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O mundo após a crise das utopias (por Massimo Borghesi)

História | 20/08/2015 | | IFE CAMPINAS

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Transcrição da palestra Depois de 68 e 89: o mundo após a crise das utopias, pronunciada pelo prof. Massimo Borghesi no dia 02 de outubro de 2008, no IICS (Instituto Internacional de Ciências Sociais) de São Paulo. Após o texto da conferência, reproduzimos algumas respostas especialmente significativas a perguntas formuladas durante o debate que se seguiu.

Buona sera a tutti voi. Antes de entrar no tema sobre o qual me foi pedido que falasse, gostaria de esclarecer algumas premissas.

A primeira destas duas datas, 1968, situa-se dentro do quadro de um mundo bipolar, dividido, e que assim continuou até 1989. É nesse contexto de bipolaridade que se compreende o clima daqueles anos, e como o ano de 1968 adquiriu uma forte orientação anti-ocidental e anti-americana, que levou muitos a aderir a uma perspectiva da história de tipo marxista. Naturalmente, o quadro mundial é diferenciado. Como sabem, no Brasil houve, de 1964 a 1985, uma ditadura militar e, portanto, a situação era diferente daquela em que se encontravam os Estados Unidos e a Europa nessa época.

A segunda data, 1989, precedida pelo declínio das ditaduras militares na América Latina, representou o fim da divisão entre leste e oeste. Se as ditaduras desapareceram naquele período, foi porque o mundo estava superando a divisão; não se tratava apenas de um fenômeno latino-americano, mas de um fenômeno mundial.

 

Os ventos mudam

Queria começar por ressaltar que as premissas de 1968 não nascem do espírito do marxismo – este é um aspecto para o qual quase nunca se chama a atenção.

O 1968 europeu é, sem dúvida, reflexo do americano. Todos sabemos que foi a contestação na Universidade de Berkeley que deu início aos movimentos estudantis nos Estados Unidos e depois na Europa. Essa contestação, no entanto, nascia de uns motivos muito concretos, sobretudo da oposição à guerra do Vietnã. Os jovens não queriam mais ir combater ali, e certamente tinham boas razões para fazê-lo, visto que os Estados Unidos se tinham embrenhado, graças à administração Johnson, em uma guerra perdida de antemão e difícil de compreender para os americanos de 65, 66, 67…

Na época de Kennedy, somente especialistas militares tinham ido ajudar o exército vietnamita; com Johnson, porém, dezenas de milhares de jovens americanos foram enviados a combater em uma guerra que não entendiam. Os historiadores sabem que a escalada militar empreendida por Johnson só foi decidida em 1965, após um incidente falso inteligentemente orquestrado no golfo de Tonquim e que serviu para justificar uma intervenção maciça.

Em oposição à batalha do Vietnã, estavam os ideais da New Frontier – a “Nova Fronteira” -, ou seja, os da era Kennedy, que preconizavam o apaziguamento leste-oeste depois da grave crise dos mísseis de Cuba, momento em que o mundo quase “tocou” a Terceira Guerra Mundial. Essa crise cubana foi a maior que o mundo enfrentou desde 1945, e por muito pouco não se chegou a um conflito atômico; apenas um milagre o impediu.

Recordemos que a encíclica Pacem in terris, de João XXIII, foi escrita nesse momento, depois da grave crise de Cuba; não nasceu do nada, mas de o mundo haver vislumbrado a Terceira Guerra Mundial – outro ponto de que quase ninguém se lembra. Toda a vez que se fala da Pacem in terris, fala-se dela como se fosse um documento de ideais altíssimos, mas utópicos. No entanto, o Papa quis aquele documento porque o mundo quase tinha chegado à Terceira Guerra.

Os ideais da era Kennedy eram de oposição não-violenta, como o eram inicialmente as contestações estudantis, que retomavam o ideário de Martin Luther King, nome de enorme peso e grande fascínio nos Estados Unidos. Esses ideais inspiravam-se, ainda de forma muito ingênua, no movimento hippie americano, no famoso dístico peace and love, ou seja, na concepção de um retorno edênico à natureza, alimentada por certa literatura de tipo naturalístico.

Também na Europa o clima que precedeu 1968 era positivo, sem nenhuma relação com a violência subseqüente: o mundo passava por um momento de apaziguamento leste-oeste; havia acontecido o Concílio Vaticano II, com suas grandes esperanças; existia um desejo de solidariedade entre os povos. Recordo-me disso porque era jovem como vocês são agora, e lembro-me da ânsia que havia entre a juventude de que se resolvesse o problema da fome no mundo e de que a Europa e o Ocidente ricos se encarregassem dos problemas dos países pobres – o que, do ponto de vista europeu, significava principalmente o continente africano.

Esta atmosfera positiva mudou logo depois dos episódios de violência de 1968 e 69. Muitas vezes nos perguntamos: Como foi que se chegou àqueles anos? Como foi que se chegou àquele clima contestatário?

Chegamos a isso porque os próprios poderes intervieram para criar uma situação de violência, isto é, houve uma série de episódios nos quais os interesses dos poderosos causaram traumas que a seguir se manifestaram em reações violentas. Isto é importante, ao menos na minha modesta opinião, porque foi exatamente nesta passagem que se consumiu a alma religiosa cristã dos anos 60. Ou seja, o período que precedeu o ano de 68 era de forte idealismo, e quem não o viveu dificilmente pode compreender o que foi; mas aqueles ideais, a certa altura, foram crestados, destruídos pela radicalização de um conflito que se tornou violento.

A década de 60 viveu certamente, e com grande intensidade, uma ideologia de matriz fortemente cristã, determinada também, no mundo inteiro, pelo espírito do Vaticano II. E foi nesse momento que ocorreu a transição para a hegemonia marxista, passando-se de um tempo carregado dos valores da solidariedade cristã para um clima violento, duro, no qual o modelo marxista toma a primazia e passa a englobar em si o cristão.

Quais foram os eventos de violência que radicalizaram a situação, modificando o clima? Nos Estados Unidos, foi com certeza a morte de Martin Luther King, assassinado em Memphis a 4 de abril de 1968. A morte de King significava que os negros americanos não podiam mais esperar conseguir a igualdade pela via pacífica, baseada no modelo de Gandhi; e prevaleceu a idéia de que somente poderiam obter seus direitos pelas armas, pela violência. Pouco depois, a 6 de junho de 1968, Robert Kennedy foi assassinado, e também isto teve um significado muitíssimo simbólico: depois de John, também o seu irmão Bob tinha sido morto, o que era como se o ideal da “Nova Fronteira” se tivesse afundado definitivamente.

Na Itália – menciono-o porque evidentemente é a situação que conheço melhor -, aquilo que se veio a chamar de estratégia da tensão iniciou-se em 1969 com a bomba colocada no Banco Nacional da Agricultura, que fez mais de oitenta mortos. Os culpados jamais foram encontrados, mas as investigações apontam certamente para movimentos da extrema direita italiana. A estratégia da tensão (que se concluiu nos anos 80 com mais de 500 vítimas, entre mortos e feridos) principiou com essa bomba e originou a dialética rosso-nero, entre “vermelhos” e “negros” [1], da qual não se sairá mais – ou seja, a dialética entre a extrema esquerda e a extrema direita, unidas em torno da santificação da violência como método político.

 

À esquerda da esquerda

Como reação a tudo isso, cria-se uma radicalização da esquerda, que passa a estar toda sob a hegemonia da posição marxista. Trata-se de um comunismo revolucionário que já não se reconhece mais nos velhos partidos comunistas do tipo do italiano ou francês, mas busca como modelo a China, o Vietnã ou Lênin – o comunismo soviético do início, puro e duro, que não aceitava nenhum compromisso com o mundo burguês. Isso ao menos na Itália e na Alemanha, não na França, o que é um pouco paradoxal porque o ano de 1968 na Europa se abre com o famoso maio parisiense.

Na França, entretanto, o ano de 68 tem uma coloração diferente, porque ali penetra muito rapidamente a lição do Arquipélago Gulag, de Aleksander Solzhenitsyn, o grande autor russo que, depois de passar pela experiência do campo de concentração, escreveu essa que foi a mais crua denúncia do totalitarismo soviético. Enquanto Solzhenitsyn não foi levado muito a sério na Itália, os intelectuais parisienses foram muito influenciados por ele.

E eis que agora a contestação francesa assume uma fisionomia diferente em relação à alemã e à italiana: na França, o ano de 1968 não gerou a hegemonia marxista nem o terrorismo. Ao contrário, o 68 parisiense é fortemente crítico do modelo soviético, e valoriza um outro 68, aquele que ocorreu nas ruas de Praga (vocês sabem que na Checoslováquia houve a famosa “primavera de Praga”, esmagada pelos tanques soviéticos). Pois bem, a França era muito sensível a esse outro 68 que protestava, sobretudo, pela liberdade, e não apenas contra o mundo burguês.

Nos Estados Unidos, a esquerda não é marxista, pois jamais houve um partido comunista digno deste nome. E esta esquerda “oposicionista” exprime-se por meio de uma espécie de ideologia dos pluralismos “mutuamente incompatíveis”, por assim dizer. A refutação do modelo americano se expressa em uma série de “tribos” que reivindicam de maneira orgulhosa a própria identidade. Assim, os negros americanos assumem a mensagem de Malcolm X, a idéia de que os afro-americanos não devem se identificar com a sociedade dos brancos, mas sim construir uma identidade totalmente fechada ao relacionamento com eles. Assim também a idéia do feminismo como identidade que não é possível harmonizar com o universo masculino, e igualmente os movimentos homossexuais, etc.

Na América Latina, o vento de 1968 traz a concepção da “teologia da revolução”, paradoxalmente favorecida também pelas ditaduras que, neste intervalo, tomaram a geografia da América do Sul. A seguir, este vento traria a “ideologia indígena”, também ela uma realidade que reivindica o retorno à “antiga identidade” contra o Ocidente, ao menos o hispânico e cristão, e por isso acalenta a volta às antigas origens indígenas, pré-cristãs, anteriores à colonização. Essa perspectiva é o resultado final daqueles anos…

Voltando à Europa, a corrente que se põe à esquerda do partido comunista italiano, aquela que deu vida ao fenômeno terrorista, manifesta-se na Itália, na Alemanha, na Espanha com a ETA e na Irlanda com o IRA. Na Itália, atinge o ponto máximo de força e violência com a morte do grande estadista Aldo Moro, o primeiro-ministro democrata-cristão assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas [2]. Este é auge do terrorismo na Itália, mas ao mesmo tempo é um ponto de inflexão, pois os terroristas alcançam um grau de alienação tão radical da sociedade civil italiana que assinam ao mesmo tempo a sua condenação moral e, conseqüentemente, a sua crise.

Quem encarna verdadeiramente o ideal dos jovens daqueles anos? Certamente é o mito de Ernesto Che Guevara, morto em 9 de outubro de 1967. Em 1968, 69 e 70, Guevara torna-se um mito para milhares e milhares de jovens europeus. A famosa foto de Alberto Corda que mostra o “guerrilheiro heróico” percorre o mundo inteiro. Guevara aparece realmente como um novo Cristo, mas um Cristo guerrilheiro, que não se limita a carregar a cruz, mas a usa como espada, e assim une o pathos da paixão ao do poder.

Esta atitude, ou melhor, este mito, este herói ateu repleto de um poder propriamente religioso, certamente traz consigo a idéia da “santificação da violência”, que serviria para desagregar os poderes maus do mundo e que, por isso mesmo, traz em si alguma coisa de sagrado. Para muitos jovens, o Che fez o papel de mediador da passagem do cristianismo para o marxismo. Se não tivesse havido esta imagem de um “santo laico”, tal passagem teria sido muito mais difícil, porque não é tanto a ideologia que atrai, mas sobretudo o exemplo: a imagem do Che morto era como a do Cristo morto. Tudo isso mexia mais com a imaginação do que todas as doutrinas possíveis.

A legitimação cristã passava agora através da revolução. Para poder ser cristão, era preciso ser de alguma forma revolucionário; caso contrário, a pessoa seria considerada reacionária ou conservadora, ou ao menos pertencente ao mundo burguês. Um cristão, para poder afirmar-se como tal, tinha de pagar o seu tributo à ideologia da revolução: ao menos, deveria ser inimigo das classes superiores, deveria de algum modo aceitar a violência como método para a libertação dos oprimidos.

É aqui que se encontra o fulcro da crise do Concílio Vaticano II, e também este é um aspecto sobre o qual se reflete muito raramente. O período de 1968-1970 não é o da realização do Vaticano II, mas o da sua traição. Do ponto de vista “tradicionalista”, costuma-se dizer que Vaticano II e o ano de 68 são a mesma coisa, o que não é verdade. Os anos de 68 a 70 são a traição do seu espírito, do espírito que desejava a unidade, o apaziguamento, a paz, o “método da paz” como solução para os conflitos entre os povos, que queria que se atenuassem as diferenças entre “norte e sul” – e em tudo isso não há nada da ideologia marxista que depois virá, com a “teologia da revolução”. O marxismo sempre pretende tomar o lugar do cristianismo, e por isso trai necessariamente o Vaticano II: não há conciliação possível.

 

O que ficou de 1968?

O mundo bipolar era um mundo impiedoso. Combatia-se pela hegemonia, e as “forças alternativas” não tinham espaço – ou se estava de um lado, ou se estava do outro. Era uma perspectiva impiedosa, mórbida nos países da Europa e sangrenta fora deles – como na África, no Oriente Médio e na América Latina. O clima somente melhoraria a partir de meados dos anos 80, com a presidência de Gorbachev na União Soviética.

Sabemos que o Muro de Berlim caiu em 1989. Em 1991, foi o fim da URSS, quando a bandeira vermelha foi recolhida dos muros do Kremlin, em Moscou. E era também o fim da ideologia comunista – a grande religião atéia, a religião para os ateus do século XX, a grande fé que moveu milhões de homens que não acreditavam mais em Deus.

Com isto, é chegado o momento de nos perguntarmos: O que ficou de 1968? O que esse ano construiu?

Ficou muito pouco em termos positivos, e muito em termos negativos. A associação entre utopia e violência consumiu tudo o que havia de positivo na utopia, a ânsia inegável de solidariedade e de justiça. E trouxe como resultado uma espécie de cinismo em massa, ou seja, aquilo que um grande pensador italiano, Augusto del Noce [3], chamou “o burguês no seu estado puro”.

O resultado do fracasso da revolução ou dos ideais revolucionários foi a “era do desencanto”, do cinismo generalizado. Os anos 80, e depois também os 90, são a era na qual os ideais se resumem a: “Divirta-se, goze a vida e enriqueça”. Quem for mais capaz e tiver mais meios na vida, passe à frente. Para os outros, não há piedade. São os anos do “novo poder”, daquilo que na Itália Pier Paolo Pasolini diagnosticava de maneira muito lúcida: “Está-se criando um novo poder, o mais dessacralizante que possa haver. Um poder para o qual não há mais nada de sagrado”. Dizia-o a respeito da vida humana, do aborto; e, dirigindo-se aos seus amigos progressistas, acrescentava: “Vocês não se dão conta de que estão dando um presente àquelas forças desapiedadas que não reconhecem mais nada de sagrado, às forças da mercantilização integral da vida? Pensam que são progressistas, mas não percebem que desta maneira estão sendo conduzidos por aqueles que querem que a vida se reduza a uma mera mercadoria!”

A falência da ideologia marxista, portanto, cria um xeque-mate que ela não pôde dar enquanto existia: a sua falência é a sua realização, a sua única realização possível. Ou seja, o marxismo não pode atuar na parte positiva, porque é uma utopia que jamais se pode realizar. Continua a atuar, porém, pela parte negativa, que é a crítica a todos os ideais.

Para o marxismo, todos os ideais são disfarce para interesses de classe; ou seja, todos os ideais são ideologias, não há ideais verdadeiros. Mesmo os ideais universais são ideologias, refletem apenas o ponto de vista dos vencedores, que querem impor a sua ideologia a todos. Assim, o marxismo educou os seus seguidores para a mentalidade de que não existe nenhum ideal válido, porque tudo está em função das leis da economia.

E quando o marxismo morre, o que fica? Permanece, como vimos, a parte negativa, que é aquela que chegou até os nossos dias e atingiu milhões de jovens nestes últimos anos. Se não há mais nada a que valha realmente a pena dedicar a vida, a única coisa que resta é enriquecer e progredir sem escrúpulos. Isso significa, no final das contas, que só permanece a idéia do “burguês em estado puro”. O revolucionário gera o “burguês em estado puro”, um burguês que não tem mais nenhum interesse ideal com exceção do de enriquecer sem nenhum freio ético e moral.

Depois do fim do poderio soviético, esta crítica investe contra o próprio marxismo e o comunismo. No fundo, o comunismo, nos anos em que existiu – também quando criticava a União Soviética -, vivia do seu poderio. No momento em que a União Soviética acaba, quando já não se considera comunista, o comunismo passa a não ter mais nenhuma “realização histórica” e o marxismo também se reduz a uma ideologia. A crítica que fez a todas as outras ideologias volta-se contra ele mesmo, que se torna uma ideologia entre tantas outras. Já não pode certificar a própria realidade porque, como o seu único critério de verdade é a práxis, a atuação histórica, no momento em que é desmentido pela história decai para uma posição totalmente questionável.

 

A vacilante ideologia da globalização

Dizíamos que os anos 80 são movidos pelo desencanto, pela ânsia de enriquecimento e pela euforia de mercado. Ou seja, movem-se por uma nova ideologia, a ideologia da globalização. Não foi somente o ano de 1968 que gerou utopias, igualmente o fez o ano de 1989. Por exemplo, aquela que o filósofo americano Francis Fukuyama chamou, em 1992, deThe End of History and the Last Man: ou seja, a idéia de que, com o fim do comunismo, a história acabou; o mundo já não seria bipolar, mas unipolar, uno, baseado todo ele no modelo americano, controlado por uma única economia global. Este foi o sonho, o mito de inícios dos anos 90.

É a idéia, enfim, de que não temos mais razão para conflitos, de que as guerras não têm mais sentido, de que a humanidade se encaminha para a uniformidade e, portanto, para a paz. Tudo isso era, em todo o caso, sugerido pelo que acontecia na política, porque aquele foi um período feliz, especialmente para a América Latina, uma vez que todas as ditaduras – ou quase todas – foram caindo uma após outra como castelos de cartas.

No plano religioso, a “teologia da revolução” torna-se “teologia do diálogo”. Esta é outra transição interessante, pois se passa do ideal da violência para o do diálogo, que é levado ao ponto de afirmar que, no fundo, todas as religiões são iguais. O mundo é uno e, portanto, todas as religiões veneram a mesma coisa… Graças a essa tendência, a religiosidade vai-se superficializando para uma espécie de New Age. Como sabem, a década de 90 é a do New Age: a religiosidade já não tem fronteiras, une os homens para além da diversidade das Igrejas e dos credos, etc. Tudo isso leva ao declínio da política e à idéia de que o fator que realmente importa é o econômico – a globalização -, juntamente com o religioso, sob a forma de uma religiosidade do tipo New Age.

Diante disso, o 11 de setembro de 2001 certamente representou a crise do período pós-1989. De modo repentino, passou-se de uma espécie de condição de conciliação ecumênica, de “diálogo”, ao maniqueísmo mais brutal e decidido. O mundo subitamente voltou a colorir-se de preto e branco: o Ocidente contra o Oriente, contra o Islã que agora aparece como totalmente negativo, como a fonte de todo o mal; mas ainda em nome de uma globalização que já não era pacífica, mas devia ser imposta à força, se necessário. A democracia já não se exportava em conjunto com o mercado, exportava-se da maneira dura, à base de canhões.

Mas era já uma globalização em crise. Todos conhecemos a obra de Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, de 1996, que representa uma resposta a Fukuyama, e sabemos da sua importância. Não é verdade que o mundo é uno, diz ele: está dividido em grandes civilizações inconciliáveis entre si, em grandes civilizações históricas que voltam à tona de tempos em tempos e tendem a estar em conflito umas com as outras.

Esse texto de Huntington era extremamente crítico com relação às teses de Fukuyama. Foi escrito em 1996, mas se tornaria atual em 2001. Examina os limites do poder americano frente ao renascimento da Ásia, ou melhor, da China e da Índia, das grandes civilizações históricas. O autor faz uma análise muito interessante: uma vez que a globalização favorece o poder econômico de grandes zonas da terra que foram excluídas da riqueza, aquelas zonas inevitavelmente redescobriram as suas identidades culturais e religiosas ancestrais e passaram a orgulhar-se das suas próprias tradições culturais e religiosas. Redescobriram assim a sua identidade, em antítese às outras identidades.

A globalização favoreceria, portanto, o pluralismo das potências civilizadas, resultado que não era previsto pela análise de Fukuyama. E não só não favoreceria a unidade, mas, pelo contrário, favoreceria o renascimento do prestígio das grandes potências históricas, que tinham sido niveladas no embate entre Leste e Oeste, entre comunismo e capitalismo. Na sua divisão, Huntington se refere particularmente ao Ocidente cristão, mas sem incluir a América Latina, pois para ele o “Ocidente cristão” é o majoritariamente protestante. A América Latina, diz ele, faz parte de um cristianismo, digamos, sui generis.

O último elo das ideologias de 89 a cair é a idéia do mercado global, que constitui o problema dos dias atuais. A atual crise do sistema financeiro americano, de 2008, põe-nos novamente cara a cara com o primado do político, aquele fator que tinha sido esquecido. Acabou-se a era do mercantilismo: agora, todos gritam que o mercado deve ser submetido a regras e todos almejam a “economia real” contra a tal “economia financeira” que reinou inconteste durante todos estes anos.

Ao mesmo tempo, percebemos que também a visão economicista da ideologia da globalização produziu um deserto da vida, uma destruição das relações pessoais. É nesta perspectiva que as reflexões dos pensadores comunitários americanos se tornam importantes – penso em MacIntyre ou em Charles Taylor como representantes desta corrente que indubitavelmente é importante. Na Europa, é dominante a figura de Jürgen Habermas, o expoente da “inteligência democrática” européia, que nos últimos anos – mais precisamente depois de 2001 – volta a perguntar-se sobre a importância da dimensão religiosa para recriar entre as pessoas uma solidariedade que a secularização maciça desses anos dissolveu de maneira impiedosa…

A partir disto, este crítico laico iluminista iniciou um diálogo de enorme interesse com o então cardeal Ratzinger, dando origem a um debate que continua até hoje. Na Itália, por exemplo, as teses de Habermas são muito discutidas, sobretudo nos ambientes laicos, porque apanharam o laicismo italiano de surpresa. Afinal, foi do mais importante expoente da inteligência progressista européia que veio uma provocação de altíssimo nível: o pensamento laico democrático atual não pode deixar de considerar a dimensão religiosa, a fim de ser capaz de reconstituir os vínculos de solidariedade que estão por trás da prática democrática hoje…

 

Conclusão

Em resumo: que aconteceu de 1968 a 1989 e até 2008? Passamos da utopia coletivista a um individualismo exasperado, e depois à consciência de que tanto um quanto o outro são ideologias. É ideologia o marxismo, é ideologia a idéia de que a globalização traz o paraíso a terra. Tudo não passa de ideologia. Na realidade prática, são necessários tanto o Estado como o mercado; são necessárias tanto a nação como a realidade supranacional, tanto a laicidade como a abertura para a dimensão religiosa, tanto a fé quanto a razão. Esta é a compreensão realista, que considera as diferenças e ao mesmo tempo trabalha para trazê-las a uma possível harmonia.

Mas há uma reductio ad unum das ideologias que não se sustenta. Um modelo é ideológico precisamente quando pretende simplificar a realidade, reduzindo-a à unidade. A realidade não é una: vive de tensões que têm de ser contidas para que não se tornem conflitivas, para que não explodam. Isso vale para as suas diversas formas, desde classes sociais e religiões até as nações e os estados. Por isso, pede sempre uma “política” em sentido amplo, política que é a arte, não apenas do possível, mas a arte de criar relações tranqüilas entre as diversas entidades contrapostas.

Isto vale também para a teologia, a qual, com excessiva freqüência, andou a reboque da sede de poder das ideologias que se alternaram ao longo dos últimos trinta anos. Nos anos 70, em muitas partes do mundo, fez-se uma “teologia da revolução” que, no fundo, ia atrás do poder – do “poder dos oprimidos”, sim, mas na realidade também de um outro poder muito bem determinado. Nos anos 80 e 90, passou a ser a “teologia New Age“, a do diálogo fácil, como se o mundo já estivesse às portas do Éden e tudo fosse simples. E de 2001 para cá tornou-se “teologia da identidade”, como na Europa, onde se fala agora com muita desenvoltura do “Ocidente cristão”, como se o cristianismo não fosse mundial, como se tantas partes do mundo fora do Ocidente não fossem católicas. Nesta ótica, não seriam cristãs a América Latina, as Filipinas, parte do Vietnã e da Coréia, grande parte da África… O “Ocidente cristão” significa a parte rica do mundo, isto é, somente o Canadá, os Estados Unidos e a Europa.

É evidente que aqui há um uso ideológico: quando a fé não interessa, é “privatizada”, e quando interessa é “propagandizada” em função do adversário. Isso não passa de uma instrumentalização, a que a teologia não se deveria prestar. O cristianismo corresponde às exigências do tempo sem, no entanto, conformar-se a ele. Deve levar em consideração a época histórica, as alternâncias de poder, as novas orientações, mas isso não significa conformar-se ao poder do momento. É necessário levar em conta os poderes, mas também a transcendência em relação a eles. Caso contrário, como o demonstra o percurso de 1968 a 2001, a fé condena-se a perseguir as ideologias do momento. Aquelas que a história, ao voltar as páginas, descartará como desatualizadas.

 

Perguntas

O materialismo, a crise da metafísica, da espiritualidade, da moralidade…, parecem ter crescido mesmo depois da queda do marxismo. Podemos dizer que o marxismo político, econômico, etc. caiu, mas o marxismo cultural permanece e até ganhou mais força?

Essa pergunta levanta um problema interessante: se o marxismo continua apesar dos pesares a ter certo peso no plano cultural, é evidente que traduz ou responde de alguma maneira a problemas reais. Para que determinada atitude cultural, política, religiosa…, responda adequadamente ao marxismo, é necessário que responda a esses problemas. Não basta simplesmente dizer que o marxismo está errado – o que é verdade -, mas depois não ter em conta que milhares de pessoas julgaram encontrar nele a solução para os seus problemas. Uma posição que queira ser antitética, oposta, ao marxismo, deve mesmo assim dar-se conta dos problemas históricos, sociais, reais a que o marxismo, ainda que de maneira errada, tentou dar solução. Caso contrário, diz-se: “Errou , e…” Não, as coisas não são tão simples assim. Afinal, o problema das tensões sociais, o problema de uma maior eqüidade, etc., são problemas reais.

Considerem o documento em que a Congregação para a Doutrina da Fé criticou de maneira impecável a Teologia da Libertação. Pois bem, nesse mesmo documento, se for lido com atenção, encontra-se toda uma série de pontos em que o mesmo organismo diz ser preciso enfrentar as exigências de justiça oriundas daqueles setores da população que, mais do que outros, puseram as suas esperanças na utopia marxista. Ou seja, a crítica à Teologia da Libertação deve ser acompanhada de um relançamento da Doutrina social da Igreja. Caso contrário, desenvolve-se apenas a parte negativa, quando o que falta é muitas vezes a parte positiva.

 

Hoje temos, de um lado, o extremismo islâmico, e do outro o “extremismo consumista”, tanto no Ocidente como nos países egressos do marxismo. No caso do Islã, o perigo parece ser o de uma cultura dirigida para o extremismo, ou pelo menos de uma cultura que o facilita; já o que caracteriza o consumismo é a falta de cultura, ou uma cultura apenas internética e superficial.

Eu diria que o consumismo e o extremismo islâmico, como diz, certamente merecem ser considerados as duas faces de uma mesma moeda. Porque é do deserto que nasce a reação fundamentalista: quanto mais uma sociedade é árida, tanto mais o fascínio do integralismo fundamentalista encontra eco ali.

No que diz respeito a muito dos islâmicos europeus, são com freqüência os filhos daqueles que vieram para a Europa a fim de trabalhar e inserir-se na sociedade ocidental que encontram na mensagem fundamentalista um sentido para a vida, em contraste com o deserto das nossas cidades em que já não lhes é oferecida nenhuma mensagem espiritual de tipo algum. Como a secularização esvaziou totalmente as almas, a mensagem fundamentalista representa para estes filhos de imigrantes um encontro com as suas raízes, um retorno à dimensão comunitária, uma redescoberta dessa relação com o divino que já não lhes é oferecida de outra maneira. Portanto, o fundamentalismo do tipo que amadurece na Europa é uma reação à secularização, àquilo a que chamamos consumismo, e que na realidade quer dizer, em última análise, a destruição da alma. Quando sobram apenas os corpos, as almas – por assim dizer – já não têm vida.

 

Um dos grandes problemas, que me parece que os europeus também têm, mas aqui me dá a impressão de ser mais dramático, é o do aburguesamento da juventude, no sentido de um fechamento cada vez mais individualista diante de uma realidade social em que a solidariedade é, no entanto, uma exigência gritante. Gostaria de que você falasse um pouco mais sobre o que significa esse “burguês em estado puro”, no conceito de Augusto del Noce.

Antes de mais nada, desejo prevenir um equívoco: não pretendo fazer polêmica contra a burguesia, porque isto não faria sentido. Todos aqui, até certo ponto, pertencemos à classe burguesa; não é esta a questão que interessa, não se trata de fazer aqui uma análise de tipo sociológico.

O que caracteriza o “burguês em estado puro” é que perdeu completamente os ideais da vida. Esta foi, de alguma maneira, a tragédia do fim do comunismo. O comunismo não foi uma tragédia apenas quando era poderoso; foi também uma tragédia quando desabou porque, ao desabar, arrastou consigo todos os ideais. Como todos estavam concentrados nessa ideologia, o fim dela trouxe consigo o fim de todos eles. Este é o grande paradoxo do fim do comunismo!

Isto se observa muito bem em toda a minha geração, a geração de 68. Esta geração lutou, esperou, fracassou, e qual é o resultado hoje? Quem tem agora cinqüenta, sessenta anos, é via de regra um homem totalmente desencantado, que não crê mais em nada. Os ideais em que esperou nos anos de sua juventude faliram e o resultado é a falência de todas as esperanças. E é esta geração, muitas vezes, que está ensinando nas cátedras das escolas. Já não consegue transmitir nenhuma esperança aos jovens porque carrega consigo apenas a desilusão da falência dos próprios ideais. Não pensa que, como os seus ideais faliram, precisa experimentar outros. Pensa que aqueles ideais eram os únicos, e como faliram, que já não há esperança alguma. Este é o seu drama – e por isso repito que o comunismo foi uma tragédia não somente enquanto estava no poder, mas que também criou uma tragédia ao cair, porque levou consigo toda a capacidade de esperar por uma mudança.

O resultado é o “burguês em estado puro”, ou seja, a pessoa que agora vive unicamente da dimensão imediata da vida. Entre milhões de jovens europeus de hoje, qual é a percepção imediata da vida? Limita-se a um medo instintivo da morte, a uma instintividade imediata, que substancialmente quer dizer Eros vivido de maneira naturalística, e à possibilidade de ter sucesso na vida a qualquer custo e sem muito escrúpulo. Essa instintividade imediata foi o que sobrou – e não há mais nada.

 

O que fazer, como professores universitários, diante dessa situação, além de observá-la e lastimá-la?

O que fazer…? Diria que, diante disto, a Universidade tem antes de mais nada uma responsabilidade educativa. Porque a maneira como se transmite uma matéria não é nunca algo neutro, é sempre uma maneira de você se encontrar com jovens que desejam aprender, conhecer. Você não se limita a ensinar-lhes uma disciplina, você lhes ensina um modo de enfrentar essa disciplina, um modo de relacionar-se com a vida através dessa disciplina. É tudo isto que está contido no ensino: não se trata apenas de uma série de informações sobre uma determinada matéria, mas da maneira como essa matéria será exercida, compreendida, relacionada com a própria existência e depois com a realidade da vida em geral. Nisto há uma dimensão ideal, ética, moral, e em última análise religiosa, que quem se limita a fazer de “informador” simplesmente já não compreende.

 

Recordo-me de uma frase que, como professor, sempre me impressionou muitíssimo. É de Olivier Clément, que, com palavras talvez um pouco injustas, mas tocantes, dizia: “Vocês, professores, continuam a ensinar do jeito que sempre ensinaram e os vossos alunos continuam a suicidar-se cada vez mais”. O que percebemos é que quase todos os professores concordam em princípio com essa afirmação, mas pouquíssimos são capazes de aplicá-la na prática; não querem limitar-se a ser meros “retransmissores de informação” ou, pior ainda, “transmissores de vazio”, mas acabam tornando-se exatamente isso.

Este processo de formação do “burguês em estado puro” – equivalente na prática ao que se costuma chamar “processo de secularização” – atingiu todas as principais figuras sociais. Hoje costumamos falar de “crise de valores”, e esta frase tornou-se tão comum que passou a ser banal. “A nossa sociedade não vai bem porque existe uma crise de valores”. Mas os valores, em si, não dizem nada! Os valores só são reais quando estão encarnados, e dentro de uma sociedade os valores são encarnados pelas figuras sociais.

Quais são as principais figuras sociais que já não representam valores? São as figuras eminentes. Pensem na figura do médico: até há trinta ou quarenta anos – na Europa pelo menos, não sei como será aqui -, ser médico não era apenas uma profissão, era também uma vocação. O médico podia ser chamado a qualquer hora, estava sempre a serviço do doente. Hoje, para nós, tornou-se um burocrata. É alguém que se limita a escrever receitas e a mandar-nos para o hospital. É médico apenas para ganhar dinheiro, não mais por uma vocação; esqueceu-se totalmente da dimensão pessoal do relacionamento com o paciente, que antes estava no próprio centro da prática médica.

O mesmo ocorre com outras figuras sociais: o político, antigamente, era alguém que vivia por uma paixão ideal, representava o povo, ao passo que hoje é um burocrata muitas vezes sem relacionamento algum com os eleitores; responde apenas ao poder do alto, não mais ao poder que vem de baixo. Mesmo os sacerdotes transformaram-se muitas vezes em burocratas: o sacerdote era aquele que cuidava das almas, ao passo que hoje muitas vezes é alguém que precisa fazer mil coisas de caráter burocrático. E a mesma coisa vale para os professores: antigamente, também esta era uma vocação; hoje, o professor é um “informador” técnico, alguém que se limita a transmitir informações. Assim, as principais figuras sociais transformaram-se em figuras burocráticas; secularização quer dizer também burocratização, ou seja, a exclusão do elemento pessoal.

Portanto, o médico, o professor, o sacerdote, as principais figuras sociais que encarnavam os ideais, não o fazem mais. Do ponto de vista dos jovens, que precisam de figuras com as quais possam identificar-se, este é o verdadeiro problema ético da crise de valores. Porque, para um jovem, um valor encarna-se em uma pessoa: em um professor, em um padre, em um médico…, em alguém que se dedique aos outros. A redução dessa dimensão vocacional é a causa da crise moral dos nossos dias. Porque a moral somente é possível em um processo de identificação com alguém que encarne um ideal. É graças ao fascínio de uma personalidade que atrai pela sua idealidade que seguimos um ideal. Por isso, dizia que Ernesto Che Guevara se transformou no falso Cristo de milhões de jovens, porque ali, no meio do deserto em que estavam, podiam vislumbrar um ideal encarnado. Encarnado de maneira errônea, mas encarnado.

A ausência dessas personalidades é que constitui o grande problema dos nossos dias. É o que vemos também no nível educacional. Um educador só é realmente educador se essa for a sua vocação.

Vocare, “chamar”, implica que se responde a alguém. Você, educador, responde ao rapaz, ao jovem que está ali na sua frente; não pode perder o interesse por ele, não pode simplesmente dar-lhe aquelas quatro informações e, depois, ele que “se vire”… De algum modo, a existência desse jovem universitário encontra-se com a sua vida, e aquilo que você lhe dá e lhe comunica é importante para ele. A maneira pela qual se comunica é importante. A maneira, porque a personalidade está no estilo, no modo pelo qual se comunica alguma coisa, mesmo que se trate uma fórmula abstrata de matemática. É o modo como você vai ao encontro do estudante, como se preocupa em saber se ele compreendeu – se compreendeu de verdade! -, como o quer ajudar. Só assim emerge a paixão da educação e, portanto, do relacionamento que se tem de pessoa para pessoa. O elemento pessoal é o que faz a diferença!

 

Parece-me evidente que, se Che Guevara acabou assumindo um papel, digamos, “Cristo-símile”, evidentemente foi porque o verdadeiro Cristo não foi mostrado na sua integralidade. Houve, portanto, uma deficiência dos cristãos nessa tarefa. Qual é a nossa responsabilidade, e quais foram as nossas falhas, como professores universitários e como cristãos, para que a situação chegasse ao ponto a que chegou? E o que pode a Universidade fazer como estrutura para resgatar valores para o século XXI, que não serão apenas do século XXI, mas de todos os séculos futuros?

Concordo inteiramente com o que você dizia, ou seja, que se o Che Guevara assumiu o lugar de Cristo para milhares de jovens, foi porque o verdadeiro Cristo, na sua figura e na sua realidade, já não estava claro. Aliás, em muitos casos estava totalmente ausente… Poder-se-ia escrever um livro sobre a passagem de Cristo a Guevara, como Guevara tomou o lugar de Cristo no coração de milhares de rapazes na América Latina, levando-os depois às armas, levando-os a um destino terrível.

Li recentemente um livro de um teólogo bastante famoso que continua a dizer que Che Guevara convidava a amar os homens. Ma Santo Dio! Insomma… Quanta ingenuidade há nisso! Guevara queria ser um militante marxista-leninista perfeitamente ortodoxo, era extremamente duro na observância das regras da militância marxista, a ponto de ser cruel. Era duro consigo e impiedoso com os que estavam sob o seu comando. Para dizer o que dizia esse teólogo, é preciso sofrer de uma miopia absoluta!

E esse é o drama por trás do que você dizia: que a Igreja não foi capaz de propor Cristo como o verdadeiro tipo de homem e de ideal na integralidade dos fatores da vida, não para “o lado de lá”, mas para “o lado de cá”. Para a vida real, para a vida social…, para a solução dos problemas reais.

Em relação à Universidade, você perguntava – como docente cristão – qual é a nossa responsabilidade. Ela consiste, acima de tudo, em comunicar um ideal, não uma utopia. Porque nestes anos muitos confundiram os ideais com as utopias. Os ideais, já vimos, encarnam-se na existência do dia-a-dia, realizam-se no dia-a-dia, sem jamais atingirem a perfeição na sua realização histórica. Isto, porém, nada subtrai à energia e à paixão com que se procura comunicá-los e traduzi-los no concreto da existência, até os mínimos detalhes. Até chegarem a traduzir-se em paixão que se empenha no social e no político, paixão por uma mudança efetiva, para que a sociedade possa construir condições para o aprimoramento real da vida dos homens, sobretudo daqueles que têm mais necessidades.

Isto não é um “pauperismo”, diga-se de passagem; esta é a solidariedade que surge da fé como uma dinâmica própria. O marxismo apropriou-se da categoria de “pobre”, mas até prova em contrário a atenção aos pobres sempre foi uma expressão da dinâmica cristã da existência. Não nos esqueçamos disso, porque em caso contrário daremos ao marxismo uma dimensão que na verdade nasce da fé cristã. É conceder demais ao marxismo dizer que o problema dos pobres diz respeito só aos marxistas. A paixão pela justiça e pela realidade nasce propriamente de uma fé cristã encarnada – mesmo lembrando-nos de que os pobres sempre existirão, como diz Cristo, o que significa que a utopia nunca se realizará. Porque o que está em jogo é a condivisão da realidade da vida, de pessoa para pessoa, não a realização de um reino perfeito.

Será tão difícil assim distinguir entre os ideais que se declinam na história, por um lado, e as utopias pelo outro? Essa foi a grande confusão cultural destes anos: dizer que os ideais cristãos, que eram ideais de solidariedade e de justiça, nascidos da graça da fé e não de um projeto social, não podem nunca traduzir-se em um reino perfeito. Ora, o cristianismo realmente não propõe nenhuma teologia política! A teologia política é o sonho de que a política seja a realização da teologia; mas nenhuma política, nenhuma!, pode jamais realizar o teológico! Simplesmente não é possível! Daí não se deduz, porém, nem o desinteresse perante o sofrimento alheio, nem o fim dos ideais cristãos.

 

O filósofo Jacques Maritain propunha o Humanismo Integral, o “humanismo cristão”, como uma resposta frente ao marxismo. O senhor acredita, depois de o mundo ter passado pelo marxismo, depois de passar pelo capitalismo, que esse humanismo cristão não seria algo capaz de tapar as lacunas que apontava?

Se o “Humanismo Integral” seria a resposta? Dito assim, parece-me antes que seria uma nova ideologia. Maritain, naqueles anos, fez uma proposta ousada – é importante essa obra de 1936 -, e dizia muitas coisas verdadeiras. Mas não é que o cristão realize o humanismo de forma integral. Penso que é antes a fé que tem de encarnar-se, e que ela traz em si uma paixão integral por tudo o que é humano, e não censura nenhum fator do humano, nem os belos, nem os feios. Que ela tudo acolhe e tudo redime, não por obra das mãos do cristão – um mísero pecador como todos -, mas por obra de um Outro que através dele se exprime e se realiza na história. Por isso, diria que o cristianismo, quando é a consciência de Cristo que opera através de você, se exprime como paixão pela integralidade do humano.

“Integralidade do humano” quer dizer das necessidades mais simples às mais complexas; quer dizer a cultura, a política, as condições de vida, a família etc. etc. Quer dizer a relação entre homem e mulher, a relação com o estudo. Tudo vem revestido dessa presença que muda o coração dos homens, e provoca neles a esperança de uma mudança que se transforma em experiência. Há esperança na mudança, porque é uma mudança real, que acontece. E a vida que muda transforma-se no testemunho de um novo modo de agir dentro da sociedade, de uma modalidade nova de ser dentro do mundo.

Não é uma utopia, é o testemunho de humanidade renovada o que muda o mundo. A pequena Teresa de Calcutá era uma nulidade do ponto de vista político, mas aquela pequena mulher mudou a vida de centenas de milhares de pessoas. Sinal de esperança para os deserdados da terra, figura moral que deu a muitos a esperança de que, neste mundo de deserto, se pode viver com uma humanidade diferente, impregnada de ideal até às vísceras da carne.

 

Massimo Borghesi é professor titular de Filosofia Moral na Universidade de Perugia, de Ética e Teologia Filosófica na Universidade São Boaventura e de Hermenêutica e Filosofia da Cultura na Universidade Urbaniana de Roma; tem estudado especialmente o tema das raízes culturais da crise do pensamento moderno e das suas implicações políticas. É autor de diversos livros, ainda inéditos no Brasil, entre os quais os mais recentes são Il soggetto assente. Educazione e scuola tra memoria e nichilismo, Castel Bolognese, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2005);Secolarizzazione e nichilismo. Cristianesimo e cultura contemporanea, Siena, 2005 (trad. espanhola, Madrid, 2007);L’era dello Spirito. Secolarizzazione ed escatologia moderna, Roma, 2008. É o editor de Caro collega ed amico. Lettere di Etienne Gilson ad Augusto del Noce, Siena, 2008, com a correspondência entre os dois autores.

 

Tradução de Juliana Di Lollo, licenciada em Letras pela FFLCH-USP.

 


 

[1] Na Itália, assim como a cor vermelha é associada à esquerda e ao socialismo, a negra é associada à direita e ao fascismo (N. do E.).

[2] O principal grupo terrorista da esquerda italiana nos anos 70 (N. do E.).

[3] Augusto del Noce (1910-1989) foi um dos mais importantes filósofos políticos italianos do século XX. É um dos grandes estudiosos da crise do marxismo e do secularismo, e das suas relações com as raízes do pensamento moderno (N. do E.).

Publicado originalmente em: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-2/o-mundo-apos-a-crise-das-utopias/

O lápis azul do imperador

História | 14/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Delfim-pedroII-MHN - Delfim da Câmara

No Império, implantou-se, a partir da Constituição de 1824, uma Monarquia Constitucional em terras tupiniquins. Havia três poderes que regiam a nação, tais como foram concebidos no século anterior por Montesquieu: Legislativo, Executivo e Judiciário. No entanto, Dom Pedro I instituiu ainda um quarto poder: o Poder Moderador, o qual deveria ser exercido pelo imperador no intuito de regular as relações entre os poderes e impedir trapaças e injustiças.

Na época, isso rendeu algumas chacotas, vindas da Inglaterra e de alguns grupos políticos que apelidaram nosso governo de “parlamentarismo às avessas”. Riam-se da interferência considerada demasiada do imperador em assuntos que competiam a outros poderes. Jocosidades à parte, já no governo de Dom Pedro II, o exercício do Poder Moderardor se dava de forma interessante, em especial no que toca às nomeações de ministros, governadores de províncias e outros cargos. Sempre que traziam indicações de nomes selecionados pelos eminentes senadores do império, D. Pedro observava um a um e passava a colher informações sobre cada candidato a fim de verificar se não teria um passado maculado por qualquer tipo de corrupção. Havendo indícios, ou seja, mesmo sem provas diretas dos fatos, o imperador, como medida cautelar, sublinhava os nomes suspeitos com um lápis azul, excluindo qualquer possibilidade de ocupação de cargo público por alguém desonesto.

Rui Barbosa, ferrenho defensor da República e Ministro da Fazenda do governo do Marechal Deodoro da Fonseca, anos após a derrubada do regime monárquico se lamentaria de ter defendido e lutado pela República, afirmando que o Império era uma “escola de estadistas”, enquanto a República se tornara uma “praça de negócios”.

De lá para cá, o mundo mudou, mas a “herança mercantil” da República “onde tudo se negocia”, permaneceu. Assistimos ao comércio de ideologias, projetos e até mesmo de valores. Vivemos em tempo de “panpartidarismo”, onde já não se consegue definir o que é esquerda ou direita. Cristalizou-se a mesma confusão do início da República e, nesse quesito ela deve ser elogiada, porque é sempre coerente: começou negociando tudo e segue fazendo o mesmo até hoje.

Ética, moral, honra, são palavras gastas pela profanação que sofrem constantemente. E seguirão sofrendo, porque ventos contrários sopram contra o Brasil, em especial depois da recente aprovação do Decreto 8.243, vindo a lume no último dia 23 de maio e no qual a presidente cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), supostos instrumentos para proporcionar e estender a participação direta dos cidadãos e grupos sociais nas decisões de governo. Aparentemente o projeto seria uma resposta às manifestações ocorridas no meio do ano passado, porém, na prática é uma ação que viola o sistema democrático de governo implementado pela Constituição de 1988. O pior disso tudo é que esses projetos acabarão (se o decreto for acolhido pelo STJ) por amplificar a voz de grupos sociais e organizações subvencionadas pelo próprio partido da presidente e de também de outros partidos e grupos afinados com suas propostas. Legislar por decreto não é algo novo, aliás, o velho discurso de que os movimentos sociais “são os legítimos representantes dos interesses do povo” fazem parte da cartilha bolchevique tão apreciada em nossos “democráticos” vizinhos latino-americanos, como a Venezuela e a Bolívia.

Que nomes de nossa política o lápis azul de Dom Pedro II riscaria hoje? Restaria alguém? A retidão do imperador brasileiro sirva de exemplo a nós cidadãos. D. Pedro, embora caluniado como “absolutista”, era tão democrático que permitiu que falassem abertamente contra ele e que contestassem publicamente suas decisões, a ponto de se chegar à derrubada da monarquia. Ofereceram-lhe a possibilidade de matar os revoltosos, mas ele se recusou e resignou-se para não derramar sangue brasileiro. Hoje o que se diz democrático, age de forma absoluta e o que se pensava no passado, ser absoluto, agia democraticamente. A dialética da História nos ensina a distinguir bem as coisas.

Luiz Raphael Tonon, professor de História e Filosofia, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas.

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 18/07/2014, Página A2 – Opinião.

Imagem: Pedro II aos 49 anos de idade, 1875, de Delfim da Câmara (scan de Museu Histórico Nacional, Coleção Museus Brasileiros, edição Banco Safra). Imagem em Domínio Público disponível neste link.

Resenha do livro “Momentos Decisivos da História do Brasil”, de Antonio Paim, por Antonio R. Batista

História | 18/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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MomentosDecisivosDaHistoriaDoBrasil

Seremos capazes, algum dia, de vencer e enterrar o patrimonialismo?

“Criamos uma estrutura destinada à preservação do status quo, o Estado Patrimonial. que se tem revelado imbatível. Seu último feito consistiu precisamente na cooptação do Partido dos Trabalhadores …”
(Antonio F Paim)

É sempre desafiador comentar, num retrato simplificado e objetivo, uma obra do Professor Antonio Paim. Seus textos, quando nos prometem história estão preenchidos por fecundas análises de ideias; quando nos prometem discutir ideias não o fazem sem fundamentá-las, com cuidado e zelo, no mundo real e nos acontecimentos históricos em que atuaram. Essa dupla exigência, de filósofo e de historiador a que o professor se submete, tem o condão de tornar suas obras estimulantes e desafiadoras.

Neste caso, cabe de imediato destacar que apenas o título da obra lembra a outra – Momentos Decisivos da História – de autoria de Stefan Zweig, literato austríaco e judeu que viveu parte dos seus anos no Brasil. São autores, inclusive, de perfil bastante diverso. Zweig, apesar de acurado observador e analista tinha, acima de tudo, uma alma de poeta e foi com esses atributos que ele nos descreveu e escreveu sobre nós, particularmente no seu livro “Brasil, o pais do futuro”, um texto primoroso cheio de afeto, que fala sobre a nação que tanto amou e que escolheu para morrer em um suicídio partilhado com a esposa, em 1942, sofrendo crescente depressão depois de abandonar sua terra e a Europa convulsa e em guerra.

Paim é um analista minucioso da realidade, agradável na leitura, mas que não acalenta ilusões nem licenças poéticas além da beleza natural que se possa usufruir numa boa prosa. É um professor por vocação e por empenho na sua férrea disciplina de estudo e trabalho. Seu principal interesse, no que se refere ao Brasil, é esmiuçar os nossos problemas e dificuldades; é dissecar os porquês dos nossos tropeços sistemáticos em realizar as potencialidades que tantas vezes desprezamos para nos apegarmos aos vícios que nos debilitam. Daí a expressão “momentos decisivos”, que ele define como aqueles em que o país poderia ter escolhido rumo diverso daquele que escolheu. A respeito disso presta, explicitamente, tributo à historiadora Barbara Tuchman, que usa uma chave definidora semelhante para apontar a dinâmica da sua “Marcha da Insensatez”.

Existem alguns vilões recorrentes na obra de Antonio Paim e, digo eu, da forma como estão interligados poderíamos acusá-los de formação de quadrilha: o autoritarismo, nos seus diversos matizes teóricos e práticos; a burocracia; o “estatismo”; o cartorialismo; a estigmatização do lucro; as distorções do sistema representativo; o Patrimonialismo com suas nuances, inclusive os métodos de corrupção sistemática. São temas aos quais o autor se dedica e se dedicam alguns dos seus ex-alunos, não por uma obsessão gratuita, mas porque representam óbices que nos têm levado a reincidir na perda de sucessivas oportunidades, comprometendo o que poderia trazer ao país um futuro melhor e uma posição mais condizente com o seu potencial.

Nesta obra Paim oferece, de início, reflexões importantes a respeito do método historiográfico e da historiografia brasileira. Trata-se de uma introdução fundamental em tempos que há pregação de uma história  construída menosprezando a documentação e os testemunhos qualificados, para melhor poder manejar os esquemas teóricos tão ao gosto de ideologias que se perturbam com a evocação de fatos e dados. Depois, navega ao longo da nossa história até os tempos atuais, onde identifica um recrudescimento intenso do patrimonialismo, depois de ter sido obtido algum recuo que parecia justificar certa esperança. É nessa pontuação analítica da história, passando pelo Império, depois pela República e o nosso sistema representativo sempre comprometido e inconcluso, pelo efeito Vargas e a estatização da economia nos governos militares, que o autor vai identificando diversas das nossas mais renitentes dificuldades. Incapacidade para aprimorar o sistema representativo e persistência do modelo patrimonial são questões fulcrais, que se reforçam mutuamente e assim como comprometeram nosso passado ameaçam o nosso futuro. Daí a principal questão colocada pela obra: seremos capazes, algum dia, de vencer e enterrar o patrimonialismo?

por Antonio Roberto Batista.

DADOS DO LIVRO:

Título: Momentos Decisivos da História do Brasil
Autor: Antonio Ferreira Paim
Número de Páginas: 396
Editora: Vide Editorial
Idioma: Português
ISBN: 978-85-673-943-29
Dimensões do Livro: 16 x 23 cm

Texto publicado em nosso site com a permissão do autor. Fonte: Mídia Mais, disponível [online] aqui.

Ressentimento e delação – por Gregorio Marañón

História | 21/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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Gregorio_Marañón_-_retrato

Retrato de Gregorio Marañón

 

O ensaísta Gregorio Marañón, curiosamente pouco conhecido por aqui, é uma das grandes figuras, se não um clássico, das letras espanholas, tanto pelo estilo sereno e equilibrado como pela altura com que analisa as idéias. A sua ampla visão humanística apóia-se em uma vasta experiência de vida: foi médico “praticante”, além de professor universitário, ao longo dos quase cinqüenta anos de vida profissional; deputado das Cortes Constituintes, por ocasião da queda da monarquia; e exilado por seis anos durante a Guerra Civil espanhola, por denunciar os abusos cometidos pelos dois lados. Isso, para não falar dos trabalhos de pesquisa e títulos acadêmicos acumulados, e das obras publicadas, que são legião.

Inovou, se não criou, algo que é quase um gênero literário, e a que ele mesmo chamava o “ensaio biológico”: um tipo de livro de análise em que examina as grandes paixões humanas, das suas características fisiopatológicas e psíquicas até o mistério da decisão livre, por meio da biografia de um personagem histórico. Um desses é Tiberio, de 1939, em que Marañón estuda o ressentimento que consumiu a vida do segundo imperador romano; e o artigo que traduzimos aqui complementa essa obra.

Hesitamos um pouco ao selecioná-lo, porque pressupõe certo conhecimento de história. Por outro lado, representa muito bem o que há de mais original no autor, além de continuar a ter enorme atualidade na análise de pessoas, movimentos sociais e políticos e dos panoramas históricos de todos os tempos. Tentamos suprir esse problema com um brevíssimo resumo da biografia de Tibério César, que, esperamos, fornecerá ao leitor os dados que lhe possam faltar.

Tibério Júlio César Augusto (42 a.C.-37 d.C.) foi o segundo imperador romano. Plínio o Velho o chamou de tristissimus hominum, “o mais melancólico dos homens”. Criado na família imperial, por imposição de Augusto – que pensava fazê-lo seu sucessor –, foi obrigado a divorciar-se de Vipsânia, a quem amava, e a casar-se com Júlia, filha do imperador, a quem aprenderia a detestar, entre outras coisas pelo desprezo que ela ostentava em público pela sua virilidade. Mais tarde, para garantir a linha sucessória, o velho césar ainda o obrigaria a adotar Germânico, que ao menos era também um sobrinho biológico.

Depois de uma brilhante carreira de general na fronteira norte do Império, tornou-se imperador em 14 d.C. Relutou muito em aceitar a responsabilidade que o Senado (que considerava formado por “homens feitos para serem escravos”) havia confirmado após a morte de Augusto, e depois de muitas e vindas ainda rejeitou alguns dos títulos associados. O seu governo foi moderado e prudente no início.

No ano 19, Germânico foi envenenado na Síria. O governador daquela província, Calpúrnio Pisão, foi acusado do assassinato, mas antes de morrer ameaçou implicar o imperador. Nada, porém, ficou provado.

O governo de Tibério começou a declinar mais acentuadamente depois da morte misteriosa do filho, Druso, em 23. Em 26, o imperador, que já estava desleixando boa parte das suas obrigações, auto-exilou-se em Capri, deixando praticamente o governo nas mãos dos prefeitos militares Sutório e, principalmente, Sejano. Este parece ter-se valido da posição para se aproximar do ramo juliano da família imperial (Tibério era do outro, o ramo claudiano), com vistas a ser adotado como membro dela e assim tornar-se um possível sucessor à dignidade imperial. Com o fracasso dessas tentativas, parece ter-se envolvido em uma conspiração para matar o imperador e pôr Calígula, filho de Germânico, em seu lugar.

Seja como for, em 31 Sejano foi julgado e condenado à morte pelo Senado, impulsionado por uma carta de Tibério. Esse foi o início de uma época de terror que dizimou todos os parentes próximos do imperador e as famílias nobres da cidades, especialmente as que tinham alguma relação com os julianos, e depois o Senado e os próprios magistrados imperiais.

O isolamento do imperador tornou-se completo nessa época. Com exceção das ordens de execução, nada vinha de Capri; Tibério mesmo parece ter mergulhado em um delírio paranóide em torno da morte do filho. Calígula sucedeu-lhe após a morte, que pelos vistos acelerou.

 

I

Analisamos em outro lugar a personalidade de Tibério: no anverso, a sua retidão de administrador, o seu amor à ordem, as suas virtudes de comando; no reverso, as paixões sombrias da sua alma. Se queremos julgá-lo em uma linguagem mais moderna, poderíamos dizer que foi um excelente técnico com uma alma perversa, combinação que, como é evidente, não é nada rara. A sua glorificação recente é uma expressão típica da ética contemporânea que, diante do homem útil, esquece todo o restante.

Esta dupla personalidade de Tibério interessa-nos porque explica muito bem a ambivalência da sua alma: o seu respeito de cidadão e de filho por Augusto e Lívia, e o seu ódio por eles, pelos que tinham edificado a virtude e a glória do lar imperial sobre a dor do seu pai; a compaixão por Júlia, a sua mulher legal, quando foi desterrada, e o seu rancor implacável por ela diante do ridículo com que o cobriu; as alternâncias de proteção e perseguição contra Germânico, Agripina e os seus filhos; os seus gestos de amizade e de hostilidade mortal para com Sejano, amigo e inimigo ao mesmo tempo; e assim por diante. A cada instante, vemos escapar pelas frestas da perfeita armadura oficial o mau cheiro do rancor, emprestando à sua vida esse aspecto equívoco que os contemporâneos interpretavam como hipocrisia e os cronistas posteriores não conseguem encaixar no esquema do caráter íntegro.

II

Ao longo da vida de Tibério, vê-se claramente como, à medida que o seu ressentimento fermentava, o reverso passional da sua personalidade vai pouco a pouco superando o claro anverso da sua vida política. Por isso, os antigos o consideravam um homem desconcertante, que mudava sem cessar: recordemos as palavras de Plínio, que o considera um príncipe austero e sociável que, com o passar dos anos, se tornou severo e cruel. Alguns até apontam uma data fixa para essa “mudança do bem para o mal”, relacionando-a com a morte do filho, Druso, ou a de Germânico.

Estas desgraças foram, com efeito, impulsos bruscos no caminho da sua paixão. Mas, ainda mais do que elas, precipitaram-no no delírio final a traição de Sejano e a descoberta do pretenso assassinato do filho.

Também influiu nesta explosão dos seus últimos anos a embriaguez do poder. É típico do ressentido, e sobretudo do ressentido tímido, que, quando adquire um poder forte e cheio de recursos como o que o governo proporciona, faça dele um uso barbaramente vindicativo. A prova do poder divide os homens que o atingem em dois grandes grupos: o dos que são sublimados pela responsabilidade do governo, e o dos que são pervertidos. A razão desta diferença reside somente na capacidade dos primeiros para serem generosos e no ressentimento dos segundos.

Para não citar senão alguns exemplos historicamente próximos de Tibério, podemos recordar, entre os grandes chefes que o exercício do poder enobreceu, Júlio César, nos começos da carreira mero demagogo imoral e grande príncipe na segunda parte da sua breve existência oficial. E o próprio Augusto, cuja juventude cheia de profundos e vergonhosos vícios morais se transformou, sob a responsabilidade imperial, em uma maturidade equilibrada, patriarcal e com indubitáveis resplendores de grandeza. Exemplos da perturbação degenerativa do poder são, em contrapartida, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero, Domiciano. Ao contrário do que diz Ferrero, não é mania dos historiadores antigos, mas absoluta realidade, esta mudança que a embriaguez do mando causa nos espíritos fracos e, sobretudo, nos ressentidos, e que efetivamente empresta aos seus reinados a nítida aparência de duas etapas: uma inicial, boa; e uma segunda, péssima.

É preciso ter em conta, ao mesmo tempo, o que o sumo poder representava na época dos césares. Nada o mostra tão bem como o que Nero diz por boca de Sêneca ao atingir o principado: “Eu sou o árbitro da vida e da morte dos povos. O destino de todos está nas minhas mãos. O que a fortuna quer atribuir a cada um, cabe à minha boca exprimi-lo. De uma resposta minha depende a felicidade das cidades, e sem o meu consentimento nenhuma delas pode prosperar”. Compreende-se que os semideuses pudessem resistir a este poder quase sobrenatural sem que lhes subisse à cabeça, mas não os homens de carne e osso.

Também não há certeza, por fim, de que a razão de Tibério ancião, ferido por tantos infortúnios, talvez adoentado, mantivesse a normalidade nos seus anos finais. A sua fuga e o ir e vir incessantes entre o seu retiro em Capri e Roma fazem suspeitar fortemente de insensatez. Só o bom senso de Antônia o atava à normalidade, mas era um laço fraco demais para fazer frente às forças que o impulsionaram sem tino nem justiça àquele terror tiberiano que fez estremecer os séculos e tem todas as características do rancor do ressentido; porque não se dirige – como o rancor do ódio ou da inveja – contra as pessoas que o provocaram, mas contra tudo e todos, porque todos – a humanidade e os deuses – são seus inimigos.

III

Típico também da vingança do ressentido é o uso de predileção que, para levá-la a cabo, Tibério fez da delação. O ressentido no poder recorre imediatamente aos seus irmãos de ressentimento, que são os delatores. A um gesto seu, mil almas ressentidas abrem a válvula da sua paixão. Chovem então os anônimos e as delações explícitas. Umas vezes, são expressão cínica de um vício, mas quase sempre mero alívio do ressentimento, talvez impessoal, mesmo que seja impelido a sacrificar a sua vítima.

Suetônio descreve “o furor das delações que se desencadeou sob Tibério e que, mais que todas as guerras civis, esgotou o país em plena paz”. “Espiava – disse – uma palavra que escapasse em um momento de embriaguez ou a brincadeira mais inocente, porque todo pretexto era suficiente para denunciar. E não era necessário perguntar pelo destino dos acusados: era sempre o mesmo. Paulo, o pretor, assistia a um banquete; usava um anel com um camafeu em que estava gravado o retrato de Tibério César, e nessa mão – não usemos de palavras ambíguas – tomou um urinol. O fato foi observado por um certo Marão, um dos delatores mais conhecidos da época. Um escravo de Paulo percebeu que o delator espiava o seu amo e, rapidamente, aproveitando-se da embriaguez deste, tirou-lhe o anel do dedo no mesmo momento em que Marão tomava os comensais como testemunhas da injúria que se ia fazer ao imperador, aproximando a sua efígie de um urinol. Naquele instante, o escravo abriu a mão e mostrou a todos o anel”.

O interesse desta história está em que, sem a argúcia do escravo, Paulo teria sido encarcerado e morto; e Marão, como delator, teria recebido parte da sua herança.

É preciso ler um a um os processos desses anos da perseguição tiberiana para dar-se conta da sua infâmia e do seu horror. Muitos casos, como o que acabamos de referir, começavam comicamente e acabavam em tragédia; outros eram trágicos desde a nascença. Os filhos denunciavam os pais. Tramavam-se as mais ignóbeis ciladas para justificar a perdição de um inimigo ou o proveito indigno do delator. Não somente homens infames, como Marão, mas pessoas ilustres, advogados e oradores famosos faziam da delação o seu ofício e enriqueciam à custa dela. “Até os senadores condescendiam com as mais baixas delações”. Mas, sem dúvida, a maioria eram os que denunciavam por um fim mais saboroso do que o dinheiro: o prazer de vingar ressentimentos antigos.

Tibério contemplava as delações com o gesto de Pilatos, habitual nele. Se algum homem corajoso, como Calpúrnio Pisão, protestava contra os denunciantes, não tardava a morrer.

Nada mais eficaz para destruir o moral de um povo que o medo da delação, que é o medo mais inesperado, o mais sutil, o mais difícil de combater e de vencer. Quem tiver vivido épocas parecidas não considerará exageradas umas palavras de Tácito. Depois de umas delações que ficaram famosas, diz o historiador: “Jamais como então reinaram a consternação e o sobressalto em Roma. Tremia-se até entre os parentes mais próximos. Ninguém se atrevia a aproximar-se de ninguém, nem muito menos a falar. Conhecido ou desconhecido, todo ouvido era suspeito. Até as cosas inanimadas e mudas inspiravam receio: os olhares percorriam sempre os muros e tabiques”. Com efeito, quando a justiça cala as paredes têm ouvidos.

Assim foi o terror tiberiano, ignóbil como todas as violências dos fracos ensoberbecidos pelo mando. Terror de ressentido, sustentado pela delação, que é sintoma da arbitrariedade do poder, com a mesma certeza com que o fedor e as manchas lívidas do cadáver denunciam a morte.

 

Título original “Resentimiento y delación”. Publicado originalmente em La Nación, Buenos Aires, 19.06.1939, e traduzido a partir do texto recolhido em Obras completas, t. IV, “Artículos e otros trabajos”. Madrid: Espasa-Calpe, 1976, pp. 567-570.

Gregorio Marañón y Posadillo (1887-1960) foi um dos maiores médicos do seu tempo – um pioneiro da endocrinologia –, cientista, historiador, escritor e pensador. Doutor pela Sorbonne, membro de cinco das sete Reais Academias espanholas, publicou, além de mais de setecentos artigos de jornal, monografias científicas e prólogos de livros, cerca de trinta livros de Medicina, dezoito de História e onze de Pensamento. As obras mais conhecidas e de interesse permanente são as que considerava “ensaios biológicos”: além do Tibério (1939), em que faz uma “anatomia” do ressentimento, as principais são Amiel (1932), sobre a timidez; El Conde Duque de Olivares (1936), sobre o poder; Antonio Perez (1947), sobre a intriga e a traição política; e Don Juan (1940), sobre o “donjuanismo”.

Tradução de Henrique Elfes.

Texto originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição nº3, Julho/2009.

Um ousado diagnóstico de nosso tempo (resenha de “Totalitarianism, Globalization, Colonialism”)

História | 24/09/2014 | | IFE CAMPINAS

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Totalitarianism-Redner

Quando puxamos do fundo do baú da memória nossa primeira aula de história no colégio, invariavelmente recordamos a justificativa fornecida pelo professor para nos motivar a estudar vidas e eventos que transcorreram há tanto tempo: para compreendermos o mundo em que vivemos e para onde ele caminha, é necessário conhecermos o passado da humanidade. Não raramente esse chamado à curiosidade ecoa de maneira profunda em nossas almas, motivando-nos até mesmo a comprometer nosso futuro financeiro cursando uma graduação em história ou filosofia.

Mas quando, cheios de entusiasmo, iniciamos nossos estudos superiores, fatalmente vem o balde de água fria, sob a forma de uma solene advertência por parte de nossos mestres universitários: hoje em dia os estudos históricos devem se limitar à reconstituição minuciosa de eventos pontuais. É passado o tempo das grandes sínteses históricas e quem nelas se aventurar corre o risco de fazer má futurologia ou, pior, filosofia da história (atividades não sérias ou cientificamente superadas). Mas serão mesmo estas as únicas opções? Poderá a história, aliada com a filosofia, fornecer subsídios para a compreensão de nosso tempo sem renunciar à seriedade e ao rigor metodológico? É a este desafio que o filósofo e historiador australiano Harry Redner busca responder, levantando corajosamente uma discussão a respeito de um conceito banido por boa parte dos estudos acadêmicos atuais: o de civilização.

Em obra publicada neste ano de 2014, o autor argumenta que presenciamos um processo de destruição da civilização, mas, diferentemente do que sustenta o renomado historiador Eric Hobsbawm, tal processo não culmina num retorno à barbárie[1], mas naquilo que podemos chamar de era “pós-civilizacional”. Enquanto a destruição que conduz ao barbarismo atinge todos os elementos que possibilitam a vida civilizada, incluindo os de ordem material, o estágio pós-civilizacional é marcado por um desenvolvimento acentuado da ciência, da tecnologia, das formas de administração burocrático-legais, da riqueza material (pelo menos nos grandes centros da Europa e dos Estados Unidos) e da alfabetização. Em contrapartida, aquilo que está na raiz da civilização é paulatinamente varrido do mapa, a saber, os padrões éticos de convivência social e a alta cultura, corporificada na literatura e nas artes em geral. Dito de maneira breve: o ensino técnico prospera, mas as profundezas da razão que o tornaram possível definham.

Para o autor, a ideia de civilização está baseada no desenvolvimento da cultura literária que se desdobra a partir de um grupo de obras seminais. No caso do ocidente, as de Platão e Aristóteles, a Bíblia e o aporte do direito romano, que criaram a possibilidade do desdobramento daquilo que podemos chamar de forças da modernidade: o capitalismo industrial, o estado racional-legal e a ciência/tecnologia.

Retomando e desenvolvendo uma tese sustentada por Max Weber, Redner afirma que o desdobramento das forças da modernidade radica na própria natureza humana, uma vez que as perguntas que a elas deram origem foram colocadas por todas as grandes civilizações, mas, por razões de contingência histórica, floresceram de maneira predominante apenas na civilização ocidental, uma vez que as grandes civilizações do oriente (notadamente China, Índia e Islã) entraram em colapso.

Contudo, ao contrário da tese hegeliana, segundo a qual o desenvolvimento da razão implica necessariamente na ampliação da liberdade, Redner procura mostrar que o desabrochar das forças da modernidade do ocidente ocorreu de modo bastante ambíguo, com o surgimento de três fenômenos cujos desdobramentos ameaçam a própria existência da civilização: o colonialismo, o totalitarismo e a globalização.

Dessas três forças, a mais destrutiva foi o totalitarismo, cujas formas principais elencadas por Redner são o bolchevismo (que está na origem de todas as demais adaptações nacionais do marxismo) e o antissemitismo (que lançou as bases para o nazismo alemão). Uma vez que a história da humanidade apresenta um extenso rol de regimes ditatoriais, repressores e assassinos, a nota distintiva do totalitarismo do século XX deve ser procurada na sua ligação com uma ideologia totalitária: faz sentido falar sobre a ideologia nazista, mas não falar sobre a ideologia de Gengis Khan. O legado do totalitarismo foi o maior morticínio já perpetrado na história da humanidade, mas, sobretudo, a destruição de padrões morais de comportamento humano.

Privilegiando definições histórico-genéticas, isto é, procurando a origem e o desenvolvimento histórico dos fenômenos e não definições essencialistas, o autor identifica os vários componentes que deram origem ao bolchevismo (os movimentos conspiratórios russos aliados a uma instrumentalização oportunista do marxismo operada por Lênin) e ao nazismo (a ideologia arianista, o darwinismo social, a teoria da guerra de Clausewitz). Também recebe destaque a ligação originária entre as duas ideologias, materializada na obra de Georges Sorel, que interpretou as lutas sociais em termos de mitologia, despertando reações de aprovação tanto de Lênin quanto de Mussolini.

Como contribuição original para o estudo do totalitarismo, o autor classifica os regimes totalitários em tipos ideais, que podem se suceder de modo cronológico: em primeiro lugar, implanta-se um regime proto-totalitarista, marcado pela mobilização geral da população, pela imposição da ideologia através da força e pela consolidação de um partido no poder. Foi o caso da Rússia desde a tomada do poder pelos bolcheviques em 1917 até o início da coletivização forçada das terras por Stalin em 1929.

Em segundo lugar, surge o totalitarismo propriamente dito, um regime de terror irrestrito, onde a repressão atinge potencialmente toda a população e a ideologia se instaura não como uma meta futura, mas como uma realidade presente (foi o caso da URSS até a morte de Stalin e da China, de 1949 até a morte de Mao Tse-Tung, em 1976). Após a morte do líder, seu partido procura se manter no poder afrouxando – mas não banindo – a repressão e implantando uma liderança colegiada, instaurando o chamado subtotalitarismo. Por fim, quando o partido único é apeado do poder, passa-se a uma fase pós-totalitarista  (fato que só ocorreu com o fim da URSS, mas não na China, que permanece subtotalitária).

Colonialismo e globalização são, por assim dizer, irmãos siameses, cirurgicamente separados quando a tocha da civilização ocidental se transfere da Europa para os EUA, após o fim da Segunda Guerra Mundial. Seu princípio é o mesmo: a expansão do capitalismo ocidental e a conseqüente modernização do globo terrestre em bases européias (e depois estadunidenses), operada sobre os destroços das antigas civilizações chinesa, indiana e islâmica. Fugindo ao simplismo de imputar culpas pela destruição destas últimas, Redner busca analisar o fenômeno com isenção e chega à seguinte conclusão: o chamado despotismo oriental (conceito trabalhado de maneiras distintas por Marx, Weber e Wittfogel) resultou historicamente em becos sem saída: quando os ocidentais buscaram (brutalmente e de maneira moralmente injustificável em muitos casos) implantar a europeização, os antigos impérios persa, otomano, Mugal e Qing apresentavam sinais claros de decrepitude. O autor dedica longas páginas ao estudo de cada um desses casos.

Com o retraimento da civilização europeia, parte do antigo continente acolheu a ocupação americana de braços abertos e adotou a cultura de massas e o individualismo empreendedor que se sobressaíam nos Estados Unidos. O resultado foi o crescimento da prosperidade material, mas uma redução significativa do nível cultural. De outra parte, o lado oriental da Europa e os chamados países do terceiro mundo, tanto a América Latina quanto os territórios descolonizados, experimentaram a modernização em maior ou menor medida sob a influência da União Soviética: o socialismo, travestido de terceiromundismo, incentivou um agigantamento do Estado e da planificação, com conseqüências materiais e culturais bastante perniciosas.

O autor conclui sua obra com um prognóstico não otimista, mas aponta uma tarefa fundamental que hoje bate às portas da humanidade: a preservação daquilo que restou da civilização em um mundo globalizado. Para que isso seja possível, é mister sobretudo preservar as línguas nacionais das ingerências do vocabulário técnico e científico, que empobrece significados e torna boa parte da experiência humana indizível. Em segundo lugar, é preciso preservar e desenvolver as expressões artísticas nacionais. Não devemos, contudo,  nutrir o sonho de que a modernidade possa ser desfeita, com o retorno a formas pré-modernas de convivência, ou que ela possa ser reformada em termos não ocidentais (nesse ponto, Redner sustenta uma interessante polêmica contra Samuel Hutington e sua tese do conflito de civilizações), mas é preciso salientar que a manutenção daquilo que nos resta da civilização não pode ser feita de outra forma que não a de um empreendimento pacífico, com a participação de todos os povos do mundo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é advogado, professor de filosofia e gestor do Núcleo de História do IFE Campinas.

LIVRO DA RESENHA: REDNER, Harry. Totalitarianism, Globalization, Colonialism: The Destruction of Civilization since 1914. Londres e New Brunswick, 2014.

NOTAS

[1] Cf. HOBSBAWM, Eric. Barbárie: Manual do Usuário. In. Sobre a História. São Paulo; Companhia das Letras, 1998.