Passatempos no convés do Titanic


Para entendermos as coisas mais difíceis, o usual é basear-nos nas mais fáceis já aprendidas. Um recurso antiquíssimo para compreender situações complexas é o emprego da analogia. Seja por meio de metáforas, parábolas ou alegorias, os sábios deste mundo têm conseguido tornar acessíveis aos mais simples os grandes mistérios da vida. O termo grego analogia pode ser traduzido por proporção, que significa uma igualdade de razões ou de relações. Uma analogia nos indica o que há em comum entre duas situações de naturezas distintas.

C. S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia, apresenta uma interessante analogia entre os seres humanos e uma esquadra de navios. Ironicamente as pessoas entendem mais sobre navios, mesmo sem nunca ter pisado em um, do que sobre suas próprias vidas. Se devemos seguir o conselho do aforismo grego “conhece-te a ti mesmo”, então, tal comparação vem bem a calhar para examinar nossas vidas. Parece ser o caso, pois, segundo Sócrates, “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida”. Prossigamos.

São três as questões que devem ser respondidas quando um navio está em alto mar. Primeiro, o que devemos fazer para evitar que o navio colida com outros navios ou se afaste da esquadra. Em segundo lugar, o que devemos fazer a fim de evitarmos que o navio afunde. Finalmente, qual é o seu destino e/ou missão. Tais questões navais na verdade apontam para questões éticas.

Dessa forma, a primeira questão indica a Ética Social. A esquadra, que representa a comunidade, só terá sucesso na viagem se todos os navios estiverem em formação, forem navegáveis e com máquinas em ordem. Ou seja, o coletivo depende de certa perfeição dos indivíduos que o compõem, alinhada com uma intencionalidade comum, que conjuntamente evitam danos uns aos outros. Há uma dependência mútua entre as boas condições da esquadra e de cada navio. Para o exercício pleno da liberdade de navegar, cada navio deve considerar a responsabilidade de permitir o mesmo para toda a esquadra. Vale a pena repetir: não existe liberdade sem responsabilidade. O que nos mostra que a segunda questão, que indica a Ética Individual, está intimamente ligada à primeira.

Assim, para evitar naufrágios, cada navio da esquadra deve estar em boas condições, bem equipado e com um excelente grupo de integrantes. Entre esses, destaca-se a suma importância do capitão, que deve conduzir todas as ações para o sucesso de sua missão. Analogamente, cada ser humano deve ser senhor de si mesmo. Como é bem sabido, um capitão não pode abandonar o navio. Do mesmo modo, uma pessoa não pode abandonar sua vida, deixando-a à deriva por mares tempestuosos. Como contra-exemplo de tal ideal, vimos recentemente a condenação de um ex-capitão fujão pela justiça italiana. Na ocasião do naufrágio do cruzeiro Costa Concórdia, o então capitão, que vergonhosamente abandonara o navio com passageiros ainda a bordo, teve de ouvir, por telefone, o oficial operativo da Guarda Costeira ordenar em bom italiano: “Torni a bordo, c*zzo!”. Uma boa exortação para que não deixemos o leme de nossas vidas.

A terceira questão, que por sua vez, indica a Ética Normativa, indaga acerca do porquê do navio ou da esquadra estarem no mar afinal de contas. A resposta a tal pergunta definirá o comportamento do navio para cumprir sua missão e chegar a seu destino. Para o ser humano, a resposta a tal questão é a mais importante, pois dela depende o sentido que encontrará para sua vida e que planos deve traçar para atingir seus objetivos.

Para concluir a analogia náutica, consideremos a atuação da orquestra do Titanic. Dentre todas as possibilidades diante do eminente naufrágio e da morte, os oito músicos, com idades entre 21 e 33 anos, optaram por tocar boa música para acalmar os passageiros, enquanto a tripulação carregava o número insuficiente de botes. Certamente, cada um deles conseguiu encontrar as respostas para as perguntas acima. Sigamos seus exemplos e encontremos as nossas.

Fábio Maia Bertato é Coordenador Associado do CLE – Unicamp e membro do IFE Campinas (fmbertato@cle.unicamp.br)

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 8 de Maio de 2019, Página A2 – Opinião.