A vítima da loja de perfumes

Opinião Pública | 11/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Voltei das férias com muitas estórias de viagem em família que dariam várias crônicas. Três em especial. Mas, infelizmente, ficarão para uma outra oportunidade. Preciso, antes, dirigir-me à uma boa e desconhecida pessoa que andou a confundir alhos com bugalhos ou, melhor dizendo, deu a entender que sua alma é uma prateleira repleta de perfumes. Masculinos.

Conduzia uma audiência criminal, algo que não fazia há uns oito anos. Olhei a pauta e, logo em seguida, derrubei um pouco de café na mesa, sem grandes alagamentos de papel. Se fosse um pretor romano, isso seria um mau presságio dos deuses e, muito provavelmente, eu me levantaria, daria por encerrado os trabalhos forenses e iria embora. Detive-me por uns instantes nesse pensamento, dei uma risada sozinho e prossegui. Mal sabia eu que os deuses me preparavam.

Comecei a primeira audiência: roubo à mão armada de uma famosa loja de perfumes, cujos produtos vivem nos catálogos que, vez ou outra, dividem – com os autos dos processos – os espaços das mesas de muitas escreventes que conheço. Ouvi a vítima que, aos soluços, parecia estar em choque existencial diante de sua narração dos fatos. Quem já teve uma metralhadora apontada para a cabeça, como eu já tive por algumas horas, entende a situação. No momento em que solicitei o reconhecimento visual do acusado, o choque quase foi convertido em síncope. Suspendi a audiência por alguns minutos, pedi que lhe trouxessem uma água e até o defensor deu umas balas refrescantes para a vítima, que logo se recuperou.

Depois, ouvi as testemunhas, interroguei o réu e terminei a audiência. Meu telefone celular tocou e ausentei-me do recinto para atender a ligação, justamente no corredor onde a vitima aguardava, junto com as demais testemunhas, para assinar seus depoimentos. Terminei a ligação e retornei para a sala de audiências, quando fui surpreendido pela vítima que, de inopino, perguntou se eu teria algum compromisso aquela noite.

Olhei para ela e disse que não tinha compromisso, mas que já era compromissado diuturnamente há muitos anos. Ainda lhe sugeri que buscasse um verdadeiro amor. Ela deu um sorriso, falou ter gostado do que ouvira, mas replicou ainda não estar aberta a compromissos. Então, respondi que, diante disso, seria melhor para ela buscar alguém mais novo, porque, contando com quarenta anos, não teria mais disposição física para as maratonas sexuais que ela quixotescamente parecia almejar.

Voltei para minha sala imediatamente e, nos intervalos das audiências que se sucederam, vi-me obrigado a rascunhar este artigo, a partir de um inusitado fato forense: senti-me como um romano, castigado pelos deuses, por ter ignorado o mau presságio do café precipitado à mesa minutos antes…

Amor, eis uma palavra que, à semelhança de muitos remédios, tornou-se um genérico, a ponto de ter sido desvirtuado de seu sentido original, o eros platônico, “apropriado” depois, em certo sentido, pelo amor cristão. O contrário de amar não é só odiar, mas usar e, na medida em que se usa, abusa-se e transforma-se o sujeito em objeto. Numa cultura utilitarista como a nossa, viramos produtos aptos para “consumo imediato”: sem “prazo de vencimento” etário.

A resultante, ao invés de uma verdadeira felicidade, entendida como a realização de si, é um misto de solidão e de vazio. O amor perdeu a gratuidade da entrega e as pessoas “amam” por desejo de ter um amor que não sentem mais. O amor não tem mais um porto seguro. Não tem mais essa do sacrifício pelo outro. Embriagado, foi largado na primeira esquina em que se deparou, ao lado de outros estranhos: o individualismo, o relativismo e a mediocridade.

Não se diz mais “Deus, quanto amei!”, mas “Deus, nem sei quantas (os) amei!”. O amor passa a buscar um domínio, bem aburguesado, em duas edições da revista “Caras”: na primeira, casa-se num castelo construído na Alta Idade Média; na segunda, supera-se o trauma da separação numa ilha ou num resort bem moderninho.

Esse é o quadro do amor contemporâneo, um amor eterno enquanto dura: o cético amor do mais cantado poeta das nove mulheres. É o  amor em que não há espaço para a vontade, porque os afetos usurparam seu lugar. Mas sabemos que o amor vive da prosa da incompletude e isso justifica a poesia da entrega em prol de uma outra revolução, a revolução do amor.

Para isso, audácia e comprometimento serão precisos, porque, hoje, vivemos menos de amor constante e mais de sexo volátil. Aliás, tão volátil como os perfumes que nossa vítima oferece aos clientes. Pena que, ao que parece, ela tenha volatilizado a si mesma, quando seu propósito comigo teve o inconfundível aroma de alguém que encara o outro como uma forma de preencher um vazio existencial. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 11.02.2015, Página-A2, Opinião.