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Livre para nascer

Opinião Pública | 19/09/2018 | | IFE CAMPINAS

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Não faz muito tempo que, num dia de plantão judiciário, um casal fez um pedido de alvará para abortar um feto que portava síndrome de Down, diagnosticada umas semanas antes pelo médico. Antes de proferir a decisão, resolvi ouvir os cônjuges que, aliás, eram bem diferentes: ele era filho de catalães e ela era neta de argelinos, uma diversidade que me chamou a atenção e que costuma presentear a família com filhos repletos daquela beleza moura que costumamos assistir nos filmes de época. Ponderei as reais razões do casal e tomei a decisão logo em seguida.

Nossa sociedade levantou a bandeira da aceitação das diferenças, da integração das minorias e da inclusão social dos menos capacitados. Aliás, nesse ponto, referir-se a alguém como um inválido é motivo de repreensão pela patrulha politicamente correta. Independentemente disso, de fato, esta expressão nunca me agradou, pois sempre leva um conta um certo viés utilitarista do indivíduo no seio social: o sujeito tem uma invalidez permanente e, logo, não serve socialmente.

Todos temos algo para aportar para os outros, mas, ao que parece, nossa sociedade está cada vez mais insensível para a exclusão pré-natal de quem não porta uma “normalidade” genética, principalmente de natureza irreversível. Não adianta reclamar. Começamos com a tal “autorização para interrupção pré-natal de feto anencefálico” e caminhamos, a passos firmes, para outros tipos de “autorizações”, todas, em bom português, espécies do gênero aborto eugênico.

No fundo, há uma clara intolerância social para fetos que não gozem de boa saúde genética. Os dados estatísticos de tais “autorizações” que bem poderiam ser chamados de “alvarás judiciais para matar”, crescem no mundo todo e estima-se, segundo estudos acadêmicos, que, na Europa, a taxa de rejeição de fetos com síndrome de Down esteja na casa de 80-90% dos casos. Considerando que esse fetos viram detritos hospitalares, as lixeiras de muitos hospitais mais se assemelham a terríveis cemitérios. E, os europeus, que já repugnavam os imigrantes, agora, repugnam a si mesmos.

É um pena, porque, se por um lado, os portadores de tal síndrome costumam ter problemas de saúde acima da média e incapacidade intelectual em algum grau, por outro, é certo que programas de estimulação precoce têm melhorado consideravelmente suas habilidades e os avanços científicos têm permitido uma sobrevida maior e mais saudável. Nada como a medicina em favor da vida e não a favor de “cortes genéticos” cada vez mais altos.

Nesse ritmo de assepsia social, os pais teriam direito à uma “descendência sã” e à tal “autorização para interrupção da gravidez” e, na mesma sociedade, paradoxalmente, seria esperado que as empresas contratassem os portadores dessa síndrome, porque, afinal, seus pais não tiveram o “insight” de tê-los abortado no momento certo.

A eugenia estatal parece-nos um medida totalitária, mas a eugenia privada vai se assentando como um direito que, enquanto não for assegurado pela lei, pode ser exercido com a chancela de um alvará judicial. É admirável o mundo novo que surge a partir dessa esquizofrenia social.

Então, vamos ser consequentes com essa lógica macabra: libere-se o aborto para as más formações fetais (atual estágio lógico) e, caso não detectadas na fase de gestação, libere-se o aborto pós-nascimento (próximo passo lógico), afinal, a causa é a mesma. Só mudaria o lugar do homicídio: no primeiro caso, seria no útero. No segundo, fora dele. Ademais, como “condenar” os pais a este infindável sofrimento de ter um filho com síndrome de Down, não é?

Sem dúvida, essa deificação da diversidade social não passa de um discurso politicamente correto, a fim de acomodar as minorias e os diferentes mais interessantes ou que falem mais alto no cenário social. O elogio à diversidade e a incorporação da prática privada da exclusão pré-natal, no caso aqui apresentado, são uma demonstração cabal das aspirações contraditórias de uma sociedade que quer deixar todas as saídas abertas.

A cultura do descarte, denunciada por Francisco, mostra, nessa estória, sua verdadeira face, tão verdadeira quanto a face da filha do casal do plantão, que apareceu outro dia no fórum, junto com seus pais, que me agradeceram pela decisão tomada naquele dia. Na verdade, fui eu quem agradeci, porque pude ver, em seus pequenos traços, aquela beleza moura que tanto suspeitava.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 19/09/2018, Página A-2, Opinião.

Pai-projetista, filho-projeto

Opinião Pública | 18/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Foi nas férias, quando, depois do jantar, dirigimo-nos para o hall principal do navio, a fim de assistir ao espetáculo de acrobacia com cabos e argolas suspensos. Como minha paciência nunca foi fã dessas piruetas cênicas, resolvi passear no mesmo deck com o filho de minha madrinha de casamento. Um senhor observava  o trabalho que tinha para “domar” o menino, que é autista, e veio ao meu socorro. Agradeci sua intervenção. Conversamos sobre o menor e, logo em seguida, ponderou que, como médico, acreditava que o futuro da medicina passava pela melhoramento genético da espécie. Dessa forma, os filhos nasceriam sem doenças. Seriam perfeitos.

Sempre que ouço afirmações desse naipe, costumo ficar mudo: um turbilhão de coisas passa pelo mundo das minhas ideias e, não raro, sou capaz de deixar meu interlocutor falando sozinho até me recompor dessa avalanche. Então, deixo de ser platônico e torno-me empiricamente aristotélico. Em outras palavras, volto a usar os sentidos e retomo a comunicação. Naquele dia, lembrei da notícia do dia anterior sobre o “bebê de três pais” e apenas respondi que a ideia não me agradava muito, porque deixaria de ser pai para ser projetista. E, como efeito, não teria um filho, mas um “projeto biológico”.

O problema dessa mentalidade eugenésica é que, no âmbito da natureza humana, ela representa uma espécie de triunfo unilateral da intenção deliberada sobre o dado inato, da manipulação sobre a reverência e do moldar sobre o contemplar. Ninguém ama a doença e, com exceção de casos patológicos, ninguém também deseja morrer, tanto que vivemos e nos cuidamos como se fôssemos eternos. Mas esse não é o ponto. São outros dois.

O primeiro é que, sem as “anomalias genéticas”, a vida não teria qualquer valor em si mesma. Bastaria aos pais, no momento dos exames pré-natais, reprogramar geneticamente o filho, a fim de imunizá-lo desta ou daquela síndrome. Mas, nessa gôndola do mercado da engenharia genética, surgirão inevitavelmente outros produtos mais “elaborados” para o consumo paterno: altura de padrão nórdica, beleza de deus grego, físico de triatleta olímpico ou inteligência de nível alemão. Seria uma espécie upgrade genético para o tal “projeto biológico”.

O segundo diz respeito aos pais-projetistas. Num mundo em que, desde Descartes, prezamos o domínio e o controle, a experiência materna/paterna é uma escola de humildade. O fato de nos importarmos com nossos filhos, mas não podermos escolher o tipo de filhos que queremos, ensina aos pais uma postura de abertura ao imprevisível. Essa postura convida-nos a tolerar o inesperado, viver com o dissonante, ponderar esse impulso de controle absoluto e fomentar a consciência de que nossos talentos devem ser dons inatos, em relação aos quais já nascemos endividados.

Quanto mais nos vemos como mestres soberanos das cargas genéticas de nossos filhos, maior o fardo que carregaremos pelos talentos e pelos desempenhos deles no porvir. A responsabilidade pela escolha desse e não daquele “pacote genético” recairá sobre os nossos ombros. Seremos julgados pelos nossos filhos e muita culpa será atirada em nossa direção. Um dominio, antes marcado pelo acaso genético, terá se tornado uma espécie de arena de escolhas à la carte.

Admito que essa tentação prometeica, não só na experiência parental, é contagiosa, porque ela perturba aquela série de dimensões da natureza humana, hoje sobrepujadas pelo império do utilitarismo científico e da racionalidade instrumental. Então, sugiro, como contramedida, aos pais, amor incondicionado ao invés de condicionamento genético.

Convém recordar que a noite é sempre mais escura logo antes do amanhecer e, logo, nós, pais, perceberemos que, na condução dessa música vital, não podemos deixar nos levar por um excesso ansioso de maestria. Afinal, como reza o ditado popular, ninguém é perfeito. Seja nato ou projetado. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 18.02.2015, Página-A2, Opinião.