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Neo-jacobinos

Opinião Pública | 13/06/2018 | | IFE CAMPINAS

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No último mês, juntamente com um colega de toga, organizamos um evento sobre ideologia de gênero e um dos momentos mais curiosos foi ter ouvido, de outra pessoa envolvida na organização, se o perfil conservador do palestrante não atrairia uma turbamulta enlouquecida de alunos de graduação de humanas, ávidos por invadir o ambiente do evento e impedir sua realização. Eu respondi com uma pergunta: “Liberdade de expressão é fazer calar quem pensa diferente?”.

Há tempos, ando meio farto da deterioração da liberdade de expressão. Formas disfarçadas de censura, silêncio obsequioso, avisos de conteúdo (“trigger warnings”), espaços seguros (“safe spaces”) e uma série de expedientes autoritários que, no fundo, apontam para uma séria crise do pensamento, pois as autoridades intelectuais passaram a definir para todos a “única pauta correta” na reflexão das questões sociais que nos assolam.

Liberdade de expressão, para esses neo-jacobinos, não representa a possibilidade de escutar ideias distintas, tantas vezes incômodas, e, logo em seguida, abrir o diálogo. Significa, em nome da “tolerância e da diversidade”, acantonar esses “desajustados ideológicos” nas catacumbas do silêncio no debate público.

À primeira vista, nada é mais oposto à tolerânia e à diversidade do que ver um bando de crianças histéricas, filhotes intelectuais daqueles neo-jacobinos, carregando faixas de repúdio e proibindo a expressão de terceiros. Se eu fosse o dito palestrante, levaria umas fraldas e umas mamadeiras, no meio do notebook e dos livros, para distribui-las como bônus para a clientela na plateia.

Também é curioso notar que o liberalismo político conduziu muitos de nós, em muitas pautas sociais, ao mais puro fanatismo ideológico, cujas ideias, por mais toscas, pedestres e limitadas que pareçam, foram alçadas à condição de dogmas no credo político rezado pela turma neo-jacobina.

Para alguns estudiosos, esse crescente fenômeno consiste no triunfo do “hiper-liberalismo”, em outras palavras, o império do liberalismo moderno levado às últimas consequências. Um desses estudiosos, ao explicá-lo, vale-se de Mill, em sua principal obra sobre a liberdade, a qual, segundo ele, teria operado uma crucial virada de entendimento sobre o próprio conceito de liberdade.

Até Mill, a liberdade indicava um campo de autonomia face à lei ou à coação alheia. Depois dele, essa noção de liberdade negativa ganhou contornos positivos: o homem livre é o homem senhor de uma vontade imaculada pelas contigências históricas e culturais. Em bom português, minha identidade dispensa a opinião de terceiros ou de qualquer outra forma de autoridade.

Hoje, vivemos essa noção de liberdade no limite, porque essa auto-estultificação da identidade individual chegou ao centro da hierarquia de valores na qual sempre procuramos viver e, como efeito, tudo o que representava o outro, a autoridade ou a tradição foi despachado para a periferia.

Esse projeto de maximização libertária tem dois efeitos destrutivos. No primeiro, aquilo que nos torna diversos não é uma identidade construída sobre o nada. Somos seres narrativos com história e papéis que nos precedem, os quais transportamos para a identidade que construímos e que nos torna irrepetíveis.

No segundo, a adoração da liberdade como autonomia radical converte-se, ironicamente, numa forma de pensamento único. Surgem as hordas marcadas pela bovinidade intelectual e o hiper-liberalismo converte-se em religião secular: pensar diferentemente deixa de ser uma decorrência natural de seres plurais e racionais e passa a ser uma heresia que ofende os prosélitos dessa nova igreja. Em nome da liberdade, acaba-se com a liberdade.

A reflexão sobre os problemas sociais é construída por todos mediante a prática das virtudes da humildade intelectual, da abertura cognitiva ao outro e, sobretudo, do amor à verdade. Quando vividas, tais excelências nos dispõem a escutar com atenção e respeito àqueles que discrepam daquilo em que acreditamos.

O mesmo Mill, um dia, ensinou-nos que reconhecer a possibilidade de que alguém possa estar no erro é razão suficiente para escutá-lo e levá-lo a sério e não somente tolerar de má vontade os pontos de vista discordantes. E, para quem se julga estar certo, essa atitude de escuta serve para aprofundar sua postura argumentativa e melhorar sua capacidade de defendê-la. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/06/2018, Página A-2, Opinião.

O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 2] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 02/06/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-2

Como vínhamos de falar, os escritos de John Rawls podem ser encarados como um exemplar contemporâneo bastante representativo daquilo que havia chamado pensamento liberal-totalitário. Este modo de pensar tem como ponto de partida, como já dito, o erro metafísico da abstração total. Ele se consubstancia, na teoria política – e igualmente, daí, pretende fazê-lo na prática – em um projeto político que tem por base a revolta contra a realidade e a pretensão de reconstruí-la totalmente a partir da razão.

Todavia, antes de iniciarmos as considerações sobre o projeto político do autor, talvez convenha ressaltar qual seja o aspecto mais propositivo dele, isto é, aquilo em que ele se pretende apresentar como um melhoramento relativamente ao estado prévio das discussões sobre o direito e a justiça.

No caso de Uma teoria da justiça, a proposta de Rawls consiste justamente em “apresentar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e, portanto, a todas as suas versões”[1], que, segundo ele, prescreveriam como meta da atividade social uma maximização do bem geral da sociedade, ou seja, da soma de satisfações desfrutada pelas pessoas, sem atentar à maneira como estas seriam distribuídas entre elas.

Tendo por base essa afirmação acerca da teoria que pretende desbastar, aponta como um dos propósitos declarados de seu projeto o de que “a violação da liberdade de poucos não possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por muitos”[2]. Arremata afirmando que “em uma sociedade justa, as liberdades fundamentais são inquestionáveis e os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo dos interesses sociais”[3].

Segundo Rawls, na teoria utilitarista, o legislador ideal agiria fundamentalmente como um empresário, e isso se daria justamente em razão de que tal figura, ao calcular o saldo máximo de satisfação que seria a meta das leis elaboradas, apoiar-se-ia numa extensão indevida de um princípio de escolha projetado para um único ser humano, para a sociedade, fundindo todas as pessoas por meio de atos imaginativos do observador imparcial empático.[4] O utilitarismo, portanto, não levaria a sério a distinção entre as pessoas, segundo o autor de Uma teoria da justiça.

Pois bem: Rawls pretende ver superado esse suposto vício fundamental da teoria utilitarista, ao formular uma teoria da justiça que, em vez de considerar os princípios de escolha de um único ser humano, na sua totalidade, presume um pacto hipotético em que as “pessoas” irão aceitar, “de antemão, um princípio de liberdade igual, e sem conhecer os seus próprios objetivos específicos”[5]. Apesar de que diante de uma tal afirmação nossa “idéia intuitiva” seja vociferar um sonoro palavrão polissilábico composto, nossas reflexões ponderadas nos levam a crer que o melhor será dizer que nada poderia ser mais desprezível à pessoa, em sua singularidade, e em sua singular relacionalidade, do que tal formulação. Se há algo que não toma a sério as distinções entre pessoas é essa suposição, que as considera todas igualmente livres, num plano abstrato, isto é, igualmente indeterminadas, como um estratagema para justificar, contra todos os fatos, uma igual esfera de poder, ao argumento de que são todas igualmente capazes de escolher o bem.

De igual modo, deve-se precisar que a teoria de Rawls subverte, mais ainda que a teoria utilitarista, o são pensamento ético, na medida em que, se esta considera ser o justo um meio para maximizar o bem, o que já é errado, sua teoria faz muito pior, ao fazer uma instrumentalização contrária, e pretender ver o bem utilizado como ferramenta para obter “o justo”. Pois o bem é, de certa maneira, independente do justo, e não o contrário, na medida em que o justo é o bem de outro, e que se o conhece necessariamente a partir do bem de si, como demonstra o primeiro princípio específico da lei natural “todo ser vivo busca a conservação de sua vida”[6]. Porém Rawls dá por garantido que o bem de outro será atendido simplesmente se tornarmos mais indefinida sua identidade e mais indeterminadas suas aspirações.

Nada mais apropriado à figura do legislador rawlsiano, neste caso, do que o comentário de Voegelin acerca do sofista Pólo no Górgias: “Ele é o tipo de homem que irá piedosamente louvar o governo do direito e condenar o tirano, mas que fervorosamente inveja o tirano e não amaria nada mais do que sê-lo um ele próprio. Numa sociedade decadente, ele é o representante do grande reservatório de homens comuns que paralisam todos os esforços de ordem e proporcionam conivência popular na ascensão do tirano. ”[7] Ora, se no caso do utilitarismo, poderíamos configurar como despótica a pretensão do legislador ideal que pretendesse impor à sociedade sua visão de mundo através da imaginação empática, podemos configurar como totalitária a aspiração de Rawls, que pretende impor a visão moral de ninguém, visão moral a partir de lugar nenhum, ao resto da sociedade – sem imaginação empática, mas a partir de um Gedankenexperiment, de uma equação matemática.

Deste modo, vemos que o problema de Rawls com o utilitarismo não é o seu caráter instrumentalizador, mas, antes, a unidade da pessoa, ou, ainda, qualquer cosmovisão que constitua as preferências de uma pessoa. Ele confunde o desprezo pelo “bem-comum”, das teorias utilitaristas, com o apreço delas pelo “bem particular”, e acha que este está sempre contra aquele. Dessa forma, se o utilitarismo impõe sobre todos o bem de uma pessoa singular, mas possível, Rawls impõe um bem abstraído das pessoas reais, segundo a idéia que ele faz daquilo que deva servir a “qualquer pessoa selecionada ao acaso”[8], uma pessoa sem forma, sem princípios de ação, sem hierarquia de bens, uma pessoa que tem apenas indeterminações e… necessidades. Todavia, é impossível chegar ao bem-comum de uma comunidade sem passar pelo bem particular da pessoa. Isso foi afirmado expressamente por S. Tomás, que disse que “o bem de um só é anterior ao bem de muitos, que consurge a partir dos bens dos singulares.”[9]

Esse amor pela “humanidade”, ou melhor pela “sociedade”, ou, ainda, pelo conceito que ele faz de ambas, segundo o qual a “a pluralidade de pessoas diferentes com diversos sistemas de objetivos é uma característica essencial das sociedades humanas”[10], leva-o a desprezar o próprio objeto da virtude da justiça, ou, ao menos, o da comutativa, que é o “bonum alterius singularis personae”[11]. E amostra maior desse desprezo não poderia estar mais evidente do que na concepção de inveja de Rawls “como a propensão a considerar com hostilidade o maior bem dos outros, mesmo que o fato de eles serem mais privilegiados que nós não diminua nossas vantagens”[12] – cujo efeito é que estejamos dispostos a diminuir as vantagens de outrem mesmo que as nossas também o sejam[13] – quando ela consiste justamente, numa definição comunicável, em que “de algum modo o bem de outrem seja estimado como mal na medida em que é diminutivo da própria glória e excelência.”[14]

Uma das razões da inveja radica em que, como disse S.Tomás, algumas coisas não permitem a fruição de mais de uma pessoa ao mesmo tempo, como sói acontecer com as coisas temporais, o que advém do próprio caráter intrinsecamente limitado delas. Daí o bem alheio, na medida em que não pode ser desfrutado por alguém, dar origem à inveja, [15] por ser considerado impeditivo do seu próprio bem pelo invejoso.[16] Pela inveja, complementa ainda o Doutor Angélico, toma-se o bem de outrem como mal próprio[17]. Já para Rawls, a inveja ocorrerá justamente “na medida em que as diferenças entre esse indivíduo e os outros não exceda certos limites, e que ele não acredite que as desigualdades existentes estão fundadas na injustiça ou resultam da aceitação do acaso, sem nenhum propósito social visando compensá-las.” [18] Essa concepção parece, no mínimo, temerária e não constitui um apoio seguro para qualquer ordem social, tornando instável a ordem jurídica e política, caso aplicada: mais ainda quando lemos no mesmo livro a dificuldade que o autor tem de expor o que para ele sejam as “injustiças […] mais cruéis”, termo que, para ele, evoca uma idéia “extremamente genérica”, cuja “avaliação do grau de afastamento do ideal dependerá em grande medida da intuição.”[19]

Essa revolta contra a pessoa singular e concreta, contra o objeto da justiça particular, o “bonum alterius singularis personae”, que, como afirma S. Tomás, não é o fim de cada uma das outras[20], vai de par com uma insurreição também contra as sociedades e as estruturas sociais concretas. Toda a empreitada de Rawls consiste também numa grande invectiva contra a natureza e a sociedade historicamente constituída, na medida em que ela é considerada “o resultado cumulativo de distribuições anteriores dos dotes naturais […] conforme foram cultivados ou deixados de lado, e seu uso foi favorecido ou preterido, ao longo do tempo, por circunstâncias sociais e contingências fortuitas tais como o acaso e a boa sorte […] fatores tão arbitrários do ponto de vista moral.”[21]  Ou seja, toda a criação e, a reboque, toda sociedade humana pretérita são um grande nonsense moral, cujo sentido último apenas agora é desvelado diante dos nossos olhos – e ainda deveríamos agradecê-lo por isso! – por John Rawls. Diante de tal cenário, o autor propõe que “as vantagens dos que têm dotes naturais maiores devem limitar-se àqueles que promovem o bem dos setores mais pobres da sociedade”[22].

Essa noção, contudo, não é comunicável. Como pretender liberal um sistema em que não apenas o bem de um não deve prejudicar o outro, mas deve sempre promover necessariamente o bem do outro, e não de um outro qualquer, mas daquele que está mais abaixo dele no elo da cadeia social? Assim, Rawls presume, vejamos bem, PRESUME (aliás, ele presume, muito mais do que um filósofo deveria, e intui o tempo todo, sendo sua teoria um grande exercício de intuição presunçosa), que a vantagem dos que estão “acima” na cadeia social, caso beneficie quem está “mais abaixo” na sociedade, necessariamente beneficiará as classes intermédias.[23] Isso não apenas não é verificável, como tem, também, seu contrário ocorrendo em diversos cenários da história da humanidade: desde a extinção dos parlements, e das corporações de ofícios e associações de agricultores pela Loi Le Chapelier, na França, até a aversão à família – praticamente a última sociedade intermédia que restou na sociedade brasileira atual –, e à classe média manifestada por certos setores da sociedade urbana no Brasil, em nome de um discurso há muito refutado, mas ainda muito disseminado, por afagar de maneira extremamente cômoda o senso que cada “playboy” da Zona Sul pretende ter de pertencer à camada mais esclarecida e mais sedenta de justiça, mais moralmente elevada da população: o socialismo.

O liberal-totalitarismo de John Rawls reflete aquilo de que falou Chantal Delsol, ao tratar da imanentização da igualdade dentro do quadro de teorias políticas desprovidas de uma ontologia – como é a de Rawls: “teoria política, não metafísica” –: “os desejos (traduzidos em necessidades) tomam o lugar das aspirações. Estas últimas, espirituais, podiam continuar insaciáveis sem gerar infelicidade, ao passo que os desejos/necessidades insaciáveis suscita revoltas e ressentimentos sem fim”, concluindo, no parágrafo seguinte: “A inveja se tornou uma virtude.”[24]

Tudo o que fez Rawls, com sua teoria, foi uma repaginação do socialismo Fabiano nas discussões econômicas e amenizada no seu discurso. Aqui, nada de palavras-de-ordem, discursos incisivos e condenações taxativas; apenas “idéias intuitivas”, “convicções ponderadas” e “suposições”. Contudo, o totalitarismo proveniente da linguagem da abstração-total, que se esquece dos singulares, continua presente, conquanto dissimulado. É um totalitarismo sonso: sonso como John Rawls.

No próximo, e último, artigo, veremos como essa revolta de Rawls não consiste apenas numa revolta contra o bem dos indivíduos singularmente considerados, nem mesmo apenas do Estado, mas também contra o próprio fundamento da realidade, com suas idéias de razão pública e consenso sobreposto.

 

NOTAS:

[1] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 26-27.

[2] Ibid. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 32. Seja lá o que tenha querido dizer com essa frase, foi, no mínimo, infeliz ao expressá-lo, e os bandidos de todo o mundo provavelmente muito se contentariam em ouvi-la.

[3] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 34.

[4] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[5] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 37.

[6] Santo Tomás de Aquino. S Th., I-IIae, q. 94, art. 2, r.

[7] VOEGELIN, Eric. Ordem e História: III – Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2009, p. 87-88.

[8] RAWLS, John. Op. cit. (§24. O véu da ignorância), p. 169.

[9] Scriptum Super Sententiis, lib. 4 d. 23 q. 2 a. 4 qc. 2 expos. “Bonum autem unius est prius quam bonum multorum, quod ex singularibus bonis consurgit.”

[10] RAWLS, John. Op. cit. (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[11] Santo Tomás de Aquino. Summa Theologiae IIa-IIae, q. 58 a. 7 ad 1

[12] RAWLS, op. cit. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[13] Eod. loc.

[14] Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 36, art. 1, r.

[15] Santo Tomás de Aquino. Scriptum Super Sententiis, lib. 3 d. 27 q. 1 a. 1 ad 3.

[16] Em outra passagem – Scriptum Super Sententiis, lib. 2 d. 5 q. 1 a. 3 ad 2 – o Aquinate fala que “a inveja é a dor pela prosperidade alheia, na medida em que é impeditiva de algum bem próprio.” “[…] invidia est dolor alienae prosperitatis, inquantum est impeditiva alicujus boni proprii.”

[17] Santo Tomás de Aquino. Summa Contra Gentiles, lib. 1 cap. 89 n. 12.

[18] RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[19] Ibid., (§ 39. Definição da prioridade da liberdade), p. 305.

[20]  Santo Tomás de Aquino. S. Th. I-IIae, q. 90, art. 3, ad. 3: “bonum unius hominis non est ultimus finis”. Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 58, art. 9, ad 3. “Bonum autem unius personae singularis non est finis alterius.”

[21] RAWLS, John. Op. cit., (§12. Interpretações do segundo princípio), p. 89.

[22] Eod. loc.

[23] Ibid., (§13. A igualdade democrática e o princípio de diferença) p. 96-97.

[24] DELSOL, Chantal. La haine du monde : totalitarismes et postmodernité. Paris : Du Cerf, 2016, p. 99.

 

Imagem: A Inveja’ (Óleo sobre tela) – Jacques de Backer (1570-1575) Museo di Capodimonte, Nápoles, Itália.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 1] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 26/05/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-1

La grande confrontation moderne est la
confrontation avec le totalitarisme.
JEAN MADIRAN

 

O grande confronto moderno, como afirma Jean Madiran, na frase da epígrafe, é o confronto com o totalitarismo. O século XX esteve repleto de episódios desse confronto, com milhões de mortos, em campos de concentração, câmaras de gás, confisco de propriedade, humilhação, tortura e valas comuns, fosse em nome de um nacional socialismo ou de um socialismo internacional. Seja como for, características comumente atribuídas a ambos os movimentos são o seu flagrante autoritarismo e, o que não é menos importante, seu desrespeito às leis: regime de culto ao líder, partido único, falta de ritos de justiça, subversão das instituições, assassinatos, julgamentos na calada da noite, clandestinidade, ocultamento…

Houve, ainda, regimes autoritários no século XX, muitos dos quais nitidamente não poderiam ser qualificados como totalitários, e nesse particular a classificação de Juan Linz parece resolver a questão. Contudo, parece difundido (ainda mais em um país em que uma narrativa canhestra da história do período logrou uma prevalência que só recentemente vem sendo contestada) certo pensamento segundo o qual, embora seja verdade que nem todo o regime autoritário é totalitário, todo regime totalitário é necessária e previamente autoritário, e que, portanto, qualquer discurso que pudesse pender – por pouco que fosse – para o autoritarismo seria um prelúdio inelutável ao totalitarismo. Daí que muitas pessoas pensem ser o totalitarismo coisa do passado, ao mesmo tempo em que enxergam em coisas do passado – como um certo discurso que apela ao povo, e a atuação de uma certa bancada no Congresso Nacional – as maiores ameaças de totalitarismo. Mas serão mesmo verdadeiras ou, ao menos úteis, tais associações de idéias?

Não parece que seja assim, por pelo menos duas razões. A primeira é que o totalitarismo de esquerda historicamente foi gerado a partir de um discurso libertador e emancipatório. Foi assim que, a partir do discurso de Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, bem como do de Karl Marx no século XIX, produziram-se as carnificinas da breve, mas sangrenta, Revolução Francesa – esta, ainda ao fim do século em que foi premiado o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens –, e também a da Revolução Russa – no início do século subseqüente à publicação do Manifesto Comunista. Logo, a predominância atual de discursos autointitulados “emancipatórios” nada depõe em favor de uma nova era isenta de totalitarismos; antes, pelo contrário, torna a iminência de desastre tanto mais provável quanto mais dissimulado é, no plano do discurso, o caráter francamente violento das práticas políticas revolucionárias.

A segunda razão é que as instituições do Ocidente, apesar de até há pouco tempo terem apresentado uma aparência de harmonia social, estão colapsando, e de que o ‘rule of law’ do ‘estado democrático de direito’ tem se demonstrado insuficiente para manter a sociedade dentro de limites minimamente saudáveis de entendimento mútuo e amizade política. E isso não surpreende, pois, afinal, como afirmou Solzhenitsyn acerca da democracia na América, no seu famoso discurso inaugural do ano letivo de 1978-79 na Universidade de Harvard, (Disponível aqui: http://www.americanrhetoric.com/speeches/alexandersolzhenitsynharvard.htm), logo após ter mencionado o regime soviético, em que estava ausente o ‘rule of law’: “uma sociedade sem nenhuma outra escala de valores além da legal não é, igualmente, digna do homem. Uma sociedade que é baseada na letra da lei e jamais alcança algo superior lança mão de uma vantagem muito pequena dentre aquelas possíveis ao ser humano. A letra da lei é por demais fria e formal para exercer um influxo benéfico sobre a sociedade. Onde quer que a trama da vida humana se veja tecida por relações legalísticas, cria-se uma atmosfera de mediocridade moral, paralisante dos mais nobres impulsos humanos. E será simplesmente impossível resistir às provações deste século ameaçador somente com o apoio em uma estrutura legalística. ”

Em suma, nada garante que um discurso “emancipatório” e a predominância de instituições e processos decisórios tais como a chamada “democracia representativa” e o “rule of law” consistam em algo, no primeiro caso, contrário, e no segundo, suficiente face ao totalitarismo, cujo fundamento filosófico se encontra para mais além desses fenômenos.

Afinal, como bem observado por Graneris “toda filosofia começa na metafísica e desemboca na política” (Contribución tomista a la filosofia del derecho, p. 129), e não é em outro lugar que deve ser buscado o fundamento último do totalitarismo. Ele toma por seu este seguinte nome: “abstração total”. A “abstração total” consiste num modo de abstrair que, tirando o universal do singular, se esquece que de que, em primeiro lugar, o singular estava ali. A partir desse tipo de operação, começa-se a trabalhar sobre a realidade apenas a partir de idéias, sem reconhecê-la, e sem a ela retornar, por despicienda. É na “abstração total” que reside a fonte de toda ideologia, que se olvida do ato de ser dos entes, de sua presença real, para trabalhar com conceitos – a princípio tomados como quiditativos e exaurientes da realidade – que, posteriormente, são desprezados em prol de outros – meramente quantitativos e instrumentais –, mas não porque estes ajudam a conhecê-la, e sim porque permitem crescer a ilusão manipulatória.

Essa postura metafísica (ou, talvez, antimetafísica), embora se encontre já presente na Idade Média, com Escoto (que confundia os planos lógico e ontológico, fazendo de cada distinção lógica uma entidade substancial), desemboca, em suas consequências, na formulação assaz representativa de Karl Marx, nas suas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos tem somente tentado interpretar o mundo; chegou o momento, porém, para que ele seja transformado.” (tradução livre do original alemão: “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an, sie zu verändern.“) Como se, é claro, a compreensão do mundo fosse algo que já estivesse terminado, e que fosse razoável fechar-se à realidade em nome de uma apreensão incompleta dela, que é, ademais, sempre o máximo a que podemos chegar.

Na política, esse fenômeno da “abstração total” se reflete no fenômeno da representação, pela qual um partido (ou seja, uma parcela da sociedade), interpõe-se à sociedade-civil e o Estado, impondo, através deste, uma visão dela a partir de um suposto exterior. Ora, as diversas autoridades da sociedade civil não têm seu poder baseado na representação, e tampouco na liberdade e na igualdade, mas na presença, em vínculos constituídos e na preeminência: em outras palavras, elas não são, em grande medida, fruto da eleição subjetiva de quem me representa, mas do reconhecimento de quem já está presente, com quem já me encontro em relação e que se me preleva. Daí haver reparado Pierre Manent que: “Uma vez que num país democrático as circunstâncias dêem uma chance à escalada totalitária, a sociedade-civil estará vulnerável, porque semelhante escalada totalitária poderá dirigir contra os poderes intra-sociais a própria ideologia democrática, sem ter necessidade de recorrer à sua própria ideologia. Mais precisamente, ela poderá utilizar o princípio representativo de uma maneira puramente instrumental. Contrariamente à opinião convencional, a idéia representativa enfraquece intrinsecamente a legitimidade da sociedade civil, e põe em perigo sua independência.” (Enquête sur la démocratie, p. 89, n. 1) Dessa maneira, a confusão entre os planos conceitual abstrato e o ontológico – presente, por exemplo, na metafísica agostinista do tardo-medievo –traduz-se, na modernidade, na tendência à indistinção entre Estado como governo totalmente abstraído do seio da sociedade-civil, pelo conceito de soberania, e ela própria, na medida em que esse mesmo Estado se vale da soberania para a ela se impor.

Mas o fenômeno totalitário moderno, por mais que se o queira atribuir precipuamente ao Estado, e encontre efetivamente nele sua origem histórica, encontra sua justificação teórica exatamente na categoria em nome da qual, por outro lado, uma certa corrente de pensamento atual pretende contrapor ao Estado, como solução dos problemas atuais. Esta categoria é, justamente, o indivíduo, posto por Hobbes como conceito axial da construção do Estado moderno a quem tais pessoas pretendem se insurgir. Pouca esperança há de a situação atual política ser revertida, quando tantos pretendem combater o Leviatã justamente com os conceitos que lhe são opostos não como seus contraditórios, mas como seus contrários – e que figuram em relação a ele, unicamente como o outro lado da moeda –, como a liberdade individual e o direito subjetivo.

Esse fenômeno, que vem sendo com cada vez mais clareza percebido, foi tratado pela escritora Chantal Delsol em seu livro mais recente, La Haîne du Monde (O ódio do mundo). Em entrevista ao site www.atlantico.fr, a autora delineou algumas idéias-chave que, conquanto sumárias, podem ser-nos úteis para pensar este problema. Uma é a de que vivemos em um período em que os mesmos objetivos propugnados pelos Estados totalitários, como a eugenia, são promovidos, não a partir do Estado – i. e., ao menos não do Estado como governo – mas pelos indivíduos, por pessoas particulares, e têm por objetivo uma destruição da realidade. Tal modo de pensar remonta já à época da Revolução Francesa, e tem por exemplo cabal o Marquês de Sade, que “deslegitima a pena de morte quando ela vem do Estado, e a justifica quando ela é fruto de um desejo individual”. A outra é a de que tais ações de caráter e pretensões totalitárias têm sido movidas já não pelo aparato do Estado com suas leis, a partir de cima, mas por um hábil manejo da retórica jurídica a partir de conceitos destituídos de suficiência operativa como os de direito subjetivo e liberdade individual – isto quando ambos não são sumariados na categoria camaleônica dos direitos humanos –, e têm origem em correntes de pensamento nascidas nas universidades, como o desconstrucionismo e as correntes de esquerda, “que recusam a existência de uma antropologia e de uma moral que nos precedem e nos transcendem”. (http://www.atlantico.fr/decryptage/comment-desir-emancipation-liberale-est-porteur-systeme-post-totalitaire-chantal-delsol-2578295.html)

A fórmula expressa por Pierre Manent e o fenômeno descrito por Chantal Delsol correspondem em ampla medida à proposta de sociedade apresentada por John Rawls em suas famigeradas (ou, em todo caso, infames) obras Uma teoria da justiça e Liberalismo político. A obra política de Rawls é o epítome da abstração total levada ao terreno da política. Tal postura está expressa, na primeira das obras acima, na formulação de uma teoria “fraca” do bem e, também, na prioridade do justo sobre o bem; na segunda, ela se consubstancia na pretensão de imposição paulatina de uma teoria “política, não metafísica” à sociedade. Estas duas obras serão o assunto do segundo artigo desta série.

 

Figura: Hieronymus Bosch (1510), O Jardim das Delícias Terrenas, El Prado.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

A cruz e a coroa: por uma justificação democrática das concepções éticas e dos símbolos religiosos na esfera pública (por Tarcísio Amorim)

Filosofia | 16/07/2015 | | IFE RIO

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Partindo da teoria do liberalismo político de John Rawls, Cécile Laborde defende um espaço público livre de qualquer simbolismo religioso, entendendo que tais elementos simbólicos ameaçam o senso de cidadania por não representarem a totalidade dos membros de uma comunidade política. Tendo como base a crítica de Michael Sandel e Jürgen Habermas aos princípios do liberalismo rawlsiano, este artigo procura demonstrar que, além de não violar os princípios democráticos, o simbolismo religioso constitui-se como o corolário da exigência liberal do princípio de autonomia política entre aqueles povos que articulam concepções substanciais de bem fundamentadas em razões religiosas. Ainda que do ponto de vista legal tal fato é reconhecido pela jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, neste ensaio busco oferecer uma justificação moral, além de meramente jurídica, para a afirmação dos símbolos religiosos no Estado liberal democrático.

Os modelos de separação e estabelecimento religioso

No artigo Political Liberalism and Religion: On Separation and Establishment (2011), Cécile Laborde, especialista em teoria política e republicanismo da University College London, toma o conceito de liberalismo político de John Rawls como ponto de partida para a avaliação de quatro modelos sobre o lugar da religião na esfera pública, os quais ela classifica da seguinte forma:

1) Separação Militante – proteção inadequada para liberdades religiosas; apoio oficial e promoção do ceticismo ou ateísmo pelo Estado, laicidade antirreligiosa.

2) Separação Moderada – proteção adequada às liberdades religiosas; ausência de suporte oficial à religião; ausência de financiamento público para a educação religiosa e de outros meios de suporte para grupos religiosos.

3) Estabelecimento Moderado – proteção adequada para liberdades religiosas; suporte oficial de religiões pelo Estado; financiamento público da educação religiosa e outros meios de suporte para grupos religiosos.

4) Estabelecimento Pleno – proteção inadequada às liberdades religiosas; suporte oficial e promoção da ortodoxia religiosa pelo Estado; Estado antissecular e teocrático.

Laborde defende que, enquanto o primeiro e quarto modelo seriam incompatíveis com a democracia liberal por sua falha em proteger os direitos básicos de minorias religiosas e dissidentes, o segundo e o terceiro são geralmente aceitos na literatura acerca do liberalismo democrático, que se divide quanto ao grau de viabilidade que cada um provê em diferentes contextos.

No caso do Estabelecimento Moderado, a teórica afirma que ele pode ser proposto com base em princípios liberais, apelando-se para a razão pública. Este seria o caso se, por exemplo, o estado provesse fundos para capelanias militares a fim de garantir o direito para seus membros de praticar sua religião. Da mesma forma, associações ou instituições de caráter religioso poderiam ser patrocinadas quando estas oferecessem serviços cujo valor fosse publicamente reconhecido, especialmente quando outras organizações privadas não religiosas usufruíssem do mesmo benefício.

Para a Separação Moderada, Laborde contraria o argumento de que este modelo só poderia prevalecer a partir de razões seculares abrangestes (usando o termo rawlsiano), que impõem uma cosmovisão secular sobre cidadãos religiosos. Isso porque, seguindo a lógica do consenso sobreposto de Rawls, estes mesmos cidadãos poderiam encontrar argumentos em seus próprios sistemas doutrinários para apoiarem a separação – tal como na ideia cristã de um dualismo compreendendo o mundo temporal e o sagrado. Entretando, Laborde concede que visões ateias e agnósticas poderiam ter mais oportunidades de florescimento numa sociedade em que este modelo é adotado. Para remediar tal situação, a autora defende que o Estado pode adotar medidas para contrabalançar possíveis efeitos injustos de arranjos institucionais e legais, como, por exemplo, políticas de exceções que visem acomodar demandas de grupos religiosos.

Na última seção, porém, Laborde advoca uma visão liberal republicana, que implica a exclusão dos elementos simbólicos da religião. O principal argumento para tal modelo é que o liberalismo político deveria se preocupar não somente com a distribuição de direitos e oportunidades básicas, mas também com outras formas mais intangíveis de reconhecimento. A autora pretende excluir até mesmo as formas mais modestas de estabelecimento afirmando que nas democracias onde ele existe a promoção oficial de símbolos religiosos acabaria por representar não-religiosos como cidadãos de segunda classe, ameaçando seu senso de cidadania e prejudicando sua capacidade de apoiar as instituições políticas. A visão republicana toma o simbolismo oficial como matéria de justiça básica, já que seria necessário assegurar a neutralidade também nesse âmbito, a fim de prevenir uma concepção parcial de cidadania. Neste modelo, símbolos religiosos como crucifixos e cerimônias oficiais presididas por clérigos são exemplos de práticas que deveriam ser banidas, ainda que elas a priori não apresentem nenhuma ameaça às liberdades básicas dos cidadãos. A proposta de Laborde constitui-se um passo adiante na secularização do Estado em relação aos modelos vigentes na Europa, onde o estabelecimento simbólico ainda é comum em muitos países e contam com o apoio das leis internacionais. O modelo britânico, nesse sentido, é particularmente ilustrativo.

Sobre a natureza da razão pública e da constituição do Estado

A primeira limitação de tal esboço teórico, porém, encontra-se na ausência de um engamento adequado com a literatura acerca do tema da razão pública e religião. De fato, há uma ampla crítica à ideia rawlsiana de uma razão pública desvinculada de visões religiosas e outras doutrinas abrangentes, fundamentada na oposição ao argumento de que existiriam princípios básicos de justiça que poderiam ser razoavelmente aceitos por todos os cidadãos, independentemente de suas convicções particulares. Cécile Laborde simplesmente toma de forma acrítica aquilo que a literatura kantiana convencionou chamar de a prioridade do “justo” sobre as concepções de vida boa1, deixando de lado os desenvolvimentos recentes no campo da teoria política que questionam tal relação.

Uma das críticas a essa visão que divide o indivíduo em um ser político e social, avançando uma concepção de razão pública que estaria restrita aos aspectos básicos da justiça distributiva – deixando a busca da realização das concepções de vida boa para a esfera privada – foi articulada pelo filósofo Michael Sandel. Como ele explica, a teoria liberal é fundada na concepção kantiana do ser desvinculado, ou seja, do indivíduo racional que é livre para escolher entre diferentes concepções de bem ser estar associado aos seus fins a priori. O indivíduo é livre somente enquanto exerce sua capacidade racional, sendo a liberdade entendida como o próprio processo pelo qual este indivíduo toma parte no mundo inteligível e reconhece sua vontade autônoma. O que está em questão, nas palavras de Sandel (2007, p. 215), é uma “perspectiva de como o mundo é”, e uma “concepção particular do indivíduo”. Se a justiça está somente relacionada com a possibilidade de escolha do indivíduo de suas próprias concepções de vida boa, então há uma noção ontológica do indivíduo que antecede sua existência, já que seus fins não são dados a priori, e os elementos empíricos dessa existência são abstraído do ato de escolha racional. De um ponto de vista comunitarista, Sandel questiona até que ponto essa possibilidade de escolha se aplica para aqueles que endossam uma visão dos fins da vida humana como associados ao caráter coletivo de sua comunidade e suas concepções éticas abrangentes. Adicione-se ainda o fato de que partindo de um ponto de vista metafísico, pode-se associar os fins da vida humana com uma interpretação cosmológica do mundo, que exige sua descoberta ao invés da mera criação, e que também se reflete na coletividade, dissolvendo a separação entre a moral política e a ética privada. Nesses casos, existe um conflito ontológico entre a concepções do ser desvinculado e a visão do ser constituído, ou seja, do sujeito cujos fins estão associados com outras realidades externas.

Vale notar que é justamente esta definição que leva Sandel a defender a proteção especial de práticas religiosas, com o argumento de que é por conta da natureza constituída do ser que indivíduos podem julgar seus compromissos religiosos não como um objeto de eleição (comparado-se com gostos pessoais ou práticas habituais não vinculativas), mas como parte de sua identidade e constituição como seres humanos. Mandamentos religiosos, nesse sentido, não podem ser tratados como matéria de predileção, e por isso o Estado deveria conceder exceções para algumas demandas de religião (permitir o uso do véu islâmico, por exemplo, não é o mesmo que modificar requisitos de uniforme a fim de se acomodar outras preferências contingentes de vestimenta). Ao endossar o princípio de moralidade política rawlsiano, Laborde superestima a capacidade do Estado liberal em prover meios adequados para acomodação das práticas religiosas, quando discorre sobre o modelo da Separação Moderada. Se o Estado liberal não reconhece os fins morais do indivíduos como constituídos, então como garantir que a proteção dessas práticas não fiquem à mercê das contingências do processo democrático e da vontade da maioria como qualquer outra matéria de preferência pessoal? É o que vem acontecendo na França desde 2004, quando o uso de símbolos religiosos individuais foi proibido nas escolas públicas.

Outra oposição à visão rawlsiana de razão pública se dirige à sua exigência de tradução dos argumentos religiosos em termos seculares. Laborde se opõe aos críticos da separação dizendo que cidadãos religiosos podem encontrar razões em seus próprios esquemas doutrinais para endossarem o estado liberal. Ela retoma a ideia de consenso sobreposto, presente na teoria de Ralws, pela qual os aderentes de doutrinas abrangentes consentem com os requisitos do Estado liberal por suas próprias razões em matérias políticas, enquanto buscam realizar suas crenças nos ambientes privados. Como exemplo, Laborde menciona o princípio cristão que ordena dar “a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, ilustrando a convergência entre doutrinas religiosas e o argumento liberal pela separação. Não é preciso lembrar, porém, que este princípio envolve diferentes e complexas interpretações teológicas e filosóficas da distinção entre o mundo sagrado e secular e que esta mesma dicotomia, que Jose Casanova (1994, p. 12-13) reconhece ser uma herança do Cristianismo em sua análise da secularização do ocidente, não se aplica da mesma forma a outras tradições religiosas, como o islamismo. O argumento, portanto, é inválido por sua própria natureza. A autora simplesmente parte do princípio liberal de forma acrítica, sem uma justificação satisfatória, exigindo que os cidadãos religiosos adaptem suas razões de modo a fazê-las convergir com os requisitos do estado liberal.

Em Religion in the Public Sphere (2006), Jürgen Habermas critica essa lógica, defendendo que exigir a restrição das razões abrangentes seria impor um fardo injusto sobre aqueles que se apoiam em visões religiosas para guiarem suas ações políticas. O filósofo sublinha que de acordo com as convicções de muitos fiéis, basear suas decisões acerca de matérias fundamentais de justiça não é uma questão de escolha. Para ilustrar esse ponto, Habermas recorre a uma reflexão desenvolvida por Nicholas Wolterstorff:

É de sua convicção que eles devem buscar a totalidade, integralidade e integração em suas vidas: que eles devem permitir que a Palavra de Deus, os ensinamentos da Torah, os mandamentos e exemplos de Jesus, ou o que for, definam sua existência como um todo, incluindo, portanto, sua existência social e política (Wolterstorff apud Habermas, 2006, p. 8).

Nesse sentido, se o estado liberal tem como objetivo proteger os direitos dos cidadãos religiosos de modo que eles possam perseguir suas próprias concepções de vida boa, ele não pode exigir que eles justifiquem seus argumentos políticos de forma independente de suas visões abrangentes2. Habermas, portanto, opõe-se a divisão da concepção de cidadania em uma identidade pública e outra privada.

Tal lógica converge com outra realidade da qual o liberalismo político tenta esquivar-se: a da impossibilidade da construção da uma esfera pública neutra, desvinculada de concepções particulares de vida boa. Essa realidade foi ilustrada no debate entre o próprio Jürgen Habermas (1994) e o filósofo canadense Charles Taylor (1994), em torno da política de reconhecimento. Para este, o procedimentalismo liberal3 não seria capaz de atender às demandas de grupos e movimentos culturais que carregam identidades e objetivos coletivos. Mencionando as particularidades das leis do Quebeque, que restringem o uso da língua inglesa em nome da sobrevivência da cultura franco-canadense, Taylor argumenta que o princípio da autonomia política, que garante que indivíduos possam perseguir suas concepções de bem, pode implicar a exigência do reconhecimento oficial de identidades coletivas, cujas mesmas concepções abrangentes de bem marcam a esfera pública com suas visões de mundo em diversos âmbitos: língua oficial, currículo escolar, escolhas de datas celebrativas, símbolos nacionais, etc. Para Taylor, a política do reconhecimento, assim explicada, constituiria um outro tipo de liberalismo, distante das concepções kantianas procedimentalistas que enfatizam a neutralidade do Estado. Habermas, por outro lado, ainda endossando a crítica ao procedimentalismo liberal, rejeita a enumeração de diversos tipos de liberalismo, afirmando que o próprio princípio de autonomia liberal exige o reconhecido de identidades coletivas e mesmo das políticas de diferença. Mais ainda, Habermas admite que toda comunidade jurídica e todo processo de implementação de direitos básicos é informado pelas tradições e experiências particulares das comunidades na qual seus cidadãos se inserem. Assim, embora ressalte o compromisso do Estado liberal com as liberdades fundamentais, o filósofo concede que todo sistema legal é sempre a expressão de uma forma particular de vida e não somente o reflexo de caraterísticas universais de direitos básicos. Como exemplo, ele menciona os privilégios constitucionais gozados pelas Igrejas cristãs na Alemanha, que remontam ao seu papel histórico na formação dos valores nacionais e no desenvolvimento de suas instituições políticas. Nesse entendimento, toda sociedade democrática carrega símbolos e concepções éticas particulares, que embora não sejam universalmente compartilhadas, constituem a base sobre a qual tais sociedades constroem suas instituições políticas. Para o filósofo republicano David Miller (2000), é exatamente essa característica que permite com que uma nação possa participar do processo democrático identificando-se como um povo particular.

Considerações Finais

Dito isso, pode-se retomar as principais objeções de Cécile Laborde com relação ao simbolismo religioso e verificar sua procedência. Como vimos, a autora avança uma concepção liberal/rawlsiana de esfera pública, na qual se exige que os indivíduos abdiquem de suas concepções substantivas de bem na deliberação sobre os princípios básicos de justiça. Seguindo a crítica de Sandel à visão do ser desvinculado, unida à oposição de Habermas à concepção dual de cidadania, deve-se rejeitar tal perspectiva, pois as concepções particulares de bem informam e condicionam o todo ato de escolha e justificação política. A concepção liberal, nesse sentido, não pode ser universalmente compartilhada, pois exigiria a priori um tipo de justificação também baseada em uma visão particular do indivíduo e da razão pública.

Por fim, Laborde rejeita a promoção de símbolos religiosos pelo Estado, alegando que eles imporiam uma ameaça ao senso de cidadania, por não representearem todos os membros de uma determinada comunidade política. Tendo em vista, porém, a exposição de Habermas sobre a impossibilidade de um espaço público neutro, podemos concluir que, embora os símbolos políticos lhe sejam inerentes, nenhum Estado pode representar todos os cidadãos em cada item de seu arcabouço simbólico. Através de sua língua, literatura, de seu sistema educacional e currículo escolar, bem como da escolha de seus elementos celebrativos um povo constrói suas instituições de forma particular, distinguindo-se de seus vizinhos e delineando suas fronteiras por seu senso de nacionalidade. A própria escolha constitucional entre uma monarquia parlamentarista ou um sistema republicano é contingente à história particular de uma nação, cuja simbologia cultural permeia tais instituições. Sendo assim, qual seria a diferença entre a cruz e a coroa?

Foi seguindo tal lógica de pensamento que Joseph Weiler (2010), professor de Direito na Universidade de Nova York e presidente do Instituo Universitário Europeu de Florença, apresentou a defesa da manutenção dos crucifixos nas escolas italianas perante a Corte Europeia de Direitos Humanos em 2011. Seguindo a lógica de Miller sobre a necessidade dos símbolos para a coesão democrática, Weiler ressaltou que “muitos de nossos símbolos estatais, por causa da história europeia, uma história de centenas e milhares de anos de entrelaçamento com o cristianismo, carregam uma dimensão religiosa(…)”. “A cruz”, ele destaca, “é o exemplo mais visível, aparecendo em diversas bandeiras, brasões, prédios, moedas, etc.”. Antes disso, porém, o Tribunal Administrativo de Veneto já havia decidido internamente por essa causa, argumentando que o crucifixo é não só um símbolo da evolução cultural e histórica do povo italiano, mas também de um sistema de valores que fundamentam a identidade nacional (2005, sec. 11.9).

Se admite-se, portanto, que as manifestações de símbolos culturais pelo Estado, além de inevitável em uma democracia liberal, condicionam sua coesão processual e eficácia jurídica na afirmação do princípio de autonomia, pode-se rejeitar o argumento de Cécile Laborde de que elementos simbólicos de origem religiosa ameaçam o senso de cidadania. Toda expressão cultural de uma comunidade política reflete uma história particular, que marca tradições e costumes não universais. Assim como a língua francesa, no exemplo de Charles Taylor, representa uma concepção substancial de vida boa e uma determinada visão de mundo, a escolha pelo estabelecimento moderado não viola os princípios democráticos, já que não há nesse modelo nenhuma restrição das liberdades religiosas básicas, fato que a mesma Laborde admite. Como explícito no próprio modelo rawlsiano, tratar o simbolismo religioso de forma diferente de qualquer outro simbolismo cultural seria impor uma restrição injusta e parcial, já que – mantendo-se as estruturas básicas de direito – não há nenhum motivo para se abordar concepções substanciais de vida boa de maneira diversa pelo simples fato de uma ser secular e outra religiosa. Uma vez que se entende a natureza constitucional do Estado como eticamente orientada, não é possível defender uma concepção secular de republicanismo nos termos de Laborde, e deve-se, portanto, admitir a validade dos símbolos religiosos como expressão cultural de uma comunidade política.

Bibliografia

CASANOVA, José. Public religions in the modern world. Chicago : University of Chicago Press, 1994.

HABERMAS, Jürgen. Lutas pelo reconhecimento no estado democrático constitucional. In: GUTMANN, Amy (org.).Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

______. Religion in the public sphere. European Journal of Philosophy, 14, 1, 2006, p. 1–25.

Joseph Weiler’s testimony before the European Court of Human Rights. Dotsub. 2010. Disponível em <https://dotsub.com/view/65bc5332-aa10-4b8c-bc50-d051e8f4fcc7>.

LABORDE, Cecile. Political Liberalism and Religion: On Separation and Establishment. The Journal of Political Philosophy, March, 2011.

MILLER, David. Citizenship and national identity. Cambridge: Polity Press, 2000.

SANDEL, Michael. Filosofía pública. Bercelona: Marbot ediciones, 2007.

TAYLOR, Charles. A política do reconhecimento. In: GUTMANN, Amy (org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1994, p. 45-94.

Tribunale Amministrativo Regionale per il Veneto, Sentenza 17 marzo 2005, sec. 11.9

Notas

1 O justo nessa tradição é entendido em seu aspecto universal, já que o indivíduo deve recorrer aos princípios básicos que se supõem genericamente compartilhados. John Rawls parte desse conceito ao exigir que o indivíduo abdique de suas concepções morais particulares em vista da razão pública, que se supõe universal para a deliberação acerca de elementos constitucionais básicos.

2 Sobre a racionalidade dos argumentos religiosos, ver: CARVALHO, Tarcísio A. A complementaridade entre razão e religião no âmbito democrático e os desafios do mundo contemporâneo: dez anos do debate Habermas-Ratzinger. Dicta & Contradicta, 2014. Disponível em <http://www.dicta.com.br/a-complementaridade-entre-razao-e-religiao-no-ambito-democratico-e-os-desafios-do-mundo-contemporaneo-dez-anos-do-debate-habermas-ratzinger/>.

3 A ideia da democracia procedimental, presente nas teorias liberais, se baseia na visão de um estado democrático no qual as instituições políticas serviriam como meros instrumentos de distribuição e administração da justiça, sem endossarem concepções substanciais particulares de vida boa.

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Publicado originalmente no site da Revista Dicta & Contradicta