado secular (ou seja, mundano, temporal), que organiza as relações dos homens entre si, com seu sistema normativo de direitos e obrigações – em outras palavras, o Direito positivo ou consuetudinário –, sendo a forma em que se realiza a dimensão política. Por último, há um bem absoluto e universal que a um só tempo transcende e toca todos os tempos e espaços, tanto quanto indivíduos, sociedades privadas e nações. A esfera que organiza as relações coletivas dos homens com este Bem pode ser denominada religião, a qual se atua nas comunidades religiosas em suas diversas confissões.

É uma das teses deste artigo, inspirada pelo pensamento de Platão, que esta estrutura ternária é comum a toda a sociedade humana por sua própria natureza. Isto não significa de modo algum que se possa encontrá-la sempre diferenciada ao longo da história. Nas sociedades primitivas, com efeito, praticamente não há divisão do trabalho e é comum que a função de líder político e religioso se encontrem fundidas na figura de um rei-sacerdote ou coisa parecida. O mesmo vale para as grandes teocracias da Antiguidade. O processo de distinção e autonomização destas três esferas é uma conquista histórica longa e agônica: uma sucessão de conflitos, fracassos e superações, por vezes lentos e tenazes, por vezes explosivos. Mas em nenhum lugar como na civilização ocidental este processo atingiu contrastes tão claros e expressivos. Na verdade, este impulso de diferenciação através do qual cada uma destas esferas tenta se destacar e se afirmar diante das outras está na própria essência do Ocidente – é seu traço originário e original. Com efeito, a história desta civilização até os nossos dias é propriamente a história do conflito e da distinção entre a religião, a política e a economia, encarnadas respectivamente na Igreja, nos Estados nacionais e nas sociedades econômicas privadas. Esta é a sua substância, e é sobre este drama que nos debruçaremos a partir de agora.

O passado: Cristandade e Modernidade

O Cristianismo jamais se opôs ao Estado laico enquanto tal. Bem ao contrário, a distinção e a legitimação da sociedade temporal ou laica perante a sociedade espiritual ou religiosa – do Estado perante a Igreja – fora já estabelecida desde o princípio pelo próprio Cristo quando diz claramente “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A bem da verdade, a distinção entre o sacrum e o profanum só se tornou possível historicamente dentro da visão de mundo cristã, na medida em que se opunha precisamente ao princípio pagão do Estado sacro ou divinizado encimado por um imperador ou déspota adorado como um deus ou seu mandatário. Contra isto sim os primeiros cristãos se opuseram, pagando não raro com o martírio.

Em pouco mais de dois séculos, porém, a nova fé se propagaria por todo o Império, e o Estado não só suspenderia as hostilidades contra os cristãos, como, na pessoa do imperador Constantino, buscaria a sanção da Igreja ao seu domínio político. Tratava-se, todavia, de um simples compromisso de forças – uma união meramente mecânica e ocasional, e não orgânica –, já que, por um lado, o Estado romano, a fim de continuar exercendo seu poder, tinha necessidade de uma legitimação religiosa que já não encontrava nos antigos mitos pagãos, e, por outro lado, a Igreja não tinha ainda força suficiente para transformá-lo intimamente reorientando-o aos seus novos fins.

Após a divisão do Império, não demorou para que este equilíbrio precário despencasse de um lado ou de outro. No Oriente, o estado romano-bizantino conservou um caráter perfeitamente pagão, absorvendo a Igreja nas estruturas típicas dos despotismos orientais. Com efeito, não há diferença estrutural entre um califado qualquer e a teocracia monolítica do pagão Diocleciano ou do cristão Justiniano. Ali, Estado e Igreja desmoronariam juntos como um bloco diante da dominação islâmica, e assim no Oriente a genuína espiritualidade cristã ficaria quase toda concentrada na religiosidade privada dos mosteiros.

Como se sabe, no Ocidente a situação foi de certo modo inversa. Não tendo de lidar com um estado bizantino, mas, ao contrário, com uma multidão desordenada de hordas bárbaras, a Igreja latina era a única instituição capaz de manter a tradição de unidade deixada por Roma. Em tese, chegou-se a uma solução de compromisso na qual os imperadores germânicos eram detentores do poder secular, enquanto a Igreja romana detinha a autoridade espiritual. De fato foi assim durante o breve império franco-carolíngio de Carlos Magno. Mas na prática a atuação da Igreja não deixou de ser sentida como uma intromissão indevida por parte dos estados germânicos que naturalmente reagiram contra ela, de tal forma que toda a história medieval foi marcada pelo antagonismo entre estas duas forças.

Ao início do segundo milênio, o Imperador ainda era o grande símbolo do poder político, mas, de fato, tinha de rivalizar com uma multidão de estados feudais que, constituindo-se em autarquias cada vez mais fechadas e independentes, enfraqueciam o seu poder central até reduzi-lo finalmente à mera sombra de um ideal perdido. Diante deste vácuo de poder a sociedade religiosa se expandiu mais ou menos conscientemente no sentido de uma ingerência absoluta sobre a organização da sociedade européia. As reformas clericais iniciadas pelo papa Gregório VII e pelos monges de Cluny afirmariam definitivamente a unidade e a independência da Igreja, desobrigando os bispos e o resto do clero de uma submissão direta aos senhores feudais locais ou mesmo ao Imperador e vinculando-os diretamente à autoridade do papado romano. No mesmo espírito de liberação do jugo feudal criaram-se diversas ordens de cavalaria e ordens religiosas.

Nossos manuais de história raramente dão conta do influxo de liberdade que o ideal de fidelidade à “Madre Igreja” – representada politicamente pelo papa e sua corte cardinalícia, e simbolicamente por Nossa Senhora, Notre Dame –, significou dentro de um sistema agrário regulamentado por um regime marcial, racial e machista, e inspirado por costumes tribais que obrigavam cada vassalo a servir à arbitrariedade e às ambições privadas de seu senhor. O papado liberou não só clérigos, mas servos, filhos, filhas e cavaleiros da submissão absoluta a seus pais e senhores para servirem a um ideal comum. Por outro lado, estão certos estes manuais ao apontar a inevitável ruína da Igreja medieval a partir do momento em que passa a legislar sobre assuntos temporais e assume funções de liderança política que não lhe são próprias. Embora a Inquisição e as Cruzadas sejam fenômenos bem mais complexos do que o ideário contemporâneo esteja acostumado ou disposto a tratar – já que suas motivações fundamentais são não só religiosas, mas também políticas e culturais –, o fato é que a época do grande fervor espiritual que nos legou as catedrais góticas, as universidades e personalidades extraordinárias como Francisco de Assis ou Dante, foi também uma das épocas em que a Igreja cedeu mais vergonhosamente à sua tentação maior – a tentação do primeiro papa, Pedro, ao sacar a espada para defender Jesus no Jardim das Oliveiras –, a imposição da fé pela força. O peso de suas atribuições mundanas não se demoraria a fazer sentir e a Igreja medieval não só se mostrou incapaz de elevar o nível do Estado, como desceu ela mesma a um nível mais baixo, de tal forma que durante o Renascimento atravessaria, ao menos em seus quadros institucionais, um dos períodos mais negros e desmoralizantes de sua história, ao ponto de ver sentado sobre a cátedra da Santa Sé o papa Bórgia Alexandre VI. Assim, no outono da Idade Média tanto a Igreja como os estados feudais encontravam-se num mesmo panorama de desfalecimento moral.

Contra isto surgiram dois impulsos de renovação, que em breve se tornariam forças de revolução. Do lado religioso, os protestantes procuravam reafirmar a consciência do relacionamento direto de cada indivíduo com Deus e reencontrar os ideais primitivos do Cristianismo, mas isto à custa de verem riscados com a pena violenta de Lutero mil e quinhentos anos de tradição religiosa e instituição eclesiástica. No campo político, os reis nacionais buscavam centralizar o poder nas cortes em oposição ao senhorio feudal multifacetário. Era natural que num primeiro momento as duas forças se unissem. Agora, porém, compondo uma equação diretamente inversa à medieval, já que este momento da história ocidental, com o qual se inicia a Modernidade, é marcado pela emancipação da esfera política diante da esfera religiosa. Daí uma tendência à formação de um Estado absoluto e soberano e de uma Igreja submetida e conduzida por ele nas questões práticas, tendência à qual o protestantismo respondeu prontamente, dando início à formação das Igrejas nacionais, como a Igreja Anglicana, na Inglaterra, e a Luterana, no norte da Alemanha.

Nos países latinos, como a França, não se chegou a criar plenamente uma Igreja de Estado separada da Igreja romana, mas a doutrina do direito divino dos reis desvinculava o poder monárquico de uma submissão direta à autoridade do Papa ao mesmo tempo em que lhes dava alguma autoridade sobre o clero e os legitimava diante do povo, ainda católico. Unindo-se à burguesia ascendente, o chamado tiers-état, os reis de França conseguiram neutralizar finalmente as forças do antigo sistema feudal, absorvendo a aristocracia nos quadros militares e burocráticos do Estado. A burguesia, por seu turno, embora num primeiro momento privada de direitos políticos, desenvolvia-se através dos benefícios estatais próprios de um sistema mercantilista. Mas a aliança entre o Estado e a sociedade econômica era simplesmente casual e transitória, enquanto movida contra um inimigo comum. Tão logo este inimigo foi subjugado, o poder político representado pela monarquia começou a aspirar uma autonomia absoluta – daí a monarquia absolutista – transformando-se numa força de entrave para as aspirações da burguesia e de opressão para o povo.

Foi desta forma que a aliança inicial entre o poder político e as forças econômicas inverteu-se finalmente em conflito, e o poder monárquico, destituído de suas bases enquanto representante do povo, ruiria de forma mais ou menos violenta por toda a Europa sob a pressão dos movimentos burgueses e liberais. Este foi o principal resultado do incêndio conflagrado pela Revolução Francesa que de Paris se alastraria por toda a Europa, ditando a marcha do século XIX, particularmente em três aspectos fundamentais.

Primeiro. Por todo o continente instaurou-se em formatos diversos um novo ideal de governo oposto ao absolutismo monárquico, a saber, o parlamentarismo e o constitucionalismo. O Estado absolutista se transformava agora, ao menos em teoria, numa forma impessoal destinada a servir de instrumento para a execução da vontade popular, e o povo que antes servia o Estado deveria passar a ser servido por ele. Embora na Inglaterra – diferentemente da França e outros países – este processo tenha sido mais complexo e gradual, permitindo até hoje uma certa coexistência e complementaridade de formas de governo (monarquia, parlamentarismo e sufrágio popular), este novo ideal atingiria sua expressão mais pura e desvinculada precisamente em uma de suas colônias no Novo Mundo, isto é, na constituição democrática dos Estados Unidos da América. Eis mais uma vez um movimento de reforma que acaba por se converter numa revolução: do protesto inicial pela falta de representação no parlamento britânico, a revolta dos americanos se transformaria prontamente numa revolução anti-monárquica, culminando com a instauração de um governo “do povo, pelo povo e para o povo”.

Segundo. A ideologia revolucionária dissolvera definitivamente os ideais sociais da antiga Europa cristã e medieval. Até então cada indivíduo se definia por sua pertença a um grupo: por sua guilda ou corporação; aristocracia ou plebe; clero ou laicato; primeiro, segundo ou terceiro estado, e assim por diante. Agora, a sociedade de classes e os privilégios do ancien régime estavam definitivamente abolidos. De jure, a única distinção que restava era entre o Estado e seus cidadãos. Os ideais religiosos medievais e os ideais heróicos de honra e virtude da aristocracia já não se mostravam desejáveis, mas a Revolução não soube substituí-los por nenhum outro a não ser por sua fórmula abstrata de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”. Na prática, sobrava somente o ideal de riqueza – a aspiração ao bem-estar econômico e à satisfação material – e com isso uma última distinção social de facto: a distinção entre a burguesia rica, detentora do capital, e o povo pobre trabalhador (proletariado) a serviço da sua produção. Marx estava certo ao entender a organização da sociedade à sua volta a partir dos interesses materiais, pois tratava-se efetivamente do valor dominante à época; estava errado, porém, ao estender este princípio a todas as épocas e a todo o resto da humanidade. A nossa sociedade continua impulsionada pelo desejo de riqueza e prosperidade econômica, mas organiza-se de maneira diferente.

Terceiro. Durante os primeiros séculos da era moderna, a prática da ciência era ainda coisa de amadores e aristocratas, ora movidos por uma curiosidade diletante, ora por uma genuína paixão pelo conhecimento. Do momento em que as comportas se abrem para o apetite empreendedor burguês e para os desejos de movimentação social do povo, a ciência se conecta à industria disparando uma forte combustão de energia no processo de desenvolvimento tecnológico, o que acelera sua propagação a um nível inimaginável até aquele momento.

Nós somos os filhos desta era: a era da crença absoluta na democracia popular igualitária, na prosperidade econômica e no progresso tecnológico e científico. Nossos pais acreditavam – e muitos de nós ainda acreditam – que estas três chaves bastariam para abrir definitivamente o largo caminho que conduziria à prosperidade e à paz mundial. Parecia que finalmente a fórmula da felicidade fora decifrada e estava toda inteira em suas mãos, e que bastava simplesmente combinar com precisão estes três fabulosos elementos. Isso formava o seu credo. Convém que nos concentremos nele para entrarmos finalmente nos dias de hoje e na conclusão deste ensaio.

O presente: a sociedade de massas à esquerda e à direita

Democracia! A palavra entra intacta em nossos ouvidos e preenche a alma com sua pureza. A nossa é a Era da Democracia e tudo o que é “democrático” é bom: “encontros democráticos”, “decisões democráticas”, “organizações democráticas”… Isto pode ser verdade. Mas se é devemos estar atentos ao sentido exato que damos à idéia de Democracia. Se o que importa é simplesmente a execução da vontade da maioria – a “vontade popular” –, então convém lembrar que o massacre de uma tribo africana por sua rival, tanto quanto a condenação de Sócrates, a crucifixão de Cristo ou a chegada de Hitler ao poder, são fenômenos tão democráticos quanto uma reunião de condomínio ou a votação de uma moção administrativa na assembléia da ONU. Se é da decisão da maioria que se trata, então ela estava lá na Alemanha e em Jerusalém, tanto quanto está em Burkina Faso ou Genebra.

Apontei acima que um dos ideais da Revolução Francesa era arrancar o Estado absolutista das mãos do Rei e entregá-lo às mãos do povo. O povo, que antes servia o Estado, deveria agora servir-se dele, usá-lo como instrumento de execução de sua vontade – vox populi, vox Dei. Que possa haver longos períodos de paz e prosperidade em tais condições é naturalmente possível. Mas levado a um extremo absoluto o princípio da vontade da maioria é perfeitamente compatível com a mais sinistra de todas as formas de governo: o totalitarismo. Totalitarismo significa que em caso de divergência não há para onde correr. Não há a quem apelar. Não é possível clamar pela proteção de um Imperador contra um Papa ou vice-versa; nem se refugiar em uma família aristocrática para se defender de outra; nem recorrer à salvaguarda de um juiz contra as decisões erradas de uma assembléia ou as más ações de um governante. Não há a quem apelar porque há somente uma voz, a voz da maioria, e somente uma força, a força do Estado. E o Estado está a serviço da maioria – é a maioria. O século passado sofreu com o flagelo de algumas das manifestações mais sanguinárias e devastadoras de governos de massa. Foi assim na Alemanha nazista, em diversos países eslavos, na Rússia e em grande parte da Indochina. A verdade é que a relação correta entre Estado e povo não é nem o Estado servindo ao povo, nem o povo servindo ao Estado, mas os dois servindo a um princípio superior.

Este problema o sistema de governo norte-americano solucionou bem, pois lá nem Estado nem povo são maiores que a Constituição, que por este motivo não pode ser simplesmente trocada, mas somente alterada por sucessivas emendas que se justifiquem a si mesmas diante do texto original. Além disso, pela primeira vez na história da humanidade uma grande nação conseguiu estabelecer um governo temporal realmente temporal, com seus 44 presidentes alternando-se regularmente ao longo de mais de 200 anos por períodos de tempo cíclicos, limitados e predeterminados. Legalidade e temporalidade, e não simplesmente a vontade da maioria, são os verdadeiros alicerces que fazem da democracia americana um modelo tão admirável.

Mas embora os Estados Unidos tenham resolvido com tanta lucidez o problema do ordenamento político, eles mesmos (e talvez sobretudo eles) sofrem com outro tipo de tirania da vontade popular: a massificação cultural. Quando a vontade popular é soberana e absoluta em termos daquilo que tem valor para a cultura, e quando por “povo” entende-se uma massa atomizada de indivíduos isolados – todos eles portadores de “seus direitos” (e nenhum de seus deveres) –, então cada pessoa se assume como critério daquilo que o povo quer, exigindo a satisfação de seu querer como um “direito” e impondo qualquer gosto arbitrário seu como um “valor”. Em tempos antigos um camponês ou um secretário de província podia alimentar inveja de um aristocrata por sua educação, seus talentos, sua posição social ou por sua riqueza que fosse, mas ainda assim desejava aquilo que estava no alto, que lhe parecia nobre, valioso, superior. O rancor do homem de massa, ao contrário, é mais venal, pois não é que deteste o fato de não poder ser um nobre, mas sim que os outros não sejam plebeus como ele. Um homem como esse não só é incapaz de dar um passo além de seu estreito círculo de interesses, mas poderá facilmente obliterar essa possibilidade a outros, pois nivela tudo por baixo, pelo seu próprio nível. Ele é a medida de todas as coisas.

O perspicaz Ortega y Gasset já alertara para isso ainda no período entre-guerras. “A característica do momento, dizia ele, é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe por toda a parte.” Note-se bem: não é que o homem vulgar pense que não seja vulgar, mas sim nobre. É pior! Sabe-se vulgar e deseja sua vulgaridade, gosta dela e a exige como um direito – isso quando não a impõe como um dever. É bom que fique claro, caso ainda não estivesse, que nada disso tem a ver com riqueza ou pobreza: é uma atitude, um estado de espírito que se encontra disseminado de alto abaixo por todas as nossas classes sociais. Assim se explica como no Ocidente democrático liberal o excesso de individualismo leva diretamente ao seu contrário, a uma despersonalização e vulgarização generalizadas.

O segundo princípio da sociedade de massas ao qual aludi é a monomania economicista, isto é, a idéia de que a satisfação material é o fim último e único de cada homem e que, portanto, a felicidade geral da humanidade depende exclusivamente da produção de riqueza e de sua distribuição a cada indivíduo. Deste princípio comungam indistintamente comunistas e capitalistas. A diferença é que os comunistas acreditaram poder transformar toda a população em proletários a serviço de um único empregador, o Estado, responsável por dirigir a produção e distribuir o capital. Desnecessário destacar as conseqüências desastrosas de projetos como esses – o espetáculo de decadência e desolação que se descortinou após a queda do regime soviético é demasiado evidente. O Ocidente capitalista, por sua vez, conseguiu manter intacto o direito fundamental de propriedade, e nos Estados Unidos, Canadá e Europa conquistou níveis realmente extraordinários de prosperidade econômica apostando forte na livre concorrência e numa cultura da emulação. Mas concorrer para quê? Simplesmente para se fazer muito rico? Uma sociedade deve estar realmente doente quando o desejo dominante de seus membros é tão somente ser muito rico, porque ser muito rico significa simplesmente ter muito dinheiro, e ter muito dinheiro não garante que se tenha a menor idéia de como usá-lo bem. Ao contrário, um homem que não se preocupe com outra coisa do que ganhá-lo provavelmente o usará muito mal. Dinheiro é bom, não quero ser eu a negar – mas muito corrompe. Além disso, é simples meio de troca para a aquisição de algo mais valioso. É transitivo por natureza e por excelência, e a perversão é total quando o quanto se ganha se torna mais importante do que saber para que se ganha. Um homem que consome toda a sua vida acumulando montanhas de dinheiro eventualmente chega ao topo, e tem a mesma sensação de quem entra no quarto para pegar alguma coisa, mas esqueceu o que. Não sabe por que está ali, nem para onde ir e nem sequer o que lhe falta. Daí o fenômeno tão americano do rico narcisista, imbecilizado ou deprimido. Não por acaso o noticiário se vale tanto do vocabulário clínico da psicoterapia para analisar as oscilações da realidade econômica e ouvimos falar incessantemente em “depressão financeira”, no “mau humor da bolsa” ou na “euforia do mercado”.

A terceira crença da sociedade de massas, intimamente relacionada com as outras duas, é a confiança ilimitada no progresso tecnológico. Pouco é preciso dizer sobre ela, pois hoje nos damos conta mais facilmente de que é a mais ingênua das três. Até o final do século XIX, época das ferrovias e das fábulas de Júlio Verne, a idéia de se pôr qualquer restrição à fé no desenvolvimento tecnológico pareceria absurda. Mas a verdade é que toda tecnologia é sempre e tão somente um instrumento nas mãos do homem, e nossa geração sabe que um desses instrumentos pode ser tranquilamente uma bomba de destruição em massa. Até pouco tempo os homens lutavam suas guerras com baionetas e canhões, mas em menos de cem anos a humanidade produziu um arsenal tão massivo de armamentos e máquinas mortíferas que seria potencialmente capaz de desintegrar todo o planeta. Isto e os recentes desastres ecológicos nos tornaram mais cautos em relação à produção tecnológica.

É claro que é mais difícil ver algum risco diante de aparelhinhos mais simpáticos como celulares e iPods. Mas a tecnologia pode ser usada não só para a destruição, como para a alienação. Pois nós vivemos não só de pão, mas também de circo. E é preciso lembrar que o século passado foi não só o século em que se criaram as ogivas nucleares, mas também aquele no qual o mundo da cultura se viu inundado pelas maravilhas produzidas pela indústria do entretenimento. Entretenimento é “diversão”, e diversão significa precisamente “divergência”, “separação”, “afastamento”. Estes afastamentos temporários do nosso áspero cotidiano têm uma função importante na manutenção de nossa saúde psíquica. Mais ainda, a suspensão da realidade imediata é uma pré-condição fundamental da genuína experiência artística. Mas neste último caso o sujeito se afasta do comezinho, do ordinário, para ser introduzido em algo mais elevado, extraordinário. Se, ao contrário, o entretenimento é o valor último e a tecnologia é utilizada só para se “passar o tempo” – oh expressão infeliz! –, para derramarmos nosso tempo no ralo talvez, então há pouca diferença entre dissiparmos nossas atividades cerebrais e tensões emocionais com drogas lícitas, como calmantes, e ilícitas, como a heroína, ou em horas e mais horas despejadas diante da televisão ou da internet.

Conclusão

Espero que o leitor não me compreenda mal nem me tome por hipócrita se acaso estas considerações sobre a indústria tecnológica, a democracia popular e a cultura econômica tenham deixado um sabor um tanto ácido. Estou escrevendo em um computador; concordo com Churchill que se não fosse por todas as outras a democracia seria a pior forma de governo (e por viver em uma agradeço a homens como ele); e, Deus sabe, busco meu lugar ao sol como todo mundo. Mas isto não significa que estas sejam as únicas coisas importantes e tampouco as mais importantes. Há tesouros mais valiosos. Nós no Ocidente liberal democrático, especialmente no Brasil, passamos de certo modo incólumes por expressões mais nefastas das sociedades de massa, como os totalitarismos comunistas que oprimiram quase metade do globo e ainda fustigam boa parte dele. E por isso devemos ser gratos. Há porém outros riscos e desafios que não podemos ignorar.

Desde seu início até hoje a sociedade ocidental moderna vem se desdobrando ao longo do tempo através de uma cascata de colisões libertárias, cada uma delas afirmando uma dimensão fundamental da vida humana. O Protestantismo quis libertar a Igreja do clero e dá-la aos leigos; a monarquia absolutista quis libertar o Estado da Igreja e do feudalismo; as revoluções burguesas, por sua vez, quiseram libertar a economia das mãos do Estado e este das mãos dos reis; e finalmente as revoluções socialistas quiseram libertar o dinheiro dos bolsos da burguesia. Esta sucessão revolucionária do Ocidente foi um processo importante para a história mundial, pois os antagonismos entre a Igreja, os Estados nacionais e as forças econômicas revelaram com clareza a necessidade de se diferenciar os campos fundamentais através dos quais os homens se relacionam com a realidade e organizam o universo social: o campo religioso, o político e o econômico. Mas tudo isto teve um preço, e nossa era é a última etapa de um processo de inversão completo onde os valores econômicos foram alçados às alturas, enquanto os valores políticos e religiosos declinaram ou caíram completamente por terra. Hoje todas as esperanças de nossos antepassados na política nos parecem “utopia” e sectarismo, e a religião, por sua vez, foi reduzida a assunto de “foro íntimo”. Na Idade Média, o que um homem fazia para ganhar seu dia-a-dia era menos importante do que aquilo que fazia para não perder a sua alma. Suas crenças eram públicas e seus negócios privados eram… privados. Hoje a situação se inverteu: o que estava na periferia se transferiu para o centro, e que estava no centro de perdeu de vista. E, de fato, é forçoso admitir que as redes da globalização econômica e tecnocrática parecem ser o que temos concretamente de mais próximo a uma realidade mundial organizada, enquanto testemunhamos com horror insanos conflitos políticos e religiosos que fendem toda a superfície do planeta.

Mas assim como ninguém em sã consciência pode acreditar que o caminho para nossa sociedade esteja em retornar ao absolutismo religioso medieval ou ao absolutismo político à la Louis XIV, a idéia de concentrarmos nossas esperanças num absolutismo econômico é igualmente, que digo!?, é ainda mais insustentável. Pois a economia e a tecnologia só podem resolver um dos problemas de nossa vida, problema fundamental, que é a criação de recursos e de instrumentos para agirmos sobre a realidade. Mas elas nunca nos darão o escopo desta ação. Podem produzir muita riqueza e energia, mas não nos indicam o que fazer com elas. Podem por armas em nossas mãos, mas não nos dizem pelo que lutar. Fornecerão todo o material de que precisamos, mas não nos mostrarão o que construir, e assim como tijolos, vidro, cimento e ferro espalhados por terra não se erguem sozinhos num palácio ou numa catedral, elas podem bem nos dar os meios, mas nunca conquistarão os fins. Sozinhas, jamais construirão uma “casa comum”.

Creio que isto, caro leitor, é algo ao qual deveríamos estar atentos, se quisermos que o olhar da posteridade nos reserve palavras mais dignas e menos complacentes que as deixadas por T.S. Eliot:

 … Here were decent godless people:

their only monument the asphalt road

and a thousand lost golf balls

 

Marcelo Consentino é bacharel em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa Croce, doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP e presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Artigo originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3 – Junho de 2009.

NOTA:

¹ “Aqui havia um povo decente e ateu; / os seus únicos monumentos são as estradas de asfalto / e bolas de golfe perdidas”.

Platão e o Ocidente (I) – por Marcelo Consentino

Filosofia | 13/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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PLATÃO E O OCIDENTE (I) - por Marcelo Consentino "Platão, buscando compreender a essência da sociedade humana, montou um aparato conceitual tão firme e bem armado que, estando suas lentes polidas e focadas, ainda hoje pode ser um excelente instrumento de observação da nossa realidade. Aqui pretendo justamente utilizar este aparato para tentar interpretar o desenvolvimento da civilização ocidental do ponto de vista de sua organização social, desde seu surgimento, cerca de dois mil anos atrás, até os nossos dias. Parece pretensioso, de fato, tanto na densidade do conteúdo quanto na extensão de tempo abarcada – um tema de dissertação acadêmica num artigo de revista. Mas este é só um modo de pôr a questão. O outro é simplesmente dizer que o velho grego ainda tem algo a nos ensinar sobre nosso passado e futuro." (continue lendo clicando aqui:  Platão na "Escola de Atenas", de Raphael (1509).

Platão na “Escola de Atenas”, de Raphael (1509).

“O presente está grávido do futuro; o futuro poderia
ser lido no passado; o distante é expresso pelo próximo”
(Leibniz, Principes de la Nature e la Grace, 13)

Platão, buscando compreender a essência da sociedade humana, montou um aparato conceitual tão firme e bem armado que, estando suas lentes polidas e focadas, ainda hoje pode ser um excelente instrumento de observação da nossa realidade. Aqui pretendo justamente utilizar este aparato para tentar interpretar o desenvolvimento da civilização ocidental do ponto de vista de sua organização social, desde seu surgimento, cerca de dois mil anos atrás, até os nossos dias. Parece pretensioso, de fato, tanto na densidade do conteúdo quanto na extensão de tempo abarcada – um tema de dissertação acadêmica num artigo de revista. Mas este é só um modo de pôr a questão. O outro é simplesmente dizer que o velho grego ainda tem algo a nos ensinar sobre nosso passado e futuro.

Atenas, século IV antes de Cristo: Platão já publicou alguns livros e é uma figura de certa expressão na cena ateniense. Agora, entrando na maturidade, começa os trabalhos à frente de sua Academia, conduzindo algumas das mentes mais férteis da Grécia, vindas de todas as regiões da península – entre elas, o jovem Aristóteles de Estagira. Já faz algum tempo que seu mestre Sócrates foi julgado e condenado à morte num jogo de cartas marcadas por políticos e autoridades da época. Platão tinha então menos de trinta anos, e não há nenhuma dúvida de que este foi o acontecimento decisivo em sua vida. O encontro com Sócrates o marcou de tal forma que ele, Sócrates, se tornaria o personagem principal de quase todos os Diálogos platônicos. Mas a condenação do velho sábio como criminoso deve ter causado ao discípulo um choque psíquico nada desprezível.

Como filho da aristocracia, Platão respirara desde sua infância uma atmosfera de gratidão pelos antepassados que tinham conquistado a força e a graça de que Atenas desfrutava no solo grego; por toda a vida sentiu-se devedor de homens como Sólon e Homero. Quando Sócrates surgiu em sua vida, deve ter-lhe parecido a própria encarnação dos luminosos ideais helênicos. Mas eis que este mesmo Sócrates é difamado, condenado e morto covardemente pelos próprios representantes das classes de dirigentes e intelectuais que deveriam ser justamente as depositárias e guardiãs da nobre tradição da cidade. Assim, desde o princípio, o pensamento, melhor, a vida de Platão foi marcada por esta fratura profunda entre o real e o ideal. Este seria o drama de sua vida até o fim.

 

A República

A República é um esforço de equacionar esta questão no plano social. O livro, como se sabe, é uma tentativa de desenhar racionalmente uma sociedade ideal. Não se trata, porém, de um sonho utópico, tampouco de um projeto fascista de controle da máquina estatal e muito menos de uma conflagração revolucionária para a tomada do poder. Platão não devia ter, já na época, muitas ilusões a respeito de sua realização.

Não obstante, sua sociedade ideal serviria de modelo e de termo de comparação para avaliar as condições concretas da sociedade real. Uma vez tendo em mira um modelo de perfeição, seria possível medir o estado de saúde ou doença de uma determinada comunidade a partir da sua proximidade ou afastamento do mesmo, e quem sabe prescrever-lhe um remédio. De fato, à medida que se lê o livro, chama a atenção quão pouco Sócrates, o protagonista, se ocupa de questões normativas e institucionais. Sua preocupação era estabelecer os princípios fundamentais que devem sustentar e guiar uma sociedade humana como um todo.

Acreditava que uma vez que estes alicerces estivessem bem firmes no coração dos homens, o resto se organizaria naturalmente –
assegurada uma raiz profunda e um tronco forte, não seria preciso temer pelos frutos. Isto significa que os cidadãos deveriam não só enxergar com clareza tais princípios, mas também possuir a vitalidade espiritual necessária para afirmá-los, defendê-los e lutar por sua concretização. Por isso, grande parte do livro – a maior, na verdade – é dedicada a idealizar um processo de educação integral do indivíduo, ou seja, de formação e fortalecimento tanto da mente quanto do corpo; tanto da inteligência, quanto da vontade e da sensibilidade, processo este que deveria cultivar e potencializar cada uma das etapas da vida humana, desde a infância até a maturidade, forjando assim cidadãos conscientes e determinados. Muito mais do que um projeto de reforma política, portanto, a República pode ser considerada uma empreitada pedagógica e cultural, quando não terapêutica.

O projeto todo tem sua validez e ponto de apoio em um axioma que Platão exprime com uma fórmula singela: a sociedade (Polis) é o homem escrito com letras grandes. A analogia é simples: toda a sociedade é expressão dos indivíduos que a compõem. Seu caráter, princípios e visão de mundo serão a somatória final da multidão de diferentes caracteres, princípios e visões de mundo de cada um de seus membros. “Ou crês acaso que as constituições nasçam do carvalho e da pedra, e não dos costumes de seus cidadãos, os quais arrastam tudo para o lado aonde pendem?”, pergunta Sócrates ao seu interlocutor.

Com efeito, esta premissa devia ser tão evidente para Platão que ele não se dá muito ao trabalho de explicá-la, permitindo-se ser lacônico a seu respeito, coisa rara em se tratando dele. E, a bem da verdade, ela está totalmente ao alcance de nossa mão. De forma inconsciente ou não, valemo-nos deste princípio cotidianamente quando dizemos, por exemplo, que o carioca é isso e aquilo, que o paulista é isso e aquilo outro ou que o italiano é assim ou assado. O que fazemos nestes casos é um processo alquímico de “precipitação” pelo qual lançamos numa solução todas as informações que coletamos sobre os italianos a fim de obtermos um certo “resíduo sólido”. Disso criamos um esquema, um boneco mental emotivo, um pouco histriônico, que fala às largas agitando mãos e braços e dizemos: eis um italiano!

Alguns dizem que isto é só uma generalização, portanto vazia e inútil. Mas isto é precisamente o que é, uma generalização, e eu preciso de tais generalizações porque vivo em um mundo com bilhões de pessoas e o único modo de tornar presente em minha vida a vasta maioria delas é através de esquemas como este, suficientemente abstratos e abrangentes, isto é vazios como um saco, para envolvê-las a todas. E o único momento em que se torna inútil é precisamente no momento em que encontro um italiano. Neste caso, a realidade pede licença e deve ter a precedência, pois agora tenho à minha frente uma pessoa perfeitamente capaz de se definir a si mesma, o que significa que devo calar sumariamente todas as minhas pré-definições a fim de ouvi-la melhor. Aqui, sim, seria estúpido e insensível encaixar o sujeito à força em meu esquema mental, mas estúpido e insensível seria eu e não o esquema. E mesmo que este italiano se revele um sujeito conciso e cerebral como, digamos, um alemão, isto não invalidaria em nada o esquema, já que, para cada um como ele, existem trezentos mil paesani agitadores.

Em síntese, o que Platão nos diz é que se olharmos atentamente o retrato de uma certa sociedade, veremos que os traços que compõem seus contornos e linhas mestras foram riscados um a um com a vida de cada um dos seus cidadãos. Se de fato é assim, para chegarmos à teoria do Estado do filósofo grego, será preciso partir de sua teoria sobre a alma humana.

 

As três dimensões da alma

Uma boa definição para a alma platônica – ou ao menos um aspecto essencial dela –
é que a alma é um conglomerado de tendências diversas mais ou menos coordenadas por um princípio comum. Uma definição que Platão exprimiu símbolicamente na imagem de uma marionete puxada por vários fios em direções diversas e freqüentemente opostas. O homem deve discernir entre estas pulsões, resistir a algumas e se deixar conduzir por outras, a fim de levar a bom termo sua existência. Embora sua variação concreta seja potencialmente infinita, estas tendências podem ser subsumidas em essencialmente três categorias fundamentais, as quais, como veremos mais adiante, correspondem a três dimensões irredutíveis da realidade humana.

A primeira destas categorias corresponde à condição fundamental do homem de ser vivo. Como tal, junto com todos os outros seres vivos, ele é impulsionado por um poderoso instinto natural tanto para a conservação de sua própria vida quanto para a conservação da vida de sua espécie. O primeiro diz-se instinto de sobrevivência, o qual é subjetivamente experimentado como um desejo por comida. O segundo, que o induz à distribuição e perpetuação de seus genes, é denominado instinto de reprodução e é subjetivamente experimentado como um desejo por sexo. Estes dois são os desejos mais manifestamente comuns e imediatos não só para os animais, mas para todos os seres humanos. Ainda hoje, a idéia que muitas pessoas têm de lazer, por mais requintada que seja, não passa muito disso: sexo, comida e bebida.

Este primeiro desejo fundamental, base material de todos os outros, pode ser chamado desejo de viver e, dada a sua condição dual, Platão o localiza simbolicamente no baixo-ventre, precisamente a região do corpo humano entre o estômago e os genitais. Além disso, já que as possibilidades de satisfação destes impulsos são ilimitadas, ele é também simbolizado como um animal de muitas cabeças, as quais assumem variadas fisionomias e humores de acordo com as circunstâncias, podendo ora ser dóceis e gentis, ora agressivas e cruéis. Este animal pluricéfalo move-se entre dois pólos, o prazer e a dor. Persegue o primeiro e foge da segunda, pois para ele são cifras simples: prazer significa vida, dor significa morte.

Até aqui, porém, nada nos distingue de macacos e vacas. Mas, diferentemente deles, o homem tem diante de si a sua vida. Não só a sua vida biológica que busca manter e reproduzir como qualquer outro animal, mas sim a sua vida; a vida, digamos, biográfica. Aqui já não é suficiente satisfazer necessidades e desejos imediatos como no caso anterior, pois quando o homem ergue a cabeça e olha para diante vê um longo espaço entre sua vida presente e sua morte, e chama este espaço de seu futuro. Este este intervalo, que o animal não vê nem pode ver, também tem de ser preenchido com vida – um “projeto de vida”, como se diz -, ainda que este estofo seja precário e provisório, uma vez que é imaginário e sujeito a alterações.

A fim de construir esse projeto o indivíduo precisa acumular recursos, dominar ferramentas e estabelecer relações, e quanto mais ambicioso for o primeiro, mais abundantes deverão ser os últimos. Em outras palavras, a fim de construir seu futuro o homem precisa dominar e coordenar a seu favor uma série de recursos que encontra dentro e fora de si, e por este motivo tal desejo pode ser chamado ambição ou desejo de poder. Quando digo “poder”, digo-o para o bem e para o mal, pois em princípio trata-se de um termo moralmente neutro – um transatlântico precisa de poder para atravessar um oceano tanto quanto um encouraçado precisa dele para bombardear uma cidade.

Ou seja, estou disposto a conceder que esse “poder” seja entendido em seu sentido opressivo e tirânico – pois esta é uma possibilidade real -, desde que o leitor admita também a possibilidade oposta, isto é, o domínio que um pianista tem sobre seu piano, um cavaleiro sobre seu cavalo ou um yogue sobre seu corpo. Estes homens tinham uma meta e uma ambição e, esforçando-se por conquistá-las, adquiriram uma liberdade de uso do piano, do cavalo e do corpo que eu, por exemplo, não tenho. Um pianista é livre para tocar uma fuga de Bach, eu não. O poder dá liberdade. É este o tipo de poder que todo homem deseja ter sobre sua vida. Desta forma, esta tendência é experimentada subjetivamente como um desejo de liberdade.

Assim como o desejo de viver se move buscando o prazer e fugindo da dor, também este se move entre dois pólos, a angústia e a esperança, pois tanto uma quanto a outra estão ancoradas no futuro, já que a angústia é a expectativa da perda de algo que se deseja e a esperança, ao contrário, é a expectativa de satisfazer este desejo. Se nos movemos neste último sentido, o da conquista, experimentamos confiança; se as circunstâncias se movem no primeiro, no da perda, experimentamos medo. Também como no primeiro caso, Platão, buscando uma analogia anatômica, localiza este impulso no tórax, centro gravitacional e operacional do corpo humano e responsável direto pelo movimento das mãos e braços: os membros que agarram e constroem. Era natural que seu símbolo fosse o leão, rei dos animais e emblema de força, poder e liberdade.

Finalmente, há um terceiro e último desejo. O homem não só deseja manter sua vida, ser livre e construir um futuro. Não quer uma vida e um futuro quaisquer, mas sim a melhor vida e o melhor futuro possíveis. Por este motivo, chamo este desejo de desejo de perfeição. Ora, o conceito de perfeição é um conceito absoluto, que não admite gradações. Sabemos bem que não há mulheres mais ou menos grávidas. Do mesmo modo, ainda que informalmente digamos que isto ou aquilo é “perfeito”, a rigor a coisa à qual atribuo perfeição não pode ser mais ou menos perfeita, pois qualquer insuficiência já seria imediatamente uma imperfeição.

Que seria então uma vida perfeita? Se levarmos este conceito à condição absoluta que a palavra requer, é preciso dizer que uma vida perfeita teria de ser uma vida plena, e portanto livre da morte, em uma palavra, uma vida imortal. Qualquer coisa menos do que isso seria já uma imperfeição, e, portanto, não uma vida perfeita. Boa e digna, se quiserem, mas não perfeita. Do mesmo modo, a liberdade perfeita implicaria uma ausência absoluta de resistência à vontade, de tal forma que se possa fazer tudo o que se quiser sem restrições. Este ponto não é imediatamente evidente e pede uma pequena reflexão.

Se alguém resiste à minha ação e reage contra ela, é porque esta ação é interpretada como uma ameaça, um mal, e como tal deve ser combatida. Esta resistência, por sua vez, é algo que se interpõe entre o meu desejo e a coisa desejada, uma interdição à minha vontade, e portanto eu a sinto como sofrimento. Desta forma, o único modo de satisfazer sempre a minha vontade seria sempre querer o bem, pois do contrário ela seria fatalmente retaliada e daí viria o sofrimento. Mas não só: não seria suficiente que eu quisesse e fizesse sempre o bem; seria preciso, em segundo lugar, que eu vivesse em um mundo em que o bem feito fosse corretamente interpretado pelos outros como um bem, pois do contrário, se fosse entendido como um mal, ainda que equivocadamente, provocaria igualmente uma reação contrária e portanto uma interdição à minha vontade. Em terceiro e último lugar, não só eu, mas todos teriam que fazer somente o bem, pois qualquer mal que fizessem iria igualmente contra a minha vontade. Por isso Santo Agostinho diz que a felicidade é “não desejar senão o bem e ter tudo o que se deseja“. Como complemento, eu diria que a felicidade é querer o bem, fazer tudo o que quiser e gostar do que se faz. A felicidade, aliás, é a percepção subjetiva da perfeição ou plenitude, ou seja, um estado de pura satisfação em que não falta nada, uma ausência de qualquer ausência. Por isso o desejo de perfeição pode ser chamado também desejo de felicidade – felicidade plena, absoluta e ilimitada.

Pois bem, como vimos, esta felicidade plena implica necessariamente uma vida absoluta ou imortalidade, e uma liberdade absoluta e irrestrita. E não só uma ou a outra, mas necesariamente ambas, já que uma vida imortal sem liberdade e atormentada por sofrimentos seria um inferno sem fim, e, por outro lado, uma liberdade plena limitada pela morte seria uma contradição em si, não sendo plena, mas sim trágica. Qualquer coisa menos do que isso, por melhor que fosse, seria imperfeita e portanto não satisfaria plenamente nosso desejo de felicidade.

Por isso, falando da felicidade, Platão diz no Banquete: “é necessário que se deseje a imortalidade juntamente com o bem, se é verdade que o amor é amor de possuir o bem sempre”. A perfeição é uma aposta de tudo ou nada. Imortalidade e liberdade ilimitada: ou erguem-se ambas ou caem as duas. Ora, até onde podemos ver, tanto uma quanto a outra parecem estar fora de nosso alcance. Não sabemos se é possível conquistá-las – é bem provável que não, mas ninguém pode garantir. De todo modo, se acaso for possível, isto certamente não depende de nós. Ou melhor, não depende de nós, mas de qualquer coisa superior. Depende de algo ou alguém que seja justamente livre, eterno e perfeito. Este ser supremo, se existe – e é possível que não, mas tampouco alguém pode garantir – é aquele a quem Platão chamava em geral o Bem. Eu lhe chamo Deus.

Esta terceira e definitiva aspiração, Platão localiza-a na cabeça, onde está a nossa face, olhos e boca, aquilo que nos caracteriza como pessoas e nos distingue das outras. E, tal como o animal multiforme simboliza o desejo de viver e o leão o desejo de poder, este desejo de eternidade e plenitude é simbolizado pelo… homem. O “homem dentro do homem” é o símbolo que Platão confere ao espírito, como se quisesse dizer: o homem perfeito dentro do homem imperfeito, ou seja, você e eu.

A obra de Platão está repleta de outros símbolos que representam esta condição. Na imagem da marionete, diz que dentre os diversos fios rígidos que nos puxam por todos os lados, há um único “fio de ouro sagrado” que liga ao alto e é dúctil; é a este que devemos seguir sempre, “sem jamais deixá-lo”. No Timeu, o homem é uma árvore invertida, cujas raízes se afundam nos céus e cujos frutos germinam na terra. Mas a mais célebre destas figuras é certamente o inquieto espírito do Eros.

Filho da deusa da pobreza e do deus da abundância, Eros – “qualquer coisa de intermediário entre a morte e a imortalidade” – move-se por toda parte entre o mundo divino e o humano em busca da Beleza, embora ela sempre “escape de suas mãos”. Nesta perseguição, atravessa verticalmente todas as três dimensões dos desejos humanos. Estes, na verdade, não são senão suas “investidas”. Parte de baixo, dos mais elementares desejos vitais, da busca pelo prazer no sexo e na comida – não é um acaso que o diálogo sobre Eros se passe justamente durante um jantar entre amigos.

Para o Eros de Freud, este é ponto de partida e de chegada. Mas não para o de Platão. Este continua agitando-se e elevando-se em sua busca. Abraça todos os objetos da ambição humana: o vigor atlético, as posses materiais, as realizações intelectuais, a criação artística, o poder político… mas a Beleza continua a escapar de suas mãos e, mulher que é, só se entrega quando está acima de todas as coisas. Eros, portanto, não é só uma inclinação contemplativa. É uma potência criativa. Seu desejo é “procriar com a Beleza”.

Mencionei antes que estas três dimensões do desejo humano – vida, poder e perfeição – correspondem a três estratos irredutíveis de sua realidade. Na primeira o homem age como instrumento do cosmos: integra-o a si através da alimentação e doa-se a ele através da procriação. Na segunda, buscando ser alguém além de algo, o homem se faz homem entre os homens, pessoa única e singular que se distingue entre a massa atomizada de indivíduos. Finalmente na terceira, isto é, na dimensão espiritual, se abre à realidade divina e absoluta, àquilo que o supera e o fascina e que aponta para sua realização plena. Em outras palavras o homem se relaciona com três realidades distintas: a sub-humana ou natural; a humana propriamente dita; e a sobre-humana ou divina.

Isto para a alma. Vejamos o que se dá na sociedade.

 

As três dimensões da sociedade

A origem da sociedade humana não está em nenhum contrato social, mas na necessidade comum dos homens de suprirem-se uns aos outros em suas necessidades particulares. Refiro-me aos diversos bens que todo indivíduo acumula a fim de garantir sua subsistência material e bem-estar: casa, comida, roupa lavada, etc., etc. Se em sociedades primitivas estes bens e a divisão do trabalho correspondente são extremamente rudimentares, em nossa civilização as especificidades profissionais e a produção de bens diversos multiplicam-se a se perder de vista, impulsionados por uma revolução tecnológica que já dura pelo menos três séculos e cujo vigor tende a se expandir indefinidamente.

Em que pesem todas as agruras sociais – ninguém o ignora -, os indivíduos em nossa sociedade são em geral cada vez mais livres para fazer suas escolhas em termos de posicionamento profissional, acúmulo de bens e estilos de vida. A complexidade de nossa vida social torna virtualmente impossível definir o que é necessário e o que é supérfluo na vida de uma pessoa normal – não há generalização possível. E, todavia, permanece a responsabilidade de cada um de discernir, com liberdade de consciência, dentro de suas circunstâncias concretas e em meio a seus desejos e necessidades, o que é importante do que é supérfluo; o que é bem-estar e prosperidade do que é extravagante, caprichoso, excêntrico.

Seja qual for seu grau de complexidade, porém, esta dimensão da vida social pode ser reduzida formalmente a duas funções fundamentais, a produção e a troca de bens. O conjunto destas relações é, em outras palavras, aquilo que chamamos economia – termo que Platão evidentemente não usa. A economia, com sua intensa produção de itens de consumo e sua vasta pluralidade de negócios e transações, corresponde no plano social àquilo que a fisiologia representa para o indivíduo, com seu fluxo contínuo de assimilação, transformação e permuta de substâncias com o meio natural. Ambas, economia e fisiologia, têm por objetivo transformar recursos naturais brutos em bens humanos e promover sua circulação, uma para o organismo social, outra para o individual. E, da mesma forma que a atividade fisiológica, também a economia é representada por um animal de muitas cabeças, ora mansas ora devoradoras.

Mas além de todos os interesses particulares dos indivíduos que compõem uma sociedade, há também um interesse comum. Isso vale para qualquer tipo de associação humana. Uma comunidade econômica privada, isto é, uma empresa, por exemplo, tem, à parte o interesse e a função de cada um de seus sócios e membros, um estatuto e uma meta comuns. Do mesmo modo a sociedade civil tem seus interesses comuns. Bens como a integridade moral, psicológica e física de cada indivíduo, o direito de ir e vir, a liberdade de expressão, a disposição sobre o patrimônio pessoal, a educação, a segurança e assim por diante, são o verdadeiro fundamento e a garantia de todos os outros bens particulares que o indivíduo possa ter ou desejar.

Desta forma interessam a todos sem distinção e pode-se dizer que sua importância independe da consciência individual e do consentimento de cada um dos cidadãos – da mesma forma que a importância objetiva da alimentação para o meu organismo não depende necessariamente de meu estado subjetivo de fome. Por isso são chamados bens comuns ou, no singular, visto que um sustenta o outro, bem comum ou bem público – daí a república romana, literalmente a “coisa pública”. Entramos, portanto, na dimensão do Estado, que tem por função defender e fazer valer a prevalência do interesse comum sobre os interesses particulares, o que encontra sua expressão no direito, isto é, no conjunto de normas comuns, sejam estas positivas ou consuetudinárias.

Ao contrário da dimensão econômica, que é a esfera das relações e divisões do trabalho humano em relação à natureza, esta segunda dimensão, a política, será a esfera que regula propriamente as relações dos homens entre si dentro de uma comunidade como um todo. E como o bem comum diz respeito a todos, sua defesa e realização será também, por este mesmo motivo, dever de todos. Dentro de uma sociedade civil, portanto, a dimensão política é a dimensão do poder por excelência, o qual – ao menos idealmente – deveria ser também a garantia da liberdade de cada um dos cidadãos. Corresponde assim ao desejo de domínio e liberdade na vida individual, e é do mesmo modo representada simbolicamente pelo leão.

Mas além do bem comum de cada sociedade civil, isto é, de cada cidade, nação ou civilização, há um bem absoluto, o qual independe ou, melhor dizendo, está além dos interesses de cada cultura particular tal como condicionada por sua realidade geográfica e histórica. Assim como em uma sociedade qualquer há um interesse comum que prevalece sobre os interesses particulares, do mesmo modo, acima de todas as sociedades humanas, há um interesse comum para toda a humanidade. Os homens não querem viver numa sociedade que lhes possibilite somente sua subsistência material e nem somente suas garantias legais; querem também viver numa sociedade perfeita, plena e absoluta. Uma vez mais, parece não haver garantias de que esta sociedade plena seja realizável – neste ou em outro mundo -, mas, se acaso o for, deverá contar com a assistência de um ser que seja ele mesmo pleno, absoluto e perfeito. Deus novamente.

A organização e objetivação das relações dos homens com esta dimensão absoluta, sobre-natural e sobre-humana, é chamada religião, e, portanto, além da dimensão econômica e política de cada sociedade, há uma dimensão religiosa. É aqui, sobrretudo, que se busca e se conhece o bem absoluto (summum bonum), aquele portanto que orienta e determina todos os outros bens. Finalmente, a dimensão religiosa ou espiritual da sociedade humana será, tal como no indivíduo, representada pelo homem dentro do homem, já que é somente aqui que o destino absoluto dos homens é revelado em plenitude a si mesmos.

Retomando: o homem participa da realidade em três níveis: (1) o sub-humano ou natural, (2) o humano propriamente dito e (3) o sobre-humano ou divino. Na dimensão individual, eles correspondem respectivamente à condição animal, racional e espiritual da pessoa humana. Na dimensão coletiva ou social, correspondem à organização econômica, política e religiosa.

Seria desnecessário dizer, embora possa ser conveniente, que estas três dimensões são distintas, ou seja, que cada uma tem sua esfera de responsabilidade e atuação próprias, não sendo simplesmente fundidas ou confundidas. Tampouco devem ser absolutamente separadas, mas sim unidas e organizadas em uma única realidade total. Além disso, é evidente que deve existir entre elas uma ordem. Se quanto à ordem genética, isto é, a ordem de sua formação no tempo, a condição natural precede as outras duas, quanto à ordem hierárquica, isto é, quanto à organização de suas relações entre si no indivíduo e na comunidade humana, a condição espiritual tem a precedência sobre as outras duas. Assim, na vida do indivíduo a ambição (ou desejo de poder) deve ser orientada para um estado de perfeição ou ideal de vida, sendo que seu desejo natural de prazer deve ser igualmente subordinado e limitado por este ideal. Da mesma forma, em uma sociedade civil, os interesses particulares do indivíduo devem ser subordinados ao interesse comum, e este ao interesse universal da humanidade.

Para dizê-lo em forma breve, utilizando a simbologia que Platão colocou à nossa disposição, um indivíduo e uma sociedade saudáveis serão aqueles em que (1) o homem interior, o leão e o animal de muitas cabeças, estejam em pleno vigor e uso de suas capacidades, e que (2) o homem, que deseja e visualiza os fins absolutos, domine (sem anular) a força do leão que, por sua vez, deve dominar (sem anular tampouco) o animal de muitas cabeças. Esta é, segundo Platão, a finalidade ideal da pedagogia e da cultura, isto é, em primeiro lugar estimular em cada pessoa e em toda a sociedade uma pluralidade diversificada ao máximo de desejos e intenções (como o animal de muitas cabeças); em segundo lugar dar-lhes força para dominá-los (como o leão); e em terceiro apontar-lhes um sentido último pelo qual orientar toda a sua vida, sua força e seus interesses (o homem interior ou espírito). A República é o grande ensaio de Platão neste sentido; embora, a bem da verdade, toda a sua vida e obra o sejam.

 

Conclusão

Disse acima que o estado de saúde do indivíduo e da sociedade depende de que cada uma das três faculdades esteja em bom funcionamento e de que haja entre elas uma ordem hierárquica. Daí se depreende o sistema clássico das quatro virtudes cardeais: temperança, coragem, sabedoria e justiça. O homem precisa estabelecer um certo equilíbrio entre seus diversos desejos de tal modo que cada um seja subordinado ao seu superior (temperança). Para isso, precisa de força para dominá-los e coragem para suportar as adversidades e desafios. A fim de orientar esta força, precisa de sabedoria para discernir entre os diversos princípios e fins de tal modo a estabelecer uma ordem organizada de acordo com o princípio e o fim últimos – a “única coisa necessária” que Cristo indicava a Marta e Maria. A boa ordem e harmonia do todo é aquilo a que Platão chama “justiça”.

Embora esta estrutura ternária não mude, pode haver desordem entre estas faculdades. Neste caso, uma tende a usurpar a função da outra, o que fatalmente provoca uma reação levando a um ciclo vicioso. Há sociedades, por exemplo em que o princípio econômico parece ser o critério primordial das tomadas de decisão. Em outras, a religião assume a função política, degenerando nas piores formas de despotismo teocrático, tal como acontece em algumas variações do Islã. Do mesmo modo, há sociedades que são fortes, mas estúpidas, de modo que podem ser facilmente levadas a usar seu poderio para o mal. Voltaremos a isso mais adiante.

Até agora, porém, temos somente um esquema abstrato. Ainda não o testamos efetivamente na realidade histórica. Não sabemos se é de fato um bom instrumento de observação e tampouco se oferece critérios claros para julgar o bom funcionamento de uma organização social qualquer. Com efeito, no início do Timeu, o próprio Sócrates aponta para este caráter abstrato da sociedade ideal da República, dizendo que gostaria de vê-la em ação em meio à realidade tal como ela é.

Na próxima parte deste ensaio tentarei, portanto, analisar a partir deste esquema platônico as diversas formas de organização social assumidas no Ocidente desde o surgimento da Cristandade até os nossos dias.

Marcelo Consentino é bacharel em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa Croce, doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP e presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Artigo originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 2 – Dezembro de 2008.

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta. 

A história esquecida da pós-modernidade (por Rein Staal)

Filosofia | 30/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em fevereiro de 1943, no Sportpalast de Berlim, diante de milhares de leais membros do partido nazista, Josef Goebbels fez apelo à “guerra total”. A guerra total veio, e poucos anos depois o Sportpalast era parte das ruínas fumegantes do movimento nacional-socialista.

Martin Heidegger, um dos ex-membros mais famosos do movimento, disse que  “a verdade e a grandeza internas” da visão nazista “consistiam no encontro do homem moderno com a tecnologia global”. Ao observar os destroços desse encontro que ficaram depois da guerra, o escritor alemão Romano Guardini viu neles também o corolário e o colapso do projeto damodernidade. Os anseios que inspiraram os fundadores do pensamento moderno – a conquista da natureza por meio da ciência e, em última análise, a conquista da natureza humana por meio da ciência e conseqüentemente a emancipação do poder com relação a qualquer limite moral – foram concretizados de uma maneira que ultrapassou mesmo os sonhos mais loucos. E esse sucesso transformou-se em cinzas antes de poder ter sido desfrutado.

Guardini sentiu-se compelido a escrever o seu clássico trabalho O fim dos tempos modernos e o seu complemento Poder e responsabilidade. A essência da modernidade, afirmava, repousa no “divórcio entre poder e pessoa”. Depois de séculos de reducionismo e espoliação, a pessoalidade foi reduzida à mera subjetividade, à delgada afirmação de valores sem ancoragem ou horizonte. O poder lançou sua sombra sobre o homem por meio de instituições impessoais e processos que seguiam a sua própria lógica desalmada. “Não há ser que não tenha um mestre”, e o poder demoníaco preencheu o vácuo deixado pelo eclipse da responsabilidade pessoal. Uma vez dissipado o capital moral do cristianismo, restou aos modernos pouco que gastar.

Ultimamente, diante das nossas próprias ruínas, temos visto por toda a parte um raciocínio aparentemente similar: o pensamento moderno percorreu o seu caminho, deixando para trás apenas um ceticismo penetrante acerca de toda a visão significativa da natureza e do destino humanos. Tanto o pós-modernismo acadêmico como o popular estabelecem um tabu contra o exame da realidade última das coisas, justificando-se com um relativismo tão leviano que faria Protágoras corar. E, no entanto, Guardini viu que a verdadeira lição corre no sentido contrário: apenas um entendimento cristão pode dar sentido à condição humana pós-moderna.

Noutras palavras, a crise da modernidade foi atingida bem antes dos modismos acadêmicos do nosso tempo. O pós-modernismo que domina a atmosfera intelectual hoje é um fenômeno secundário, algo derivado e não verdadeiramente radical. Guardini viu isso e foi além: fez um apelo a uma nova antropologia filosófica, que pudesse retomar o entendimento cristão da pessoa como agente participativo numa realidade compartilhada e também como um locus de responsabilidade.

Havia outros pensadores trabalhando na mesma seara. Esse renascimento teísta, esse pós-modernismo primevo brotou das reflexões de um grupo de pensadores europeus que encontraram a resposta para a crise da modernidade no patrimônio espiritual do Ocidente. Nenhum deles viu as patologias da modernidade como a expressão final ou real do significado do Ocidente. Pelo contrário, afirmaram que o fim da modernidade revela a realidade radical da liberdade e dignidade humanas. Viram também que o embate entre o reducionismo naturalista moderno e o subjetivismo pós-moderno é uma briga de família prenunciada pelo eclipse da pessoa.

A maior parte desses pensadores eram figuras marginais no seu tempo. Poucos tinham atuação política e nenhum deles demonstrava simpatia pelo nacional-socialismo ou pelo comunismo soviético. Todos – com a ambígua exceção de José Ortega y Gasset – eram teístas. Alguns deles estavam a meio caminho entre o judaísmo e o cristianismo e quase todos tinham consciência da sua dívida para com uma visão cristã da natureza humana e do destino.

Assim, por exemplo, no outono de 1940, na Paris ocupada pelos alemães, Henri Bergson, já idoso e adoentado, ficou horas em pé sob uma chuva gelada à espera da estrela amarela que seria o seu estigma na nova Europa. Um dos poucos filósofos a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, Bergson recusou a proteção do governo Vichy e escolheu abraçar o destino do seu povo. Ele viria a falecer dentro de poucos meses, mas não sem antes renunciar, em meio a protestos, a todos os seus postos e glórias, num passo profundo para alguém que antes tinha sido professor de filosofia numa das maiores universidades da Europa. Não quis converter-se totalmente ao cristianismo, convencido de que a sua cruz na Europa nazista era morrer judeu.

Num francês primoroso, valendo-se de imagens penetrantes e intuições que desafiavam os sistemas e as definições da filosofia técnica, Bergson ofereceu uma crítica contínua ao que nomeou “razão eleática” da modernidade, por causa da cidade natal dos antigos metafísicos gregos Parmênides e Zenão: o desejo de explicar tudo por meio de categorias intelectuais pré-formadas que não deixam espaço para as experiências humanas – a liberdade, a memória, o amor, o drama e a comédia – que resistem à razão fria e impessoal.

A sua última grande obra, As duas fontes da moral e da religião, publicada em 1932, propunha que toda sociedade, tal como toda alma, podia estar “fechada” ou “aberta” à experiência da transcendência pela qual os seres humanos são capazes de romper os ciclos e processos naturais. Essa abertura, concluía Bergson, só podia fundamentar-se, em última análise, num entendimento cristão da pessoa e da fraternidade universal. E foi para expressar tal fraternidade que ele escolheu morrer usando a estrela amarela.

Mais ou menos na mesma época, um tipo simples que vivia uma vida simples nos Alpes suíços chegou a uma conclusão similar à de Bergson, mas ainda mais radical, revestida de uma linguagem mais poética. Em 1934, uma obra memorável intitulada A fuga de Deus foi publicada por Max Picard, um judeu que mais tarde se converteria ao cristianismo.

Picard viu o Ocidente secular e moderno como um sistema de amnésia espiritual que se autoperpetua: histericamente ocupado sem realizar nada, cheio de comunicação mas falto de diálogo, cheio de brilho e sons altos mas ao mesmo tempo sem sentido e mudo. O amor, a amizade e a lealdade existem apenas como fragmentos no mundo em fuga de Deus: retalhos evanescentes de experiências que vêm e vão. Eis o porquê de as palavras, nos tempos modernos, se terem tornado meros sinais, sem conexão com a pessoa que as pronuncia: “sussurros e sinais substituem as palavras no mundo da fuga… Se dois navios desejam comunicar-se, pequenas bandeiras são içadas numa corda; assim também as palavras tremulam nas frases. Quando dois homens falam um com o outro usando sinais em vez de palavras, a distância entre eles é tão grande quanto a distância entre dois navios: há todo um oceano entre eles, o oceano da fuga”.

A desconstrução impessoal supõe a reconstrução pessoal. As palavras dispersas e fragmentadas devem ser reunidas em oração e enviadas a Deus, pois “apenas diante dEle que é eterno e completo em Si mesmo os mortos e fragmentados podem tornar-se um todo novamente”. Apenas num mundo constituído pela fé num Deus pessoal as relações entre as pessoas humanas desenvolvem consistência e integridade.

Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Picard publicou Hitler em nós mesmos, em que diagnosticava aquilo que Hannah Arendt viria a caracterizar como a “banalidade do mal”. Picard detém-se na figura do nazista cumpridor que, no contexto da sua ocupação profissional como atendente, seria capaz de atravessar a rua correndo para devolver uma moeda a alguém que a tivesse esquecido no balcão de sua loja, mas que seria capaz, noutras circunstâncias, de levar a cabo com a mesma facilidade uma ordem de homicídio em massa. E Picard vai mais longe: vê o nazismo como a expressão última e demoníaca da fragmentação humana, da redução da pessoa a uma entidade aleijada e fechada, apenas capaz de relacionar-se com os outros quando os manipula como objetos.

Enquanto Picard viveu e escreveu na sua montanha na Suíça, os cafés e salões de Paris eram o ponto nevrálgico da história intelectual do século XX, enriquecidos por montes de pensadores émigrés – principalmente russos na década de 1920 e judeus de toda a Europa na década de 1930. Um dos maiores dentre eles foi um judeu russo chamado Lev Shestov, cujos últimos escritos falavam de “cavaleiros da fé” como São Paulo e Martinho Lutero. Shestov está entre os mais ferrenhos críticos do racionalismo nas letras do século XX. Exilado da Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques, via a Primeira Guerra Mundial e as penúrias do país natal como uma lição acerca da loucura do orgulho humano, especialmente a pretensão intelectual de que a razão humana por si só pode organizar e controlar toda a realidade.

Shestov anunciava a necessidade, nas suas palavras, de uma “filosofia bíblica”, que renunciaria à busca filosófica pela explicação da razão necessária das coisas e, em vez disso, poria ênfase na liberdade humana que deriva da liberdade ilimitada de Deus. A filosofia começa não no maravilhamento, mas no desespero, na noite do silêncio e no deserto da solidão. Shestov tomou o Salmo 130 como ponto de partida: “Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração… Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra”.

O último livro de Shestov chama-se Atenas e Jerusalém, em que o autor contrasta o templo da razão auto-suficiente com a cidade da justiça e mede forças com todos os filósofos, de Heráclito a Husserl. Voluntariamente cego para a possível síntese entre razão e revelação, Shestov falou em voz profética a um mundo em que a vida intelectual foi consistentemente desarraigada das suas fundações espirituais. O seu pesadelo de um mundo moldado pelo racionalismo foi descrito por seu amigo Nicolai Berdiaev como “um universo arredondado em que não há mais individualidade, risco ou criação nova”.

Para pensadores mais jovens como Walter Benjamin, Leo Strauss e Alexandre Kojève, Shestov foi a alternativa teísta mais sólida em meio às correntes atéias dominantes. Benjamin escreveu para Gerhard Scholem acerca do poder do fideísmo de Shestov. Strauss viria a escrever mais tarde um livro sutil em que inverteria o título da obra final de Shestov e Kojève tornar-se-ia um teórico e ativista daquilo que descreveria como “o estado universal e homogêneo”. É possível que a visão de Strauss sobre a história da filosofia política, bem como a sua visão de uma ordem tecno-burocrática universal no fim da História, tenham surgido em parte como uma reação à filosofia bíblica e personalista de Shestov.

Outra voz proeminente da Paris do entre-guerras foi Gabriel Marcel, que passou gradualmente do racionalismo neo-hegeliano à Igreja Católica e estabeleceu-se como um grande filósofo cristão. Em relativa obscuridade (ele não publicou nada sequer remotamente sistemático até a década de 1940), Marcel esboçou os grandes temas da filosofia teísta pós-moderna. A condição humana, pensava, deve ser entendida nos termos de uma participação que transcende a antítese entre sujeito e objeto que infestava a filosofia moderna. Cada existência humana participa de uma realidade marcada pela tensão entre sujeito e objeto: isolemos um deles e estaremos excluindo o outro. E então só restará uma abstração, que é um indivíduo solipsista ou um objeto impessoal.

A existência humana é essa tensão realmente vivida; podemos distinguir o sujeito do objeto, mas não podemos concebê-los isoladamente. Os seres humanos não têm outra natureza que não seja viver uma condição. A sua natureza e a sua liberdade são inextricáveis. Embora seja freqüentemente rotulado como o fundador do existencialismo, Marcel é melhor entendido como alguém que construiu a sua filosofia sobre uma compreensão cristã da pessoa como um “ser encarnado”, que não é nem tem um corpo, mas que é inconcebível fora da sua misteriosa relação com um corpo.

Como o grande filósofo judeu amigo de Shestov, Martin Buber, Marcel acreditava que a realidade pessoal recebe a sua expressão mais clara quando um ser dirige-se a outro usando o vocativo, a segunda pessoa. A primeira pessoa, o eu, pode ser apenas uma máscara para sensações e impulsos transitórios, ao passo que identificar as pessoas como ele,ela ou eles é começar a transformá-las em objetos. A condição de presença mútua, a segunda pessoa, o tu ou o vós, é o pressuposto de qualquer relação marcadamente pessoal: amor, amizade, fraternidade, cidadania e louvor. Deus é o Tu absoluto, que é uma presença pessoal, ainda quando escondida, e que nunca pode ser para nós um simples objeto, ou seja, um ídolo.

Todas as teorias que afirmam explicar a causalidade da ação humana acabam por ser uma abstração pessoal da razão de quem as pensa. Eis a mais pura verdade acerca dos diferentes tipos de relativismo e reducionismo, que ostentam uma espécie de “exceção garantida por contrato” que lhes confere um status epistemológico que é negado aos outros. “Mistério”, para Marcel, denota essas experiências que desafiam qualquer explicação baseada na razão instrumental ou causalidade natural. Nesse sentido, sobressaem as realidades da identidade pessoal e da ação humana, inclusive o pensamento.

Também o espanhol Miguel de Unamuno, que passou parte da década de 1920 exilado em Paris, escreveu uma obra memorável às vésperas da Primeira Guerra Mundial: Do sentimento trágico da vida. Nela, como Shestov, faz um apelo por uma filosofia que venha das profundezas do abismo. Na sua crítica à civilização secularista contemporânea, Unamuno comparou o típico intelectual moderno a um parasita intestinal que nega a existência da visão e da audição porque sobrevive sem ambos. Por séculos, os modernos desfrutaram das compensações da liberdade e da dignidade enquanto propunham teorias que as excluíam. Numa formulação particularmente elegante e perigosa ao mesmo tempo, Unamuno escreveu (jogando com a semelhança entre os verbos espanhóis creer e crear) que os homens criam Deus quando crêem num Deus pessoal, um Deus que por sua vez já os criou.

O outro grande pensador espanhol da época, José Ortega y Gasset, proclamou, à sua maneira mais leve e jocosa, a morte daquilo que chamava de “tradição moderna” – as tentações gêmeas do pensamento moderno: o relativismo e o racionalismo. Ortega viu que os sistemas racionalistas predominantes no pensamento moderno eram tirânicos, que mascaravam a ambição de subordinar a contingência e a espontaneidade da vida à lógica da teoria. Ortega y Gasset também identificou o  relativismo como “teoria suicida”, hipócrita e inconsistente em si mesma. A sensibilidade moderna é “desconfiança e desprezo por qualquer coisa espontânea e imediata; entusiasmo por todas as construções da razão”.

A fim de superar as teorias modernas intelectualmente falidas, Ortega propôs uma doutrina que chamou por vezes de “razão vital”. A verdade do relativismo é que cada pessoa é dona de um ponto de vista único; a verdade do racionalismo é que tais pontos de vista miram uma realidade suprapessoal. Embora use um vocabulário distinto, Ortega elaborou uma teoria da participação similar à de Marcel. No epílogo da Idade Moderna, o Ocidente precisa aprender a reconhecer as raízes da patologia da modernidade tardia, escrita em toda a fisionomia assustada do século XX.

Há uma série de razões pelas quais esses pensadores não são mais discutidos hoje. Apesar de alguns deles terem se conhecido, não formaram uma escola organizada de pensamento. Embora alguns tenham sido professores universitários, escreveram em sua maioria como intelectuais públicos, não como acadêmicos profissionais. A maior parte deles dominava com maestria a prosa em sua língua, o que suscitava suspeita entre os acadêmicos profissionais. Poucos eram ativistas políticos. Nenhum deles aderiu ao comunismo ou ao nazismo.

Além do mais, todos esses pensadores – novamente com a possível exceção de Ortega -acreditavam em Deus. O seu pensamento foi sendo formado nas décadas que culminaram com a Segunda Guerra e cristalizou-se logo após o seu fim. Os traços mais críticos do retrato que fizeram da modernidade e da pós-modernidade talvez tenham sido melhor capturados pelo psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz Viktor Frankl, que escreveu que a sua geração pode conhecer a existência humana como algo que abrangia tanto o ser que inventou as câmaras de gás como aquele que entrou naquelas câmaras de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael”.

Na tentativa de uma explicação, Frankl diagnosticou as patologias siamesas da “objetivação da existência” e da “subjetivação do logos”. A primeira descreve a redução do homem a um joguete das forças impessoais e que não é conhecido como um tu. A segunda descreve a redução do sentido à subjetividade humana. O racionalismo e o relativismo, como notou Ortega, são um duplo aspecto do pensamento impessoal a conspirar em favor do esfacelamento da identidade pessoal e da erosão da responsabilidade pessoal.

É neste contexto que podemos apreciar toda a força do alerta feito por Guardini, de que o homem moderno defronta o chamado de dominar o poder. Esses pensadores, de uma maneira ou de outra, contemplavam a existência humana como uma forma de participação. O trabalho deles reflete, em certo sentido, o que hoje chamaríamos de sensibilidade pós-moderna, mas que está fundamentada numa antropologia filosófica inconcebível fora de uma compreensão cristã da pessoa.

O pensamento impessoal empala a mente ou num dos dois chifres do dilema esboçado acima – no caso do pensador realmente rigoroso – ou em ambos simultaneamente, o que é mais provável.

O fim da modernidade não marcou uma guinada do racionalismo iluminista em direção à subjetividade pós-moderna. A própria modernidade pôs o homem face a face com tudo aquilo que estava em jogo na oposição entre pessoal e impessoal. O que foi desacreditado não foi a razão, mas a hybris dos grandes sistemas impessoais, seja o reducionismo naturalista do cientificismo moderno, seja o ilusionismo dialético que as ideologias modernas operam na mente.

A intuição central dessa renascença teísta – desse pós-modernismo primevo – é a irredutibilidade da pessoa. As patologias da vida moderna, desde a atrocidade da guerra total até a banalidade da burocracia, trouxeram à luz a demanda de uma existência pessoal. Esses escritores teístas viam a condição humana como um universo aberto constituído de individualidade, risco e novas criações. O fim da modernidade escancarou a realidade radical da liberdade e dignidade humanas entre as tentativas, práticas e teóricas, de aniquilá-las.

O aviso de Guardini de que não há um ser sem um mestre captura o caráter dual da Imago Dei que está no cerne do mistério da identidade pessoal. Como seres encarnados e arraigados na nossa própria natureza, somos responsáveis por honrar essa natureza em todas as nossas obras. A história do mundo moderno termina com uma nota que não é de cinismo nem de resignação, mas de esperança e responsabilidade.

Copyright © 2008 First Things (dezembro de 2008).

 Rein Staal é professor de Ciências Políticas no William Jewell College.

Tradução de Grace Guimarães Mosquera, bacharel em Lingüística pela FFLCH-USP.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Jun/2009. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/a-historia-esquecida-da-pos-modernidade/

Apresentação Núcleo de Artes

Sem Categoria | 21/12/2014 | |

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Vivemos numa “cultura de repúdio”, segundo Roger Scruton, e isso dá bem o tom da forma como o Ocidente, cada vez mais e preocupantemente, esforça-se por repudiar seus valores estruturais, a começar pelos judaico-cristãos. Esse repúdio, ao fim, redundará num empobrecimento moral ou epistemológico, mas, antes, passará pelo empobrecimento estético, independentemente de qualquer influxo religioso.

Sem um contato vital e profundo com a tradição e os textos sacros, ficaremos cegos, surdos e mudos para uma boa compreensão de dois milênios de arte e de civilização. Como já acontece com a arte contemporânea. Simbolicamente, nesse campo, o ponto da virada, rumo a essa cultura de repúdio, foi o pinico de Marcel Duchamp: a arte desceu do nível do teto da Capela Sistina ou dos ciprestes do Van Gogh, passou pelo dito pinico e foi parar no esgoto da frivolidade e da bizarrice do cotidiano. A imaginação humana realmente não tem mais limites estéticos e qualquer coisa vira um ato de expressão artística.

A tal “loucura da arte” (Henry James) pode ser resumida no clichê expressão/repressão, o qual domina grande parte das discussões analfabetas do nosso tempo. Como somos “herdeiros de uma sensibilidade romântica superada”, acredita-se, hoje, que a arte deve ser “autêntica” e que a “autenticidade” consiste em abrir as portas da alma (na prática, são dos porões), sair por aí oferecendo nossos “sentimentos” e “emoções” numa bandeja de prata e, por via dessa “catarse”, libertarmo-nos de nossas neuroses mais profundas.

Isso está mais para terapia do que arte. Aliás, boa parte da arte moderna não passa de uma pornopopéia de pinturas, esculturas e obras que refletem e concretizam uma espécie de “sessão artística de psicanálise”. Eliot já disse que a arte não é uma questão de expressão ou repressão, mas de disciplina e sublimação: a destruição da arte e a pouca relevância que ela tem dado na retratação da beleza é um claro sintoma de um problema que supera o estético e que envolve uma crise de existência humana. É nessa resposta que o IFE CAMPINAS pretende trilhar propostas de soluções no campo estético contemporâneo.