Neo-jacobinos


No último mês, juntamente com um colega de toga, organizamos um evento sobre ideologia de gênero e um dos momentos mais curiosos foi ter ouvido, de outra pessoa envolvida na organização, se o perfil conservador do palestrante não atrairia uma turbamulta enlouquecida de alunos de graduação de humanas, ávidos por invadir o ambiente do evento e impedir sua realização. Eu respondi com uma pergunta: “Liberdade de expressão é fazer calar quem pensa diferente?”.

Há tempos, ando meio farto da deterioração da liberdade de expressão. Formas disfarçadas de censura, silêncio obsequioso, avisos de conteúdo (“trigger warnings”), espaços seguros (“safe spaces”) e uma série de expedientes autoritários que, no fundo, apontam para uma séria crise do pensamento, pois as autoridades intelectuais passaram a definir para todos a “única pauta correta” na reflexão das questões sociais que nos assolam.

Liberdade de expressão, para esses neo-jacobinos, não representa a possibilidade de escutar ideias distintas, tantas vezes incômodas, e, logo em seguida, abrir o diálogo. Significa, em nome da “tolerância e da diversidade”, acantonar esses “desajustados ideológicos” nas catacumbas do silêncio no debate público.

À primeira vista, nada é mais oposto à tolerânia e à diversidade do que ver um bando de crianças histéricas, filhotes intelectuais daqueles neo-jacobinos, carregando faixas de repúdio e proibindo a expressão de terceiros. Se eu fosse o dito palestrante, levaria umas fraldas e umas mamadeiras, no meio do notebook e dos livros, para distribui-las como bônus para a clientela na plateia.

Também é curioso notar que o liberalismo político conduziu muitos de nós, em muitas pautas sociais, ao mais puro fanatismo ideológico, cujas ideias, por mais toscas, pedestres e limitadas que pareçam, foram alçadas à condição de dogmas no credo político rezado pela turma neo-jacobina.

Para alguns estudiosos, esse crescente fenômeno consiste no triunfo do “hiper-liberalismo”, em outras palavras, o império do liberalismo moderno levado às últimas consequências. Um desses estudiosos, ao explicá-lo, vale-se de Mill, em sua principal obra sobre a liberdade, a qual, segundo ele, teria operado uma crucial virada de entendimento sobre o próprio conceito de liberdade.

Até Mill, a liberdade indicava um campo de autonomia face à lei ou à coação alheia. Depois dele, essa noção de liberdade negativa ganhou contornos positivos: o homem livre é o homem senhor de uma vontade imaculada pelas contigências históricas e culturais. Em bom português, minha identidade dispensa a opinião de terceiros ou de qualquer outra forma de autoridade.

Hoje, vivemos essa noção de liberdade no limite, porque essa auto-estultificação da identidade individual chegou ao centro da hierarquia de valores na qual sempre procuramos viver e, como efeito, tudo o que representava o outro, a autoridade ou a tradição foi despachado para a periferia.

Esse projeto de maximização libertária tem dois efeitos destrutivos. No primeiro, aquilo que nos torna diversos não é uma identidade construída sobre o nada. Somos seres narrativos com história e papéis que nos precedem, os quais transportamos para a identidade que construímos e que nos torna irrepetíveis.

No segundo, a adoração da liberdade como autonomia radical converte-se, ironicamente, numa forma de pensamento único. Surgem as hordas marcadas pela bovinidade intelectual e o hiper-liberalismo converte-se em religião secular: pensar diferentemente deixa de ser uma decorrência natural de seres plurais e racionais e passa a ser uma heresia que ofende os prosélitos dessa nova igreja. Em nome da liberdade, acaba-se com a liberdade.

A reflexão sobre os problemas sociais é construída por todos mediante a prática das virtudes da humildade intelectual, da abertura cognitiva ao outro e, sobretudo, do amor à verdade. Quando vividas, tais excelências nos dispõem a escutar com atenção e respeito àqueles que discrepam daquilo em que acreditamos.

O mesmo Mill, um dia, ensinou-nos que reconhecer a possibilidade de que alguém possa estar no erro é razão suficiente para escutá-lo e levá-lo a sério e não somente tolerar de má vontade os pontos de vista discordantes. E, para quem se julga estar certo, essa atitude de escuta serve para aprofundar sua postura argumentativa e melhorar sua capacidade de defendê-la. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 13/06/2018, Página A-2, Opinião.