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A ciência contemporânea e a fé

Opinião Pública | 26/06/2019 | | IFE BRASIL

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É hoje predominante em nosso ensino básico a ideia de que as descobertas da ciência moderna são incompatíveis com a fé num Deus único, transcendente, onipotente e criador de todo o universo. Dependendo do público ao qual os defensores dessa tese se dirigem, os argumentos levantados a favor dela variam desde a dramatização forçada do caso Galileu até a constatação de que surgem a cada momento no universo novas partículas, sem que possamos determinar a causa desse surgimento. Não pretendo examinar aqui o caso Galileu, mas apenas o segundo argumento, que exige um pouco de reflexão. Ele pode ser formulado do seguinte modo: se no universo constatamos fenômenos sem causa, então o próprio universo não tem uma causa; ora, constatamos nos universo fenômeno sem causa, portanto, o próprio universo não tem uma causa. Vejamos quais são os pressupostos desse argumento.

Em primeiro lugar, quem proclama o incessante progresso da ciência não cansa de admitir que esta faz novas descobertas constantemente. Se, pois, no atual estado da ciência não podemos determinar a causa de certos fenômenos, nada impede que venhamos a descobri-la num futuro não muito distante. Somente isso já é suficiente para prejudicar a força do argumento. Mas ainda há mais: as novas partículas que surgem no universo surgem dentro da ordem do universo e não a partir do nada absoluto. Quem afirma a possibilidade de o ser surgir a partir do nada absoluto não está defendendo uma tese de ciência natural, mas uma tese filosófica, uma tese metafísica.

Ora, a própria inteligência humana é incapaz de pensar a ideia de um nada absoluto, pois a ideia de nada nos é acessível apenas por meio da negação de algo existente para, ao mesmo tempo, afirmar outra coisa existente, ou, dito de outro modo, só nos é acessível o nada relativo. Para compreender o que digo, tomemos uma figura geométrica que não seja um círculo. Ao negar que ela seja um círculo, estou automaticamente afirmando que ela é outra figura geométrica, um triângulo ou um retângulo, por exemplo. Mas se afirmo que se trata de um círculo quadrado, estou afirmando um nada absoluto, algo impensável, um absurdo. Ora, a ciência nos mostra que o universo em que vivemos tem idade e que, desde sua origem, vem se desenvolvendo na direção de formas cada vez mais complexas. Isto significa que, no momento de sua origem, ele deveria ter uma forma extremamente simples e compacta, sendo perfeitamente concebível que um tal compacto não tenha existido desde sempre. Contudo, uma coisa é negar a existência eterna do universo, outra bem diferente é negar a existência de todo e qualquer ser (o que equivaleria a afirmar o nada absoluto, o absurdo completo). Esta última afirmação, se defendida por pessoas supostamente dotadas de consciência científica constitui o que se costuma chamar de um “tiro no pé”, pois equivale a afirmar o completo absurdo como origem e fundamento último do inteligível. Trata-se, de qualquer maneira, de uma afirmativa que pesquisa científica nenhuma conseguiria jamais provar, uma vez que as ciências naturais nos fornecem explicações sobre a sucessão de fenômenos que ocorrem num universo realmente existente e não da passagem de um não universo para o universo.

Restaria aos cientificistas afirmar que o universo é eterno e que deve-se dizer que seu desenvolvimento é cíclico. O problema é que, quando alguém o afirma, está supondo de modo implícito que a matéria é viva e inteligente; ou, dito de outro modo, que numa massa de moléculas de hidrogênio estava “escondida” — e bem escondida —a “programação” de todos os eternos ciclos que o universo deveria percorrer. Surge então uma pergunta que, novamente, extrapola os limites da ciência: por que essa matéria eterna, inteligente e autossuficiente “decidiu” se engajar numa eterna e reiterada aventura cósmica? Examinaremos as consequências dessa pergunta em outra oportunidade.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é professor e membro do IFE Campinas.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, edição 26/06/2019, página A2.

[resenha de livro] “1914, El año que cambió la historia”, de Antonio López Vega (por Pablo G. Blasco)

História | 15/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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1914-el-ano-que-cambió-la-historia-189x300Recebi o exemplar autografado das mãos do autor. Somos amigos faz anos e veio ao Brasil para dar umas conferências num congresso de Humanidades Médicas que estávamos organizando. Construir o médico humanista implica ajudar a inseri-lo na realidade social onde se movimenta, facilitar o entendimento do mundo. Dai a importância do tema, amplo, que este livro aborda e que também foi pauta das conferências comentadas.

Não é propriamente um livro de história. É um passeio, quase um trailer de cinema,  pela história contemporânea –a modernidade- com ênfase no século XX, e um grande zoom em 1914 de onde o autor realiza elegantes flashback e projeções para o futuro. Um livro original  centrado no tema que Lopez Vega domina, e sobre o qual leciona na Universidade de Madrid.

Cada um dos doze capítulos se corresponde com os meses do ano. Arranca de um fato concreto em cada mês do ano 1914, e sobre ele desenvolve a temática e o corpo do livro. O resultado é um banho de cultura, ou melhor, um índice para adentrar-nos nos diversos temas. Como já disse um trailer de cinema que te provoca e te incita a saber mais.

Temos na ouverture, a mudança de percepção, com Einstein e Freud, minando os valores absolutos, com a relatividade científica e novos paradigmas morais.  Agudizam-se os desentendimentos entre Igrejas e Estados, entre a fé e a razão. Os valores clássicos –aquilo que racionalmente vemos- se questiona e surge o existencialismo e o racio-vitalismo, como modo de lidar com as incertezas.

Seguem-se os intelectuais, palavra que passou de ser um adjetivo a constituir-se em substantivo, personalizou-se. Os intelectuais surgem como voz pública, convertendo-se num referencial da vida coletiva e social. No dizer de Ortega –santo da devoção do autor- os intelectuais saíram da apatia política à praça publica.

A entrada das mulheres na vida pública, tanto como profissionais como na conquista do direito ao voto. Um premio Nobel duplo para Marie Curie; o premio Nobel da paz para Bertha von Suttner, que foi por um breve período secretária de Alfred Nobel. Ela foi quem inspirou ao descobridor da dinamite, para promover a fundação que outorgaria os prêmios que levam seu nome, como um modo de compensar a riqueza que amealhou às custas do seu invento destrutivo.

A primeira guerra mundial, onde se pratica um novo modo de fazer a guerra: os lideres nos gabinetes –Londres, Paris, Berlim- enquanto os oficiais e soldados permanecem no campo de batalha sem terem ideia clara de “a quantas está a guerra e as batalhas”. A emergência da super potencia americana (do canal do Panamá às entradas nas duas guerras) e o contraponto soviético com a Guerra Fria.

Comenta-se em outros capítulos a experimentação artística, abrindo infinidade de vias à criatividade individual;  os nacionalismos como elemento desestabilizador dos sistemas políticos, as massas e o movimento operário e sindical, aspirando a uma maior justiça social. Um mundo conectado e globalizado, a guerra total com o assassinato em massa de civis, a a queda do euro centrismo e a emergência de um mundo além da realidade europeia.

No capítulo final oferece um belo resumo do amplo espectro do livro que é, insisto, apenas um índice da história do século XX.  Depois de ler o livro, o efeito é previsível: o desejo de adentrar-se com calma em cada um dos temas sugeridos, de conhecer mais, para entender o mundo que nos rodeia. Um mundo de pós modernidade e, em palavras extraídas das conferências do autor, de trans humanismo. Um desafio que nos toca viver. Cumpre preparar-se à altura.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

LIVRO
Autor: Antonio López Vega.
Título: 1914, El año que cambió la historia.
Publicação/ano: Madrid: Taurus, 2014.
Páginas: 239 págs.

Publicado originalmente no site do autor em 26/01/2016, link: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/01/26/antonio-lopez-vega-1914-el-ano-que-cambio-la-historia/#more-2575> Acesso em 15 de Abril de 2016.

A complementaridade entre razão e religião no âmbito democrático e os desafios do mundo contemporâneo: dez anos do debate Habermas-Ratzinger, por Tarcísio Amorim

Filosofia | 12/02/2015 | | IFE RIO

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No inverno de 2004, dois renomados pensadores da atualidade – o filósofo Jürgen Habermas e o teólogo Joseph Ratzinger – reuniram-se para um debate na Academia Católica de Baviera, em Munique, na Alemanha. Com o título Dialética da Secularização: sobre Razão e Religião, o diálogo abordou temas como o secularismo político, direitos humanos, bioética e terrorismo religioso.

De um lado, o filósofo buscou conciliar a defesa de fundamentos seculares para o Estado democrático com a possibilidade de acomodação dos argumentos religiosos para fins deliberativos. Em sua visão, a democracia não dependeria de nenhuma base transcendental para justificar-se, mas as razões religiosas poderiam – e deveriam – contribuir para o debate público por meio de conceitos e imagens de mundo que viriam a ser apropriadas pela razão secular, especialmente através da filosofia. De fato, Habermas sublinhou que, no Ocidente, o entrelaçamento das tradições cristãs com a metafísica grega influenciou as intuições morais com conceitos como o de responsabilidade, despojamento, justificação e recomeço, além da própria crença na semelhança do homem com Deus, cuja transposição para a noção de igual dignidade ainda preserva seu valor nos dias atuais[1].

Como um filósofo político liberal, em seu sentido amplo, Habermas acredita que a democracia se baseia no exercício livre de uma razão que questiona seus próprios fundamentos, estabelecendo redes comunicativas das quais o consenso político em torno do melhor argumento deve emanar, depois de sucessivas transformações nas percepções e interpretações pessoais da realidade. Nesse sentido, em vista de sua igualdade jurídica, os argumentos morais provindos de indivíduos ou grupos religiosos devem ser acolhidos, pois “a neutralidade ideológica do poder do Estado que garante as mesmas liberdades éticas a todos os cidadãos é incompatível com a generalização política de uma visão de mundo secularizada”[2].

Por sua vez, o teólogo Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (hoje Papa emérito Bento XVI), enfatizou a necessidade de princípios normativos de direito que evitem tanto o extremismo religioso quanto um cientificismo desprovido de restrições morais. Igualmente, seria preciso prevenir o jogo de poder das maiorias, que na história já mostraram ser capazes de usar de instrumentos democráticos para oprimir as minorias. Assim, além de um exercício de mútua purificação por meio do confronto de razões religiosas e seculares, Ratzinger defendeu o reconhecimento da existência de valores intrínsecos “que decorrem da essência do ser humano e que, por esse motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência”[3].

Embora tivesse sublinhado que tal princípio ainda encontrava sua expressão nos chamados direitos humanos – ininteligíveis sem o pressuposto de uma concepção universalista do homem que envolva a razão natural – Ratzinger, aproveitando-se das reflexões de Habermas e de seu pragmatismo, preferiu utilizar-se de sua lógica deliberativa para ressaltar o fato de que a visão democrática secular não pode ser generalizada, mas deve engajar-se no diálogo com as perspectivas religiosas. De fato, além das interpretações cristãs que continuam a influir no Ocidente, as grandes culturais do mundo (islâmica, indiana, africana e ameríndia) permanecem avançando intepretações teístas da realidade. Uma vez que a democracia pressupõe o pluralismo e a interculturalidade, seria preciso incluir todas essas perspectivas “na tentativa de uma correlação polifônica, na qual elas próprias possam abrir-se à complementaridade essencial de razão e fé” [4].

A ocorrência desse encontro entre Habermas e Ratzinger em 2004 foi oportuna por vários motivos. Dentre eles, o fato de que os fluxos imigratórios entre o Oriente o Ocidente vieram a reforçar o questionamento das bases seculares do pensamento liberal europeu. Com efeito, um mês após o 11 de Setembro, em um discurso proferido por ocasião do Prêmio da Paz da Associação de Editores Alemães, Habermas pontuou que o desenvolvimento de uma linguagem comum que reconhece a fluidez das fronteiras entre razões seculares e religiosas é fundamental para que a sociedade possa ir “além do violento silêncio dos terroristas e dos mísseis” e evitar “a batalha das culturas” [5]. De acordo com o filósofo, a visão do processo de secularização como um jogo de soma zero entre as forças progressistas da ciência e as correntes conservadoras da religião “não se enquadra em uma sociedade pós-secular que busca adaptar-se à contínua existência de comunidades religiosas” [6]. Ao contrário, a secularização para Habermas é um processo dialético no qual a atitude racional permanece autônoma, mas sem desprezar as perspectivas oferecidas pelas razões religiosas.

As reflexões sobre a secularização no Ocidente também ganharam alento devido ao processo de integração da Comunidade Europeia. O papel da religião para a construção de sua identidade cultural mostrava-se uma questão controvertida, e a rejeição à proposta de menção ao cristianismo na Carta Europeia naquele mesmo ano de 2004 não esvaziou o debate. Ao receber o Prêmio São Bento para a Promoção da Vida e da Família em 2005, Joseph Ratzinger afirmou que a oposição a tal referência se relacionava com o contexto cultural do Ocidente, que vinha privilegiando uma perspectiva positivista, e por tanto, antimetafísica, na qual as questões sobre Deus e sobre os fins últimos da vida humana não têm lugar. Para o teólogo, esta filosofia não expressaria a razão humana em sua totalidade, constituindo-se como o verdadeiro obstáculo para a união entre o Ocidente e as grandes civilizações não cristãs, especialmente aquelas formadas no seio do islamismo [7]. Vale recordar que em 2011, durante a presidência Húngara da União Europeia, um evento reunindo lideranças políticas dos países membros foi organizado na cidade de Gödöllo, região metropolitana de Budapeste, em vista da reflexão sobre a cooperação entre cristãos, judeus e muçulmanos na Europa e no mundo. O então vice-primeiro-ministro, Zsolt Semjén, sublinhou que a separação entre Igreja e Estado não exclui as relações entre religião e sociedade e que “o ser humano está aberto para os infinitos horizontes da existência, levantando questões que vão além das coisas visíveis, ansiando por explorar a vida última” [8].

Hoje, dez anos depois daquele encontro, as mesmas questões que delinearam as diretrizes do debate ainda se fazem presente nas nossas sociedades democráticas. Em meio à relativização dos discursos morais que permeia o âmbito do Direito, os dois autores apresentam uma perspectiva comum quanto ao papel da razão para o estabelecimento de normas democráticas: a rejeição do chamado “contextualismo”, como defendido pelo filósofo Richard Rorty, no qual definições de verdade e de justiça são reduzidas aos resultados de práticas culturais de justificação. Mesmo para Habermas, que situa as razões religiosas e seculares em igualdade no processo deliberativo, a justiça não é um arranjo nacional ou comunitário, mas é fruto de um processo de aprendizagem no qual a razão se expressa orientada pela verdade, transcendendo os contextos locais. Na percepção do filósofo, a concepção de um progresso sócio-cultural como resultado do desenvolvimento moral pela razão seria, a princípio, independente da religião, mas acabaria por ter de confrontar as razões transcendentes que desafiam suas bases durante o exercício deliberativo.

Nesse sentido, a lacuna entre o pensamento do filósofo para com a teologia de Ratizinger – embora persistente – acaba por se estreitar no resultado do processo democrático – se não na forma, ao menos no conteúdo. Pois, a partir do momento em que as razões religiosas (metafísicas) questionam os fundamentos profanos da democracia, elas introduzem uma crítica à forma do modelo de Habermas, crítica que o próprio sistema democrático – como esboçado pelo filósofo – teria que admitir.

Em todo o caso, tanto um quanto o outro endossam o potencial racional dos argumentos religiosos e metafísicos. Para Ratzinger, trata-se também de reconhecer que os direitos humanos podem estar em risco a partir do momento em que já não se define mais o que é o homem, tendo em conta sua origem e seu fim. Em Fé, Verdade e Tolerância, o teólogo reflete sobre esse ponto a partir do embate entre liberdade e solidariedade na demanda de alguns setores do movimento feminista em prol da autonomia do corpo. Como explicita, o feto constitui um ser-de que, por sua vez, reclama um ser-para (a mãe) a fim de se desenvolver. Mesmo após o nascimento – ainda que seja entregue a outro lar – ele continuará a depender dessa figura antropológica, assim como o adulto deverá também se reportar aos outros, como um ser em relação que é. A liberdade, então, abrange não somente direitos negativos (aquilo que podemos fazer sem a interferência de outros), mas também direitos positivos (aquilo que devemos fazer em vista da própria existência pessoal e comunitária). Dessa forma, contraponto a demanda feminista em favor do livre uso do corpo, Ratzinger afirma que a liberdade do homem apenas pode constituir-se na coexistência ordenada de liberdades, que acarreta, por si mesmo, a referência ao outro, pois toda subsistência e desenvolvimento da vida humana se apoia na interdependência das relações entre liberdade e solidariedade. Nos termos do teólogo: “se a verdade sobre o homem não existe, então ele também não possui nenhuma liberdade. Somente a verdade liberta” [9].

Como se percebe, o debate sobre razão e religião é fundamental em uma época em que novas demandas culturais reivindicam uma redefinição do lugar da religião nas democracias contemporâneas. De modo particular, ele se faz cada vez mais importante no Brasil, onde a percepção da organização política de grupos religiosos e a persistência de símbolos cristãos na esfera pública têm estado em pauta. Por um lado, como destacou Habermas, os cidadãos que partem de uma visão do mundo secularizada “não podem nem contestar em princípio o potencial de verdade das visões religiosas do mundo, nem negar aos concidadãos religiosos o direito de contribuir para os debates públicos servindo-se de uma linguagem religiosa” [10]. Por outro, os cidadãos que avançam razões religiosas devem apresentá-las em uma linguagem racional que, sem perder seu caráter transcendente, seja acessível aos outros participantes do processo deliberativo.

Como ressalta a filósofa irlandesa Maeve Cooke, essa universalidade não deve referir-se ao tipo de linguagem empregada, na tentativa de reduzir os argumentos religiosos a uma razão secular, mas à própria racionalidade do processo comunicativo, pois – conforme a própria lógica habermasiana – quando os argumentos são confrontados, o resultado de um consenso não resulta necessariamente na conversão à perspectiva do outro, mas em uma nova perspectiva, diferente de ambas, na qual as razões metafísicas podem seguir desempenhando um papel fundamental [11]. Nesse contexto, as reflexões de Jürgen Habermas e Joseph Ratzinger podem ser úteis, não tanto para questionar o ideal democrático, mas para assegurar seus próprios fundamentos, prevenindo-se o relativismo que atenta contra a dignidade humana, bem como o extremismo religioso que se fecha ao diálogo racional.

Por fim, suas ideias também podem trazer luz sobre o tenebroso contexto de violência religiosa no Iraque e em outras partes do mundo. Com a ascensão do Estado Islâmico e o surgimento de um novo conflito internacional, pode-se questionar como um diálogo público seria capaz de reconciliar visões tão díspares acerca do papel da religião e do Estado na vida civil. Sobre esse ponto, Razinger sublinha que, assim como não há um discurso homogêneo acerca do secularismo político no Ocidente, também a esfera cultural islâmica se divide quanto ao tema, com posturas que vão desde “o absolutismo fanático de um Bin Laden” até aquelas que estão abertas a uma racionalidade tolerante [12].

Como demonstra Abdulaziz Sachedina, no que diz respeito aos direitos humanos o pensamento no mundo muçulmano tem se divido entre o tradicionalismo legal dos defensores da Declaração do Cairo (que contempla somente os seguidores da Sharia), e as abordagens teológico-políticas que levam em conta a racionalidade prático-filosófica na formulação da jurisprudência islâmica (fiqh), bem como sua contingência em termos de cultura, tempo e espaço. Acadêmicos como Muḥammad al-Ghazālī, Yūsuf al-Qarāḍāwī, Aytollah Jawādī Āmolī e Allāma Muḥammad Taqī Jafarī Tabrīzī, entres outras autoridades sunitas e xiitas, vêm defendido uma visão universalista de Direitos Humanos, buscando um diálogo que permita o reconhecimento das origens teológicas da concepção de Dignidade Humana, explicitada na Declaração da ONU, por meio de uma ética filosófica inclusivista e multicultural [13].

Como bem pontou Maeve Cooke, um secularismo excludente não apresentaria nenhuma consistência para o tratamento das questões levantadas pelo islamismo político, ou pela constante imigração para o Ocidente de povos cujas visões de mundo são fortemente marcadas pelo senso religioso – e para os quais a experiência secular ocidental é amplamente remota ou completamente estranha. Ao contrário, a inerente abertura do processo de aprendizagem, combinada com o princípio de autonomia política que permite que cada indivíduo busque a autorrealização em concordância com os próprios valores, sugere que é tempo de reconsiderar os argumentos em prol de fundamentos exclusivamente seculares da autoridade política [14]. Dessa forma, razão e religião devem caminhar juntas, aparando-se e aperfeiçoando-se mutualmente, provendo novos discursos de moralidade pública e atualizando as fontes ético-jurídicas do Estado democrático.

Dez anos após o encontro de Munique, o diálogo entre Habermas e Ratzinger ainda repercute no mundo acadêmico, e suas reflexões se fazem cada vez mais atuais em meio ao ressurgimento religioso testemunhado não só nos países orientais, mas também em partes da Europa, África e América Latina. A foto acima mostra o Parlamento da República da Polônia, onde uma moção destinada a remover o crucifixo sob o argumento da laicidade foi derrubada em 2013 pela Corte de Varsóvia. A decisão converge com julgamento da Corte de Estrasburgo, sobre a exposição de crucifixos nas escolas publicas italianas em 2011, levando em conta aspectos da cultura nacional. Na Ucrânia, o levante que derrubou o governo de Yanukovich – embora diversificado em sua natureza – foi marcado por uma forte presença do clero, além de diversas manifestações religiosas em sítios públicos.

Como se percebe, a ideia de secularização como um processo linear ao longo da história destoa tanto das recentes reflexões acadêmicas acerca da pós-secularidade quanto da realidade sócio-política das democracias contemporâneas. Nesse sentido, o debate Habermas e Ratzinger torna-se significativo ao ilustrar o encontro da reflexão filosófica com a razão religiosa em prol de uma sociedade universalmente solidária e de uma cultura política legitimamente democrática.

[1] HABERMAS, Jürgen. Fundamentos pré-políticos do Estado de direito democrático?. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 50.
[2] Ibidem, p. 57.
[3] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 68.
[4] Ibidem, p. 90.
[5] HABERMAS, Jürgen. Faith and knowledge. 2001. Disponível em: . Acesso em: 4 jan. 2014.
[6] Ibidem.
[7] RATZINGER, Joseph. La última conferencia de Ratzinger: Europa en la crisis de las culturas. 2005. Disponível em . Acesso em: 4 jan. 2014.
[8] Hongaars Voorzitterschap benadrukt belang van vrijheid van religie (en). Europa Nu, 2 jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: Acesso em: 4 jan. 2014.
[9] RATZINGER, Joseph. Fé, Verdade, Tolerância: O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2007, p. 222-232.
[10] HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2007, p. 57.
[11] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 224-238.
[12] RATZINGER, Joseph. O que mantém o mundo unido: fundamentos morais pré-políticos de um estado liberal. In: SCHÜLLER, Florian (org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 90.
[13] SACHEDINA, Abdulaziz. Islam and the Challenge of Human Rights. New York: Oxford University Press, 2009.
[14] COOKE, Maeve. A Secular State for a Postsecular Society? Postmetaphysical Political Theory and the Place of Religion. Constellations, 14, 2, 2007, 233-234.

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Fonte: http://www.dicta.com.br/a-complementaridade-entre-razao-e-religiao-no-ambito-democratico-e-os-desafios-do-mundo-contemporaneo-dez-anos-do-debate-habermas-ratzinger/

Bioética e religião

Filosofia | 01/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Os debates em curso sobre a legalização ou a proibição de práticas como o aborto, a eutanásia, o uso de drogas, incluindo até mesmo os limites de velocidade nas cidades ou estradas e o uso obrigatório do assento infantil nos carros, mostra o quanto a proteção da vida requer uma intervenção direta, específica e prudencial dos parlamentos e autoridades civis.

A par disso, a abolição gradual da religião no ambiente atual de secularismo relativista é vista como uma evolução necessária da humanidade, para que esta possa avançar no caminho da liberdade e do progresso científico. Nesse vácuo de valores, não teria começado a se destacar uma outra forma de poder que, inicialmente, com uma tonalidade puramente beneficente e digna de aplauso, não seria, na verdade, um novo tipo de ameaça para o ser humano?

Ao que parece, o homem, ao ter condições de produzir seres humanos dentro da proveta ou mesmo de eliminá-los no ventre materno ou num leito hospitalar, tornou-se um produto perfeito e acabado de si mesmo. Causa-me a impressão de que o homem desceu às nascentes do poder de onde brota sua própria existência no afã de querer construir o ser humano perfeito, na tentação de instrumentalizá-lo e na loucura de considerar a si próprio como uma coisa descartável.

Tais desejos deixaram de ser uma criação teórica absurda de uns moralistas retrógrados. Se várias correntes científicas duvidam da religião como uma força moral positiva socialmente, temos de admitir, agora, que se duvide da confiabilidade da pura razão. Afinal de contas, a bomba atômica também foi produto da razão, assim como a criação, a seleção ou a morte de seres humanos foram engenhadas pela razão. Não seria o caso de a bioética e a religião se limitarem mutuamente, mostrando uma à outra as respectivas fronteiras naturais, para que possam prosseguir em seu caminho positivo de mãos dadas?

Por outro lado, penso que seria de pouca utilidade para a própria religião negar a legitimidade e a necessidade de uma reflexão racional e filosófica sobre os limites de atuação da bioética: o sujeito religioso teria apenas razões de natureza sobrenatural, as quais, por si só, não sustentariam o convencimento alheio diante de um interlocutor cético ou pessimista. A ninguém é dada a dispensa de refletir sobre os fatos humanos à luz da razão, cujo peso e valor são inestimáveis.

Esse reencontro entre bioética e religião, entre razão e revelação é tanto mais necessário quanto urgente, diante do incessante avanço das ciências experimentais e depois do longo período de “silêncio da metafísica”, que deixou a compreensão da realidade humana à mercê das veleidades dos poderes políticos, nascidos no seio do materialismo, do absolutismo, do historicismo e, posteriormente, desenvolvidos no meio do relativismo hoje reinante.

Cada ser humano é portador em seu coração, por assim dizer, de uma bioética interior dotada de uns princípios, pois o assento dos valores nunca permanece vago. Aqueles que utilizam células-tronco adultas nas pesquisas científicas ou defendem a dignidade da vida de um doente terminal agem segundo certos princípios éticos. Os campos de atuação da bioética são tão amplos que a própria bioética necessita dialogar continuamente com inúmeras disciplinas e, também, com o rico e bimilenar aporte teórico sobre a humanidade, em relação ao qual o Cristianismo tem muito a dizer.

Assim, a bioética e a religião, em outras palavras, a ciência e a fé, podem contribuir efetivamente para denunciar as ações que vão contra a dignidade da pessoa humana e para promover comportamentos concretos que auxiliem o homem a não se transformar em instrumento de si mesmo. Da engajada turma do proselitismo anticlerical, depois destas linhas, que venham os tomates: pelados e italianos, por favor!

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).