Um sentido para o Natal


Foto: Malene Thyssen, http://commons.wikimedia.org/wiki/User:Malene, Wikimedia Commons.

 

Estamos em tempo de natal. Uma festa que, tradicionalmente, simboliza um sentido que vai além de nossa existência desolada. Divorciado desse sentido há tempos, o natal, ao que parece, caiu na armadilha das festas com data marcada: festas que têm tudo para virar nada. Nada, porque, diz a sabedoria popular, o melhor da festa é esperar por ela.

Se o melhor da festa é a espera que ela proporciona, logo, a festa não teria lá muito sentido. Mas, se o melhor da festa – a expectativa – é justamente causada por seus preparativos, como não lhe dar algum valor? Ou, então, seria a festa a consumação daquela crescente espera, cujo ápice, o dia de sua realização, corresponderia, simultaneamente, ao fim daquela expectativa e à volta da melancolia proporcionada pela repetição do cotidiano?

Em tempos de materialismo, consumismo, hedonismo e secularismo, a expressão “Feliz natal!” vem sendo substituída pelo simpático “Boas festas!”. Nada mais coerente. Nada mais vazio de sentido genuinamente natalino: simboliza uma desmedida preocupação com presentes, ceia, roupa e convidados, porque, se, por um lado, essa inquietação demonstra o devido valor que atribuímos a essa festa, por outro, destituída daquele sentido transcendente, a agitação transformou-se num fim em si mesmo.

Otto Maria Carpeaux, o melhor presente que a Áustria já deu ao Brasil, gostava de pensar o natal com um sentido de esperança transcendental. Talvez por conta da perseguição nazista aos judeus que sucedeu à anexação da Áustria ao III Reich, quando ele morava por lá. Ou, quem sabe, por influência do cristianismo, para o qual se converteu depois de ter abandonado o judaísmo.

Não importa. Por sua influência, desde a juventude, sempre meditei o natal dessa maneira, uma maneira que dá um denominador comum de sentido aos três momentos dessa festa: sua expectativa, sua realização e, sobretudo, o dia seguinte, um cenário normalmente marcado pelo mal estar estomacal, pela ressaca ou pelo fastidio material.

A esperança é um nobre tema da teologia cristã. É uma virtude teologal, ou seja, é um dom que decorre da ação divina, cujo autor deve ser o destinatário dessa mesma esperança. Fora dele, no mundo, só há espaço para um “genérico” de esperança: a esperança humana, de credibilidade duvidosa, ao menos à luz dos estragos que o próprio homem já fez a si mesmo.

Entregue a si mesma, essa esperança vaga no vazio do desespero, carregando em si a raça dos abandonados, como bem observou Horkheimer. Ou mesmo Kafka, quando, ao ser questionado sobre o tema, afirmou que há muitas esperanças, mas não para nós. Nos dois casos, paira um certo pessimismo, provocado pelo testemunho, por parte de ambas personalidades, de um período político e histórico de progressiva desumanização do homem.

Mas ainda é possível se falar em esperança transcendente numa realidade social pautada por uma visão de mundo materialista, ou seja, em que tudo não passa de um aglomerado de átomos e moléculas de duração finita? Em que o laicismo pretende banir a religião do âmbito público? Como fomentar a esperança num ambiente que funciona como a negação da própria esperança?

Meu avô, quando tinha quinze anos, faleceu de mal de Alzheimer, mas, durante esse doloroso processo de degeneração, ele teve um tumor cancerígeno cerebral diagnosticado. Naquela altura, eu já não mais “existia” para ele. Lembro-me de ter visto as imagens do tumor no exame que chegou às minhas mãos, tumor que não decretou seu fim, porque o Alzheimer bateu na porta da vida dele antes.

Lembro-me de ter buscado refúgio em Deus, na oração, e, também, em Shakespeare, porque sua literatura repete a vida: Hamlet segurou o crânio de Yorick, o bobo da corte dinamarquesa, e perguntou se nós somos apenas aquilo, um monte de ossos enterrado a sete palmos do chão (Hamlet, V, 1).

Achei que um monte de ossos coberto por uma carne não podia ser a causa eficiente de tudo aquilo que meu avô fez ou me proporcionou. Deveria haver algo mais. Algo que animasse suas ações e desse um sentido maior à sua existência. Isso foi o começo da minha resposta, alcançada plenamente alguns anos depois.

A morte de meu avô apresentou-me a uma genuína esperança e deu um outro sentido à minha vida: o sentido da miséria de nossa existência que, graças à esperança transcendental, abre-se à beleza da perfeição. E que se renova todo ano, quando contemplo a miséria material do presépio e essa mesma esperança nas faces de cada um de seus personagens.

Por fim, despeço-me temporariamente do caro leitor, após 16 anos de presença semanal. Farei um sabático, por motivos acadêmicos de pós-doutoramento, de seis meses e, depois disso, retornarei para aquilo pelo qual sou devotadamente grato por ter nascido apaixonado: escrever.

André Gonçalves Fernandes, Ph.D., é professor-pesquisador, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 12/12/2018, Página A-2, Opinião.