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Um punhado de pó – por Luiz Felipe Pondé

Filosofia | 17/03/2017 | | IFE BRASIL

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Imagem: ilustração que acompanha o artigo na versão impressa, por Paulo von Poser.

Imagem: ilustração que acompanha o artigo na versão impressa, por Paulo von Poser.

 

Pois quem pode saber o que é bom para o homem na vida, durante
os dias de sua vã existência, que ele atravessa como uma sombra?

Eclesiastes 6,12

Abertura

O Eclesiastes deixa claro que o Deus de Israel não gosta de covardes.

Ao dizer isso, não pretendo erigir-me em especialista em Bíblia, no sentido de alguém que busque a todo o custo a literalidade histórica dos textos ou queira fazer a arqueologia de cada palavra; também não o sou no sentido de alguém que aplique cada versículo às incongruências da vida a título de operação salvífica; nem pretendo falar aqui a partir de alguma “burocracia da objetividade”.

Quem sou, então? Penso encontrar-me na mesma posição do comum dos mortais que procuram um sentido pessoal na leitura das Escrituras, e que eventualmente chegam à conclusão de não passarem daquilo que em inglês se chama suffering jokers – talvez um daqueles fools, os bobos da corte ou “loucos” que, mascarados sob o absurdo do que falam, às vezes têm mais a dizer sobre o real do que alguns pretensos sábios.

Quando me pergunto quem escreveu o Eclesiastes – para além de a resposta concreta já ter variado desde Salomão ou alguém de sua elite até qualquer membro de qualquer elite na Palestina ou fora dela por volta do século III a.C. -, assumo que foi Deus. Não o faço por razões confessionais (uma das vantagens da conversão a Atenas é a liberdade de espírito perante qualquer ortodoxia), mas antes de tudo pelo “efeito filosófico” da idéia de Deus, que me permite ver no texto uma mensagem dAquele que tudo sabe e tudo pode. Nessa mensagem descubro então uma análise precisa da condição humana que, além do mais, é capaz de despertar uma emoção profunda, uma emoção que o Antigo Testamento sempre descreve como oriunda das entranhas do homem.

Se, filosoficamente, somos incapazes de estabelecer a verdade cognitiva e epistêmica última acerca de nosso destino, a verdade visivelmente empírica encontra-se resumida no Eclesiastes. Por isso, posso assumir que sua filosofia é pura empiria, pura experiência prática humana. Assim, a minha questão é: O que quer Deus dizer-me com este texto? Como Lutero, entendo que ele nos fala da contingência e da graça, da dinâmica da graça, e é sobre esta que desejo tratar aqui.

Filosoficamente, o conceito de graça implica, além da noção de dádiva, o princípio da insuficiência ontológica da criação e seu “resumo”, o Nada. Ou somos graça ou somos vazio. Neste sentido, penso que no empirismo do Eclesiastes – na medida em que ele descreve de modo nada idealizado a condição humana – associam-se uma cosmologia ou uma ontologia da gratuidade com uma filosofia das virtudes.

É como se a contingência pedisse coragem ao homem, essa coragem que é uma das virtudes centrais e, filosoficamente, se identifica com o amor. E é por isso que, ao abordar o Eclesiastes, o leitor deve preparar-se para ter medo.

 

Estado da questão

A fortuna crítica descreveu o Eclesiastes de várias formas: helenista, cético, pessimista, agnóstico, contraditório, depressivo. Seus defensores caracterizam-no como um otimista relativo, sadio (e concordo com esse caráter saudável), crítico da elite do seu mundo, e o mais contemporâneo nosso dentre todos os textos bíblicos, pois sua busca pelo significado da vida o torna próximo do existencialismo de Kierkegaard e da psiquiatria de Jaspers, tanto no que se refere à angústia como ao conceito de naufrágio da existência como primeiro passo para a cura psicológica ou espiritual.

Algumas controvérsias apontam para um possível caráter bilíngüe do autor: hebraico e aramaico, hebraico e grego, ou aramaico e grego. Não entrarei aqui nesta questão.

Outra frente é a polêmica sobre se podemos ou não dizer que existe uma estrutura geral que sirva como ponto de apoio para a leitura sistêmica do texto. Seria o Eclesiastes uma colcha de retalhos, feita sem um objetivo estrutural, ou seria apenas mais complexo do que outros textos antigos?

Quanto aos gêneros literários, o livro comporta desde reflexões, provérbios, aforismos, sentenças da tradição, instruções de sabedoria, lamentações, bênção, louvor, alegorias, até dados autobiográficos e biográficos. Todos concordam em que o autor seguramente devia dominar todos esses distintos estilos, bem como as complexidades dos idiomas de origem. Parece razoável, pois, pressupor que estamos diante de um texto unitário, mas requintado e sutil sob uma certa aparência de desorganização.

 

O lugar de onde falo

Apesar de fazer parte da estrutura acadêmica, confesso que sou um descrente dela. Com essa descrença não quero negar a existência de almas bem-intencionadas e capazes, mas apenas reafirmar um fato estrutural de ordem sócio-política: a instituição acadêmica esmaga o conhecimento, sofisticando aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “idiotas da objetividade”.

Faz parte dessa sofisticação supor que, se conheço “a fundo” o modo como homens e mulheres compravam, produziam ou vendiam frangos ou plantas, a forma como se beijavam ou faziam sexo, ou o tipo de espancamentos que praticavam, etc., conhecerei melhor o teor do texto em questão. Discordo. Se agisse assim, acabaria escrevendo mais sobre as crenças ideológicas que me movem no infinito círculo hermenêutico (como diria Joseph Ratzinger) do que sobre a possível pureza da verdade político-social do texto bíblico.

Nada disso me interessa, porque não estou buscando pureza alguma: estou-me posicionando diante de um texto da tradição que fala da minha condição enquanto ser humano que pensa dentro do cosmos. Se estivesse a fazer uma “arqueologia”, poderia até assumir a importância, em algum nível, da identificação dos fragmentos contextuais da época; hoje, porém, penso que grande parte do totalitarismo dos idiotas da objetividade e da sua burocracia advém exatamente da contínua repetição desse “mito do contexto”.

Foi devido a esse mito que chegamos a perguntas como estas: “Por acaso seria fruto das ‘estruturas de poder’ o fato de a experiência cotidiana desaguar quase que necessariamente em um drama da ‘vaidade’ como categoria ontológica e psicológica profunda do ser humano? O gênero sexual determina as semelhanças de destino entre o sábio e o insensato? A matéria orgânica torna-se inorgânica por causa da estrutura econômica? Ou a consciência alocada na matéria orgânica desfaz-se por imposição política ou de gênero?”

A leitura que faço, pelo contrário, procura estar fundada na própria atitude do texto diante do mundo. O Eclesiastes ajuda-me a enfrentar a minha condição humana sem mentir sobre ela. Apesar de correr o risco de soar “anti-humanista”, prefiro enfrentar um Deus que me diz que sou vão, uma nuvem que passa, um vento vazio, a um deus implicado no “marketing do bem”, essa última esperança mentirosa da dignidade intrínseca do ser humano.

Por isso, dizer que o Eclesiastes reflete a cosmologia bíblica é afirmar que ele narra o vazio do ser contingente que em nós toma consciência de sua real condição, estabelecendo um diálogo silencioso entre o Homem e o Nada sob os olhos d’Aquele que é. É uma física do pó que se olha no espelho e vê a sua imagem-mancha a desaparecer lentamente. E é perguntar-se: Qual a virtude possível desse grão de pó?

Segundo a tradição judaica, o Eclesiastes, o Quohelet, deve ser lido quando estamos na colheita e quando logramos uma vitória de qualquer tipo. Neste sentido, diante da modernidade e da sua obsessão pelo sucesso infinito da técnica, lê-lo é identificar a mentira profunda que está associada à arquitetura íntima desse sucesso. Contra a “tecnologia da alegria”, lembremo-nos de que “a sabedoria mora na casa da melancolia” .

Afirma Kierkegaard que todo o conhecimento verdadeiro sobre si mesmo começa com um profundo entristecimento. Enfrentemos, pois, essa ontologia da vaidade.

 

Are you a Mensch?”

Para boa parte da modernidade, o Eclesiastes é apenas uma espécie de hino ao carpe diem. Mas isso apenas mascara a incapacidade de ver – ou o desejo de não ver – que nos interpela muito mais profundamente, a nós que, na expressão de Nelson Rodrigues, somos “pulhas”.

Para entender bem o Eclesiastes, vale a pena aproximar-nos de outras fontes, enraizadas na modernidade, mas que enfrentam o mesmo drama existencial do autor antigo. Encontraremos essas fontes de preferência na literatura; o escritor, ao ser alguém que precisa ter uma abertura amorosa para o concreto, não pode discutir idéias esboçando teoremas, mas deve fazê-lo narrando dramas.

O Eclesiastes, em certa medida, faz isso mesmo: narra o drama de alguém que, acreditando que a sua “sabedoria” tem algum valor, descobre que ela sempre lhe passará uma rasteira, pois é incapaz de mudar o seu destino:

 

Eu notei que um mesmo destino

espera [o sábio e o insensato].

Por isso, disse comigo mesmo,

que tudo isso é ainda vaidade.

Porque a memória do sábio

não é mais eterna que a do insensato,

e, passados alguns dias,

ambos serão esquecidos.

Mas então? Tanto morre o sábio

como morre o louco! (2,15-16)

 

No exame da literatura relacionada com esse texto, poderíamos mencionar Machado de Assis, que, como é sabido, considerava o Eclesiastes um de seus livros favoritos; ou o já citado Nelson Rodrigues; ou ainda um T.S. Eliot, que usou extensamente as Escrituras.

Mas, pelo contraponto, vejamos um livro lançado mais perto de nós, em um momento em que o próprio Eclesiastes foi usado como justificativa para uma nova era de “paz e amor” que terminou em amargo desespero. É nessa mesma década de 1960 que encontramos Herzog (1964), de Saul Bellow, o grande livro sobre a falência do homem moderno e, mais especialmente, do scholar acadêmico.

Poucas vezes se fez com mais finura a crítica e o elogio do intelectual que, incapaz de lidar com os traumas da vida, se esconde no pedantismo do conhecimento, percebendo ao mesmo tempo que é um castelo construído sobre a areia.

O título se refere ao personagem principal, Moses Elkanah Herzog, estudioso das relações ocultas entre Romantismo e Cristianismo. Já uma vez divorciado, ele é informado de que a segunda esposa, Madeleine, o trocou pelo melhor amigo, um perneta chamado Valentine Gerbasch. No fundo deste abismo da existência, prestes a sofrer um nervous breakdown e sentindo a loucura aproximar-se com calma cruel, Moses decide escrever cartas a todos os seus conhecidos, vivos e mortos.

“If I’m out of my mind, then it’s all right with me” (“Se eu estiver louco, por mim está tudo bem”) – estas são suas primeiras palavras no livro. O que não está muito longe da conclusão do Quohelet: “A minha sorte será a mesma que a do insensato. Então para que me serve toda a minha sabedoria?” (2,15).

Bellow remete diretamente a uma passagem algo misógina do Eclesiastes ao criar um drama iniciado pela traição de uma mulher: “E descobri que a mulher é mais amarga do que a morte […]. Eis a conclusão a que cheguei: Deus fez o homem reto; este, porém, procura complicações sem conta” (7,27-30).

Mas, para o seu personagem, a traição de Madeleine é muito mais: é a prova de que Deus o abandonou por completo. Percorre, em conseqüência, um ritual de humilhações que atinge não apenas a sua auto-estima, mas a sua estatura de homem. O advogado Sandor Simmelstein pergunta-lhe a certa altura: “Are you a Mensch?”, “Você é um ser humano?”

A palavra iídiche ou alemã Mensch, inserida no inglês, transfere a pergunta do plano de um mero machismo politicamente incorreto para o existencial, porque levanta a questão do sentido da vida humana e daquilo que faz do homem, um homem. Mensch, no alemão, indica apenas o ser humano em si, para além da distinção de “gêneros”; mas no iídiche é mais rico, porque significa o “homem decente”, “homem reto”, o homem de estatura moral, “humano” no pleno sentido da palavra. O homem que adquiriu “forma de homem”. Aponta, pois, para o “justo” do Antigo Testamento ou para o “sábio” do Eclesiastes.

Também o primeiro nome de Herzog, Moses, não é casual. Moisés foi o exemplo máximo de Mensch para o judaísmo: é o “dador da Lei”, protótipo do sábio. E é também o guia na saída da “terra do pecado”, o Egito, terra da alienação e da escravidão, bem como na travessia do Mar Vermelho. Para Israel, o mar, o “abismo”, significa com freqüência a morte: a saída do homem alienado, escravo do contingente, dessa sua condição passa por uma morte pelo menos parcial – a compreensão de que “tudo é vaidade”.

Herzog, acadêmico e scholar, traído e louco, também tem de reconhecer que todo o seu conhecimento não lhe serve para nada. Seu ponto de partida era o mesmo do Quohelet no início de sua procura pela sabedoria: “Em meu coração dediquei-me a conhecer, a raciocinar e a pesquisar a sabedoria e a reflexão” (7,26). Mas, a partir da sua “morte existencial”, o desmantelamento de suas convicções teóricas o leva a descobrir uma virtude insuspeitada.

Bellow sabia do que estava falando quando escreveu Herzog, e toda essa obra é um diálogo constante com as reflexões surgidas de uma leitura atenta do Eclesiastes. No prefácio ao clássico livro de seu amigo Allan Bloom, O declínio da cultura ocidental [1], escreve:

 

“Na maior das confusões, ainda existe uma porta aberta para a alma. Pode ser difícil de encontrar, pois na meia-idade ela está coberta de mato, e algumas das moitas mais densas que a cercam brotam daquilo que definimos como a nossa educação. No entanto, a porta sempre existe e cabe a nós mantê-la sempre aberta, para ter acesso à parte mais profunda de nós mesmos – àquela parte que está a par de uma consciência superior, graças à qual podemos fazer juízos definitivos e considerar tudo em conjunto. A independência dessa consciência que tem força para ser imune ao ruído da História e às distrações de nosso meio ambiente: eis o que representa a luta pela vida. O espírito tem de encontrar e de manter a sua base contra as forças hostis, às vezes personificadas em idéias que freqüentemente negam a sua própria existência e que repetidamente parecem, na verdade, tentar anulá-lo por completo”.

 

O que Bellow descreve aqui é a atitude que transforma o intelectual em um Mensch, um homem que, depois de ter enfrentado a sua contingência, descobre que precisa assumir riscos. Também para o Eclesiastes, o risco é a forma de “estar-em-um-mundo-contingente” (como diria Heidegger), de lidar com uma ontologia que, em última análise, não se sustenta em si mesma, é “vaidade”.

E o risco, esse poder cumprir-se ou não dos desejos e investimentos de futuro humanos exige do homem a virtude. A coragem de aceitar a sua condição limitada, e o anseio do “pulha” por assumir a forma de Mensch. O encontro da porta aberta para o espírito e para o risco de ser homem.

 

As dez virtudes

Leiamos agora o Eclesiastes segundo essa ótica, procurando ver as grandes linhas que o sábio nos traça.

 

1. A lei do cosmos

O livro abre com uma passagem conhecida e muito citada, mas raramente entendida: “Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade”. A reduplicação semítica, cujo peso semântico podemos sentir também no português – “vaidade das vaidades” -, tem a finalidade de reforçar aquilo que aparece ao autor como a natureza aparente do cosmos: “Tudo é requintadamente vão!”, quase que “vão à segunda potência” – oco, desprovido de fundamento e enganoso, pois promete o que não pode cumprir.

Se é assim, o homem trabalha inutilmente e a dinâmica humana é essencialmente vazia:

 

Que proveito tira o homem

de todo o trabalho

com que se afadiga debaixo do sol? […]

Todas as coisas se afadigam

mais do que se pode dizer.

A vista não se farta de ver,

o ouvido nunca se sacia de ouvir (1,3.8)

 

O afã humano por transformar a matéria terá o mesmo destino do restante da matéria sem transformação: “Mas, quando me pus a considerar todas as obras de minhas mãos e o trabalho ao qual me tinha dado para fazê-las, eis: tudo é vaidade e vento que passa; não há nada de proveitoso debaixo do sol” (2,11). A condição de vaidade se abre pela consciência da inutilidade última de toda atividade humana.

Uma primeira conseqüência desse insight é que nenhuma ética do trabalho pode sustentar-se sobre a autovalidação do esforço humano: todo sucesso, toda obra derivados do agir humano em si continuam incapazes de escapar à lei radical da insuficiência ontológica. Trabalhar pelo êxito, por superar os concorrentes, por acumular riquezas, por construir alguma coisa de material, tudo isso é ainda auto-engano que encobre um apostar pelo Nada. “Nu saiu ele do ventre de sua mãe, tão nu como veio sairá desta vida, e, pelo seu trabalho, nada receberá que possa levar em suas mãos” (5,14).

O risco do niilismo ético é grande para o homem que não se engana, pois é fácil resvalar da impossibilidade de autovalidar o agir para a impossibilidade de validar em absoluto todo esforço. Também o autor do Quohelet enxerga lucidamente esta tentação:

 

E eu detestei a vida,

porque, a meus olhos

tudo é mau no que se passa

debaixo do sol,

tudo é vaidade e vento que passa.

Também se tornou odioso para mim

todo o trabalho que produzi

debaixo do sol […].

Todos os dias [do homem]

são apenas dores,

seus trabalhos apenas tristezas;

mesmo durante a noite

ele não goza de descanso (2,17-18.20.23)

 

Do resvalo niilista nasce em diversos tempos e lugares a atitude do carpe diem, erradamente associada ao Eclesiastes, como vimos, pois em última análise apenas reforça a amargura, de que consegue distrair transitoriamente, mas não logra superar: “Não há nada melhor para o homem que comer, beber e gozar o bem-estar no seu trabalho” (2,24).

No entanto, a transição niilista é um non sequitur lógico e existencial. Da premissa de uma contingência radical do esforço humano considerado em si mesmo apenas se conclui, acompanhando Viktor Frankl, que o trabalho tem de buscar o seu sentido em uma finalidade exterior a ele. Na sua terminologia, à dimensão do homo sapiens, que se move entre os pólos do sucesso e do fracasso, é preciso acrescentar a do homo patiens, cujos pólos, exteriores ao plano da contingência ontológica, são a realização ou o desespero.

Uma segunda conseqüência do reconhecimento da vaidade ontológica é que a consciência reside “na casa da melancolia”:

 

Melhor é ir para a casa onde há luto

do que para a casa onde há banquete.

Porque aí se vê aparecer

o fim de todo homem

e os vivos nele refletem.

Tristeza vale mais que riso,

porque a tristeza do semblante

é boa para o coração.

O coração do sábio

está na casa da melancolia,

o coração do insensato

na casa da alegria (7,1-4)

 

2. A luz

Como em O Estrangeiro, de Albert Camus, o excesso de luz, o olhar purificado de todo o auto-engano, revela uma geografia física monótona e indiferente ao homem. “Debaixo do sol” não há reais diferenças ontológicas entre as realidades situadas no tempo e no espaço. A simples passagem do tempo ou o mero conhecimento de um espaço maior não trazem nenhuma experiência qualitativa definitiva, mas apenas a variação da indiferença:

 

O sol se levanta, o sol se põe;

apressa-se a voltar a seu lugar;

em seguida, levanta-se de novo.

O vento vai em direção ao sul,

vai em direção ao norte,

volteia e gira nos mesmos circuitos.

Todos os rios se dirigem para o mar,

e o mar não transborda.

Em direção ao mar,

para onde correm os rios,

eles continuam a correr. […]

O que foi é o que será:

o que acontece é o que há de acontecer.

Não há nada de novo debaixo do sol.

Se é encontrada alguma coisa

da qual se diz:

“Veja: isto é novo”, ela já existia

nos tempos passados (1,5-7.9-10)

 

A ação humana é impotente para alterar esse ciclo que existe (e resiste) na sua impassividade. Estamos diante do “mito do eterno retorno” de Nietzsche, que por sua vez o tomou do hinduísmo e do budismo e, em parte, dos gregos; mas poderia igualmente tê-lo encontrado na religião egípcia e na babilônica, ou nas religiões menores do Próximo Oriente contemporâneas do autor do Eclesiastes.

Dentro desse quadro, também a eternização na memória é ilusão. Todos serão esquecidos:

 

Não há memória do que é antigo,

e nossos descendentes

não deixarão memória

junto daqueles que virão depois deles (1,11)

 

Tomada apenas em si mesma, essa visão poderia facilmente produzir o tédio e o desespero, que de fato se encontram em Nietzsche –
e também como nota dominante de muitas das civilizações mencionadas. Mas o Quohelet pertence à sabedoria de Israel, e discerne para além do ciclo eterno uma ação e um querer pessoais: “Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu: é Deus quem chama de novo o que passou” (3,15).

 

3. O pecado

A consciência é irmã da dor, e esse fato deriva da ordenação ou do mandamento divino. “Apliquei meu espírito a um estudo atencioso e à sábia observação de tudo que se passa debaixo dos céus: Deus impôs aos homens esta ocupação ingrata. […] Porque no acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e o que aumenta a ciência, aumenta a dor” (1,13.18).

A tarefa humana consiste, em primeiro lugar, em tomar conhecimento de que “tudo é vento que passa”. Peca, portanto, aquele que nega esse estado de coisas, fugindo à dor necessária e inevitável e escondendo-se dela atrás de uma barreira de coisas contingentes (sucesso, dinheiro, prazer pelo prazer): “Aquele que ama o dinheiro nunca se fartará, e aquele que ama a riqueza não tira dela proveito” (5,9).

Mas peca igualmente aquele que se entrega ao desespero: “O insensato cruza as mãos e devora sua própria carne” (4,5). O niilista, desesperado de encontrar um sentido no que faz, incide da maneira mais radical na categoria a que o Quohelet designa por “pecador”: “Eu sei, no entanto, que a felicidade é para os que temem a Deus […] e que não haverá nenhuma felicidade para o ímpio, o qual, como a sombra, não prolongará sua vida” (8,12-13).

Tanto em um caso como no outro, na raiz do pecado há uma cegueira voluntária, uma negação deliberada da realidade. “Os olhos do sábio estão na cabeça, mas o insensato anda nas trevas” (2,14). Mas esta é sempre uma atitude de fraqueza, uma fuga do excesso de luz: “o coração do insensato está à sua esquerda” (10,2), do lado débil e incapaz de realizações.

Tal como ocorre na realidade física, o excesso de luz pode ter o mesmo efeito que a treva: cegar. A luz implacável da consciência reflexiva toca a sua própria contingência, e assim a mera experiência do acúmulo de conhecimento pelo conhecimento implica igualmente o risco do desespero:

 

Eu disse comigo mesmo:

“Eis que amontoei

e acumulei mais sabedoria

do que todos os que me precederam

em Jerusalém.

Porque meu espírito estudou

muito a sabedoria e a ciência,

e apliquei-o ao discernimento

da sabedoria, da loucura e da tolice”.

Mas cheguei à conclusão de que isso é

também vento que passa (1,16-17)

 

Esse dilema é em si mesmo insuperável. Não há solução possível para ele no plano do intelecto, e podem-se perfeitamente ler os grandes “sistemas fechados” do pensamento ocidental (Kant, Hegel, Comte, Marx) como tentativas de fugir a ele. A única saída real encontra-se em outro plano, o do “coração”: em uma “virtude”. E novamente o Eclesiastes põe-nos cara a cara com uma pergunta impertinente: Então, qual a virtude de quem caminha nas trevas?

Podemos responder que essa virtude é de certa forma a grande protagonista silenciosa de todo o Quohelet, o resultado de uma sabedoria verdadeira que se dá conta da sua própria vacuidade intrínseca: “A sabedoria dá ao sábio mais força que dez chefes de guerra reunidos em uma cidade” (7,19). O Eclesiastes inteiro prepara-nos para a necessidade da coragem como virtude ao mesmo tempo epistêmica e cognitiva – a coragem de abrir os olhos à realidade e de extrair as conseqüências -;
moral – a coragem de não fugir, mas enfrentar a dor conseqüente ao conhecimento -;
e teológica – a coragem de confiar.

Se o coração do insensato está à esquerda, “o coração do sábio está à sua direita” (10,2); se a imagem pode parecer-nos anatomicamente curiosa, vivencialmente é de uma clareza tremenda.

 

4. A consciência de si

A consciência da finitude ordenada por Deus esmaga o valor do prazer sensorial. O sábio pode experimentar o máximo acúmulo de prazeres, mas isso em nada altera o fato de o intelecto não ser cego: “Eu disse comigo mesmo: ‘Vamos, tentemos a alegria e gozemos o prazer’. Mas isso é também vaidade. Do riso eu disse: ‘Loucura!’ e da alegria: ‘Para que serve?’ Resolvi entregar minha carne ao vinho, enquanto meu espírito se aplicaria ainda à sabedoria; procurar a loucura até que eu visse o que é bom para os filhos dos homens fazerem durante toda a sua vida debaixo dos céus. Empreendi grandes trabalhos, construí para mim casas e plantei vinhas; […] Fui maior que todos os que me precederam em Jerusalém; e, ainda assim, minha sabedoria permaneceu comigo” (2,1-4.9). No fim, as mãos sempre estarão vazias.

Como vimos, a luz não apaga, antes ressalta o fato de não haver diferença entre a estupidez e a consciência diante da nulidade ontológica. A tarefa do homem temente a Deus consiste em pensar e conhecer o seu vazio, e contudo também essa tarefa não é validada pelo fruto dela mesma. Nem mesmo a inteligência é autofundante.

O homem desemboca, pois, na agonia de quem se vê habitado pelo Nada. A consciência da “intolerável leveza” do real conduz à consciência da própria nulidade: ver a vaidade é também ver-se a si mesmo, descobrir-se a si mesmo como participante do Nada.

 

5. A percepção real

A consciência, nossa graça e nossa agonia, é também a nossa semelhança com Deus, e por isso ser inteligente é um mandamento. “Inteligente” no sentido etimológico: alguém que lê a evidência escrita no íntimo da realidade, sem refugar, sem desviar os olhos, embora não necessariamente “inteligente” no sentido moderno (de quem tem um alto “QI”). É a “sabedoria dos simples”, de que as Escrituras traçam com freqüência o elogio.

O orgulho – enquanto fuga da realidade e recusa de ver-se a si mesmo – é o oposto da coragem. Por isso, para o Eclesiastes, coragem é humildade, uma vez que implica a aceitação difícil e dolorosa da nulidade pessoal. Dentro do horizonte cosmológico, a função máxima do intelecto é alçar-nos ao lugar de percepção plena daquilo que não é Deus.

Mas, quando aplicada com atenção, a consciência vê Deus e o Nada simultaneamente, como dois pólos essenciais do Todo sobre o qual estamos estendidos. Esta, sim, é a real percepção das coisas deste mundo.

E este é também o sentido último da ética judaica da alteridade. Somente se formos capazes de perceber que o ser e nós somos Nada, seremos também capazes de perceber que o ser, em última análise, é dádiva de Deus: graça pura, gratuidade pura.

 

6. O afeto ontológico

O que contemplam os olhos dos sábios? Que a história, diante da física impassível e imutável nos seus ciclos, é um Nada, o destino comum que cabe a todos. O tempo engole o fruto das mãos e da alma, que tem o mesmo destino da matéria bruta: “Os vivos sabem ao menos que morrerão; os mortos, porém, não sabem de nada” (9,5). É o Sheol para onde todos irão e onde “não existe obra, nem reflexão, nem conhecimento, nem sabedoria” (9,10) [2].

Diante de uma tal ontologia, o medo –
temperado pela coragem, aqui na sua vertente mais propriamente moral, que já mencionamos – é o afeto mais espontâneo e, em última análise, mais verdadeiro. Mas há um alívio para esse medo ontológico, alívio que é ao mesmo tempo uma educação para a coragem: o cotidiano ordenado, que prepara a inteligência para a percepção de que caminhamos tanto sobre a misericórdia como sobre o vazio. Não à toa esta passagem é das mais citadas:

 

Para tudo há um tempo,

para cada coisa

há um momento debaixo dos céus:

tempo para nascer, e tempo para morrer;

tempo para plantar,

e tempo para arrancar o que foi plantado;

tempo para matar, e tempo para sarar;

tempo para demolir, e tempo para construir;

tempo para chorar, e tempo para rir;

tempo para gemer, e tempo para dançar;

tempo para atirar pedras,

e tempo para ajuntá-las;

tempo para dar abraços,

e tempo para apartar-se;

tempo para procurar, e tempo para perder;

tempo para guardar, e tempo para jogar fora;

tempo para rasgar, e tempo para costurar;

tempo para calar, e tempo para falar;

tempo para amar, e tempo para odiar;

tempo para a guerra,

e tempo para a paz (3,1-8)

 

7. A fisiologia humana

A vida humana dá-se, pois, em ritmos; não há como escapar. Esses ritmos anulam qualquer especulação para além de si mesmos: sempre mataremos, beberemos e amaremos, saberemos mais do que devemos e menos do que precisamos, sem que tenhamos controle sobre essa realidade, nem em nós nem fora de nós: “Ele pôs no coração [do homem] a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo a outro” (3,11).

Ao mesmo tempo, a cadeia ordenada da ação humana é a melhor “física” possível para o nosso cotidiano, pois obedece aos limites nos quais opera a nossa fisiologia. Assim passa a ser possível vencer o horror cosmológico, a sensação de “folha lançada na tormenta”, pois o medo se torna reverência e dá passagem a uma segurança que não se apóia em qualidades pessoais nem em um pretenso “controle da situação”.

É inevitável pensar aqui na clássica definição de Agostinho de Hipona, que dizia que “a paz é a tranqüilidade na ordem”. A vida humana, diz o Eclesiastes, é uma gota em uma imensidão ordenada, o que descreve naturalmente a atitude que Deus espera do homem: temor diante da sua grandeza. “A felicidade é para os que temem a Deus, os que sua presença enche de respeito” (8,11).

Conclui o sábio: tal como o ser, também gozar a vida é uma graça de Deus, e não fruto de uma prática autojustificada, resultado do “controle sobre os processos da realidade”. Esse ritmo que torna as diferenças indiferentes no tempo e no espaço manifesta a vontade de Deus: “Todas as coisas que Deus fez são boas a seu tempo. […]. Assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se […], e que comer, beber e gozar do fruto de seu trabalho é um dom de Deus” (3,11-13).

O simples respirar já é alegria, precisamente porque “o homem não é senhor de seu sopro de vida, nem é capaz de o conservar” (8,8). Embora a alegria tenha caráter contingente, por ser dádiva e portanto depender exclusivamente da vontade do doador, ela se instala graças ao ordenamento da vida.

Essa “cosmologia da graça” desarticula a relação entre o ato e o seu efeito: a inteligência não garante o sucesso; nem a velocidade, o prêmio; nem a coragem, a vitória; nem o amor, o amor; nem a prudência, a riqueza. Não se deduz das tarefas o seu sucesso. Segundo o sábio, o tempo e o acaso parecem julgar e distribuir os efeitos, e ambos são por igual manifestações da vontade divina: “os justos, os sábios e seus atos estão na mão de Deus” (9,1).

 

8. A forma de homem

O trabalho e a riqueza têm valores diferentes, mas sua diferença não está na dignidade intrínseca do trabalho – que não se autojustifica, como vimos -, e sim no fato de Deus dar o dom da alegria a quem não é preguiçoso durante o dia: “Doce é o sono do trabalhador, tenha ele pouco ou muito para comer; mas a abundância do rico o impede de dormir” (5,11). É significativo observar o absoluto empirismo com que esse dom é descrito como um “sono tranqüilo”.

O moderno puritanismo da objetividade e da ética do sucesso fazem o fim da vida, a forma final de Mensch, depender do conhecimento e do poder que este propiciaria sobre a realidade. Identificam por isso a “justiça” – a perfeição, a forma final -, com o triunfo pessoal, o domínio do eu sobre os outros. No entanto, diante do cenário da cosmologia geral da Graça e da Sombra que o Eclesiastes traça, desdobrado entre os pólos de Deus e do Nada, semelhante perspectiva acaba apenas reforçando a idéia da ontologia negativa: como o homem não sabe e não pode saber a medida de todas as coisas, não consegue ser justo o bastante sequer aos seus próprios olhos.

Daí a tensão insana que invade toda a vida moderna, entre o querer ser justo aos próprios olhos e o negar-se a reconhecer que isso é impossível. Essa tensão resolve-se com muita freqüência no seu contrário: em depressões, desajustes, revoltas e ressentimentos surdos. Daí também o esforço tenso por saber sempre mais, estudar sempre mais, garantir mais plenamente o controle do racional sobre o real – a “hiper-reflexão” neurótica de que fala também Viktor Frankl. Em qualquer caso, essa falsa crença, a falsa identificação da “forma”, deforma.

O Quohelet, pelo contrário, afirma que a justiça está mais perto do esforço físico continuado do que dos esforços teóricos: “Mais vale o fim de uma coisa que seu começo. Um espírito paciente vale mais que um espírito orgulhoso” (7,1). É impossível chegar a uma harmonia plena por meio do saber e do seu acúmulo, e o mesmo se aplica à busca da atitude justa através do mero esforço humano: “Não sejas justo excessivamente, nem sábio além da medida, porque te tornarias estúpido” (7,16).

Por isso, “quem observa o vento – quem reflete em excesso, sempre à espera das condições ideais – jamais semeará, e quem fica olhando as nuvens jamais ceifará” (11,4). O que pertence à ordem prática não se atinge por meios conceituais, mas pela ação confiada:

 

Semeia a tua semente desde a manhã,

e não deixes tuas mãos ociosas

até a noite,

porque não sabes o que terá bom êxito,

se isto ou aquilo, ou se ambas

as coisas são igualmente úteis (11,1-6)

O Eclesiastes é prático: a “forma” para se transformar em um homem conquista-se no silêncio laborioso da coragem cotidiana, não na verborragia intelectual. Fale pouco, diz o estóico bíblico, pois assim como o conhecimento em excesso, as palavras em demasia confundem a alma: “Não te apresses em abrir a boca; que teu coração não se apresse em proferir palavras diante de Deus, porque Deus está no céu, e tu na terra; que tuas palavras sejam, portanto, pouco numerosas. Porque as muitas ocupações [desordenadas] geram sonhos, e a torrente de palavras faz nascer resoluções insensatas” (5,1-2).

A forma da verdade e do bem permanecem, para nós, na esfera do incognoscível: é vão aquele que se acha a forma, é vão quem pensa ter fixado intelectualmente a forma. “Desfruta da vida com a mulher que amas, durante todos os dias da fugitiva e vã existência que Deus te concede debaixo do sol” (9,9) – a atitude saudável está em desfrutar da mulher que se ama, porque seu sorriso é a forma da graça – da dádiva – no âmbito da dinâmica do desejo; mas sem esquecer o aviso que ressoa como um perpétuo memento mori: também não se pretenda erigir o amor humano em forma nem se espere dele a liberdade, pois para o homem a mulher “é um laço, e seu coração é uma rede, e suas mãos, cadeias” (7,26). E as mulheres poderiam dizer outro tanto dos homens…

E por fim, a imagem fulgurante e divertida, pois também o humor é sempre concreto: observemos a força das moscas, diz, uma só das quais basta para “infectar e corromper o azeite perfumado” (10,1). Sem agitar-se, sem tensões – pois que já está morta… -, produz uma ação devastadora.

 

9. A física de Deus

Em última análise, portanto, a justiça, assim como a verdade, não nascem do esforço do homem, mas do mesmo lugar de onde vem o mar que não cessa de receber o rio: da “física” – da dynamis, da ação – de Deus.

Essa ação divina que traz a justiça está envolta em mistério, o qual, como vimos, não é um problema conceitual, mas pertence à ordem do oculto tecer-se da vida na barriga da mulher grávida: “Do mesmo modo que não sabes qual é o caminho do sopro da vida, e como se formam os ossos no seio de uma mãe, assim também ignoras a obra de Deus que faz todas as coisas” (11,5).

A moderação contente é o máximo que se pode alcançar, diz o sábio, mas… com vinho: “Come alegremente teu pão e bebe con-
tente teu vinho, porque Deus já apreciou teus trabalhos” (9,7). A criatura deve às vezes esquecer-se da próxima hora de sua vida, ainda que jamais deva esquecer-se da graça que sustenta todas as horas de sua vida.

 

10. O hábito do abismo

 Em resumo, a profundidade das coisas estendidas entre o Nada e Deus, o seu mistério insondável, é vivida sensorial e intelectualmente como “abismo”. Ao longo da indiferença do tempo, a contingência – vontade de Deus -, decide da relação entre os atos e as conseqüências. O falso cosmos, a realidade vã, é organizada em ritmos pela dinâmica de Deus, que suaviza e torna suportável o medo ontológico. Inevitavelmente, porém, o homem caminha nas trevas e sua principal virtude consiste em reconhecer-se habitante do abismo.

Mas é desse abismo que surgem a verdadeira face do homem e a Beleza de Deus. Instalados na pessoa como aquisições permanentes – como “hábitos” -, essas três realidades (o abismo, a face de Deus e a do homem, análogos da contingência, da verdade e da virtude) circunscrevem os limites da verdade filosófica sobre a nossa condição.

 

Um trabalho sem fim

Voltemos a Herzog para resumir sob outro ângulo o que acabamos de ver. O scholar tinha perdido no seu racionalismo a capacidade de desfrutar do concreto da vida, pois estava preso no seu conhecimento como um condenado cercado por uma muralha. Assim, em um momento em que desfruta de uma intensa e inesperada alegria, estremece:

 

“Eu não tinha a força de caráter necessária para suportar tamanha alegria. Nada havia de engraçado nisso. Quando o peito de um homem se sente como a gaiola de onde todos os pássaros negros escaparam, ele está livre, está leve. Mas anseia por ter os seus abutres de volta: sente falta das suas lutas habituais, dos seus trabalhos vazios e sem nome, do seu ódio, das suas dores e dos seus pecados”.

 

Preso nesta cela interior, resiste quanto pode ao pensamento de que “o Senhor da Vida é a Morte”, que lhe vem insistentemente à memória toda vez que se lembra da agonia da mãe, morrendo lentamente de câncer enquanto ele lia na mesa da cozinha um exemplar de O declínio do Ocidente, de Spengler. Bellow mostra que essa descida de Herzog aos infernos é a única forma de quebrar as muralhas da sua cela e de transformar-se, de um “intelectual” (podemos dizer), em um filósofo.

Nelson Rodrigues, em uma crônica famosa incluída na antologia A cabra vadia, a um jovem repórter que lhe perguntava a razão da sua insistência em escrever sobre política nos anos 60 respondeu: o seu motivo era que não passava de um “ex-covarde”, e não queria colaborar com o “aviltamento pessoal e coletivo” a que a classe intelectual submetia os brasileiros. E continuou:

 

“O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens […]. O medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a ‘Razão da Idade’. Somos autores de impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total”.

 

A transformação do “pulha” em “ex-covarde” exige a virtude da coragem, tal como a comentamos. “Não trapaceio comigo – diz ainda Nelson Rodrigues -, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito”.

Mas sofrer muito não significa deliciar-se na desgraça, regozijar-se, sentir-se especial, armadilha em que cai o personagem de Bellow. No fim, a única possibilidade de encontrar o realismo essencial é retornar à pergunta que estabeleci no início deste texto: O que quer Deus dizer-me com esse texto? Deixemos a resposta ao Quohelet, que a formula com enorme densidade poética e suave bom humor:

 

Lembra-te do teu Criador

nos dias da mocidade,

antes que venham

os dias da desgraça

e cheguem os anos dos quais dirás:

“Não tenho mais prazer”.

Antes que se escureçam o sol e a luz,

a lua e as estrelas,

e que voltem as nuvens

depois da chuva;

no dia em que os guardas da casa tremem

e os homens fortes se curvam

[os braços e pernas],

em que as que moem

[os dentes molares],

pouco numerosas, param,

em que as que olham pela janela

[os olhos] perdem seu brilho.

Quando se fecha a porta da rua

e o barulho do moinho diminui

[a pessoa ensurdece],

quando se acorda com o canto do pássaro

e todas as canções emudecem;

quando se temem as subidas

e se levam sustos pelo caminho,

quando a amendoeira está em flor

[os cabelos ficam brancos]

e o gafanhoto engorda

e a alcaparra perde sua eficácia,

é porque o homem

já está a caminho

de sua morada eterna,

e os que choram sua morte

começam a rondar pela rua.

Antes que o fio de prata se afrouxe

e a taça de ouro se parta,

antes que o jarro se quebre na fonte

e a roldana rebente no poço,

antes que o pó volte à terra

de onde veio

e o sopro volte a Deus

que o concedeu” (12,1-8)

Esse bom humor e essa paz perante a perspectiva da velhice e da morte são privilégio dos corajosos. Quer se trate de nós, os suffering jokers que tentam ser “ex-covardes”, quer dos Herzogs aprisionados nas suas gaiolas de conhecimento “objetivo”, quer de um Nelson Rodrigues que encontrou a sua coragem depois de tanto sofrer, todos estamos sujeitos ao que acontece debaixo do sol. E é no empirismo árduo das coisas contingentes que temos de descobrir a face do abismo, de nós mesmos… e de Deus.

 

Luiz Felipe Pondé, Doutor em Filosofia Moderna pela USP, é professor de Ciências da Religião na PUC-SP e titular de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado. Já publicou os livros Conhecimento na Desgraça (Edusp), Crítica e Profecia (Editora 34), Contra um mundo melhor: Ensaios do Afeto (2010), Guia Politicamente Incorreto da Filosofia (2012), A era do ressentimento: uma agenda para o contemporâneo (2014), entre outros. Escreve para a Folha de S. Paulo.

 

Colaboraram Martim Vasques da Cunha e Henrique Elfes.

 

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, ed. 1, Junho de 2008.

 


NOTAS:

[1] Rio de Janeiro: Editora Best-seller, 1989; título original The Closing of the American Mind, New York: Simon and Schuster, 1988.

[2] A religião de Israel, ao tempo da redação do Eclesiastes, não concebia uma vida após a morte nem a ressurreição dos mortos. Assim se entendem muitas passagens como esta: “Por isso louvei a alegria, porque não há nada de melhor para o homem, debaixo do sol, do que comer, beber e se divertir; possa isto acompanhá-lo no seu trabalho, ao longo dos dias que Deus lhe outorgar debaixo do sol” (8,15), que poderia ser interpretada no sentido do carpe diem se não se equilibrasse com outras passagens deste tipo: “Em conclusão: tudo bem entendido, teme a Deus e observa seus preceitos: é este o dever de todo homem” (12,13). Na verdade, a doutrina do Sheol, como observa C.S. Lewis, exigia do israelita uma retidão e honestidade praticamente sem paralelos na história, pois não esperava uma recompensa transcendente.

 

A Árvore da Vida: Terrence Malick em busca de Sentido – por Pablo González Blasco

Filosofia | 08/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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The Tree of Life (2011). Diretor: Terrence Malick. Brad Pitt, Sean Penn and Jessica Chastain. 139 minutos. 2011.

Este é um desses filmes que eu nunca teria me animado a assistir, mas não tive escapatória. A convocação me chegou a través de um amigo, depois outro, e mais um. “Você tem que ver esse filme que ganhou Cannes”. Assim de simples. Na verdade, o que se deve ler é “Você tem de ver esse filme, e escrever sobre ele, porque quero saber o que você vai comentar”. É o que da quando a gente se mete a crítico de cinema – que, aliás, nunca afirmei ser, nada mais longe do meu propósito. Apenas compartilho as ideias que me ocorrem quando vejo filmes, na tentativa –isso sim é verdade- de promover a reflexão.

A bandeira do humanismo que, também é fato, levanto sempre que se me oferece a oportunidade, é estandarte confeccionado à base da reflexão. Educar no humanismo não é tanto ensinar coisas novas, mas, sobretudo ajudar a lembrar das raízes que todos levamos dentro. Ou, como me dizia o outro dia um professor universitário envolvido com os temas da bioética, trata-se de despertar o humano que está adormecido, esquecido dentro de nós. Não se trata de inventar nada, ou melhor, é pura invenção, no sentido latino que Ortega lembra nos seus escritos: inventar- invenire, descobrir, encontrar. Não é criar–afirma o filósofo-, mas aprender a demorar-se em contemplar as coisas próximas da nossa intimidade, do nosso âmbito doméstico, que preenchem as horas da nossa vida. Lá encontramos o filão do humanismo, das raízes, das aventuras que somos chamados a viver.

Terrence Malick é um diretor muito peculiar, um cult. Como já comentei em alguma ocasião, não sou entusiasta dos diretores que fazem um filme a cada 5 ou 10 anos, e depois desaparecem. Uma espécie de cometa Halley do Cinema. Mas a insistência dos amigos e o premio de Cannes –logo mais volto sobre isto, pois tem sua importância- foram o motor de arranque para enfrentar as quase duas horas e meia de filme.

Malick deve ter suas razões para trabalhar assim: estudou filosofia em Harvard, foi para Oxford onde desenvolveu uma tese sobre Heidegger. Temos, pois, um filósofo atrás da câmara, e nada surpreende a profundidade das suas produções – que, naturalmente, ele mesmo escreve – e que não são acessíveis para qualquer um. A Árvore da Vida é um claro exemplo de cinema de autor, no caso, de cinema de filósofo. E em se tratando de um filósofo sintonizado com os existencialistas, o resultado sempre será denso. Até agora não estou certo se isto é um filme, ou uma reflexão existencial desenhada em fotogramas. O que não subtrai o mérito, inegável, deste espesso mergulho vital.

Vale dizer, para nos entender melhor, que o menos acessível é a forma, não tanto o fundo do que Malick transmite. É possível ventilar questões existenciais e perspectivas transcendentes, em linguagem aberta. O cinema está repleto de exemplos: das comedias americanas de Frank Capra, até os ensaios de transcendência de Clint Eastwood; do cinema de Chaplin e os dramas de William Wyler até Peter Weir ou Spielberg, por citar alguns. Mas tudo isso é Hollywood, um modus dicendi direto, aberto, onde as questões existenciais estão diluídas em histórias fortes, cativantes. Malick não é Hollywood, e a advertência procede.

Uma história pessoal esclarecerá melhor esta temática. Há já alguns anos, durante a defesa da minha tese doutoral em Medicina -coloquei lá vários filmes como recurso pedagógico para fomentar o humanismo nos estudantes de medicina- um professor da banca me interpelou: “Noto que você utiliza somente filmes americanos. Seria de esperar que alguém com a sua formação humanística e filosófica, além da sua origem europeia, utilizasse autores como Bergman, Kurosawa, Kieslovsky. Por que essa preferência por Hollywood? Não estará adotando um viés muito americano em sua docência?”. Limitei-me a sorrir, enquanto buscava as palavras mais delicadas para responder ao professor. Para minha felicidade as encontrei em tempo. “Sem dúvida, os autores que o senhor cita são de fundamental importância para provocar a reflexão do estudante. Mas, devemos convir, que o que Kurosawa diz em 30 minutos, Hollywood consegue de algum modo coloca-lo em 5 segundos. E eu, professor, não tenho todo o tempo do mundo para ensinar. A economia do tempo orienta os autores que escolho”. Parece que minhas razões convenceram, porque o diálogo se encerrou por ali mesmo.

Voltando ao nosso filme: Malick não é Hollywood, e a temática do filme é servida em ritmo lento, pausado, com um visual atraente, que solicita continuamente a cooperação do espectador, sua interação vital, como vital é a posta em cena, onde se adivinha a própria alma do diretor. Uma alma repleta de sensações e vivências, de dúvidas e de procura, onde se mesclam numa estética visual espetacular os mais diversos ingredientes.

A dor da mãe que perde um filho – ponto de partida do filme, e de todos os interrogantes-, o relacionamento familiar com luzes e sombras, as omissões no amor, a celebração da vida, a criação do universo com Big-Bang incluído, os dinossauros, a vida além da morte. E, como uma constante, Deus. Não um Deus panteísta, difuso, que se confunde com o universo. Um Deus que se busca com afinco, com quem se pode falar e a quem se pedem explicações; um Deus pessoal em quem se busca o sentido do sofrimento, do amor, da vida como um todo. Ver as coisas como Deus as vê: “Quero ver o que você vê” clama a protagonista no meio da sua aflição. Vulcões e lava, trovões e criaturas pré-históricas, seres humanos frágeis que proferem verdadeiros gemidos de transcendência. É tão explicita a forma com que Malick o apresenta, que até São Paulo veio à minha memória, quando fala dos gemidos inenarráveis da criação, que espera a manifestação dos filhos de Deus.

Os tais amigos não deixaram por menos, e sabendo que já tinha assistido, perguntaram-me: “O que te pareceu?”. Eu, que estava alinhavando –ainda estou- o impacto das reflexões, respondi de bate pronto: “Uma mistura de Viktor Frankl com Santo Agostinho”. Perplexidade: “Como assim? Explique-se”. Nisso estamos, nas explicações.

V. Frankl, psiquiatra e neurologista vienense, sobrevivente de Auschwitz e fundador da Logoterapia, recolhe na sua obra “Um psicólogo num campo de concentração: um homem em busca de sentido”, os fundamentos dessa escola psicológica. Valha um resumo em poucas palavras. Não é falta de prazer o que frustra o homem, como dizia Freud, de quem Frankl foi discípulo; nem a falta de poder, opinião da Adler, seu colega. O que afunda o homem é a falta de sentido na vida. Sem sentido, sucumbe-se: no campo de concentração, e em Wall Street, tanto faz. Frankl afirma que todo homem precisa de uma sadia dose de tensão para conservar na sua vida um sentido claro para viver. Essa sadia tensão vem em forma de dor, de sofrimento, de privações; um tempero necessário para manter-se em forma, para não adormecer.

     E como bússola do sentido, o amor. “Ama e faz o que quiseres” – diz Santo Agostinho, em frase tão conhecida, como frequentemente mal interpretada. Não por falta de limpidez, pois o recado é claro. Diz assim a frase completa: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos.” Os mal-entendidos não são por conta do que Agostinho escreveu, mas do mercado negro onde o termo amor se ventila em subasta pública. Até o próprio Ortega – nada suspeito nestes temas teológicos-, comentando este pensamento se atreve a afirmar que Agostinho foi um dos temperamentos mais eróticos que já houve, um campeão do amor, porque colocava em Deus todo o seu peso, a sua densidade, o seu sentido de existência. “Deus meus, amor meus et pondus meus– Deus é o meu amor, o meu peso, a minha medida”.

A Árvore da Vida são inúmeras pinceladas, a modo de quadro impressionista, que desenha os contornos que o espectador deverá adivinhar e completar em si mesmo. Perfis que se projetam no sentido que é preciso buscar na vida, e no amor que sara as feridas que se produzem nessa procura. Lesões que nos mesmos causamos naqueles que amamos, por insuficiência e desatenção, por pura falta de jeito, quando não por orgulho e despeito. Estragos que a vida infecta, mas que o sofrimento e o amor purificam.

Este amplo repertório de questões existenciais não chega por surpresa, pois a abertura do filme é clara e contundente. Quem avisa, amigo é. Diz assim, em tradução livre: “Ensinaram-me que há dois modos de viver a vida: o modo da natureza, e o modo da graça. É preciso escolher qual dos dois vai seguir. A graça não busca o seu conforto; aceita ser esquecido e desprezado. Aceita insultos e injurias. A natureza somente busca satisfazer-se e que os outros a agradem; e encontra sempre motivos para não estar alegre, mesmo com o mundo brilhando à sua volta, e o amor transpirando em todos os cantos. Ensinaram-me que quem escolhe o modo da graça, nunca se da mal. Venha o que vier, sempre chega a bom termo”.

E agora, a pergunta fatal. Como um filme assim conquista a Palma de Ouro de Cannes? Vai ver que é o intelectualismo de Malick, o cinema de autor, enfim, motivos que sempre se ventilam nestes palcos. Mas depois do que aconteceu no ano passado, onde os nove monges da Argélia levaram a Palma, (Homens e Deuses), tudo isso não me convence. Perguntei a um amigo, filósofo, o que está acontecendo na França onde os prêmios os levam filmes que falam abertamente de transcendência, da alma, de Deus. “Deve ser a crise” – me disse, sem dar muita importância ao tema. Sim, a crise, pensei; mas não a do euro, nem a da bolha imobiliária, mas a emparentada com sua própria etimologia. Em latim, crisis, mudança; em grego, krisis, momento de decisão. As mudanças que, antes ou depois, teremos de enfrentar para decidir o sentido que vamos dar à nossa vida. Um filme ou uma reflexão? Tanto faz. Se catalisar nossas crises, já cumpriu o seu papel.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005). 

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2011/10/24/a-arvore-da-vida-terrence-malick-em-busca-de-sentido/

Sobre o mesmo filme também indicamos o texto “As lágrimas da Criação”, de Martim Vasques da Cunha, publicado no site da revista Dicta&Contradicta.

Levando o mal a sério

Sem Categoria | 03/12/2014 | |

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Onde estava Deus no fatídico 11 de setembro, quando as torres gêmeas desabaram sobre nossos olhos, matando um grande número de pessoas que, em sua maioria, tinham família e filhos? Por onde anda Deus, atualmente, nos conflitos no Iraque, atacada por jihadistas do tal “Estado Islâmico”, executando sumariamente a sharia a curdos e cristãos? Onde está Deus diante das inúmeras pessoas que morrem de tantas doenças incuráveis?

A existência do mal sempre foi um problema filosófico. Podemos intuir que uma grande quantidade dos males do mundo decorre do exercício da liberdade pelo homem: terrorismo, guerra, assassinato, abortos, nazismo, fascismo, comunismo, traição, abuso dos necessitados, infidelidades, transmissão de certas doenças, abuso de poder e a epidemia pátria, a corrupção política.

Mas isso não explica os males físicos, como o câncer, e as devastações provocadas por ações naturais (terremotos, tsunamis) e, muito embora o sentido da dor enriqueça a compreensão da realidade e a empatia das pessoas, parece haver sofrimentos que não acarretam a ideia do alcance de um bem maior, como a situação de crianças órfãs de pai e mãe.

O problema filosófico do mal gira em torno de dois temas principais: a liberdade humana e a existência de Deus. É evidente que um Deus onipotente, onisciente e benevolente poderia evitar tudo isso. Por que não o faz, se Ele existe? Porque Deus poderia destruir o mal, mas não sem antes destruir nossa liberdade. Essa seria uma resposta razoável sob o ângulo que aqui tratamos.

Mas se Deus não existe mesmo, então, como não conseguimos superar a antítese do bem e do mal — lutar por consolidar o primeiro e eliminar ou reduzir o segundo — a vida humana, como efeito disso, segue abandonada e só nos resta viver da “náusea da vida”, como responderam vários pensadores modernos que, “agindo como se Deus não existisse”, conduziram muitos de nós ao desespero existencial ou ao indiferentismo religioso até se concluir que o homem é, no final das contas, um grande absurdo (Camus) ou um ser para a morte (Sartre).

A solução filosófica para esse dilema, se é que há alguma puramente filosófica, necessariamente vai implicar numa tomada de postura sobre a existência de Deus. O mal é uma prova cabal da liberdade imperfeita do homem. É verdade, por outro lado, que, por si só, essa liberdade não consiste numa prova da existência de Deus. Mas temos de admitir que muitas das respostas da filosofia moderna ficam sem palavras para a liberdade, pois a admitem apenas no finito e negam ao homem a possibilidade de um juízo final.

O mal, como efeito de uma ação livre, existe desde o começo do mundo, sendo imputável à nossa natural e invencível imperfectibilidade terrena. A liberdade é capaz de fazer com que um homem aja bem ou não evite o mal. A mesma liberdade, diante da dor e da comoção que o mal nos provoca, pode até nos guiar a aliviar o mal alheio e suportar o próprio como uma purificação, tornando nosso homem mais livre, porque se remove o egoísmo que obscurece a possibilidade de abertura para o transcendente. Quanto aos males que fogem da ação humana, tudo ainda é um mistério.

A existência do mal na sociedade é um fato inevitável, que condiz com a grandeza de um Deus que, além do ser, deu ao homem o maior presente: uma liberdade para o amor. A experiência da vida faz-nos intuir que não se sustenta facilmente a inexistência de um Ser Superior e de uma vida após a morte.

Pelo contrário: apenas um bom, onipotente e providente Deus, prometendo uma vida futura, poderia ser a explicação do mal. Quem mais? O Deus do 11 de setembro, dos curdos e cristãos desterrados ou executados e dos doentes incuráveis estava e está dando sua vida na cruz para os mortos, consolando a tristeza dos enfermos e sofrendo por aqueles que utilizaram e utilizam tão terrivelmente o dom da liberdade. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes (coordenador do IFE Campinas)

Publicado no jornal Correio Popular, no dia 03 de setembro de 2014, página A2, Opinião

Do enigma ao mistério – por Bruno Tolentino

Literatura | 27/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Este texto é a edição das três últimas aulas de Bruno Tolentino, dadas nos dias 8, 15 e 22 de maio de 2007, feita por Guilherme Malzoni Rabello.

I.

Como sempre, a vida é muito surpreendente. Quando menos se espera, ela dá uma volta: às vezes nos assusta e às vezes nos maravilha, mas o fato é que sempre nos tira do lugar.

Confesso que eu não esperava absolutamente nada da recente visita do papa ao Brasil, ao menos nada mais que um sinal como os que ele nos vem dando abundantemente. Mas não foi isso o que tivemos. A verdade é que a presença deste pontífice subitamente solucionou a minha vida, completamente: eu desisti de morrer. Talvez agora tenham que consultar a esse respeito, no sentido de que a morte nunca teve maior importância nas contas que fiz com a vida: se a festa está acabando, muito bem, vamos acabá-la da melhor maneira possível. Em todo o caso, até agora isso não tinha grande realidade, como de resto tudo aquilo que fiz: o esforço de escrever, de entender, de ser menos indigno da condição humana. Mas a presença do papa subitamente trouxe uma coisa nova com a qual eu, aos quase setenta anos, ainda não me havia defrontado.

A primeira coisa que ele nos deixou foi um chamado à reflexão, ao silêncio. Nós, que vivemos num mundo tão conturbado, em situações tão conturbadas, temos todas as razões para buscar um cantinho, um momento de calma, mas praticamente não o fazemos nunca. Estamos sempre muito ocupados em ter idéias, respostas e tudo o mais. Eu passava os olhos pelos jornais, tentava fazer como todo mundo, mas não era isso que me acontecia. O que me acontecia era a clara impressão de que o Santo Espírito tinha vindo ao Brasil e aproveitado opapamobile para passear por aí.

Não houve nada de dramático nessa visita. Simplesmente tive a sensação de que o tempo todo alguma coisa – e eu mesmo – estava sendo renovada. Tanto assim que disse aos médicos: “Olha, vamos acabar com esse negócio de cura, de remédios e tudo o mais. Isso fica por conta de quem me fez”, e assim já há três dias que não me furam, não me levam daqui para lá… Mas a minha pergunta é, muito claramente, a seguinte: será que o santo pontífice não estava simplesmente nos dizendo “Foi-nos dada uma Revelação, alguma coisa nos foi revelada”? Cada um o vê até certo ponto, mas praticamente nenhum de nós vive à altura disso, não respondemos a este chamado constante. “O que é homem para que te interesses por ele?”

A grande escritora portuguesa Sophia de Mello Brayner Andersen diz numa passagem sensacional, mas também das menos notadas, que o amor nos vem de vez em quando; duas, três vezes somos chamados a amar alguém; falamos nesse primeiro amor, nesse amor individualizado, não sei se se pode dizer erótico; diria, este amar uma vez ou outra. Mas existe também, no final das contas, uma outra presença, uma outra visita que vem todo santo dia, que é a santidade, o chamado à santidade, essa velhinha, esta velhota chata que vem e bate à nossa porta.

Vem disposta a ser recebida, mas todo santo dia damos um jeito de inventar uma desculpa para não a receber. Por acaso não quero ser santo? É claro que quero, quero o melhor para mim, o melhor para a humanidade toda; mas começo amanhã, porque agora… Todo santo dia inventamos uma nova “maravilha” que é preciso fazer antes (às vezes, os grandes mestres realmente inventam coisas belíssimas: grandes quadros, o teto da Capela Sistina, os sonetos de Shakespeare, a Montanha mágica, o Don Quijote)… E o resultado é que todo mundo está sempre muito ocupado e a velha vai ter que voltar no dia seguinte.

Por fim, a gente já nem se chateia com a insistência dela, mas vai simplesmente adiando e adiando. Temos de resolver como organizar o país, como vamos fazer uma literatura fabulosa, se vamos fazer etanol de milho ou de beterraba… E, com tanta coisa séria para fazer, lá vem essa velha e não sabemos direito o que ela quer. Não nos pergunta nada: aliás, distingue-se justamente pela sua insignificância – e é esta insignificância, no final das contas, a única coisa pela qual teremos de responder. Teremos de responder, pura e simplesmente, por aquilo que fizemos dessa visita incômoda.

Como complemento, há também umas palavras de Giussani, que dizia simplesmente: “Os homens levam a sério o trabalho, o amor, a família, os filhos, vai ver até a santidade. Levam mil coisas a sério, mas não parecem ter tempo livre para levar a sério a vida”. Levar a sério a vida é uma coisa muito curiosa: significa que você não pode jogar fora um só segundo dela, pois é um tesouro que lhe foi dado, que lhe é dado e que volta a lhe ser dado todo santo dia.

Estas duas coisas completam-se: a visita da santidade e a pergunta “mas será que levo a vida a sério?” Foi em torno delas que se criou toda uma coisa extraordinária, que foi a cultura do Ocidente. Construímos toda a assim chamada civilização em torno deste problema do ser[1].

Seria necessário observar aqui que, a cada vez que damos nome a alguma coisa, é porque esta coisa já não tem tanta significação: a partir do momento em que começamos a ficar conscientes de uma percepção, temos a tendência de substituí-la por um conceito. No caso do conceito de “civilização”, esse processo é muito notório, porque se trata de algo muito nobre: Quem é contra a civilização? Somos todos a favor dela. E da santidade também, e da vida também. Só que todo mundo está muito ocupado…

O perigo é justamente nos interessarmos demasiado pelas construções conceituais que fazemos do significado profundo e misterioso das coisas. Se o homem não passa de uma travessia entre o enigma e o mistério, então precisamos tomar muito cuidado em como definimos isso, porque neste intervalo está tudo aquilo que somos, incluída essa maravilhosa civilização de que temos toda a razão de nos orgulhar.

Isto me leva a pensar que, no que diz respeito àquilo que tanto valorizamos como “civilização”, quem tem a última palavra talvez seja São Boaventura, quando nos recorda que somos apenas um primeiro rascunho do ser. Levanta-se sobretudo a grande interrogação que o Evangelho nos deixa: o que será esse rascunho quando for passado a limpo? O que será o corpo glorioso? Quando Cristo se aproxima dos discípulos de noite, andando sobre as águas, diz-lhes: “Não temais, sou eu”. Santa Teresa de Ávila sublinha esse “sou eu”, não tanto o “não temais”: aqui Cristo nos dá uma indicação do que vem a ser esse perceber sem ver, esse enigma do ser que, uma vez revelado, nos levará ao mistério. Realmente, não teremos ido muito longe se tivermos saído de um enigma para cair num mistério…, mas temos a promessa de que veremos, não em um espelho, e sim frente a frente. E nesse momento entenderemos alguma coisa.

Para qualquer religião, seria uma heresia sugerir que nos dias da visita do papa ao Brasil tivemos essa experiência de “ver frente a frente”, ou pelo menos umantipasto da coisa. Mas não consigo deixar de ter essa impressão. Ou despiorei muito, ou então realmente aconteceu alguma coisa de diferente. Inclino-me mais para esta última versão, porque tenho uma noção muito clara de não ter despiorado tanto assim; infelizmente, não posso dizer: “mas eu agora, finalmente…”. Agora, finalmente, me peguei do lado de cá e eles do lado de lá, mas continuo a ser o mesmo palhaço que vejo todo santo dia.

Isso tudo me aconteceu e tive a impressão de que estão todos enganados, que não vou morrer coisa nenhuma, que não precisam se preocupar com isso: “Pode tirar esses berloques todos porque já está tudo resolvido. E quem resolveu não fui eu nem o senhor. A não ser que seja o Senhor com ‘s’ grande”.

Por isso, proponho-me agora, sobretudo, recordar como foi que cheguei a várias conclusões durante a minha vida, como foi que elas me vieram, por que algumas coisas me tiraram do sério, e de que maneira tudo isso me fez concluir que era necessário fazer uma contribuição cultural – lá vem essa palavra outra vez -, civilizacional, aqui no Brasil. Tenho muito interesse em deixar bem sublinhada a necessidade de escolhermos entre a linguagem profunda que a poesia nos empresta, e essa outra que, no final das contas, quando não é uma doxologia, quando não é a história de um maravilhamento, é simplesmente a arte de abençoar supermercados…

Talvez possamos entender assim o que eu quero dizer por “mundo-como-Idéia”, e em que medida vale a pena cuidar desse ponto de vista, dessa maneira de encarar a realidade simplesmente como uma Idéia ou, alternativamente, reconhecer que a vida é metafísica. Porque, no final das contas, continua a ser um ponto de vista, e talvez um punhado de palha – como diz São Tomás – seja mais importante do que todo o resto [2]. Temos muito o que defender, aqui no Brasil, contra a atual tendência ao bestialógico e ao despudor dos neurônios, e isso é muito importante; mas, mais importante ainda é não descobrirmos, na véspera da morte, que passamos a vida inteira abençoando supermercados…

II.

Não tenho a pretensão de ensinar alguma coisa no tempo que me resta. O que me parece entendimento, o que me pareceu entendimento, deve-se simplesmente a uma educação que recebi como quem recebe o ar que respira, sem saber muito bem de onde vem e por que está respirando aquilo. Mas tenho muito a recordar e tenho certas coisas que preciso dizer antes de calar a boca de vez. Essas coisas são cada vez mais claras para mim e precisam ser ditas, porque ninguém vai dizê-las se eu não puder falar. Neste mundo de supermercado, ficarão atrás do etanol, da queda de sei lá qual bolsa de valores… Podem não ter importância nenhuma, mas têm uma razão de ser: lembro-me delas com muita clareza, sei o que são.

Os primeiros poemas que escrevi em 1956 não têm praticamente interesse nenhum, a não ser o da data, do momento. Sempre achei que havia um certo exagero quando as pessoas diziam: “Não, não jogue fora, é um bom poema”. Publiquei, deixei publicado, mas foi só depois que comecei a entender que estava fazendo poesia, e que não havia jeito senão fazer poesia. Dona Cecília Meireles sempre me perguntava: “Poeta, o que temos de novo?”, e eu não entendia nada: Primeiro, que poeta é este? Segundo, o que é essa tal novidade, essa coisa que tinha que continuar a levar para frente?

Há várias passagens em minha vida que não termino de entender. Em 1973, por exemplo, eu já havia criado essa personagem chamada Katharina, que era simplesmente uma freira mal comportada. Nessa época, o Cristo não era coisa que me importunasse de modo algum: eu estava em Oxford e tinha mais o que fazer. Até que, em agosto daquele ano, escrevi toda a série do livro que corresponde à leitura que a Katharina faz do Evangelho 3. Não queria escrever nada daquilo; o primeiro poema, sobretudo, O segredo, apareceu-me inteirinho, sem que eu tivesse que mexer em nada. É aquele que diz:

O Cristo não é
um belo episódio
da história ou da fé:

 nem o clavicórdio
nos dedos da luz,
nem o monocórdio

chamado da Cruz.
O crucificado
chamado Jesus

é o encontro marcado
entre a solidão
e o significado

 do teu coração:
de um lado teu medo,
teu ódio, teu não;

do outro o segredo
com seu cofre aberto,
onde teu degredo,

onde teu deserto,
vão morrer, mas vão
morrer muito perto
da ressurreição.

Chamar isso de experiência mística – essa palavra que sempre me pareceu besta: “Mística”, por quê? O que é isso exatamente? – é dar uma importância muito grande às coisas, mas permanece o mistério: por que fui escrever este poema, que certamente não está abaixo dos outros, assim de repente?

Em Oxford, discutia-se muito tudo isso, e as melhores cabeças tinham preocupações de ordem religiosa, até porque precisavam definir-se de algum modo. O poeta que mais me impressionava, Wystan Auden, era um poeta religioso, e ninguém mencionava esse fato; também o melhor poeta inglês vivo, Geoffrey Hill, é um poeta eminentemente religioso – aliás, praticamente não é outra coisa.

Mas, graças a Deus, não posso calcular mais nada; tenho que me ater apenas ao essencial, à velhinha que vem bater à porta todo dia. E a tudo o que ela acha da cultura, ou seja, do que eu criei. Esses pensamentos me visitam o tempo todo, e não posso deixar de mencioná-los. Posso muito bem deixar de dar aulas, posso muito bem deixar de ensinar as pessoas a pensar ou de explicar o significado desta ou daquela poesia aqui ou na Inglaterra; sei um mundo de coisas das quais me pergunto para que servem, mas nada disso precisa ir senão para a lata de lixo. O que sobra é o significado que a poesia dá a certas cenas, alguma coisa que faz o mistério da poesia e da vida e as amarra numa coisa só. Daí nasce o poema, de uma forma única e que não se cansa de me deixar perplexo.

III.

Já me foi observado que, se O mundo como Idéia é uma versão, digamos, ensaística de uma intenção, A imitação do amanhecer seria a versão romanceada[4]; de qualquer maneira, são a culminação da minha obra, de um modo de pensar e de ver as coisas. Seria impossível escrever apenas um deles: quando eu estava entregue ao ato de ser perfeitamente insano escrevendo A imitação do amanhecer, O mundo como Idéia já se ia formando em minha cabeça. O primeiro era o livro que eu sempre quis escrever; o segundo, o livro que fui obrigado a escrever. O mundo como Idéia não era um projeto: eu precisava escrever o livro para entender o que estava fazendo.

Isto porque a poesia é a linguagem fundamental, a linguagem de todos os tempos. Não se pode imaginar, por exemplo, os Salmos escritos em prosa, como seria impossível no caso da Divina comédia, de Os Lusíadas etc. Goethe escreveu excelentes romances, mas jamais teria escrito o Fausto senão em verso. Se a linguagem fundamental vai ser tentada, seu máximo grau sempre foi e sempre será a linguagem da poesia. Nunca poderei repetir isto o suficiente: o nosso mundo se afastará cada vez mais da realidade quanto mais quiser precisar as coisas, quantificar a realidade, ao invés de ouvir essa voz profunda, que será sempre uma viagem do enigma ao mistério – uma travessia que parece não levar a lugar nenhum, mas na verdade está subindo, levando-nos cada vez mais à compreensão da realidade.

Como já disse, a compreensão das coisas só pode ser compreensão de Deus, porque, se não o for, será apenas uma inauguração de supermercado. Se este enigma não me interessa em si, então apenas me interessa quantificá-lo; e se a vida não é metafísica, é uma mera quantificação, um empilhamento que não faz nenhum sentido. Ou seja, a vida ou é metafísica, ou não é nada.

O problema todo começa quando percebemos que o mundo moderno cada vez mais se parece com um nada – e faz questão de se parecer com isso. Há um esforço enorme, no qual se servem as idéias, se servem as cosmogonias e cosmologias, para mostrar que na verdade o ser humano não passa de um mero empilhamento de dados. A conseqüência será colocar o homem abaixo do nível animal, quando muito no de um animal.

Gostamos de dizer que a empreitada da modernidade teve um grande sucesso, mas o que é exatamente esse sucesso? Quase nada, eu diria. Pode-se dizer que hoje foi um dia de grande sucesso para mim, porque não podia falar, ia morrer, mas o progresso da Medicina fez com que estivesse aqui podendo pronunciar-me. Ficamos muito agradecidos, é claro, mas, na verdade, se isso realmente é uma vantagem para o ser humano, é também um dom de Deus.

Às vezes temos percepções espantosas de que a realidade é dom de Deus. São momentos que chamo de epifanias – na verdade, simplesmente uso o termo para essa súbita aparição do ser em sua plenitude. É algo muito difícil de explicar, mas recentemente, por exemplo, eu estava andando numa das ruas mais prosaicas de São Paulo, a tal Cardoso de Almeida. Não sou paulista, fui conhecer a Cardoso de Almeida recentemente e quase a contragosto. Até que um dia estava andando nessa rua, entre um ônibus e duas árvores completamente empoeiradas, e subitamente aquilo tudo me causou um grande espanto. Foi um maravilhamento que não se explicava nem justificava de maneira alguma, mas é como se aquele enigma que você é o obrigasse a espantar-se e ficar profundamente emocionado.

É essa dimensão metafísica da vida que transfigura tudo. Temos a impressão que tudo existe apenas porque Deus está respirando e, se Ele parasse de respirar, tudo se desfaria em poeira. Na verdade, tudo é poeira mesmo, mas, nesses momentos, como que numa respiração de Deus, todo aquele pó se transforma em brilho – que às vezes é percebido, às vezes não. Isso é o momento de epifania. É o maravilhoso no que tem de mais awesome – a palavra awe em inglês significa ao mesmo tempo “espanto” e “terror” -, como se eu visse pela primeira vez aquela rua e aquele ônibus na Cardoso de Almeida. Em A imitação do amanhecer, com uma brincadeira – coisa que aliás nunca está longe do meu modo de escrever e de pensar -, exprimo esse maravilhamento nos seguintes termos:

Ora (direis), anjos de luz! Ah, mas leitor,
se nunca te encontraste, não com um ser abstrato,
mas com algum corpo aceso como os olhos do gato,
que sabes do fenômeno de que aqui falo? O amor
para ti alguma vez foi susto? Entre o terror
e o maravilhamento, algum dia o retrato
da perfeição te olhou? Vá lá, vamos supor
que é ainda o mesmo corpo, tátil ainda ao tato:
há nele um súbito perfume inesperado,
e é inútil, é impossível não perceber que alguém
á mal cabe num corpo; eu o conhecia bem
e nunca havia dantes sentido que ao meu lado
pairava aquele aroma de um mundo ignorado…
Não, leitor, certas coisas chegam de muito além
(I, 67)

Diante de uma epifania, que pode acontecer em qualquer canto e a qualquer momento, procuramos refugiar-nos de mil maneiras, porque, quando isso acontece, é um verdadeiro terror. Rilke dizia que “todo anjo é terrível”:

Pois o belo é apenas
o começo do terrível, que ainda a custo
[podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele,
[impassível, desdenha
destruir-nos. Todo Anjo é terrível . [5]

Confrontado com este dom, que é ao mesmo tempo um dom e um desafio, a criatura pode conceber mil maneiras de viver o mundo, e a vida, que normalmente é tediosa, cinzenta, sem graça, até que se ilumina. São esses grandes momentos da nossa vida – que podem durar apenas alguns segundos – que abrem as brechas e nos fazem ver, para além da superfície, a real reverberação que constitui o ser. Mas o terror de Deus, o terror da Beleza é de tal ordem que nós queremos recuar. O fato de a vida ser metafísica nos obriga a fazer alguma coisa, mas é sempre altamente insuficiente para conter aquele temor e tremor, como diz Kierkegaard. Nós continuamos nus diante dessa realidade; quer escolhamos ver ou fechar os olhos, perceberemos que as coisas nos chegam “de muito além”.

O que a poesia e Deus têm em comum é justamente isto. A grande arte e a divindade possuem essa capacidade de divinizar a vida, de mostrar que não há outro modo de compreensão da realidade. A conclusão é sempre incômoda, mas todas as outras são ainda piores: estamos aqui numa constante saudade de Deus, saudosos da plenitude. E a grande arte é exatamente isto: o esforço da criatura por guardar na memória aqueles momentos de epifania, nos quais ela se aproxima ao máximo do mistério da criação.

O mundo moderno quer criar uma espécie de antídoto para essa ameaça que é Deus e a Beleza, e o resultado não poderá ser outro que não a feiúra e a negação de absolutamente tudo. Vamos então conceber o nosso mundo como horroroso para podermos dar-nos ao luxo de acreditar que temos uma defesa, um escafandro contra aquela súbita surpresa, aquele temor e tremor de acordar diante daquilo que realmente somos. E então passaremos o tempo empilhando latas no supermercado e tentando fazer disto arte.

A necessidade de escrever O mundo como Idéia, que surgiu aos poucos entre 59 e 66 e gradualmente foi tomando forma, é simplesmente a urgência de me defender dessa condição de lata em supermercado, da linguagem reducionista, para buscar a grande abertura – e reclamar de tudo que não seja isto. A Montanha mágica, por exemplo, é a mesma coisa: no momento em que um continente inteiro parece caber num sanatório dos Alpes Suíços, Thomas Mann vai criar essa extraordinária metáfora do mal como doença.

O que me propus fazer em O mundo como Idéia foi também uma tarefa muito séria, que não era simplesmente tentar descrever alguma coisa, mas expressar a percepção de que aquilo que dá sentido à realidade vinha sendo roído pelas beiradas pelo sorrisinho dos Voltaire da vida. Quem me deu essa imagem foi Saint John-Perse, que morava nos Estados Unidos, quando lhe perguntei por que ele não voltava para a França. Ele me levou então à biblioteca do Congresso americano e, no meio daquelas estátuas todas, disse-me: “Vou explicar: Olhe só, qual é o grego que está ali? Platão. E o espanhol? Góngora; poderia ter sido Cervantes, mas é Góngora. O italiano é o Dante, claro. E ali, olhe quem representa a França, o que a França virou: o sorrisinho do Voltaire! Nós somos representados por isso!”

Na época, fiquei estarrecido, mas depois ficou claro que essa coisa toda só servia mesmo para arrumar sinecura para débil mental na USP. Porque foi nisso que deu: na Rive Gauche du Tietê. Nessa fábrica de opiniões ocupadíssima com a última teoria bocó para a falta de sentido do universo. Se eu não tivesse nada que ver com isso, iria pentear macacos, arrumar coisa melhor para fazer. Mas não: este é o meu povo, e eu sei que não era assim. Então, aproveitando a proximidade da Maria Antônia com a Rua Augusta, e a semelhança entre “correr atrás da Bolsa” e “ficar rodando bolsinha”, disse simplesmente assim:

Oh, Maria Antônia augusta,
quanto custou, quanto custa
teu fricoteio ao Brasil?
Mas quem te vê, quem te viu.
Tu, que já foste um canil
rábido em nome da luta,
hoje não passas do til
no bundão da velha puta,
a puta que não pariu!

O poema foi considerado um acinte. Diziam-me: “Isso não se faz, Tolentino”. Mas o que não se faz é prestar-se a dar inspiração para essas coisas!

IV.

Se a hipótese de que a vida é metafísica nos é familiar e aceitável, se tudo aquilo que fazemos é memória de Deus e a Ele se dirige, então resta a pergunta: Por que fazer seja o que for, por que não ficar em contemplação perpétua? A resposta mais lisonjeira seria pretender  justamente que todos os nossos atos fossem louvores a Deus, como quem não tivesse nada para fazer e ficasse a tarde toda louvando a Deus. Mas não é assim e não precisa ser assim, porque gradualmente essa realidade de estarmos saudosos da plenitude vai aparecendo, seja quando estamos ocupados com pequenos atos, seja quando enfrentamos atos totalmente megalômanos. Não há necessariamente que haver uma intenção deliberada, é sempre perfeitamente possível que se busque um ato de beleza instintivamente.

Quando eu me pus a escrever O mundo como Idéia, tinha diante de mim apenas algumas questões atormentando a minha cabeça. Com o passar do tempo, fui percebendo aos poucos que cada vez mais ia ficando claro para mim esse abandono da linguagem transcendente e a noção de que aquilo nos iria deixar num péssimo estado, que iríamos perder muito. Depois ficou claro que não perderíamos muito: perderíamos tudo. É como se eu estivesse dentro de um nevoeiro e, conforme ele se desfizesse, eu começasse a perceber certos contornos, certas formas – ou o que se chama de poesia.

Gradualmente, esse problema foi-se tornando uma visão de mundo, eu tendo que me defender desse mundo, desse pavor de constatar que havia um modo de deformar a realidade sob a desculpa de que aquilo seria mais real que o real. Todos os dias estava cercado de alguma explicação, de maneira que eu não sabia muito bem para que servia todo o meu esforço; mas tinha muito claro para quenão servia, e que aquilo que me cercava era uma grande bobagem. E assim começou a criar-se uma obra poética.

Qual não foi o meu susto quando, bem mais adiante, já nos anos 90, voltei ao Brasil e encontrei um país que havia dissolvido e praticamente proibido a linguagem poética. Nesse intervalo eu havia feito poesia em outras línguas, de acordo com o lugar onde vivia, o modo como vivia etc., mas nunca imaginei que pudesse encontrar um país do qual a cultura tivesse sido banida – aquela maluqueira de dizerem que o Caetano Veloso era o maior poeta do Brasil: espera lá, até segunda ordem ainda é o Carlos Drummond de Andrade! -.
É um susto muito grande para quem havia passado trinta anos na civilização e sabia muito bem que, embora houvesse um negócio chamado The Rolling Stones, isso não impedira a Inglaterra de ter a grande poesia que tinha, a grande música que tinha e tudo o mais.

Perguntavam-me o que estava fazendo aqui, por que não ia embora, mas não é nada disso: não posso aceitar que esse país agora tenha virado uma Escola de Samba. E quando penso que Noel Rosa era chamado de “o Poeta da Vila”, inclusive pelo Manuel Bandeira e pelo Villa-Lobos… Ele realmente era muito poético e fazia aqueles sambas de que muito nos orgulhávamos, mas daí a confundir isso com poesia – era uma maluqueira tão grande que não podia ocorrer a ninguém.

Pois bem, voltei e descobri que nesse intervalo o intelectual se havia transformado em in-telecoteco-ctual e que estávamos todos escravizados à estupidez, como numa espécie de Lei Áurea ao contrário. Os cariocas, especialmente, sempre valorizaram muito o nosso “Poeta da Vila”, mas era o poeta de uma segunda linguagem, que nunca foi confundida com cultura; era simplesmente a nossa realidade, em toda a sua complexidade, que nos tornava não só ricos, mas felizes de tê-la.

A partir do golpe de 64, porém, justamente quando me fui embora, começou a idéia de que precisávamos “fazer a revolução”, de que não havia necessidade de cultura. Era preciso revolucionar tudo. Quando comecei a organizar O mundo como Idéia, sobretudo a série de ensaios da parte inicial, defrontei-me com toda essa questão em termos de profundidade metafísica. Já na primeira parte propriamente dita, “Lição de modelagem”, era natural que começasse com a idéia do espectro. É justamente um mundo espectral o que encontramos sempre que nos afastamos da realidade, da profunda realidade metafísica.

Curiosamente, vou-me dando conta de que esse mundo de sombras corresponde perfeitamente à ciência dos números. Há todo um aspecto demoníaco na transformação do mundo-como-tal em mundo-como-Idéia, baseada toda ela numa concepção numérica. Tanto assim, que, em 1933, Kurt Gödel faz os seus dois teoremas da incompletude e demonstra que não há modo de quantificar a realidade de tal maneira que ela venha toda a caber toda em algum tipo de formulação.

Justamente no mesmo ano em que Gödel demonstra seus teoremas, Hitler torna-se o Führer e a barbárie toda começa. Ou seja, não estamos realmente em plena vertigem, mas, pelo contrário, estamos-nos iludindo a respeito da possibilidade de falsificar alguma coisa que não poderemos nunca atingir. Ao mesmo tempo em que aparece a tensão com a realidade, este questionar-se a si mesmo sobre como saber de maneira mais precisa as questões fundamentais, como faz Kurt Gödel, ocorre o momento máximo de barbárie. Começa aquele horror sinistro que vai levar um dos povos mais desenvolvidos do Ocidente, o povo de Goethe, de Schiller, a dedicar-se a colocar gente dentro do forno para acabar com um outro povo inteiro, e tudo em nome de uma boçalidade completa e total!

Essa realidade também vai influenciar-me de maneira fundamental porque, vinte anos depois, quando eu for começar a escrever, é natural que haja um sentimento de ordem – afinal de contas, todos sabíamos quanto tinha custado para que a razão predominasse, para que a luz predominasse sobre a treva. Quando digo razão, isso não significa racionalismo: o racionalismo é a doença da razão, como muito bem o definiu o papa Pio X. É-se racionalista na medida em que não se é capaz de usar a razão para compreender que não se entendeu, para saber que a realidade é maior que aquilo que se pode definir.

Quando eu me proponho expressar essa realidade na esteira de uma verdadeira hecatombe, a simbologia da luz sobre a treva – que não é nenhuma novidade -, terá um papel decisivo. A luta entre o bem e o mal simbolizada – se se quiser usar esse termo – nesse confronto entre a escuridão e a luz vai se tornar, no meu pensamento, um elemento de novidade. Descubro a metáfora dessa luz deliqüescente – e daí o meu particular interesse pela pintura -: essa luz que desmaia, em que a percepção humana não tem total noção da clareza das coisas, não consegue anular a treva. Aparece, então, a noção de luz pensada e dessa luz que treme, que, do meu ponto de vista, é talvez a metáfora mais exata para a condição humana.

   Canto, filho da luz da zona ardente,
coisas que vi a luz, sempre estrangeira,
tecer no ar e inevitavelmente
ir baixando com modos de rendeira
   ao tear deste mundo. A vida inteira
vi me escapar a luz do sol cadente,
e é essa rosa de sangue na fogueira
que agora arranco às dúvidas da mente.
   mente o intelecto que se esquece dela.
Se a pura luz de leste se desdiz,
a cada ocaso há no final feliz
   dos números da mente a bagatela
de uma luz de mentira. Contra ela
fui tecendo este meu canto de aprendiz. [6]

É essa necessidade de aceitar que tudo aquilo que nós amamos está sempre a ponto de se pôr como o sol, está tingido por essa luz de ocaso que não é menos bela por sê-lo – ao contrário, talvez até seja mais bela, mais doce, mais dolorosa por isso. Não existe triunfo nenhum no formalismo que nos propõe a ciência do número, o mundo como Idéia. Nesse nosso mundo, a idéia pode tentar substituir, sem jamais conseguir fazê-lo, essa luz que treme e que é o único momento de verdade do ser. Teremos que renunciar aos sonhos alucinantes do intelecto se quisermos perceber alguma coisa desse mundo que se esvai, que perdemos e que é bonito justamente porque o perdemos.

V.

Atualmente, encontramo-nos em uma situação particular: somos chamados a pensar a condição cultural da humanidade de uma maneira como não o havíamos sido desde a Primeira Guerra Mundial. De forma cada vez mais surpreendente, inclusive para mim, eu vejo que toda essa questão do mundo moderno cabe cada vez mais na moldura traçada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici gregis, “Apascentando o rebanho de Deus”, na qual este homem de uma inteligência brilhante conseguiu definir o inefável, que aliás tinha todo interesse em continuar a ser nebuloso. O modernismo não é nada além disso: o nebuloso tentando passar-se por inefável. Antes de poder criticar, o que papa Pio X fez foi um enorme esforço de entendimento daquele monstrengo que se estava formando. O quadro que traçou seria completado mais tarde com outro livro fundamental para compreender o século XX, que é La trahison des clercs, de Julien Benda [7]. Com estes dois trabalhos, temos os pilares a partir dos quais podemos entender o mundo moderno

É necessário, sobretudo, encaixar o Brasil nesse panorama: que visão de Ocidente nos tínhamos proposto a nós mesmos, e com que resultados a havíamos imaginado e participado dela como última província do Ocidente – última no sentido de a mais distante, mas nem por isso a menos significativa. Aquilo que nós produzimos de mais profundamente nacional, que não é a anta nem o saci, o aspecto folclórico das coisas, mas algo que faz com que todo mundo perceba uma realidade completamente nacional. Paradoxalmente, nós não fizemos como os europeus: ao invés de estarmos a nos perguntar o que valíamos, simplesmente fizemos algo. Por exemplo, houve um momento em que todos os brasileiros perceberam exatamente que “é doce morrer no mar”.

Essa sensibilidade, brasileira e só brasileira, esteve presente em tudo. Não é superior, não é inferior, mas é indispensável para o nosso modo de ser. Em nenhum momento será tão impressionante e tão tipicamente nacional quanto nas Bachianas de Villa-Lobos e nos poemas de Manuel Bandeira e Cecília Meireles, por exemplo. É como dizia Clarice Lispector: “Bem, se Machado foi possível, o Brasil é possível”.

Joaquim Maria Machado de Assis é a expressão suprema da inteligência e da sensibilidade brasileiras, ele que era um crioulinho que descia o Morro do Livramento para vender doces, descalço porque não tinha sapatos. Esse homem consegue ser indiscutivelmente o maior escritor, o maior pensador e certamente o maior romancista que América Latina já havia tido até então. Se isso foi possível, fica claro que a jabuticaba não é a única coisa boa que nasce no Brasil e não tem em nenhum outro lugar. Quando a América Latina produz o escritor que vai impressionar toda a Europa, Jorge Luis Borges, que nasceu em 1899, Machado de Assis, que nasceu em 1839, já o tinha precedido de muitas décadas.

Pois bem, se somos um aglomerado de macacos, somos uns macacos muito precoces, e só vamos começar a ter uma noção do que realmente somos nos anos de 1930, algo como 125 anos depois da chegada, aqui, da corte de Dona Maria. Mas como foi possível que os argentinos, que tinham por trás toda a extraordinária tradição de Cervantes, Fray Luis de León, Góngora, tenham demorado tanto tempo para ter um Borges, enquanto nós, que não tínhamos quase nada – descendíamos de uma espécie de Albânia Atlântica -, conseguimos precedê-los com a genialidade de Machado?

Nós não saímos in the pole position. Tínhamos Camões, realmente um poeta caolho que escrevia muito bem, que é um grande poeta para nós que sabemos ler português, mas que não teve eco nenhum na Europa e não é uma voz, estritamente falando, européia. Porque Portugal olha para o mar e, quando começa a olhar mais longe, logo lhe aparece o Brasil. Aparece essa confusão, essa coisa inexplicável espremida between the devil and the deep blue sea.Somos essa coisa imensa, toda desconjuntada, entre o mar profundo e a selva, mas nesse meio surge um pretinho que faz quatro dos grandes romances do século XIX. Há um grande mistério nisso tudo.

Se o homem é uma travessia do enigma ao mistério, então somos um exemplo perfeito disso, que começará a ser questionado na década de 30. Tia Lúcia Miguel Pereira publicou Machado de Assis em 1934; Dr. Gilberto Freyre havia publicadoCasa grande & senzala e concebido um entendimento magnífico e único do Brasil, e Dr. Sergio Buarque de Holanda fez Raízes do Brasil. São três livros importantíssimos naquele momento, que são como que pontos de interrogação. A essa altura, tínhamos apenas cinqüenta anos de projeto nacional, e cada um dos três nos trouxe uma resposta complementar para a pergunta: “O que somos? O que tivemos?”

Eu tive uma sorte enorme de crescer em meio a essas pessoas. Dr. Gilberto vivia no Recife, mas quando vinha ao Rio de Janeiro freqüentava a casa de minha tia Maria Clara, e um garotinho ali no canto ouvia tudo. Dr. Sérgio morava no Pacaembu, em São Paulo, de maneira que era mais fácil vê-lo; ele era uma das pessoas que mais entendiam de literatura anglo-americana, o que também o tornava muito interessante. Enfim, eram pessoas que eu via e cuja conversa ouvia, como também Dr. Afonso Arinos, Gustavo Capanema – e não me pareciam nada macacos, não eram nada primitivos. Cecília Meireles, fui conhecê-la em 1949, quando aquela estátua entrou lá em casa – uma versão positiva do visitante de pedra do final de Don Giovanni, mas que não vinha trazer a danação, muito pelo contrário! O Manuel [8] sempre viveu por lá, ele era um celibatário que comia sempre na casa dos amigos e teve, pasmem, seu primeiro rádio, que também tocava discos, aos setenta anos, em 1956.

Crescendo num ambiente assim, nunca me passou pela cabeça que eu procedesse, como dizem hoje, de um país subdesenvolvido, emergente. Nunca ouvi falar nada disso, e se me dissessem que o Brasil era um país emergente quando garoto, era capaz de confundir com detergente. Muito cedo queriam me mandar para Europa, e eu não entendia. Para que, se a Europa inteira vinha para cá? Tinha o Krajcberg, o Dr. Carpeaux, Vilém Flusser etc. Eu não conseguia entender esse sentimento de inferioridade, que já estava começando a entrar na moda. Para mim, europeu tinha muito a ver com barbárie.

Aliás, por sinal, qual não foi a minha surpresa quando decidi informar-me sobre a cultura russa, que estava muito na moda graças a toda aquela pompa de “a Rússia é o futuro do mundo”. Nunca acreditei muito nisso, mas resolvi ir ver o que era o tal comunismo, essa fórmula para a salvação da humanidade em que ninguém tinha pensado até então. E a minha surpresa foi chegar em São Petersburgo, que na época se chamava Leningrado, devido a um celerado que passou por aí, e descobrir qual era o terceiro poeta mais lido naquele país. O mais lido de todos era Pushkin, claro; o segundo era o poeta nacional da Escócia, Robert Burns. E o terceiro? Era… Tomás Antônio Gonzaga! Eles tinham uma sociedade inteira, a terceira sociedade lírica da Rússia, que se reunia, estudava e declamava todo o mês a Marília de Dirceu!

Vamos começar tudo outra vez: essa turma, ou estava ameaçando o resto do mundo com a bomba atômica, ou estava lendo a Marília de Dirceu! Levei anos para compreender a realidade cultural russa, que era tão esquisita que, embora eles dançassem maravilhosamente e fizessem todas aquelas maravilhas, de Pushkin a Tolstoi a Dostoievski, liam A Marília de Dirceu nas horas vagas… Já no Brasil só mineiro a lê, e um pouco por obrigação.

Assim, aos poucos, fui descobrindo vários vestígios dessa esquisitíssima qualidade brasileira – uma coisa difusa, particular, em nada metida a sebo. Brasileiro pede desculpas por estar ali, para não parecer muito mal-educado, mas depois “vai cuidar da sua vida” porque “nóis fumo e não encontremo ninguém”. Não era necessário, naqueles anos antes do gramscismo, querer que Fidel Castro e Che Guevara nos ensinassem como fazer o Brasil, criar essa condição de “é preciso fazer um novo país”.

VI.

Toda esta meditação sobre o Brasil e sobre o Ocidente cabe perfeitamente na moldura que esboçamos: de um lado, a Pascendi; do outro, o livro de Julien Benda.

Em 1905, o que papa Pio X faz com a sua encíclica é inaugurar uma análise do modernismo. Ele precisava saber o que era tudo aquilo que estava acontecendo, definir primeiro o que era o modernismo, para depois poder dizer o que aquilo significava e para onde provavelmente iria nos levar. Porque o modernismo se propunha como uma grande novidade, como uma grande beleza, mas não mostrava a cara e não podia mostrá-la porque, afinal, não se entendia a si mesmo. Tocou então à Santa Madre Igreja procurar saber o que era aquilo para poder ter uma opinião a respeito.

O modernismo não sabe o que quer, ou antes, define-se por aquilo que não quer. Não quer essa velharia toda que está por aí, precisa acabar com tudo para construir um mundo novo, um mundo moderno, e para isso vamos todos ser modernistas. Mas o que exatamente vem a ser este mundo tão maravilhoso e moderno, ninguém o explica. E o esforço da Pascendi vai exatamente nesta direção, a de entender o que é e o que quer o modernismo.

Logo em seguida, dez anos depois, irrompe a primeira guerra mundial e começa a mostrar o que a Encíclica estava dizendo. Trinta anos depois, Adolf Hitler já está construindo seus campos de concentração e o Gulag está sendo criado. O mundo moderno estava sendo construído ali, diante dos nossos olhos.

Hoje, infelizmente, sabemos muito bem que mundo moderno é este, para onde ele nos leva, e que o ideal dos ideais é o bebê de proveta. Hoje em dia, qualquer coisa é a famigerada liberdade, que ninguém definiu exatamente enquanto furava os olhos dos outros. Os pogroms, os massacres, os horrores todos, sempre em nome do mundo como Idéia, de uma certa idéia do mundo que passaria a ser o nosso objetivo. “Nós vamos construir um mundo tão maravilhoso que você poderá nascer com uma cara e morrer com outra, basta colocar um pouco de botox aqui, outro tanto ali, e você vai ficar uma maravilha… Ninguém terá doença nenhuma, mas até chegar lá vamos matar quem estiver no meio”…

Quando o papa percebeu que o que ele tinha escrito estava pura e simplesmente acontecendo, tomou um grande susto, pois talvez não quisesse ter tanta razão. Daí a trinta anos o mundo está em pânico, e a metade que não está em pânico está desfilando o mundo moderno. Nesse momento, os intelectuais entram num beco sem saída, e é justamente disto que o livro A traição dos intelectuais vai nos advertir. O intelectual deixa de ser responsável para ter razão haja o que houver: precisa construir um mundo formidável, embora a cada meia dúzia de cabeças se encontre uma fórmula diferente. Os nazistas, os comunistas, os fascistas estão todos prontos para brigar, para acabar no filme do Kubrick, Dr. Strangelove, no sujeito que adora bomba, ama a bomba atômica.

Naquele momento, todo mundo achava que estava fazendo uma coisa maravilhosa; podia-se estar de um lado ou de outro, mas todos, naquele momento, construíam a modernidade, o resto era velharia. Quando se chegou à catástrofe do anos 40, não havia mais tempo para pensar no que fora dito, pois tudo agora parecia irrelevante, e o máximo que os intelectuais concebiam era a possibilidade de não terem estado de todo certos. Então, de erro em erro, começaram a corrigir essa visão de mundo, esse mundo-como-Idéia, e propor a cada vez uma nova deformidade, convencidos de que era algo de primeira qualidade.

Esse é o modus operandi do modernismo: não estar nunca satisfeito com aquilo que se acabou de fazer, pois não era nunca aquilo que se tinha em mente, eraquase. “Vamos tentar mais uma vez, diz-se, e se for preciso matar algumas pessoas, enfim, não há outro jeito”… Resultado: acaba-se entrando numa esquizofrenia extraordinária e vai-se ficando cada vez mais moderno na medida em que se tem menos certeza das coisas, até chegar ao chamado niilismo. “Ficamos todos por aqui, não somos nada, tudo é nada, viva o nada”, e pronto!

Mas não pára por aí. Agora é preciso buscar uma maneira de que esse nada seja menos nada, ou um pouco mais nada que o nada. De nada em nada, começa a canonização dos jogos mentais. Quando cheguei à França, em 1964, havia lá um livro extraordinário que já prenunciava tudo isso: Le degré zéro de l’écriture, “O grau zero da escrita”, de Roland Barthes. Com o passar do tempo, apelidei aquilo de Le degré zéro de l’imposture, mas achei que ainda era muito enobrecedor, e, como as palavras écriture, imposture e épluchure têm mais ou menos o mesmo som, finalmente cheguei a Le degré zéro de épluchure, “O grau zero da casca de banana”, como se o macaco pegasse a banana e jogasse a fruta fora porque acabou de descobrir a casca. Um país inteiro, que já deu Baudelaire, Racine, Villon, até Voltaire com aquele beicinho, uma das grandes culturas do mundo, de repente descobre a casca de banana e lança-se inteiro naquele estado de adoração do nada.

Não demoraria muito até que nascesse daí toda uma escola: a do Deleuze, da Kristeva, do Derrida-ou-desce. A partir de então, passa a ser proibido pensar, e os franceses vão ocupar-se da perfumaria intelectual que eles andam espalhando pelo mundo. Eles levam o relativismo a um ponto tal que só mesmo rindo, mas quando se percebem os resultados de tudo isso, vê-se que não é nem um pouco engraçado.

Ao longo destes cem anos, pois, o mundo foi concordando com o papa Pio X, foi ilustrando a Pascendi. Como não lhe agrada nada concordar com ela – só faltava agora concordar com um papa! -, propõe-se inventar outra moda, outra deformação. O mundo-como-Idéia faz das tripas coração para não concordar com a Igreja, que afinal é coisa de velha e que ninguém mais quer.

O grande esforço não é tanto definir o mundo-como-Idéia, porque pode ser mil coisas, mas saber qual é o processo que faz com que uma pessoa prefira aquilo que projeta em lugar daquilo que é chamado a observar. Qual foi esse caminho dentro da vida intelectual do século XX, como chegamos ao grau zero da casca de banana, como se deu esse Derrida-ou-desce.

Esse processo não dificulta apenas o presente, mas abole o passado. Se você define um futuro que vê como ideal e para o qual quer tender, isso vai tornar o seu presente muito complicado porque, para chegar até lá, precisará lidar com todas as confusões do dia de hoje que não se ajustam a essa idéia de futuro que criou. Por isso, o seu presente será muito conflituoso; no entanto, conseguimos viver em meio a conflitos, é próprio do ser humano enfrentar os paradoxos do dia-a-dia.

O pior não é que essa idéia o impede de viver as coisas como são, mas que o obriga a destruir o seu passado. Para poder manter essa visão de presente que você anuncia em nome do futuro, tudo o que foi precisa tornar-se suspeito. Passa a ser sua missão destruir as possibilidades de contar com esse passado como ajuda. Ora, todos nós temos um passado, uma memória, alguma coisa de que nos lembramos muito bem; um tesouro qualquer de que não queremos abrir mão com tanta facilidade. Mas será necessário jogar tudo isso fora para ter um presente “limpo” em nome do futuro, ou da idéia de um futuro que vem por aí.

Você joga fora o passado e passa a viver num presente que é um deserto, em nome dessa idéia de futuro que, quase com certeza, não chegará nunca. E essa promessa que você tem é uma coisa extremamente adaptável: pode chamá-la de niilismo ou do que quiser, mas o fato é que ela trará consigo um ódio a tudo o que existe. “Ah, mas isso são velharias”, “Ah, mas isso é de ontem”, “Ah, mas isso não se usa mais”, é o que mais se ouve hoje em dia. Esse drama é o que eu chamo o mundo-como-Idéia: você não pode mais ter um presente, um passado e um futuro, só pode ter aquilo que fizer agora: é uma idolatria, é uma apostasia e é uma pirraça com a vida.

O homem vai-se tornando assim um autômato, uma máquina, e a sua vida passa a não ter sentido nenhum. Como disse, essa postura vai aparecer na filosofia, na literatura, na legislação e em praticamente todos os aspectos. O que papa Pio X nos advertiu foi exatamente disso, dessa urgência de não ter um passado, dessa vontade humana de criar alguma coisa de tão novo que não viesse de canto nenhum. Não é muito diferente do que se vem conseguindo com a promessa de que os embriões nos vão curar de tudo, os embriões que não vão mais nascer estarão aí para garantir nosso futuro. Essa espécie de pesadelo não estaria aí sem a proposição do mundo-como-Idéia, de alguma coisa melhor que você pode conseguir jogando fora tudo o que tinha.

Com isso, convido-os a preparar as suas dúvidas. Ter dúvidas significa ter um passado. Não tenham tantas certezas assim, perguntem-se se aquilo que lhes é vendido hoje como a verdade realmente vem de alguma coisa, se aquilo tem raízes dentro do seu modo de imaginar. Se conseguirem fazer isso, valerá muito mais a pena que qualquer outra coisa.

Cada um deverá perguntar-se, ter um passado de que não se lembra mais muito bem, que não sabe muito bem como julgar, de que não sabe com clareza que valor tem para si; mas algum valor tem, e você não deve querer trocá-lo por coisa alguma. Se vocês não fizerem isto, ficarão apenas ouvindo este velhote cacarejar feito uma galinha choca e não vão perceber que essa liberdade está dentro de vocês, de cada um. E essa liberdade passa pela defesa encarniçada daquilo que vocês já têm, e que não pode ser trocado por nada que lhes seja prometido para amanhã. Troquemos as nossas certezas por diversas perplexidades, e aí nós vamos, quem sabe, nos entender.

Quem esteve presente nessas aulas do Bruno, lembra-se do esforço hercúleo que fez para pronunciar as palavras. Doze horas depois da última palestra, foi internado com uma grave crise hepática; ainda viria a recuperar completamente a consciência e a ter perto de si as pessoas que lhe eram próximas, mas já não saiu do hospital até a manhã do dia 27 de junho, quando faleceu.

Bruno Tolentino (1940-2007) publicou As Horas de Katharina (prêmio Jabuti 1995), A balada do cárcere (prêmio Cruz de Souza 1996 e Abgar Renault 1997),O mundo como Idéia (prêmio Jabuti 2003) e A imitação do amanhecer (prêmio Jabuti 2007).

Guilherme Malzoni Rabello é Engenheiro Naval pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Presidente do IFE.

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NOTAS:

[1]Classicamente, entende-se a santidade como a plenitude do ser, do ser-homem (n. do e.).

[2]No final da vida, em 1273, depois de uma experiência mística cujos detalhes nunca revelou, Tomás de Aquino quis queimar todos os seus escritos. Foi impedido de fazê-lo pelo secretário, frei Reginaldo, que lhe perguntou o porquê daquilo. A resposta de Tomás foi: “Não posso mais. Tudo o que escrevi me parece palha perto do que vi” (n. do e.).

[3] Poemas 128-142 de As horas de Katharina (São Paulo: Cia. das Letras, 1994);  o poema O segredo encerra a série (n. do e.).

[4] O Mundo como Idéia (São Paulo: Globo, 2002); A Imitação do Amanhecer(São Paulo: Globo, 2006).

[5]“Denn das Schöne ist nichts / als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen, / und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht, / uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich” (Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, “Primeira Elegia”; n. do e.).

[6] “A imitação da música”, em O mundo como Idéia, I.

[7]Publicado no Brasil como A traição dos intelectuais, trad. Paulo Neves (São Paulo: 2007, Ed. Peixoto Neto).

Texto originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, nº 1, Jun/2008.