Literatura em tempos áridos

Literatura | 24/11/2014 | | IFE CAMPINAS

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Meu gosto pela literatura começou cedo. Lá pelos dez anos já devorava as obras do Verne e do Doyle da mesma maneira como meus filhos adotados comeram o primeiro prato deles fora do abrigo no dia em que fomos lá buscá-los definitivamente. Depois, por influência de um amigo, o Renato, já na adolescência, comecei meu namoro literário com Cervantes, Shakespeare, Victor Hugo, Tolstoi e Dostoievski. No mesmo período, tive uma namorada, a Daniele, com quem troquei cartas de amor por longos dois anos e muitas brigas literárias entre Machado, Pessoa, Guimarães Rosa e Camões.

Já na faculdade, uma grande amiga, a Christianne, foi uma espécie de catalisadora de releituras daqueles autores e o Roberto, outro amigo, introduziu-me ao mundo de Eliot e Dickens. Mais tarde, minha esposa apresentou-me, depois de muita relutância e de um longo almoço com amigos em que fiquei calado por conta de minha ignorância no assunto, à literatura de Tolkien. Depois, também com ela, entendi melhor o universo feminino com Austen e, por culpa da literatura, em nossa suíte, não existe televisão: ajuda na vida de diálogo conjugal, propicia conversas literárias e alimenta, digamos assim, uma saudável libido sexual. E, há algum tempo, para fazer um trabalho acadêmico, li Homero e, recentemente, detive-me com Faulkner, Borges e Carpeaux.

Foi um longo caminho. Aliás, continua sendo. Porque a literatura, para mim, no seio do universo da educação, abarca toda a experiência humana, a ponto de a refletir e contribuir decisivamente para modelá-la e que, por isso mesmo, deveria ser patrimônio de todos, já que se trata de um atividade que se alimenta no fundo comum da espécie. Mas, hoje, a literatura, como ferramenta pedagógica, reduziu-se a um mero entretenimento escapista da realidade, como uma espécie de droga “injetável” intelectualmente.

Sei que as estatísticas dizem que nunca foram publicados e vendidos tantos livros no mercado editorial. O problema surge quando, não satisfeitos com os confortáveis números sobre publicações e vendas de livros, que parecem garantir a perenidade da literatura, espiamos atrás das roupagens numéricas e descobrimos uma realidade muitas vezes deprimente. Com raras exceções, quase ninguém mais acredita que a literatura sirva para muita coisa, salvo para não se entediar demais no ônibus ou no metrô (nos consultórios, ela já foi expulsa pelas revistas semanais de celebridades) e para, se a indústria do entretenimento puder ter muito lucro, que se tornem ficções cinematográficas.

Assim, a literatura assumiu uma faceta “light” — noção que é um erro traduzir por leve, pois, na verdade, apesar das exceções, quer dizer irresponsável e, frequentemente, nada instrutivo. Por isso, alguns renomados críticos acreditam que a literatura já morreu e excelentes romancistas proclamam que não voltarão a escrever tão cedo. Pudera. Essa postura “light”, no fundo, encobre a intenção de transformar a literatura numa espécie de mecanismo de indolência espiritual relaxada, a fim de possibilitar ao indivíduo uns momentos agradáveis, imergindo-o na irrealidade e emancipando-o da sordidez cotidiana, do inferno doméstico ou da angústia econômica.

A apreensão de uma obra literária exige ativa participação do leitor, esforço de imaginação, além de complicadas operações de memória, associação e criação, bem ao contrário da proposta da literatura “light” que, na melhor das hipóteses, torna seus leitores mais preguiçosos e mais alérgicos a uma leitura que exija deles esforço intelectual.

Posso afirmar que toda essa literatura “light” não ajuda – nem remotamente – a entender o labirinto da psicologia humana tanto quanto os romances de Dostoievski ou os mecanismos da vida social tanto quanto as obras de Tolstoi ou os abismos da miséria tanto quanto as obras de Shakespeare e os ápices da beleza tanto quanto nas obras de Homero. Um livro inteiro dessa literatura “light” não é capaz de ensinar tanto quanto alguns capítulos das sagas literárias da maioria dos autores já citados são capazes de fazê-lo.

Eu não seria como sou, nem acreditaria no que acredito, nem teria as dúvidas e as certezas que me fazem viver sem esses autores e muitos outros aqui não mencionados. As obras desses escritores modificaram-me e modelaram-me e, a cada releitura, ainda continuam me modificando e me modelando incessantemente, no ritmo de uma vida com a qual os vou cotejando. Neles aprendi que o mundo é imperfeito e que toda tentativa de transformação da realidade num paraíso celestial acabará sempre num inferno terrestre.

Entretanto, isso não significa que não devamos fazer o possível para que o mundo não seja ainda pior do que é, isto é, que somos inferiores ao que sonhamos e que, na comédia humana de que somos atores, há uma condição transcendental que compartilhamos em nossa diversidade de culturas, raças e crenças e que nos transforma em iguais e deveria tornar-nos, também, solidários e fraternos.

O fato de não ser assim é algo que posso entender muito melhor graças àqueles livros que me mantiveram alerta e em brasas enquanto os lia, porque nada melhor do que a boa literatura para aguçar nosso olfato existencial e nos tornar sensíveis para detectar as raízes da crueldade, da maldade e da violência e, ao mesmo tempo, as da magnanimidade, da alteridade e da bondade de que somos naturalmente capazes. Quando a literatura é posta fora de toda essa dimensão, perde seu sentido último e fica parecendo umas horas que perderam seu relógio.

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, mestre em Filosofia e História da Educação, Pesquisador, Professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).