Com frequência se tem visto nos debates públicos a tentativa de deslegitimar certas opiniões e concepções éticas e morais, em razão da sua vinculação ou inspiração religiosa, especialmente cristã, sob a alegação de que estas posições seriam contrárias ao princípio do Estado laico. Recentemente este argumento tem sido enfrentado pelos tribunais pátrios em temas como o ensino religioso nas escolas públicas, o direito ao aborto, a criminalização da chamada “homofobia”, a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos, entre tantos outros. Trata-se de uma visão distorcida da laicidade estatal prevista pela Constituição brasileira e pela grande maioria dos países do mundo ocidental, que se traduz numa violação à liberdade religiosa.
Para compreender esta questão é preciso notar que a laicidade significa que a ordem política e a ordem religiosa não se confundem, são autônomas e, portanto, não pode haver confusão entre estas esferas, nem a intromissão direta de uma esfera na outra. De outro lado, o Estado deve manter uma imparcialidade diante das religiões, garantindo que os seus cidadãos sejam livres para professar a fé que desejam. É este o sentido legítimo da separação entre Estado e Igreja, o que não significa, de modo algum, uma ruptura e hostilidade do Estado em relação à religião ou o fechamento do âmbito social, político e cultural à transcendência.
A autonomia entre estas duas realidades não impede que possam e devam cooperar para que o bem comum, tanto temporal, quanto espiritual, seja alcançado. Neste sentido, o Estado deve reconhecer a religião como um fenômeno enriquecedor da vida social, com uma postura de valoração positiva e comprometida, inclusive com relação às suas expressões públicas, e não apenas com uma atitude de aceitação e tolerância. Por isso, toda manifestação de laicismo radical, que pretenda que a religião fique confinada no interior dos templos e das consciências, sem qualquer repercussão na vida pública, não é compatível com a ordem democrática.
Este laicismo se sustenta a partir de uma ideia de suposta “neutralidade”, como artifício para garantir um espaço privilegiado no debate público, quando, na verdade, se fundamenta em concepções da vida e do mundo que não são absolutamente neutras. Pelo contrário, refletem opções específicas, comprometidas com certas ideologias e postulados ético-filosóficos e que têm a pretensão de guiar o destino da sociedade, baseado, às vezes de forma velada, na negação da existência de Deus ou da possibilidade de conhecê-Lo, bem como na inexistência de uma lei moral de valor absoluto. Trata-se de uma rejeição da religião que, em certo sentido, é também uma atitude religiosa e que se traduz, muitas vezes, em um verdadeiro fundamentalismo laico, incompatível com a liberdade religiosa.
Em um regime de legítima laicidade, ao contrário, todos os cidadãos têm direito a expressar publicamente as suas opiniões, sem criar uma ruptura forçada à natural continuidade que existe entre as convicções pessoais e a vida política e social, que atinja exclusivamente os religiosos. Por outro lado, embora o Estado deva ser imparcial diante da pluralidade de opiniões, isto não significa que deva forçar um pluralismo desde cima, de forma planificada, que garanta a todas as convicções uma participação com igualdade assegurada, como se todas possuíssem um mesmo peso social e idêntica influência cultural. Estamos diante de um Estado imparcial, mas a serviço de uma sociedade que não é neutra e que não tem porque ver neutralizadas as suas convicções e a sua própria identidade, valores e tradições.
No caso do Brasil, sua história e cultura estão profundamente marcadas pela presença da religião, especialmente do cristianismo e, atualmente, a grande maioria da população professa a fé cristã. Portanto, é perfeitamente legítimo e natural que as instituições e as leis que regem a sociedade brasileira sejam um reflexo dos valores e convicções profundamente enraizados no seu povo. Impedir este influxo sob a alegação de violação do Estado laico, além de violar a liberdade religiosa, cria um perigoso risco a ordem democrática, pois o Estado deixar de servir à sociedade, para se tornar um poder arbitrário, que conduz os destinos da nação ao sabor de interesses e ideologias dos que ocupam os cargos políticos, como se estes nada devessem ao povo que representam.
João Marcelo Sarkis, bacharel pela Faculdade de Direito da USP, analista jurídico do Ministério Público, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.
e-mail: joaosarkis@gmail.com
Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, Edição de 19 de junho de 2019, Página A2 – Opinião.