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Ética e visão sobrenatural (por Gustavo França)

Filosofia | 21/07/2016 | | IFE RIO

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Trecho de “Choruses From the Rock”, de T.S. Eliot

Trecho de “Choruses From the Rock”, de T.S. Eliot

 

No mundo atual, em que pluralismo religioso e secularização estão na ordem do dia, talvez a mais tormentosa das questões morais que se apresentam para o debate filosófico seja a relação entre ética e religião. Afinal, seria a moral dependente de uma cosmovisão religiosa? A resposta do mainstream contemporâneo parece tender a um unânime e aparentemente óbvio “não”. Trata-se, porém, de uma resposta calcada na irreal ideia de que a religião é uma simples preferência privada, fruto de algum “sentimento espiritual”, inteiramente desvinculado de nossa atividade racional e de nossa vida no mundo. Se, entretanto, usamos nossa capacidade reflexiva de maneira mais cuidadosa, percebemos sem dificuldade que as questões teológicas são os pressupostos que informam toda a nossa visão de mundo nos campos da razão (por exemplo, a existência de Deus e o modo como concebemos Seus atributos nos leva a entender que o universo é ordenado ou que é caótico, e só a partir daí construímos a Ciência, ou nos põe como dados inescapáveis, para concebermos a disciplina histórica, a providência e o sentido teológico da História), o que nos mostra que o problema é mais complexo do que estamos acostumados a admitir.

Penso que uma boa maneira de conduzir essa investigação seja analisar dois notáveis pensamentos morais alheios ao que poderíamos considerar um esquema “teológico”, típico da filosofia escolástica: a ética de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), arquétipo da ética pagã da Antiguidade, e a de Immanuel Kant (1724-1804), arquétipo da ética racionalista liberal.

Aristóteles, no livro X de sua “Ética a Nicômaco”, nos recorda que a vida mais excelente para o homem é a vida do filósofo, isto é, a vida contemplativa. Isso porque a contemplação é a única atividade boa por si mesmo, que não está, como as ações instrumentais, vinculada a uma finalidade contingente e externa, mas é a sua própria finalidade. Quando nos dedicamos ao puro pensamento acerca das verdades eternas que regem a realidade, transcendemos as materialidades rasteiras da condição humana e atingimos uma vida divina (os deuses, em seu estado de perfeição, realizam unicamente a perene contemplação). O objetivo último da vida humana é superar sua realidade terrena e buscar o que há em si de sobrenatural. A vida virtuosa não é outra coisa senão a vida ordenada àquilo que é bom por si e não às coisas meramente úteis (boas para algum objetivo material).

Já para Kant, embora a ética se fundamente na razão pura, para que ela possa adquirir um sentido real como mais do que mera fantasia, é preciso que o ser humano não esteja definitivamente preso às suas limitações materiais. Se a existência humana se esgota neste mundo, uma lei eterna e universal absolutamente independente de tudo o que é empírico é um ideal quimérico, e, consequentemente, todo o esforço de autonegação para viver não segundo os impulsos, mas buscando um bem superior é vão. Por isso, torna-se necessário postular a existência de Deus e a imortalidade da alma, para que o homem possa cumprir sua vocação à eternidade, e a dignidade alcançada pela vida moral seja justamente honrada, de acordo com a natureza.

Como se vê, a percepção do sobrenatural é inexoravelmente necessária para a integridade última de qualquer pensamento moral sólido. É verdade que os preceitos morais estão ao alcance da razão natural. Entretanto, a vida moral exige que (ainda que inconscientemente) – se aderíssemos a uma linguagem kantiana – se pressuponha a existência de Deus: não é preciso acreditar em Deus, mas, pelo menos, agir como se Deus existisse.

Explico melhor: sendo a Ética o estudo do bem, e este um padrão eterno de normatividade, assim como a verdade e a beleza, ela (e toda a Filosofia, na verdade) se dirige às coisas cujo valor é superior ao dos objetos contingentes do mundo e cujo conhecimento é um bem maior do que as satisfações empíricas. Se a vida humana se esgotasse neste mundo, nenhum sentido haveria em buscar um bem que transcende a existência natural. Quando vislumbramos a grandeza da submissão aos ditames da nossa consciência como superior aos instintos e ao amor-próprio e concebemos uma responsabilidade que vai além das consequências imediatas de nossas ações, pressupomos implicitamente que nossa consciência não é passageira como as contingências mundanas.

Como bem nos mostra, por exemplo, a poética filosófica de T. S. Eliot (1888-1965), o sentido da vida humana não pode ser dado pelo empirismo. Se a materialidade encerrasse toda a nossa existência, seríamos os mais patéticos entre os seres. Ostentaríamos uma razão que, em sua sede de metafísica e de infinito, seria apenas uma máquina de delírios. Os animais, ao menos, são dotados apenas de instintos. Nós, munidos da razão, estaríamos condenados a reconhecer a inutilidade de nossa natureza e a agir igualmente segundo o instituto e a sucessão mecânica de necessidades.

A vida só pode encontrar sentido quando unida num trinômio à morte e à ressurreição. Se tiramos a ressurreição de cena, a morte perde qualquer lógica e se torna simplesmente um martelo indestrutível que arbitrariamente faz das mais poderosas obras humanas formiguinhas a serem fatalmente pisoteadas. Consequentemente, a vida se vê desprovida de qualquer valor. Somente a esperança na vida eterna justifica que nos direcionemos para os bens morais[1].

Conclui-se, assim, que a razão, por si só, é capaz de enxergar que a visão sobrenatural é pressuposto necessário para que se possa tratar da Ética. Mesmo um ateu é capaz de compreender que ao raciocínio moral subjaz a concepção da eternidade como nosso lugar próprio. Quando um descrente vive com retidão moral, mesmo sem o perceber, age como se Deus existisse. Creio que tenha ficado claro que não nego que a moralidade seja acessível à razão, mas a própria razão, mesmo sem buscar as luzes da revelação, mostra que a existência humana aponta para aquilo que lhe transcende. Quem não tiver os olhos postos no que é eterno jamais compreenderá a vida simplesmente boa e não útil ou confortável.

[1] Cf. Russell Kirk, “A era de T. S. Eliot”, pp. 477-478.

Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, em 22 de janeiro de 2016.

A Virgem e o comunismo

Teologia | 29/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Reprodução

Ilustração: reprodução

 

Há quase cem anos a notícia de que três crianças portuguesas, de sete, nove e dez anos de idade respectivamente estavam vendo e conversando com a Virgem Maria agitou a imprensa internacional e estarreceu a própria Igreja.

Eram três pequenos pastores de ovelhas, muito pobres, analfabetos e que não sabiam nada de política e quase nada de teologia. Já na primeira aparição, Nossa Senhora pediria à Lúcia, a mais velha dos três e que era a única que falava com a Virgem, visto que Francisco só a via, mas não a ouvia e Jacinta a via e ouvia, mas não falava com Ela, que aprendesse a ler e escrever. Lúcia seria a transmissora dessas desconcertantes mensagens.

A Mãe de Jesus avisava que seu Filho estava muito ofendido com os pecados da humanidade e que seu braço pesava sobre os muitos erros que se cometiam indistintamente em todo canto. A aparição ocorreu pouco tempo antes do fim da Primeira Guerra Mundial e Nossa Senhora fazia um apelo à conversão, pedia a reza do terço diariamente, a frequência aos sacramentos e que as pessoas mudassem de vida senão no reinado de Pio XI viria outra guerra ainda pior e a Rússia espalharia seus erros pelo mundo. A tudo isso, Nossa Senhora ainda acrescentou o pedido de que o mundo fosse consagrado ao seu Imaculado Coração, com uma menção especial à Rússia.

Os “erros da Rússia”, mencionados pela Virgem Maria são uma referência clara e ao mesmo tempo uma condenação veemente da ideologia socialista como pretensa solução para os problemas políticos, econômicos e culturais da humanidade. A aparição se deu em Fátima, Portugal, no ano de 1917 e coincide exatamente com a Revolução Socialista, também chamada de “bolchevique”, ocorrida na Rússia no mesmo ano.

Os apelos de Nossa Senhora não foram atendidos a tempo e, realmente, após o advento da Segunda Guerra Mundial, a URSS desponta como uma potência socialista e os “erros da Rússia” se espalham pelo mundo ainda mais. A Guerra Fria foi o tempo propício da propagação dessas nefastas doutrinas por todo o mundo. No Brasil, a índole cristã de nossa nação não aderiu conscientemente a essas ideologias, porém, durante a Ditadura Militar, usando a tese da “válvula de escape”, a fim de acalmar militantes socialistas, nossas universidades foram entregues aos seus cuidados e aqueles que antes lutavam na guerrilha, passaram a destruir a cultura como cupim, ou seja, destruíam por dentro os fundamentos da cultura brasileira, enquanto a casca, a exterioridade parecia se manter. Os “erros da Rússia” chegaram até nós e hoje se expressam no projeto de poder do partido dominante, se expressam no financiamento da ideia de criar uma “pátria grande” que unifique a América Latina e a transforme num conjunto de republiquetas comunistas; na ideia de Reforma Política que criaria os “sovietes” brasileiros e beneficiariam apenas o partido que já está no poder e que também se expressam em interpretações teológicas marxistas que tentam conciliar o inconciliável: o materialismo dialético e a realidade transcendental da fé, corroendo as consciências de muita gente dentro da própria Igreja.

Os “erros da Rússia” estão diante de nossos olhos e já fazem parte de nosso cotidiano. Combatamos valentemente esses erros através de uma consciência clara da realidade de uma recusa sistemática a tais propostas e de uma ação que impeça o seu avanço. Paulo VI já dizia que “em Maria, tudo se refere a Cristo e Dele depende”, ou seja, Ela sempre nos direciona e orienta para seu Filho; corramos portanto na direção que Ela nos indica e confiemos em sua maternal promessa feita em Fátima: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!” Deste triunfo depende, inclusive a estabilidade da ordem social e isto não é mero piedosismo pueril, mas uma realidade que transcende nossa lógica simplória.

■■ Luiz Raphael Tonon é professor de História e Filosofia, Gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas e leigo consagrado da comunidade Católica Pantokrator.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, em 28 de Setembro de 2015, Página A2 – Opinião.

Imagem: Ilustração que acompanha o artigo na versão impressa, Página A2.