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Livres, mas para quê?

Opinião Pública | 29/11/2017 | | IFE CAMPINAS

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Embora a modernidade tenha aberto muitas possibilidades ao homem, poucos se comprometem verdadeiramente com um ideal que valha a pena. O homem moderno parece ter-se libertado de muitos obstáculos que entravavam a sua liberdade de fora, sobretudo depois dos totalitarismos do século XX, mas não consegue libertar-se de suas limitações internas.

Grande parte da atual confusão acerca da liberdade se deve ao fato de pensarmos que a liberdade consiste apenas na ausência de limitações externas, esquecendo-nos de que são tão ou mais importantes as limitações internas, buscadas ou simplesmente aceitas, que impedem o desenvolvimento da nossa verdadeira personalidade. Trata-se, essencialmente, de possuir e de saber exercer um potencial interior que inclui o domínio, a posse e a realização de si, todos em íntima relação.

“Tornas livre um homem”, dizia Luther King, líder da campanha em favor dos direitos civis dos negros americanos, “mas ele ainda não é livre. Falta ainda que se liberte a si mesmo”. O homem moderno quer ser livre “de”. Mas o seu problema consiste em não saber “para” que deve ser livre.

E, como resultado, corre o perigo de perder ou abandonar a sua liberdade, nem que seja pela simples razão de ser cada vez menos capaz de se propor uma meta que valha a pena, para a qual possa orientar essa mesma liberdade.

Em nenhuma outra época na história, a humanidade teve, ao seu dispor, tantos recursos técnicos: informações imediatas, precisão de dados, rotinas de trabalho facilitadas, livre acesso a fontes de informação distantes, bens de consumo a preços acessíveis.

Por outro lado, em nenhuma outra época, os homens sentiram tanta falta de critérios, os quais, não raro, são determinados por terceiros para que baseiem suas escolhas sobre estes. Somos uma sociedade que investiu maciçamente no desenvolvimento tecnológico, mas se esqueceu do desenvolvimento moral, de ensinar critérios de valor capazes de fundamentar as decisões.

Por isso, temos medo da liberdade, porque não conseguimos mais distinguir o bem do mal. Depois de anos e anos de relativismo filosófico-cultural, pode-se chegar ao absurdo de pensar que dar uma esmola a um mendigo como deixá-lo morrer de fome são posturas axiologicamente iguais. Temos argumentos lógicos e estatísticas que justificam ambas as atitudes.

É evidente que, se apresentamos as coisas desta forma, aquilo que ainda resta de humano em nós revolta-se contra semelhante paralelo, mas quantos de nós conseguiriam argumentar com clareza sobre o que é certo fazer e por que é certo fazê-lo?

A sociedade contemporânea perdeu o sentido de finalidade. Conseguimos chegar a um razoável acordo sobre os meios e os procedimentos, mas se perguntássemos a cada cidadão qual é o fim que se deve perseguir na sociedade, se questionássemos cada um sobre o “para quê” de tudo isso, dificilmente chegaríamos a um consenso. Essa dificuldade é uma consequência do desacordo com relação ao que é o bem.

Platão, no seu diálogo “Górgias”, já advertia que há uma grande diferença entre o gosto e a vontade, entre algo que me faz bem ou que me faz mal. E exemplificava: se, para recuperar minha saúde, é necessário tomar um remédio do qual eu não gosto, a minha vontade – por um ato de decisão livre – pode querê-lo.

E o mesmo filósofo explicava que essa capacidade é precisamente a liberdade. A liberdade é a qualidade da vontade que permite a autodeterminação – a livre escolha –, tendo em vista o fim que me convém, como ensinava Platão.

Eis o calcanhar de Aquiles de todos os relativismos morais: se não há bem e mal, certo e errado, se não há uma finalidade que determine o critério das nossas escolhas, então tudo é permitido. Não há razão para estabelecer risíveis regras de convivência, éticas de conduta ou normas de comportamento. Serão meros condicionamentos cheios de formalismo e ocos de substância.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 29/11/2017, Página A-2, Opinião.

Mercado: limites morais?

Opinião Pública | 11/10/2017 | | IFE CAMPINAS

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Não faz muitos anos que uma conhecida administradora de cartão de crédito dizia, em seu comercial, “que havia coisas na vida que não tinham preço, mas, para todas as outras, existia o cartão de crédito dela”, embora o da concorrente fosse tão bom quanto.

De lá para cá, ao que parece, o cenário mudou: pode-se ganhar muito dinheiro perdendo peso em desafio televisivo; participando de programa de exposição coletiva da intimidade alheia; vendendo o direito de lançar toneladas métricas de gás carbônico na atmosfera; “terceirizando” a gestação na barriga alheia e, como o céu é o limite, é possível ficar rica leiloando a própria virgindade.

Vivemos numa época em que quase tudo pode ser comprado ou vendido. O deus mercado e “sua mão invisível” passaram a governar nossa vida como nunca. Com o fim da Guerra Fria, ele assumiu um prestígio sem precedente, boa parte dele decorrente do fato de que nenhum outro mecanismo de organização e produção de bens tinha se mostrado tão eficaz na prosperidade material da maioria dos povos e nações.

Mas não nos demos conta de que, na medida em que esse deus alcançava domínios cada vez maiores, seus valores – estritamente econômicos – começavam a desempenhar um protagonismo cada vez maior não só no mundo das trocas de bens materiais. Mas para além dele. E não demoraram a adentrar na vida social. Nos dias atuais, a lógica do mercado não dá as cartas somente para o regime de oferta e de demanda de bens materiais, porque conduz crescentemente a vida como um todo.

Boa parte da crítica a respeito da última crise financeira limitou-se a apontar a falha moral do triunfalismo do mercado à ganância dos investidores, que os levou a assumir um grau de risco irresponsável. E, como é curial, a reprovação moral veio entoada pelo coro dos desocupados de plantão, dos intelectuais engajados e dos desajustados ideológicos, em mais um capítulo da série “muito barulho por muito pouco”.

Por muito pouco mesmo, porque o grau ensurdecedor da crítica tornou o diagnóstico superficial. Se a ganância teve sua parcela de culpa na crise, a maior mudança no perfil do mercado não foi o aumento estratosférico da ganância de seus agentes, mas a extensão do mercado e de seus valores para esferas da vida com as quais nunca guardou qualquer vínculo orgânico, como no caso da virgindade, que costumava ser perdida privadamente e não leiloada mundialmente.

Quando o pensamento e as regras do mercado assumem tal proporção na vida social, esta fica privada de um fundo moral. O mercado não costuma julgar as preferências de quem atende. Pouco lhe interessa se uma certa forma de avaliar um bem é preferível a outra.

Se alguém estiver disposto a pagar por sexo, vender um rim no mercado negro de órgãos ou alugar sua participação numa passeata qualquer e, do outro lado, existir um adulto disposto a negociar, a primeira pergunta será: “Quanto é?”. Entendemos muito disso, pois, afinal, no Brasil do “mensalão” e do “petrolão”, tudo é precificado.

Para vencer esse quadro, contornar a ganância é o menor dos problemas. Devemos, antes, repensar o papel que o mercado deve desempenhar em nossa sociedade. E, se for necessário, devolvê-lo para seu devido lugar. Para esse debate contemporâneo, precisamos analisar os limites morais do mercado, perguntar se existem certas coisas que o dinheiro não pode comprar e, ao fim, se for o caso, concluir que, para todas as outras, ainda existe o cartão de crédito da dita operadora.

Nossa época – a era do pensamento mercadológico – “fala muito de economia e esbanja possibilidades inovadoras”, diz a propaganda de um grupo de investimentos. Realmente. Economiza no debate dos limites morais do mercado e esbanja inovação ao faltar com critérios na escolha daquilo que pode ser comprado ou vendido. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 11/10/2017, Página A-2, Opinião.

Uma vida filosófica – por Marcelo Musa Cavallari

Filosofia | 14/07/2017 | | IFE BRASIL

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Alasdair MacIntyre at The International Society for MacIntyrean Enquiry conference held at the University College Dublin, March 9, 2009. Photo: Sean O’Connor.

 

Num momento importante em suas vidas, Martin Heidegger e Edith Stein encontraram-se pela última vez, para uma caminhada com seu mestre, Edmund Husserl. Começava a década de 1920. Husserl e a fenomenologia que ajudara a criar eram a mais instigante novidade no cenário filosófico alemão. Heidegger ainda não havia escrito sua obra máxima, O ser e o tempo, publicada em 1927, mas era o mais promissor dos alunos de Husserl. Uma estrela em ascensão em meio a um grupo, em geral, brilhante. Stein trabalhava como secretária de Husserl, estagnada na carreira acadêmica ao menos em parte por ser mulher e em parte por ser judia.

Terminado o passeio, os caminhos dos dois alunos de Husserl se afastam. O ex-seminarista Heidegger abraça o nazismo, que lhe deu cargos. A judia atéia Stein converte-se ao catolicismo, torna-se freira carmelita, morre em Auschwitz e é canonizada como Santa Teresa Benedita da Santa Cruz, seu nome de religiosa. “A direção da vida de Stein só se torna inteligível à luz de sua filosofia, e suas posições filosóficas são, de maneira significativa, informadas por suas experiências de vida”, escreve Alasdair MacIntyre em seu livro Edith Stein: a Philosophical Prologue 1913-1922. A frase serve como resposta à pergunta que dá o título ao capítulo inicial “Por que se interessar por Edith Stein como filósofa?”

Stein é, segundo MacIntyre, um exemplo moderno de algo comum na antigüidade: um filósofo que vive seu pensamento. O contraste com Heidegger, observa, não poderia ser maior. Depois da guerra, os seguidores de Heidegger criaram a versão de que a vida do filósofo – e seu envolvimento com o nazismo – era uma coisa, sua filosofia, outra. O repúdio àquela “aventura política” não deveria prejudicar a recepção de sua obra. “O próprio Heidegger, na última parte de sua vida, cooperou generosamente com aqueles que estavam estabelecendo as bases desse mito”, escreve ele. É a situação do filósofo como especialista universitário levada ao extremo. Para MacIntyre, que enfrentou a tarefa de pensar, se não diante de um evento tão definidor quanto a Segunda Guerra, ao menos diante de uma situação tão tensa quanto a Guerra Fria, o conforto da “poltrona de Oxford” não bastava.

Publicado em 2005, Edith Stein: a Philosophical Prologue 1913-1922, é o mais recente livro de MacIntyre. Nascido em 1928 em Edimburgo, ele vem publicando livros e artigos regularmente desde 1953. O interesse pela vida de Edith Stein amarra vários fios que sua investigação filosófica vem perseguindo desde o começo. E ilustra, como exemplo dramático de vida filosófica, uma outra vida filosófica: a do próprio MacIntyre.

No mundo de língua inglesa, ele é hoje um dos filósofos mais importantes e influentes. Especialmente no campo da filosofia moral. Chegou a ela através da política. Membro do Partido Comunista britânico até o início da década de 1950, saiu dele com a geração de escritores e pensadores que, desencantada com o rumo que o stalinismo imprimira ao comunismo internacional, fundaria a New Left britânica. MacIntyre, então no início de sua carreira acadêmica, lançou-se filosoficamente em busca da solução para um problema. O comunismo, e mais do que ele o marxismo, pareciam-lhe corretos em certos pontos. Basicamente a crítica ao capitalismo liberal e seu efeito destruidor ao transformar o homem que trabalha em uma mercadoria. Diante do sinistro quadro que se desenhara na União Soviética, no entanto, era claro que o marxismo tinha falhas graves. Se não implicava necessariamente uma ditadura sanguinária como a de Stalin – argumento da maior parte dos integrantes da New Left – também não era capaz de barrá-la. Faltava, dentro do marxismo, um argumento moral contra Stalin.

O diagnóstico de MacIntyre era de que o marxismo, ao se pretender científico, incorria num erro que vedava ou prejudicava toda argumentação moral. Parte do movimento socialista havia adotado a visão de que o marxismo era uma teoria científica. Assim, postulava causas para os comportamentos sociais e para a história. A primeira parte do caminho filosófico de MacIntyre lida, por causa disso, com o que se poderia chamar de filosofia das ciências sociais. Especialmente com a noção de causa aplicada a essas ciências. Causa, resume MacIntyre, entende-se na ciência como o conjunto das condições suficientes para que se dê um resultado. Isso elimina a escolha. A maçã não escolhe cair ou não na cabeça de Newton. Dadas as condições, ela cai. Uma ação humana, portanto, pode ter uma causa, ou pode ser fruto da vontade racional. Não as duas coisas ao mesmo tempo. Ora, o campo da filosofia moral é exatamente o da vontade racional e, por ser racional, livre. Posto fora desse campo pela pretensão científica, o marxismo se via impossibilitado de articular uma crítica moral que tornasse inaceitável a opção stalinista.

Era preciso, então, buscar uma alternativa. A mais evidente era a versão do humanismo socialista expressa por Eduard Bernstein em 1899. Para Bernstein, o socialismo era uma resposta moral do homem aos problemas sociais. O princípio básico era a idéia kantiana de que um ser humano não pode ser considerado como um meio. O homem é sempre um fim em si mesmo. Era exatamente isso que a versão stalinista do socialismo negava; logo, a alternativa humanista de Bernstein, se parecia boa no fim do século XIX, era claramente inútil na segunda metade do XX, o século do Holocausto e do Gulag.

O problema é que, fora do campo do socialismo, também não parecia haver nenhuma alternativa viável. O interminável debate em torno de questões morais que marca a modernidade revela duas coisas, segundo MacIntyre. A primeira é que o debate é interminável porque cada concepção moral fala a partir de seu próprio ponto de vista. Não há um critério ao qual possam apelar para resolver seus impasses os defensores das teses utilitaristas – que supõem que a ação moralmente correta é aquela que resulta em maior bem para o maior número de pessoas – ou deontológicas – os que supõem, na esteira de Kant, que a ação moral é aquela que decorre de princípios racionalmente estabelecidos, independentemente de quais sejam seus resultados.

A análise desse problema, e as componentes epistemológicas levantadas por MacIntyre em seu trabalho sobre causalidade nas ciências sociais e na psicanálise (na obra The Unconscious: a Conceptual Analysis, de 1958, em que MacIntyre acusa Freud do mesmo erro que apontara em ação nas ciências sociais, o de transformar em causa, portanto em encadeamento automático de situações, o que é fruto da vontade, ainda que inconsciente, no caso do objeto da psicanálise) levaram à sua mais ambiciosa obra, After Virtue. Traduzida para o português como Depois da virtude, o título significa ao mesmo tempo isso e mais do que isso. “Depois da virtude” é o sentido mais literal e aponta para o caráter histórico da obra. Ela é uma expansão do projeto iniciado por MacIntyre em 1966 com A Short History of Ethics e diagnostica a crise da filosofia moral moderna como um efeito de sua história. After Virtue, no entanto, também significa algo como “atrás da virtude”, “à caça da virtude” e, nesse sentido, representa o que MacIntyre propõe como solução para a situação atual de crise: a redescoberta da moral de virtudes em sua formulação clássica por Aristóteles, especialmente na versão do aristotelismo representada por São Tomás de Aquino. A escolha de Aristóteles, especialmente em sua versão tomista, não é aleatória e o caminho até essa solução não é simples. Articular todos os componentes da argumentação de MacIntyre vai muito além dos limites desse artigo. Mas três elementos permitem seguir, em traços rápidos, a sua argumentação geral.

Em primeiro lugar o diagnóstico da situação atual da filosofia moral como um debate feito em torno de termos e expressões – moral, bem, certo e errado etc. – cujo significado se perdeu. “Uma parte fundamental da minha tese é afirmar que o discurso e os métodos da moral moderna só podem ser compreendidos como uma série de fragmentos remanescentes de um passado mais antigo e que os problemas insolúveis que geraram para os teóricos modernos da moral permanecerão insolúveis até que isso seja bem compreendido”, escreve MacIntyre em Depois da virtude.

A moral clássica, tal como se desenvolveu desde a Antigüidade e que valeu, cristianizada, ao longo da Idade Média, pressupunha dois critérios fundamentais. Por um lado a moral visa a fazer do homem aquilo que ele deve ser por sua natureza. Assim, a moral das virtudes é teleológica. As virtudes visam a um fim específico. De outro lado, aquilo que o homem deve fazer é buscar o bem. Para articular cada bem particular evitando o relativismo, segundo o qual cada um considera bem aquilo que melhor lhe parecer, os bens articulam-se em torno de um Bem absoluto. Esses dois critérios fundamentais foram perdidos no início da era moderna. Sobraram apenas os termos em que o debate se dava. Sem os critérios, afirma MacIntyre, o debate contemporâneo se articula em torno de fantasmas. “Se o caráter deontológico dos juízos morais é o fantasma das concepções da lei divina, que é completamente estranha à metafísica da modernidade, e, se o caráter teleológico é, de maneira semelhante, o fantasma das concepções da natureza e da atividade humanas que também estão deslocadas no mundo moderno, devemos esperar que os problemas do entendimento e da atribuição de um status inteligível aos juízos morais continuem a surgir e se demonstrar hostis a soluções filosóficas”, escreve ele em Depois da virtude.

Em segundo lugar, é necessário superar a divisão entre visões de mundo estanques. Quando ainda se dedicava primariamente à epistemologia das ciências sociais, Thomas Kuhn publicou seu A estrutura das Revoluções Científicas, uma das mais influentes obras de filosofia da ciência. Nela, Kuhn lançou o conceito de paradigma, hoje banalizado. Ele argumentava que teorias científicas rivais não podem ser compreendidas uma com o aparato racional da outra. Quando das revoluções científicas, uma delas derrota a anterior. Muda o paradigma, nos termos de Kuhn. O novo paradigma não tem uso para o anterior. MacIntyre, sempre preocupado em evitar o relativismo, rejeita esse modelo. É preciso que haja algo pelo que os paradigmas rivais possam ser julgados. Se não for assim, não há motivo racional para mudar de um para o outro. E não havendo motivo racional para mudar, não há como apontar falhas morais, por exemplo, num “paradigma” stalinista, transportando a discussão de Kuhn para o campo das ciências sociais ou sua aplicação prática pelos marxistas. A solução para isso MacIntyre busca no conceito de narrativa, que ele elabora principalmente a partir da visão de história de R.G. Collingwood. É a narrativa que permite contar a passagem de um paradigma a outro, ou seja, que permite narrar o acontecimento histórico que é uma revolução científica. É ela a detentora da racionalidade pela qual se pode explicar a escolha de um paradigma em detrimento de outro. Essa narrativa contará como um paradigma ampliou o poder explicativo de uma ciência em particular, justificando, assim, de fora e acima de cada um dos paradigmas rivais envolvidos, a revolução científica representada pela troca de paradigmas. Essa narrativa é atividade de uma tradição dentro da qual seres humanos racionais se dedicam a uma investigação.

É esse mesmo modelo que ele propõe como solução para o insolúvel debate moral contemporâneo. A racionalidade do debate terá de ser restituída através da retomada da tradição na qual o Ocidente se engajou, desde a Antigüidade até o início da era moderna, em busca de um modo racional de entender como se deve viver, o ponto de chegada, afinal, de toda ética.

E assim, chega-se ao terceiro ponto básico do projeto de MacIntyre. Assim como a narrativa é aquilo que nos permite superar as divisões de um debate que se tornou fragmentado, é ela que vai dar forma a cada vida humana. Na altura em que escreveu Depois da virtude, publicado em 1981, MacIntyre considerava que o principal problema para a aceitação das virtudes tais como Aristóteles as entendia, era o que ele chamou de “biologia metafísica”. Para o grego, aceitar o fato de que a moral dita aquilo que o homem tem de fazer para se tornar o que ele deve ser não era um problema. Ele sabia de antemão, graças a essa “biologia metafísica”, o que o homem deveria ser. Essa alternativa, disse McIntyre em Depois da virtude, não está disponível ao homem contemporâneo. MacIntyre mudou um pouco sua posição desde então, especialmente à luz de São Tomás de Aquino. De qualquer forma, a solução para MacIntyre era uma vida inteligível. Se há parâmetros morais que podem ser estabelecidos racionalmente, então é necessário que silogismos práticos sejam possíveis. Isto é, de duas premissas teóricas, segue-se uma conclusão que é um ato, uma ação humana racional. Racional, portanto compreensível. Uma vida vivida moralmente, portanto, será uma vida compreensível, como uma narrativa. Uma vida que tem a possibilidade de atingir ou não a meta. Essa vida inteligível será inteligível para os outros e para quem a vive. Será, pois, uma narrativa capaz de superar as divisões em papéis sociais estanques que a vida moderna impõe ao homem contemporâneo.

MacIntyre não parou em Depois da virtude. Sua concepção de tradição sofreu algumas mudanças em livros como Whose Justice? Which Rationality? Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopaedia, Genealogy, and Tradition e Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues. Nesse último, MacIntyre praticamente aceita a “biologia metafísica” de Aristóteles que havia rejeitado e sua versão da história da filosofia moral sofre alguns ajustes, mas não abandona a direção dada por Depois da virtude.

Essa direção é, na verdade, o que torna inteligível a vida de McIntyre. Desde as preocupações que o levaram ao marxismo e, depois, afastaram-no dele e o levaram de encontro a Aristóteles e São Tomás. Graças a isso, MacIntyre também conseguiu articular a preocupação com o cristianismo que desde o início se apresentou a ele como uma possível alternativa para o marxismo. Em 1988, aos 60 anos, o filósofo se converteu ao catolicismo. Assim se explica seu interesse por Edith Stein como filósofa. Uma judia que abandonou a fé de seus pais e encarou a morte guiada por uma busca filosófica é um exemplo radical de vida inteligível. E tornar a vida inteligível é um papel que a filosofia precisa urgentemente recobrar.

Marcelo Musa Cavallari é jornalista.

Publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação, Dicta&Contradicta, Edição 4, Dezembro de 2009.

Ética e visão sobrenatural (por Gustavo França)

Filosofia | 21/07/2016 | | IFE RIO

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Trecho de “Choruses From the Rock”, de T.S. Eliot

Trecho de “Choruses From the Rock”, de T.S. Eliot

 

No mundo atual, em que pluralismo religioso e secularização estão na ordem do dia, talvez a mais tormentosa das questões morais que se apresentam para o debate filosófico seja a relação entre ética e religião. Afinal, seria a moral dependente de uma cosmovisão religiosa? A resposta do mainstream contemporâneo parece tender a um unânime e aparentemente óbvio “não”. Trata-se, porém, de uma resposta calcada na irreal ideia de que a religião é uma simples preferência privada, fruto de algum “sentimento espiritual”, inteiramente desvinculado de nossa atividade racional e de nossa vida no mundo. Se, entretanto, usamos nossa capacidade reflexiva de maneira mais cuidadosa, percebemos sem dificuldade que as questões teológicas são os pressupostos que informam toda a nossa visão de mundo nos campos da razão (por exemplo, a existência de Deus e o modo como concebemos Seus atributos nos leva a entender que o universo é ordenado ou que é caótico, e só a partir daí construímos a Ciência, ou nos põe como dados inescapáveis, para concebermos a disciplina histórica, a providência e o sentido teológico da História), o que nos mostra que o problema é mais complexo do que estamos acostumados a admitir.

Penso que uma boa maneira de conduzir essa investigação seja analisar dois notáveis pensamentos morais alheios ao que poderíamos considerar um esquema “teológico”, típico da filosofia escolástica: a ética de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), arquétipo da ética pagã da Antiguidade, e a de Immanuel Kant (1724-1804), arquétipo da ética racionalista liberal.

Aristóteles, no livro X de sua “Ética a Nicômaco”, nos recorda que a vida mais excelente para o homem é a vida do filósofo, isto é, a vida contemplativa. Isso porque a contemplação é a única atividade boa por si mesmo, que não está, como as ações instrumentais, vinculada a uma finalidade contingente e externa, mas é a sua própria finalidade. Quando nos dedicamos ao puro pensamento acerca das verdades eternas que regem a realidade, transcendemos as materialidades rasteiras da condição humana e atingimos uma vida divina (os deuses, em seu estado de perfeição, realizam unicamente a perene contemplação). O objetivo último da vida humana é superar sua realidade terrena e buscar o que há em si de sobrenatural. A vida virtuosa não é outra coisa senão a vida ordenada àquilo que é bom por si e não às coisas meramente úteis (boas para algum objetivo material).

Já para Kant, embora a ética se fundamente na razão pura, para que ela possa adquirir um sentido real como mais do que mera fantasia, é preciso que o ser humano não esteja definitivamente preso às suas limitações materiais. Se a existência humana se esgota neste mundo, uma lei eterna e universal absolutamente independente de tudo o que é empírico é um ideal quimérico, e, consequentemente, todo o esforço de autonegação para viver não segundo os impulsos, mas buscando um bem superior é vão. Por isso, torna-se necessário postular a existência de Deus e a imortalidade da alma, para que o homem possa cumprir sua vocação à eternidade, e a dignidade alcançada pela vida moral seja justamente honrada, de acordo com a natureza.

Como se vê, a percepção do sobrenatural é inexoravelmente necessária para a integridade última de qualquer pensamento moral sólido. É verdade que os preceitos morais estão ao alcance da razão natural. Entretanto, a vida moral exige que (ainda que inconscientemente) – se aderíssemos a uma linguagem kantiana – se pressuponha a existência de Deus: não é preciso acreditar em Deus, mas, pelo menos, agir como se Deus existisse.

Explico melhor: sendo a Ética o estudo do bem, e este um padrão eterno de normatividade, assim como a verdade e a beleza, ela (e toda a Filosofia, na verdade) se dirige às coisas cujo valor é superior ao dos objetos contingentes do mundo e cujo conhecimento é um bem maior do que as satisfações empíricas. Se a vida humana se esgotasse neste mundo, nenhum sentido haveria em buscar um bem que transcende a existência natural. Quando vislumbramos a grandeza da submissão aos ditames da nossa consciência como superior aos instintos e ao amor-próprio e concebemos uma responsabilidade que vai além das consequências imediatas de nossas ações, pressupomos implicitamente que nossa consciência não é passageira como as contingências mundanas.

Como bem nos mostra, por exemplo, a poética filosófica de T. S. Eliot (1888-1965), o sentido da vida humana não pode ser dado pelo empirismo. Se a materialidade encerrasse toda a nossa existência, seríamos os mais patéticos entre os seres. Ostentaríamos uma razão que, em sua sede de metafísica e de infinito, seria apenas uma máquina de delírios. Os animais, ao menos, são dotados apenas de instintos. Nós, munidos da razão, estaríamos condenados a reconhecer a inutilidade de nossa natureza e a agir igualmente segundo o instituto e a sucessão mecânica de necessidades.

A vida só pode encontrar sentido quando unida num trinômio à morte e à ressurreição. Se tiramos a ressurreição de cena, a morte perde qualquer lógica e se torna simplesmente um martelo indestrutível que arbitrariamente faz das mais poderosas obras humanas formiguinhas a serem fatalmente pisoteadas. Consequentemente, a vida se vê desprovida de qualquer valor. Somente a esperança na vida eterna justifica que nos direcionemos para os bens morais[1].

Conclui-se, assim, que a razão, por si só, é capaz de enxergar que a visão sobrenatural é pressuposto necessário para que se possa tratar da Ética. Mesmo um ateu é capaz de compreender que ao raciocínio moral subjaz a concepção da eternidade como nosso lugar próprio. Quando um descrente vive com retidão moral, mesmo sem o perceber, age como se Deus existisse. Creio que tenha ficado claro que não nego que a moralidade seja acessível à razão, mas a própria razão, mesmo sem buscar as luzes da revelação, mostra que a existência humana aponta para aquilo que lhe transcende. Quem não tiver os olhos postos no que é eterno jamais compreenderá a vida simplesmente boa e não útil ou confortável.

[1] Cf. Russell Kirk, “A era de T. S. Eliot”, pp. 477-478.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, em 22 de janeiro de 2016.

Sobre o vício e a virtude (Plutarco)

Filosofia | 03/06/2016 | | IFE CAMPINAS

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A virtude segundo uma escultura da Catedral de Sens (França), em gravura de Viollet-le-Duc (~1856).

A virtude segundo uma escultura da Catedral de Sens (França), em gravura de Viollet-le-Duc (~1856).

 

1. Parece que são as roupas que aquecem o homem, mas absolutamente nem o aquecem nem projetam calor – em si mesma, qualquer uma delas é fria, e por isso aqueles que ardem em febre ou se queimam ao sol trocam muitas vezes umas por outras -, senão é o calor que o homem produz por si próprio que a roupa, cobrindo o corpo, guarda e mantém, e não deixa que este calor do corpo volte a se dissipar.

Ora, no que concerne às ações humanas, esta mesma aparência engana a maioria: caso se cerquem de grandes casas ou reúnam grande quantidade de escravos e de riquezas, os homens crêem que viverão com alegria. Mas viver alegre e contente não lhe sobrevém de fora, senão que, ao contrário, o homem acrescenta prazer e alegria às coisas que o rodeiam, tirando-os como que da fonte do seu caráter.

Quando arde o fogo na lareira,
a casa é mais digna de ver,

a riqueza mais agradável, e mais ilustre o poder e a glória: porquanto a alegria vem da alma; donde, devido à facilidade e doçura de caráter, os homens suportam leve e brandamente a pobreza, o exílio e a velhice.

2.     Assim como os perfumes deixam olorosas vestes e roupas, enquanto o corpo de Anquises exalava malcheirosa secreção,

que ensopava o fino linho em suas costas, [1]

assim também, acompanhado de virtude, todo hábito ou tipo de vida é agradável e indolor – mas o vício, misturando-se às coisas que parecem ilustres, preciosas e veneráveis, torna-as sofríveis, nauseabundas e insuportáveis para quem as possui.

Julgam-no feliz na praça pública,
mas depois de entrar em casa é miserável:
manda em tudo a sua esposa, ordena, briga sempre [2].

Todavia, a ninguém que fosse um homem, não um pau-mandado, seria difícil livrar-se de uma mulher ruim; mas contra o próprio vício não há possibilidade de escrever uma carta de divórcio e assim abandonar de uma vez os próprios achaques e folgar, tornando-se auto-suficiente: o vício está sempre conosco em nossas entranhas, dia e noite acompanha-nos.

Consome sem tição e conduz a uma velhice precoce, [3]

sendo um péssimo companheiro de viagem por causa da sua presunção, dispendioso conviva por causa da gula, além de concubina insuportável, cortando e aniquilando o sono por meio de cuidados, preocupações e rivalidades. E então quem tenta dormir descansa e repousa apenas o corpo, enquanto sua alma, que vive de superstições, é toda terrores, agitações e pesadelos.

Quando adormeço e me arrebata a dor,
sou morto pelos pesadelos,[4]

diz alguém; e a um tal estado também dispõem a inveja, o medo, a ira, a intemperança.

Durante o dia, olhando para fora e tomando os outros como modelo, o vício fica envergonhado, oculta as paixões de que padece e não se entrega a todos os seus impulsos, mas amiúde lhes resiste e combate: porém em sonhos, fugindo ao bom-senso e às leis e ficando o mais distante possível da reverência e do temor, cogita todo desejo e desperta tendências malignas e libidinosas. “Ousa dormir com a própria mãe” (como diz Platão), leva à boca alimentos sacrílegos e não se abstém de ação alguma, deleitando-se em transgredir quanto possível por meio de imagens e visões que não terminam em nenhum prazer e realização do desejo, mas conseguem apenas agitar e exasperar suas paixões e perversões.

3.     Onde está, então, o prazer do vício, se em nenhum lugar há isenção de dores e cuidados, nem auto-suficiência, nem tranqüilidade, nem calma? Pois, com efeito, é o funcionamento equilibrado e saudável do corpo que dá lugar e origem aos prazeres da carne; mas é impossível que um prazer e alegria sólidos nasçam na alma se a confiança, o destemor e o arrojo não lhes abrirem como que um abrigo ou piscina natural, protegida das ondas – caso contrário, mesmo se alguma esperança ou alegria sorrir a essa alma, ei-la rapidamente -irrompendo nela um só cuidado, como uma borrasca no mar calmo – toda transtornada e demolida.

4.     Reúne ouro, junta dinheiro, edifica pavimentos, enche a casa de escravos e a cidade de devedores: mas se não aplainares o terreno das paixões da alma, nem contiveres teu desejo insaciável, nem te livrares de teus medos e cuidados, destilas vinho para quem tem febre, serves mel a quem sofre do fígado e preparas pratos e comidas para quem sofre de cólicas e disenteria; nenhum destes absorve esses alimento nem se fortifica, mas é ainda mais prejudicado por eles.

Não vês que os enfermos mal toleram e rejeitam as mais finas e caras iguarias, desculpando-se com os que lhas trazem e insistem em que comam? Depois, restabelecido o seu vigor, estando perfeita sua saúde, limpo o sangue e normal a temperatura, não vês que, já de pé, se comprazem e se alegram comendo um simples naco de pão com agrião e queijo?

É a razão que produz na alma uma tal disposição: serás auto-suficiente se aprenderes o que é o belo e bom; viverás na pobreza, e serás rei, e não terás menos felicidade numa vida pacata de homem privado do que se a levasses junto com cargos militares e civis. Se te entregares à sabedoria, não viverás sem prazer, mas aprenderás a viver alegremente em toda parte e com tudo o que se te deparar; regozijar-te-ás com a riqueza favorecendo muita gente, com a pobreza não tendo que gerir muitos bens, com a fama sendo um homem honrado, com a insignificância vivendo sem causar inveja.

Tradução a partir do original grego de Érico Nogueira, tendo por base a seguinte edição: Oeuvres Morales, Paris: Les Belles Lettres, v. 1, 2ª parte, 1989, págs. 250-3.

Plutarco nasceu em Queronéia, na Beócia, em 47 d.C., e morreu na mesma cidade em 120 d.C. Foi filósofo de inspiração platônica, amigo do imperador Trajano e dono de um estilo inconfundível. Sua obra se divide entre as Moralia, tratados de cunho moral entre os quais se inclui o que traduzimos aqui, e as Vidas Paralelas, biografias de varões ilustres, que contrapõem sempre um grego a um romano.

 


NOTAS:

[1] Verso de uma tragédia de Sófocles, hoje perdida.

[2] Citação de uma das comédias perdidas de Menandro.

[3] Hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 705.

[4] Citação de um poeta desconhecido, provavelmente da Comédia Nova.


Publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dezembro de 2008.