Foi nas férias, quando, depois do jantar, dirigimo-nos para o hall principal do navio, a fim de assistir ao espetáculo de acrobacia com cabos e argolas suspensos. Como minha paciência nunca foi fã dessas piruetas cênicas, resolvi passear no mesmo deck com o filho de minha madrinha de casamento. Um senhor observava o trabalho que tinha para “domar” o menino, que é autista, e veio ao meu socorro. Agradeci sua intervenção. Conversamos sobre o menor e, logo em seguida, ponderou que, como médico, acreditava que o futuro da medicina passava pela melhoramento genético da espécie. Dessa forma, os filhos nasceriam sem doenças. Seriam perfeitos.
Sempre que ouço afirmações desse naipe, costumo ficar mudo: um turbilhão de coisas passa pelo mundo das minhas ideias e, não raro, sou capaz de deixar meu interlocutor falando sozinho até me recompor dessa avalanche. Então, deixo de ser platônico e torno-me empiricamente aristotélico. Em outras palavras, volto a usar os sentidos e retomo a comunicação. Naquele dia, lembrei da notícia do dia anterior sobre o “bebê de três pais” e apenas respondi que a ideia não me agradava muito, porque deixaria de ser pai para ser projetista. E, como efeito, não teria um filho, mas um “projeto biológico”.
O problema dessa mentalidade eugenésica é que, no âmbito da natureza humana, ela representa uma espécie de triunfo unilateral da intenção deliberada sobre o dado inato, da manipulação sobre a reverência e do moldar sobre o contemplar. Ninguém ama a doença e, com exceção de casos patológicos, ninguém também deseja morrer, tanto que vivemos e nos cuidamos como se fôssemos eternos. Mas esse não é o ponto. São outros dois.
O primeiro é que, sem as “anomalias genéticas”, a vida não teria qualquer valor em si mesma. Bastaria aos pais, no momento dos exames pré-natais, reprogramar geneticamente o filho, a fim de imunizá-lo desta ou daquela síndrome. Mas, nessa gôndola do mercado da engenharia genética, surgirão inevitavelmente outros produtos mais “elaborados” para o consumo paterno: altura de padrão nórdica, beleza de deus grego, físico de triatleta olímpico ou inteligência de nível alemão. Seria uma espécie upgrade genético para o tal “projeto biológico”.
O segundo diz respeito aos pais-projetistas. Num mundo em que, desde Descartes, prezamos o domínio e o controle, a experiência materna/paterna é uma escola de humildade. O fato de nos importarmos com nossos filhos, mas não podermos escolher o tipo de filhos que queremos, ensina aos pais uma postura de abertura ao imprevisível. Essa postura convida-nos a tolerar o inesperado, viver com o dissonante, ponderar esse impulso de controle absoluto e fomentar a consciência de que nossos talentos devem ser dons inatos, em relação aos quais já nascemos endividados.
Quanto mais nos vemos como mestres soberanos das cargas genéticas de nossos filhos, maior o fardo que carregaremos pelos talentos e pelos desempenhos deles no porvir. A responsabilidade pela escolha desse e não daquele “pacote genético” recairá sobre os nossos ombros. Seremos julgados pelos nossos filhos e muita culpa será atirada em nossa direção. Um dominio, antes marcado pelo acaso genético, terá se tornado uma espécie de arena de escolhas à la carte.
Admito que essa tentação prometeica, não só na experiência parental, é contagiosa, porque ela perturba aquela série de dimensões da natureza humana, hoje sobrepujadas pelo império do utilitarismo científico e da racionalidade instrumental. Então, sugiro, como contramedida, aos pais, amor incondicionado ao invés de condicionamento genético.
Convém recordar que a noite é sempre mais escura logo antes do amanhecer e, logo, nós, pais, perceberemos que, na condução dessa música vital, não podemos deixar nos levar por um excesso ansioso de maestria. Afinal, como reza o ditado popular, ninguém é perfeito. Seja nato ou projetado. Com respeito à divergência, é o que penso.
André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).
Artigo publicado no jornal Correio Popular, dia 18.02.2015, Página-A2, Opinião.