O que é o liberal-totalitarismo? [Parte 1] (por Marcos Paulo Fernandes de Araújo)

Política e Sociologia | 26/05/2017 | | IFE BRASIL

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liberal-totalitarismo-1

La grande confrontation moderne est la
confrontation avec le totalitarisme.
JEAN MADIRAN

 

O grande confronto moderno, como afirma Jean Madiran, na frase da epígrafe, é o confronto com o totalitarismo. O século XX esteve repleto de episódios desse confronto, com milhões de mortos, em campos de concentração, câmaras de gás, confisco de propriedade, humilhação, tortura e valas comuns, fosse em nome de um nacional socialismo ou de um socialismo internacional. Seja como for, características comumente atribuídas a ambos os movimentos são o seu flagrante autoritarismo e, o que não é menos importante, seu desrespeito às leis: regime de culto ao líder, partido único, falta de ritos de justiça, subversão das instituições, assassinatos, julgamentos na calada da noite, clandestinidade, ocultamento…

Houve, ainda, regimes autoritários no século XX, muitos dos quais nitidamente não poderiam ser qualificados como totalitários, e nesse particular a classificação de Juan Linz parece resolver a questão. Contudo, parece difundido (ainda mais em um país em que uma narrativa canhestra da história do período logrou uma prevalência que só recentemente vem sendo contestada) certo pensamento segundo o qual, embora seja verdade que nem todo o regime autoritário é totalitário, todo regime totalitário é necessária e previamente autoritário, e que, portanto, qualquer discurso que pudesse pender – por pouco que fosse – para o autoritarismo seria um prelúdio inelutável ao totalitarismo. Daí que muitas pessoas pensem ser o totalitarismo coisa do passado, ao mesmo tempo em que enxergam em coisas do passado – como um certo discurso que apela ao povo, e a atuação de uma certa bancada no Congresso Nacional – as maiores ameaças de totalitarismo. Mas serão mesmo verdadeiras ou, ao menos úteis, tais associações de idéias?

Não parece que seja assim, por pelo menos duas razões. A primeira é que o totalitarismo de esquerda historicamente foi gerado a partir de um discurso libertador e emancipatório. Foi assim que, a partir do discurso de Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, bem como do de Karl Marx no século XIX, produziram-se as carnificinas da breve, mas sangrenta, Revolução Francesa – esta, ainda ao fim do século em que foi premiado o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens –, e também a da Revolução Russa – no início do século subseqüente à publicação do Manifesto Comunista. Logo, a predominância atual de discursos autointitulados “emancipatórios” nada depõe em favor de uma nova era isenta de totalitarismos; antes, pelo contrário, torna a iminência de desastre tanto mais provável quanto mais dissimulado é, no plano do discurso, o caráter francamente violento das práticas políticas revolucionárias.

A segunda razão é que as instituições do Ocidente, apesar de até há pouco tempo terem apresentado uma aparência de harmonia social, estão colapsando, e de que o ‘rule of law’ do ‘estado democrático de direito’ tem se demonstrado insuficiente para manter a sociedade dentro de limites minimamente saudáveis de entendimento mútuo e amizade política. E isso não surpreende, pois, afinal, como afirmou Solzhenitsyn acerca da democracia na América, no seu famoso discurso inaugural do ano letivo de 1978-79 na Universidade de Harvard, (Disponível aqui: http://www.americanrhetoric.com/speeches/alexandersolzhenitsynharvard.htm), logo após ter mencionado o regime soviético, em que estava ausente o ‘rule of law’: “uma sociedade sem nenhuma outra escala de valores além da legal não é, igualmente, digna do homem. Uma sociedade que é baseada na letra da lei e jamais alcança algo superior lança mão de uma vantagem muito pequena dentre aquelas possíveis ao ser humano. A letra da lei é por demais fria e formal para exercer um influxo benéfico sobre a sociedade. Onde quer que a trama da vida humana se veja tecida por relações legalísticas, cria-se uma atmosfera de mediocridade moral, paralisante dos mais nobres impulsos humanos. E será simplesmente impossível resistir às provações deste século ameaçador somente com o apoio em uma estrutura legalística. ”

Em suma, nada garante que um discurso “emancipatório” e a predominância de instituições e processos decisórios tais como a chamada “democracia representativa” e o “rule of law” consistam em algo, no primeiro caso, contrário, e no segundo, suficiente face ao totalitarismo, cujo fundamento filosófico se encontra para mais além desses fenômenos.

Afinal, como bem observado por Graneris “toda filosofia começa na metafísica e desemboca na política” (Contribución tomista a la filosofia del derecho, p. 129), e não é em outro lugar que deve ser buscado o fundamento último do totalitarismo. Ele toma por seu este seguinte nome: “abstração total”. A “abstração total” consiste num modo de abstrair que, tirando o universal do singular, se esquece que de que, em primeiro lugar, o singular estava ali. A partir desse tipo de operação, começa-se a trabalhar sobre a realidade apenas a partir de idéias, sem reconhecê-la, e sem a ela retornar, por despicienda. É na “abstração total” que reside a fonte de toda ideologia, que se olvida do ato de ser dos entes, de sua presença real, para trabalhar com conceitos – a princípio tomados como quiditativos e exaurientes da realidade – que, posteriormente, são desprezados em prol de outros – meramente quantitativos e instrumentais –, mas não porque estes ajudam a conhecê-la, e sim porque permitem crescer a ilusão manipulatória.

Essa postura metafísica (ou, talvez, antimetafísica), embora se encontre já presente na Idade Média, com Escoto (que confundia os planos lógico e ontológico, fazendo de cada distinção lógica uma entidade substancial), desemboca, em suas consequências, na formulação assaz representativa de Karl Marx, nas suas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos tem somente tentado interpretar o mundo; chegou o momento, porém, para que ele seja transformado.” (tradução livre do original alemão: “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kommt darauf an, sie zu verändern.“) Como se, é claro, a compreensão do mundo fosse algo que já estivesse terminado, e que fosse razoável fechar-se à realidade em nome de uma apreensão incompleta dela, que é, ademais, sempre o máximo a que podemos chegar.

Na política, esse fenômeno da “abstração total” se reflete no fenômeno da representação, pela qual um partido (ou seja, uma parcela da sociedade), interpõe-se à sociedade-civil e o Estado, impondo, através deste, uma visão dela a partir de um suposto exterior. Ora, as diversas autoridades da sociedade civil não têm seu poder baseado na representação, e tampouco na liberdade e na igualdade, mas na presença, em vínculos constituídos e na preeminência: em outras palavras, elas não são, em grande medida, fruto da eleição subjetiva de quem me representa, mas do reconhecimento de quem já está presente, com quem já me encontro em relação e que se me preleva. Daí haver reparado Pierre Manent que: “Uma vez que num país democrático as circunstâncias dêem uma chance à escalada totalitária, a sociedade-civil estará vulnerável, porque semelhante escalada totalitária poderá dirigir contra os poderes intra-sociais a própria ideologia democrática, sem ter necessidade de recorrer à sua própria ideologia. Mais precisamente, ela poderá utilizar o princípio representativo de uma maneira puramente instrumental. Contrariamente à opinião convencional, a idéia representativa enfraquece intrinsecamente a legitimidade da sociedade civil, e põe em perigo sua independência.” (Enquête sur la démocratie, p. 89, n. 1) Dessa maneira, a confusão entre os planos conceitual abstrato e o ontológico – presente, por exemplo, na metafísica agostinista do tardo-medievo –traduz-se, na modernidade, na tendência à indistinção entre Estado como governo totalmente abstraído do seio da sociedade-civil, pelo conceito de soberania, e ela própria, na medida em que esse mesmo Estado se vale da soberania para a ela se impor.

Mas o fenômeno totalitário moderno, por mais que se o queira atribuir precipuamente ao Estado, e encontre efetivamente nele sua origem histórica, encontra sua justificação teórica exatamente na categoria em nome da qual, por outro lado, uma certa corrente de pensamento atual pretende contrapor ao Estado, como solução dos problemas atuais. Esta categoria é, justamente, o indivíduo, posto por Hobbes como conceito axial da construção do Estado moderno a quem tais pessoas pretendem se insurgir. Pouca esperança há de a situação atual política ser revertida, quando tantos pretendem combater o Leviatã justamente com os conceitos que lhe são opostos não como seus contraditórios, mas como seus contrários – e que figuram em relação a ele, unicamente como o outro lado da moeda –, como a liberdade individual e o direito subjetivo.

Esse fenômeno, que vem sendo com cada vez mais clareza percebido, foi tratado pela escritora Chantal Delsol em seu livro mais recente, La Haîne du Monde (O ódio do mundo). Em entrevista ao site www.atlantico.fr, a autora delineou algumas idéias-chave que, conquanto sumárias, podem ser-nos úteis para pensar este problema. Uma é a de que vivemos em um período em que os mesmos objetivos propugnados pelos Estados totalitários, como a eugenia, são promovidos, não a partir do Estado – i. e., ao menos não do Estado como governo – mas pelos indivíduos, por pessoas particulares, e têm por objetivo uma destruição da realidade. Tal modo de pensar remonta já à época da Revolução Francesa, e tem por exemplo cabal o Marquês de Sade, que “deslegitima a pena de morte quando ela vem do Estado, e a justifica quando ela é fruto de um desejo individual”. A outra é a de que tais ações de caráter e pretensões totalitárias têm sido movidas já não pelo aparato do Estado com suas leis, a partir de cima, mas por um hábil manejo da retórica jurídica a partir de conceitos destituídos de suficiência operativa como os de direito subjetivo e liberdade individual – isto quando ambos não são sumariados na categoria camaleônica dos direitos humanos –, e têm origem em correntes de pensamento nascidas nas universidades, como o desconstrucionismo e as correntes de esquerda, “que recusam a existência de uma antropologia e de uma moral que nos precedem e nos transcendem”. (http://www.atlantico.fr/decryptage/comment-desir-emancipation-liberale-est-porteur-systeme-post-totalitaire-chantal-delsol-2578295.html)

A fórmula expressa por Pierre Manent e o fenômeno descrito por Chantal Delsol correspondem em ampla medida à proposta de sociedade apresentada por John Rawls em suas famigeradas (ou, em todo caso, infames) obras Uma teoria da justiça e Liberalismo político. A obra política de Rawls é o epítome da abstração total levada ao terreno da política. Tal postura está expressa, na primeira das obras acima, na formulação de uma teoria “fraca” do bem e, também, na prioridade do justo sobre o bem; na segunda, ela se consubstancia na pretensão de imposição paulatina de uma teoria “política, não metafísica” à sociedade. Estas duas obras serão o assunto do segundo artigo desta série.

 

Figura: Hieronymus Bosch (1510), O Jardim das Delícias Terrenas, El Prado.

* Marcos Paulo Fernandes de Araújo é Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.