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Extraordinariamente comum

Opinião Pública | 03/07/2019 | | IFE CAMPINAS

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De tempos em tempos a humanidade cria e se apega a determinadas teorias, visões de mundo e modismos que parecem conferir ao homem uma distinção que os faz melhores que seus antepassados. Isso não é novo, mas a partir do Iluminismo, no século XVIII (ele mesmo um modismo filosófico, com muitos defeitos, mas também com qualidades interessantíssimas, é preciso dizer) esse processo se acentuou e se normalizou.

Assim, os homens “ilustrados” do “Século das Luzes”, imaginando-se melhores e mais evoluídos que seus antepassados cunharam preconceitos grotescos contra praticamente tudo o que a humanidade havia produzido de conhecimento e de civilização até aquele momento, ignorando por completo o próprio processo de produção do saber que é algo gradativo e construído a várias mãos durante muito tempo. Os iluministas supunham que ao acaso suas conclusões eram fruto de suas mentes, mais elevadas porque iluminadas pela luz da razão, como se antes a razão tivesse sido desprezada por completo. A Idade Média, período em que floresceu a arquitetura gótica e as universidades, desenvolveu-se o método científico dedutivo, criou-se o primeiro sistema bancário, intensificou-se um intercâmbio cultural e comercial com o Oriente, ampliado largamente pela ação das Cruzadas, tempo em que os grandes autores clássicos, como Aristóteles foram redescobertos e traduzidos para o latim, enfim, um período riquíssimo sob vários aspectos, passou a ser identificado no Iluminismo pela pecha de “Idade das Trevas”, sob o pretexto de que a Igreja aprisionava as pessoas na ignorância por ser a detentora dos meios de educação, ou seja, das escolas, universidades e das maiores bibliotecas. Quando afirmavam isso, os iluministas ignoravam solenemente e, propositalmente, as célebres “quaestinoes disputate”, sistema de debate público e livre de ideias no âmbito das universidades e sob o olhar da Igreja.

Como antes, também hoje há uma busca muito grande por novidades e modismos que desfiguram a realidade e criam impressões ou simulacros dela que são tomados como se fossem ela mesma. Os antigos filósofos gregos conseguiam compreender o mundo à sua volta e buscar explicações racionais justamente porque tinham um afiado senso de realidade e dela partiam para construir suas análises. Falhando nos pressupostos, não se pode acertar nas conclusões. Esse é o maior problema de muitos que pretendem analisar qualquer coisa, desde sua própria vida até a situação política do país, pois só a investigação rigorosa da realidade é a via de acesso à verdade. Pensando no caso da masculinidade, para citar apenas um exemplo hodierno, vemos um fenômeno interessante que criou uma espécie de código de conduta em que o indivíduo para se afirmar como tal necessita de um combo composto por: tatuagens, barba, crossfit, bacon, esportes radicais, falas politicamente corretas… Isso para citar apenas alguns lugares comuns nessa visão do que seriam práticas desejáveis para um homem. Nada contra ninguém, nem nada disso, mas isso é apenas uma caricatura do que é ou deve ser um homem. Os verdadeiros homens os encontramos nas situações mais ordinárias, como os muitos pais de família que saem cedo para trabalhar, pegam ônibus lotados, enfrentam dificuldades financeiras, tem de se equilibrar entre as relações familiares e de trabalho, precisam fazer sacrifícios diários e constantes para que sua família, em especial seus filhos pequenos, se os tiver, possam ter uma vida minimamente digna. Ser uma pessoa comum, com desejos e pretensões comuns levadas à cabo pelo esforço, pela dedicação e pelo trabalho, aceitando sacrifícios e vencendo obstáculos, isso é a realidade que faz um homem de verdade, o resto é modismo pré-fabricado ideológica ou plasticamente. A conexão da pessoa com a realidade é a única força capaz de produzir coisas extraordinárias porque partem das coisas comuns e ordinárias e não o contrário.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 03 de julho de 2019, Página A2 – Opinião.

A lição de Balzac

Opinião Pública | 09/08/2017 | | IFE CAMPINAS

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Um hábito salutar há muito tempo esquecido – especialmente numa era de redes sociais – é o compartilhamento de impressões ocasionadas pela leitura de um romance. Contrariamente às tendências que buscam transformar o comentário de obras literárias em uma atividade exclusivamente acadêmica e que, forçosamente, exclui os simples mortais, penso que a finalidade principal da leitura e do comentário dos clássicos da literatura seja esclarecer, para o indivíduo comum, experiências que ele já viveu, ou que poderá viver, mas que não tem condições de verbalizar. Talvez nunca isso tenha ficado tão claro para mim quanto ao terminar de ler o romance Memórias de duas jovens esposas, de Honoré de Balzac, um retrato vivo e tocante dos motivos que podem levar um casamento à felicidade ou à infelicidade.

A história se passa na França, alguns anos depois da queda de Napoleão Bonaparte, no período conhecido como “restauração”, época em que a antiga monarquia e a antiga nobreza tentaram, sem sucesso, restaurar as instituições que vigoravam antes da revolução francesa. Nesse cenário, Renée e Louise, duas amigas de infância, membros de famílias aristocratas, trocam cartas durante vários anos abrindo seus corações a respeito de suas vidas amorosas. Enquanto Louise, após sair de um convento de irmãs carmelitas, deseja encontrar um príncipe encantado que a ela se dedique como num conto de fadas, Renée, que também havia estado no mesmo convento, aceita um casamento arranjado – por motivos financeiros — com um homem mais velho, a quem ela não ama.

Não sendo eu pessoa isenta das influências que um ambiente impregnado de sentimentalismo barato como o nosso infunde sobre as pessoas, imaginei, em um primeiro momento, que Renée seria profundamente infeliz, ao passo que Louise – que seguia seu coração – estava no caminho certo em busca da felicidade. No entanto, com toque de gênio, Balzac nos surpreende com uma profunda lição no desenrolar da trama: Renée não se rebela contra o seu destino, mas decide amar o homem com quem se casou quase sem ser consultada e, com o passar dos anos, descobre na dedicação ao esposo e na maternidade um conjunto de alegrias que vão enchendo a vida de sentido e tornando-a não uma pessoa amarga, mas uma mulher verdadeiramente sábia.

Louise, de outra parte, logo encontra o príncipe encantado que desejava, Felipe Henárez, o Barão de Macumer, um nobre espanhol refugiado na França após participar de uma revolução frustrada contra o rei Fernando da Espanha. O amor de Macumer por Louise nada deixa a desejar se comparado aos sacrifícios dos príncipes dos contos de fadas: para ele, a amada adquire feições de verdadeira divindade e, ao se casarem, ela o trata como verdadeiro escravo que satisfaz todos os seus mínimos caprichos. Não seria de bom tom em um convite à leitura contar o final de uma obra que eu gostaria de ver lida e divulgada entre os jovens de hoje, mas adianto que a vida amorosa de Louise passará por grandes tragédias, todas antevistas e alertadas por sua amiga Renée.

Quando examino os relacionamentos amorosos de hoje em dia, vejo muitas pessoas, que tiveram sua sensibilidade corrompida buscando príncipes ou princesas encantados e esquecendo-se que o casamento é uma relação que envolve grandes sacrifícios de ambas as partes, mas que, conforme já dizia Aristóteles, raízes amargas podem produzir frutos doces. Como muitos temem esse tipo de sacrifício, não é de se admirar que hoje em dia tantas pessoas substituam o casamento pela mera união estável – facilmente desmanchada quando terminar a “química” – e a geração de filhos pela adoção de animais. Também nunca vimos os consultórios psicanalíticos e psiquiátricos tão cheios. Reflitamos, portanto, sobre a lição de Balzac.

Fabio Florence, 32 anos, é professor de filosofia, sociologia e idiomas e membro do IFE Campinas (florenceunicamp@gmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 09/08/2017, Página A-2, Opinião.

[resenha de livro] Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo G. Blasco)

Literatura | 16/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Dominique Lapierre: “Muito além do amor”. Salamandra. São Paulo. 1991. 376 pgs.

muito além do amorA tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629