Dor e sofrimento na Literatura

Literatura | 14/10/2014 | | IFE CAMPINAS

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1. Prometeu: herói ou vilão?

Sofrer é parte da condição humana e, como não poderia deixar de ser, a dor produziu momentos marcantes na Literatura.  Não é possível resgatar todas as preciosidades que a arte nos legou nesse tema. Contudo, um breve passeio por algumas grandes obras pode nos dar uma ideia da riqueza humana retratada pelos grandes autores em relação ao sofrimento.

Uma peça teatral de grande interesse nesse sentido é Prometeu, de Ésquilo. Como sabemos, o titã roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens. Por esse motivo, Zeus o puniu de forma atroz: foi obrigado a ficar acorrentado a uma rocha por toda a sua existência, isto é, para sempre.

A figura de Prometeu é ambígua, já que podemos vê-lo como a personificação da revolta e do orgulho ou como de um grande injustiçado. Bem verdade que, não necessariamente, um fato exclua o outro, ou seja, uma iniquidade pode ser motivo para uma grande revolta. Parece ser esse o caso de Prometeu. Alguns tentaram vê-lo como um nietzscheniano, mas é preciso perceber que a rebelião do titã não é contra o deus cristão, afinal das contas um anacronismo, visto a peça ter sido escrita no século VI a.C!, mas contra a concepção grega, ou ao menos de Ésquilo, de divindade.

Já no início da peça, após se lamentar do seu estado, afirma:

Temos de suportar com o coração impávido

A sorte que nos é imposta e admitir

A impossibilidade de fazermos frente

À força irresistível da fatalidade.[1]

O titã considera que não deve mostrar medo ante o fato de que é impossível mudar o destino. Aliás, nem o próprio Zeus escapa à força das moiras, as três irmãs que, na Mitologia, representavam o destino: Cloto, que significa em grego, fiar, era responsável pelos nascimentos; Láquesis, “sortear”, responsável pela sorte de cada um e Átropos, “afastar”, era quem cortava o fio da vida, isto é, determinava a morte.

Portanto, essa concepção grega da vida apresentada por Prometeu é a base da tragédia: não há como escapar ao próprio destino. Como veremos mais tarde em Sófocles, Édipo é o exemplo maior do sofrimento que essa concepção causa, visto não ser possível nenhuma ação, divina ou humana, para driblar a própria sorte:

Prometeu

O Destino supera minhas aptidões.

Corifeu

E por quem o destino é governado? Dize!

Prometeu

Pelas três Parcas e também pelas três fúrias,

Cuja memória jamais esquece os erros.

Corifeu

Os poderes de Zeus, então, cedem aos delas?

Prometeu

Nem ele mesmo pode fugir ao destino.[2]

A peça, de fato, revela um momento de grande sofrimento do personagem. Contudo, não sabemos exatamente como foi o fim de Prometeu em Ésquilo, pois a obra é parte de uma trilogia da qual Prometeu acorrentado é a única que nos foi legada integralmente. Da última delas, Prometeu libertado, na qual se daria a reconciliação com Zeus, restam apenas fragmentos.

Além disso, o papel do coro na obra é curioso. Além de demonstrar compaixão pelo sofrimento do herói, revela um medo de Zeus que ultrapassa qualquer reverência ou justo temor. Em poucas palavras, é bom ficar atento e cumprir todos os rituais, pois a ira de Zeus pode aparecer em qualquer instante!

Qual é, portanto, o sentido do sofrimento na peça? De acordo com Werner Jaeger, “em Prometeu, a dor torna-se o sinal característico do gênero humano”[3]. O mesmo Jaeger nota que o pecado de Prometeu não é o roubo do fogo, mas a consequência desse ato, “na relação com alguma trágica e profunda imperfeição do benefício que, com o seu maravilhoso dom, prestou à humanidade”. [4] Talvez esse dom seja tornar os homens semelhantes a Zeus. É o que Hefesto parece indicar no início da peça, ao dizer que o castigo de Prometeu é merecido:

Quiseste transgredir um direito sagrado

Dando aos mortais prerrogativas divinas.[5]

Difícil até mesmo supor se essa afirmativa se refere a uma revolta ao estilo Adão e Eva (“sereis como deuses”) ou a uma busca de perfeição humana por meio de um “endeusamento” – “sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito”, disse Jesus – impensável para a mentalidade grega.

Em outra peça, contudo, Ésquilo exprimiu o que o filósofo Giovanni Reale considerou o ponto máximo que os gregos conseguiram chegar a respeito do sentido da dor, isto é, que “o sofrimento pode conduzir à sabedoria e pode curar”.[6] Essa máxima pode ser percebida na obra Agamenon. O coro afirma:

Foi Zeus que guiou os homens para os caminhos da prudência,

Estabelecendo como lei válida

A aprendizagem pelo sofrimento.

Contudo, e aqui seguiremos a perspicácia de Reale, é em Édipo em Colono, peça de Sófocles que retrata os últimos dias do ex-rei na Terra, que o sofrimento tem como resultado uma experiência positiva, possivelmente a maior que se possa ter, a do amor:

Ouvindo o estrondo, as meninas tremeram e se prosternaram

aos pés do pai, batendo sem cessar no peito

enquanto soluçavam consternadamente.

Ele, entretanto, ouvindo o pranto amargurado

abraçou-as e disse-lhes: “Ah! Minhas filhas!

“De hoje em diante vosso pai já não existe;

“de fato, agora acaba-se tudo que fui

“e cessa o vosso encargo de cuidar de mim

“— muito penoso, eu sei, minhas pobres crianças —;

“uma palavra só, porém, vos recompensa

“por tantos sofrimentos: de ninguém tivestes

“amor maior que o deste homem sem o qual

“ireis viver pelo resto de vossas vidas!”

Os três se estreitavam nos braços uns dos outros

mas, quando seus gemidos chegaram ao fim

e já não se podia ouvir-lhes os soluços,

todos ficaram em silêncio absoluto.

Essa belíssima cena, uma das últimas da obra, é um dos grandes momentos da literatura. E cabe ressaltar que nos ajudar a compreender a figura de Antígona, uma das filhas de Édipo presentes nesse momento e heroína da obra que leva o seu nome. Esse amor, podemos conjecturar, transforma-a em uma fortaleza no momento em que terá de defender a honra da família.

2. Morte e vida em um poema de Manuel Bandeira

Há um poema de Manuel Bandeira que, como boa parte de sua obra, parece ser descartável, simples demais. Contudo, um olhar mais atento pode descobrir uma riqueza incomparável. Trata-se de “A Virgem Maria”, escrito em 1926 e publicado no livro Libertinagem, de 1930.

Por tratar-se de um poeta que se utiliza muito da própria biografia como motivo de seus poemas, é preciso apontar alguns fatos de sua vida para melhor compreender a obra. Nascido em 1886, foi diagnosticado com tuberculose aos 18 anos, o que a época representava uma sentença de morte. Teve de abandonar os estudos de Arquitetura e iniciou uma peregrinação por estâncias climáticas em busca da melhora da saúde.  Entre 1916 e 1920, perde, respectivamente, a mãe, a irmã, que desde o diagnóstico de tuberculose tinha sido uma fiel enfermeira e, por fim, o pai. Tendo esses dramáticos acontecimentos em vista, vamos ao poema:

O oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e o administrador

[do cemitério de S. João Batista.

Esse é o primeiro e longuíssimo verso do poema. São enumerados alguns personagens, como o oficial do registro civil, responsável pela inscrição de nascimentos e mortes, o coletor de impostos, que possivelmente é aqui retratado ironicamente, pois também “mata”, o mordomo da Santa Casa que, nesse contexto, é o administrador do hospital e, por fim, o gestor do cemitério. Todas essas figuras aparecem elencadas no mesmo verso para dar a ideia de uma soma de acontecimentos relacionados à morte, como lemos nos versos seguintes:

Cavaram com enxada

Com pás

Com as unhas

Com os dentes

Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia

Depois me botaram lá dentro

E puseram por cima

As Tábuas da Lei

A óbvia repetição intencional da letra C (fonema k) leva-nos sonoramente a um enterro em vida. Como ficará mais claro a seguir, trata-se de um desânimo em relação à vida, de uma desistência a vivê-la em plenitude por causa do sofrimento. Afinal, a dor, por si só, pode levar-nos a essa situação, como explica o teólogo Pie Régamey. Após considerar a abdicação da vontade na doutrina de Buda, considera que

o que Buda exprime de maneira tão profunda, é realizado pelas grandes dores – ou pelas dores sofridas pelas almas débeis -: a alma adormece. A vida física, psíquica, intelectual, continua a desempenhas suas funções, mas a alma torna-se insensível. Não vive uma nova vida, mais alta: pelo contrário, extingue-se e morre, por assim dizer, em vida. [7]

Essa condição de morte em vida é descrita de forma brilhante por Bandeira: os sofrimentos acabaram por fazer com que o poeta perdesse o gosto de viver.  Remeto o leitor ao soneto Renúncia, escrito 1906 (aos 20 anos do poeta, portanto) para compreender os versos “uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia. Em linhas gerais, Renúncia apela a uma atitude estoica perante a dor que indica uma abdicação após a revolta. Se a dor é inevitável, fazer o quê? Ser alegre? Não!

Encerra em ti tua tristeza inteira

E pede humildemente a Deus que a faça

Tua doce e constante companheira…

Evidente não se tratar de uma atitude cristã perante o sofrimento. Afinal, o seguidor de Cristo fia-se no Seu exemplo: se é possível, afasta esse cálice. Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua, afirmou Jesus na oração do Horto das Oliveiras. Significa que, no cristianismo, a dor não é amada por si mesma, mas aceita pelo desejo de seguir o exemplo de Cristo.

No poema “A Virgem Maria”, essa renúncia à vida é um fato que, na segunda e última estrofe, é abalada por um apelo:

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova

Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria

Dizer que fazia sol lá fora

Dizer i n s i s t e n t e m e n t e

Que fazia sol lá fora.

 Quando, portanto, o poeta estava no mais absoluto indiferentismo, ouve um chamado,  reforçado pela repetição das preposições que, na Gramática, tem como função relacionar os termos da oração, e que no poema dá uma ideia sonora de grande profundidade. Sabemos que se trata de um apelo delicado pela repetição da vogal i.

A beleza da musicalidade também está presente no sentido. O que essa voz lhe diz? Talvez muitos imaginariam que o evento sobrenatural descrito no poema fosse uma reprimenda pelo comportamento censurável do poeta. Afinal, ele desdenhou do maior dom que recebeu: a vida. Contudo, a voz serena apela à sua liberdade.

Assim como em “Renúncia” há uma opção pela tristeza, compreensível, tendo em vista as dores que passou. Mas aqui há um convite à alegria. Não um imperativo, mas uma observação carinhosa, maternal: faz sol lá fora, isto é, a vida continua. Não se trata de uma explicação para os sofrimentos, mas um convite à aceitação que em Renúncia parecia ser um fato, mas era antes uma revolta sem explosões de cólera, sentimental: mágoa. Essa palavra, aliás, provém do latim macella, diminutivo de macula, mancha. As mágoas, portanto, podem ser entendidas como pequenas manchas que se impregnam na alma.

3. Conclusão

A concepção grega do sofrimento à época das tragédias supõe um destino contra o qual nem as divindades podem escapar. Os resultados são os mais variados: desde a revolta de Prometeu ao carpe diem, visto que se a dor é um fato, o melhor é aproveitar o momento, de preferência rodeado de prazeres.

O interessante no poema de Manuel Bandeira é que não nos traz uma resposta. O sofrimento é recebido como merece: com desprazer e um consequente desgosto. Contudo, os últimos versos apresentam uma intervenção divina que leva o poeta não a reconsiderar a sua atitude, mas a olhar para outro lado, por assim dizer.

Embora um pouco longa, gostaria de terminar essas considerações com uma bela citação de Aristóteles:

O que acontece de mal oprime e desgraça a nossa disposição, traz sofrimentos e impede o deflagrar de muitas atividades. E, todavia, até nessas circunstâncias reluz o esplendor, caso sejamos capazes de suportar com facilidade muitas e frequentes desventuras, não porque não se sofra, mas por generosidade e magnanimidade. Se estas são as autênticas atividades da vida, tal como dizemos, nenhum dos que são bem-aventurados se tornará miserável. Jamais praticará ações odiosas ou mesquinhas.[8]

Eduardo Gama (IFE Campinas)

 

NOTAS:

[1] Prometeu Acorrentado, Ésquilo. Trad. Mário da Gama Kury, Jorge Zahar Editor, RJ, 2004, VV. 135-138.

[2] Op. Cit. VV. 665-670.

[3] Paideia – A formação do homem grego. Werner Jaeger, p. 310.

[4] Id. Ib. p. 311.

[5] Op. Cit. VV 45.

[6] Corpo, alma e saúde. O conceito de homem de Homero a Platão. Paulus, 2002, p. 263.

[7] O mistério da cruz. Pie Régamy. Editorial Aster, Lisboa, 1959, p. 29.

[8] Aristóteles, 1100b24-35, Ética a Nicômaco, Atlas, SP, 2009.