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Vocação em crise

Opinião Pública | 22/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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Quando perguntamos para uma criança o que ela quer ser quando crescer, não raro encontramos respostas sonhadoras e criativas, acompanhadas de um brilho nos olhos. Às vezes inspirados nos próprios pais, rodeados de certo mistério e heroísmo, outras vezes em histórias ouvidas ou vistas no cinema. Depois o tempo vai passando e a realidade vai conformando os sonhos às possibilidades de realização e surgem, já na juventude, os projetos de vida. É uma fase difícil, que encontra hostilidades e demanda coragem e ousadia. O início da aventura em direção à própria vocação.

Vocação é uma daquelas palavras desgastadas pelo tempo e que acabam por perder a sua densidade original. Comumente, fala-se em vocação referindo-se aos estudantes do ensino médio fazendo escolhas para o vestibular. As escolas costumam oferecer testes vocacionais que prometem apontar áreas em que os estudantes poderão desenvolver uma profissão. Em geral, trata-se de equacionar gostos e habilidades pessoais à carreiras promissoras, que possam render bons ganhos financeiros.

Originalmente, todavia, a idéia de vocação nos remete a um significado mais profundo. Quem faz algo por vocação (do latim “vocare”, chamar) sente que é chamado por algo que o transcende (que está fora de si mesmo): uma obra, uma pessoa amada, Deus. A. D. Sertillanges diz que “a vocação pede atendimento, que, num esforço único para sair de si, escuta e atende“. Neste sentido, nota-se que, ao contrário do que se poderia pensar, nem sempre a resposta a este chamado procura a realização de gostos pessoais ou sucesso material, mas contém uma forte carga de sacrifício, de assunção de uma missão a ser cumprida.

O esvaziamento do significado da palavra em nossa cultura vai além da semântica, pois expressa, na verdade, o abandono da dimensão vocacional da vida. A prevalência de uma ética utilitária e individualista convida os jovens a uma busca pela satisfação imediata de prazeres e à realização de modelos de sucesso baseados em cargos, títulos e bons salários, que possam garantir comodidades e segurança, mesmo ao custo dos próprios talentos, valores e ideais.

Pouco a pouco, aquele “instinto natural” da juventude, o desejo de realizar algo maior, de se arriscar e lutar por algo que valha a pena, de enfrentar as grandes questões humanas e construir uma biografia brilhante e significativa, vai sendo soterrado, a pretexto de “ter os pés no chão”. Como consequência, a vida vai, aos poucos, perdendo a graça, dissolvendo-se em um cotidiano sem sentido, que não convida a nada além do conformismo e da mediocridade.

O psiquiatra austríaco Viktor Frankl chamou este sintoma de “vazio existencial”, um fenômeno muito comum em nossos dias. Segundo ele, o homem é um ser em busca de sentido, pois cada pessoa é uma tarefa dada a si mesma, exclusiva e específica, que somente ela mesma é chamada a realizar. É este chamado que dá sentido a sua existência, pois comunica um espírito de missão ao trabalho, enobrece e dá valor à sua vida.

Por isso, a privação deste sentido leva o homem a adoecer, conduzindo-o a uma procura neurótica por compensações, sempre frustrantes, principalmente, no poder, no dinheiro e no prazer. O acúmulo destas frustrações é gerador de depressão, agressividade e vícios, sintomas deste “vazio existencial”. Infelizmente as pesquisas mais recentes confirmam este diagnóstico em nossa sociedade, mostrando um impressionante aumento, principalmente entre os jovens, dos casos de depressão, uso de drogas, violência, sexualidade desregrada, desmotivação generalizada pela vida.

Neste contexto, torna-se ainda mais desafiador o caminho em busca da vocação, único capaz de preencher a vida de significado, de esperança e entusiasmo. Aos jovens de nosso tempo serve muito bem a provocação de Saint-Exupéry: “Julgo de pouca importância a coragem física, e a vida ensinou-me qual é a coragem verdadeira: é aquela que nos faz resistir à condenação do ambiente em que se vive”. Que saibamos inspirar os jovens nesta coragem, sem a qual ficarão à mercê de falsos e sedutores convites, para que possam responder à altura do verdadeiro chamado.

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/9/2015, Página A-2.

A vítima da loja de perfumes

Opinião Pública | 11/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Voltei das férias com muitas estórias de viagem em família que dariam várias crônicas. Três em especial. Mas, infelizmente, ficarão para uma outra oportunidade. Preciso, antes, dirigir-me à uma boa e desconhecida pessoa que andou a confundir alhos com bugalhos ou, melhor dizendo, deu a entender que sua alma é uma prateleira repleta de perfumes. Masculinos.

Conduzia uma audiência criminal, algo que não fazia há uns oito anos. Olhei a pauta e, logo em seguida, derrubei um pouco de café na mesa, sem grandes alagamentos de papel. Se fosse um pretor romano, isso seria um mau presságio dos deuses e, muito provavelmente, eu me levantaria, daria por encerrado os trabalhos forenses e iria embora. Detive-me por uns instantes nesse pensamento, dei uma risada sozinho e prossegui. Mal sabia eu que os deuses me preparavam.

Comecei a primeira audiência: roubo à mão armada de uma famosa loja de perfumes, cujos produtos vivem nos catálogos que, vez ou outra, dividem – com os autos dos processos – os espaços das mesas de muitas escreventes que conheço. Ouvi a vítima que, aos soluços, parecia estar em choque existencial diante de sua narração dos fatos. Quem já teve uma metralhadora apontada para a cabeça, como eu já tive por algumas horas, entende a situação. No momento em que solicitei o reconhecimento visual do acusado, o choque quase foi convertido em síncope. Suspendi a audiência por alguns minutos, pedi que lhe trouxessem uma água e até o defensor deu umas balas refrescantes para a vítima, que logo se recuperou.

Depois, ouvi as testemunhas, interroguei o réu e terminei a audiência. Meu telefone celular tocou e ausentei-me do recinto para atender a ligação, justamente no corredor onde a vitima aguardava, junto com as demais testemunhas, para assinar seus depoimentos. Terminei a ligação e retornei para a sala de audiências, quando fui surpreendido pela vítima que, de inopino, perguntou se eu teria algum compromisso aquela noite.

Olhei para ela e disse que não tinha compromisso, mas que já era compromissado diuturnamente há muitos anos. Ainda lhe sugeri que buscasse um verdadeiro amor. Ela deu um sorriso, falou ter gostado do que ouvira, mas replicou ainda não estar aberta a compromissos. Então, respondi que, diante disso, seria melhor para ela buscar alguém mais novo, porque, contando com quarenta anos, não teria mais disposição física para as maratonas sexuais que ela quixotescamente parecia almejar.

Voltei para minha sala imediatamente e, nos intervalos das audiências que se sucederam, vi-me obrigado a rascunhar este artigo, a partir de um inusitado fato forense: senti-me como um romano, castigado pelos deuses, por ter ignorado o mau presságio do café precipitado à mesa minutos antes…

Amor, eis uma palavra que, à semelhança de muitos remédios, tornou-se um genérico, a ponto de ter sido desvirtuado de seu sentido original, o eros platônico, “apropriado” depois, em certo sentido, pelo amor cristão. O contrário de amar não é só odiar, mas usar e, na medida em que se usa, abusa-se e transforma-se o sujeito em objeto. Numa cultura utilitarista como a nossa, viramos produtos aptos para “consumo imediato”: sem “prazo de vencimento” etário.

A resultante, ao invés de uma verdadeira felicidade, entendida como a realização de si, é um misto de solidão e de vazio. O amor perdeu a gratuidade da entrega e as pessoas “amam” por desejo de ter um amor que não sentem mais. O amor não tem mais um porto seguro. Não tem mais essa do sacrifício pelo outro. Embriagado, foi largado na primeira esquina em que se deparou, ao lado de outros estranhos: o individualismo, o relativismo e a mediocridade.

Não se diz mais “Deus, quanto amei!”, mas “Deus, nem sei quantas (os) amei!”. O amor passa a buscar um domínio, bem aburguesado, em duas edições da revista “Caras”: na primeira, casa-se num castelo construído na Alta Idade Média; na segunda, supera-se o trauma da separação numa ilha ou num resort bem moderninho.

Esse é o quadro do amor contemporâneo, um amor eterno enquanto dura: o cético amor do mais cantado poeta das nove mulheres. É o  amor em que não há espaço para a vontade, porque os afetos usurparam seu lugar. Mas sabemos que o amor vive da prosa da incompletude e isso justifica a poesia da entrega em prol de uma outra revolução, a revolução do amor.

Para isso, audácia e comprometimento serão precisos, porque, hoje, vivemos menos de amor constante e mais de sexo volátil. Aliás, tão volátil como os perfumes que nossa vítima oferece aos clientes. Pena que, ao que parece, ela tenha volatilizado a si mesma, quando seu propósito comigo teve o inconfundível aroma de alguém que encara o outro como uma forma de preencher um vazio existencial. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 11.02.2015, Página-A2, Opinião.