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Ventos do leste: a participação de católicos e ortodoxos na política ucraniana (por Tarcísio Amorim)

Política e Sociologia | 09/04/2015 | | IFE RIO

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Em novembro de 2013, uma crise teve início na Ucrânia quando protestos contra a decisão do presidente Viktor Yanukovych de suspender os planos de um acordo comercial com a União Europeia suscitou uma escalda de acontecimentos que resultou na derrubada do governo. De acordo com o Yanukovych, uma associação com a UE não seria vantajosa visto que a dependência de recursos energéticos dos países do eixo oriental (Rússia, Belarus e Cazaquistão) não seria compensada pelos níveis de exportações para os países ocidentais. Apesar da insistência em reafirmar as bases econômicas da medida, tal evento deflagrou uma série de manifestações nas quais clamores evocando uma identidade europeia evidenciaram que um conflito cultural também estava em jogo.

Com a escalada da violência nos protestos o parlamento votou pela descontinuidade do governo, levando Yanukovych a deixar o país. Tal fato, porém, contribuiu para que uma nova crise se instaurasse em algumas províncias orientais onde a população de fala russa ainda predomina. Após a tomada da Crimeia pelas forças do Kremlin, Donetsk e Luhansk têm estado sobre intervenção do exército ucraniano desde Abril de 2014, quando grupo locais declararam independência à Kiev.

Em meio às disputas étnicas que persistem nos discursos e nas decisões acerca de políticas nacionais, ora enfatizando uma identidade ucraniana com um governo em moldes ocidentais ora uma visão histórica de uma cultura pan-eslávica em linha com o modelo Russo, outro fator tem se mostrado relevante na definição indenitária dos cidadãos ucranianos: a religião. Imagens de sacerdotes intercedendo junto aos protestos, bem como o uso de igrejas como hospitais e ponto de apoio, além de discursos e intervenções de lideranças religiosas desde o início da crise evidenciam a força social que Igrejas e comunidades religiosas tem ajudado a fomentar naquele país. Nesse artigo, procuro demonstrar como ortodoxos e católicos, as duas maiores confissões em número de adeptos no país, tendem a estabelecer padrões de identidade cultural que afetam as relações étnicas nessa república pós-soviética.

 

Raízes históricas do conflito

Em 1991 a Ucrânia tornou-se independente, criando suas próprias instituições políticas, moeda e sistema bancário. Mesmo assim, os longos anos do regime comunista parecem ter influenciado na estruturação de sua economia política já que, com as privatizações altamente restringidas e licenças para a condução de negócios ainda concentradas no corpo executivo, o país construía seu sistema político pautado no verticalismo soviético, criando um aparelho burocrático no qual antigas oligarquias acumulavam poder político e econômico.

Nos primórdios da republica ucraniana, Vyacheslav Chornovil candidatou-se a presidência visando introduzir reformas no sistema político em linha com o projeto de Lech Wałęsa na Polônia. O vendedor, porém, foi Leonid Kravchuk, um ex-membro do Conselho Legislativo da Ucrânia Soviética, que era controlado pelo Partido Comunista. Kravchuk procurou manter o centralismo político com uma constituição que provia fortes poderes ao braço executivo, enquanto estendia sua influência sobre o setor legislativo e judiciário aproveitando-se das brechas e inconsistências que a Carta Magna trazia.

Os poderes presidenciais tornaram-se ainda mais fortes quando, seguindo a vitória de Leonid Kuchma em 1994, uma nova constituição garantiu-lhe o poder de nomear todos os membros do Gabinete executivo, com exceção do primeiro-ministro, e os líderes regionais. Kuchma fora diretor de uma fábrica de misseis no regime soviético e favoreceu os laços com o Kremlin.

Com a consolidação das estruturas verticais do sistema político ucraniano, o país permaneceu por muito tempo sob o controle dos oligarcas que muitas vezes detinham assentos no parlamento e controlavam os partidos políticos. Em meio a escândalos de corrupção, assassinatos de motivação política, e manobras do executivo sobre os outros poderes um novo movimento surgia com força na década de 2000 demandando transparência e democratização das estruturas de poder. Nas eleições presidenciais de 2004 a vitória de Viktor Yanukovych, um candidato pro-Rússia do Partido das Regiões, sob suspeitas de fraude deu início a uma série de protestos liderados por Viktor Yushchenko e Yuliya Tymoshenko, dois líderes favoráveis à reforma política e à aproximação da Ucrânia com a União Europeia. Apelidada de Revolução Laranja, as manifestações contribuíram para que a Suprema Corte anulasse o primeiro resultado e promovesse uma nova disputa eleitoral. Dessa vez, o saldo dava a vitória a Viktor Yushchenko com 52% dos votos, contra 44% de Yanukovych. Pela primeira vez o nome Maidan era usado como símbolo revolucionário a partir de Kiev.

Ainda assim, com as eleições legislativas de 2006, divergências no Parlamento entre o Partido das Regiões e o Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT) levaram a um impasse sobre a possibilidade de obtenção da maioria prevista para que as reformas constitucionais fossem implementadas. Viktor Yanukovych subira ao cargo de primeiro-ministro e os círculos de empresários, liderados por Petro Poroshenko, correligionário de Yushchenko no partido Nossa Ucrânia (e atual presidente do país), demandavam uma aliança com o Partido das Regiões – o que era visto como uma traição dos ideais da revolução pela extrema-direita[i]. Somado a isso, desentendimentos entre Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko ajudaram a dividir ainda mais o Parlamento, acentuando o clima de instabilidade política. Como a constituição ucraniana prevê a possibilidade de novas eleições no caso de um fracasso na formação das coalizões parlamentares, as partes envolvidas concordaram em convocar um novo sufrágio a se realizar em setembro de 2007.

Dessa vez, Yuliya conseguiu fazer Yushchenko concordar com uma “Coalizão Laranja”, dando aos líderes da revolução uma ligeira maioria no Parlamento, com a união do ByuT com o Nossa Ucrânia, reforçada ainda pelo Bloco Lytvyn, de orientação centrista. Tymoshenko, por sua vez, acendia ao cargo de primeiro-ministro, confirmando o governo revolucionário. A aliança ainda era frágil pois ao deixar o Partido das Regiões na oposição os “Laranjas” não conseguiriam obter os 301 votos necessários para emendar a constituição. Em todo caso, ela representou uma vitória temporária da Revolução ao consolidar o domínio do Parlamento combinado com as duas principais posições do executivo.

Tal cenário não se estabeleceu por muito tempo, pois o governo de Yushchenko foi extremamente marcado por intrigas e escândalos de corrupção que acabaram minaram sua base aliada. Em 2010, Viktor Yanukovych derrotou Yuliya Tymoshenko nas eleições presidenciais, restabelecendo os círculos de poder em torno das estruturas oligárquicas estabelecidas e, mais tarde, suspendendo os planos em prol de um tratado comercial com a UE.

Como se percebe, a história política ucraniana tem sido caracterizada por instabilidades na base de poder, propiciada por um sistema constitucional que facilita as ligações entre elites empresárias e o poder público, além das clivagens entre os cidadãos do país, que até recentemente tinham atitudes ambivalentes em relação ao modelo político a ser adotado.

 

Religião e política na Ucrânia

Os ucranianos, assim como os Bielorrussos e por vezes os poloneses, eram chamados de Rutênios até o princípio do século XX. Herdado do mesmo termo que costumava designar as origens comuns dos povos eslavos (“Rus”), este nome fora usado em contraposição a Rossiya, especificamente aplicado aos Russos. Rutênia Vermelha era o antigo nome atribuído à Ucrânia Ocidental, enquanto Rutênia Branca, ou Bielo-Russia, deu origem a Belarus. Após a capitulação dos Mongóis, a Ucrânia ficou sob o domínio da Polônia e da Lituânia e isto contribuiu para que eles desenvolvessem uma cultura própria, marcada por diferenças linguísticas e sensibilidades diversas. De todo modo, compartilhando os mesmos mitos de origem e percebendo-se como herdeiros da mesma linhagem eslava, as fronteiras culturais entre a Ucrânia e a Rússia por muito tempo permaneceram fluidas, enquanto Kiev continuava politicamente atrelado às nações vizinhas até o final da era soviética.

Anne Applebaum sublinha que a religião poderia particularmente ter impactado no fortalecimento das fronteiras entre os dois povos. Como ela reconhece, os Ucranianos do ocidente praticavam uma religião distinta, caracterizada por uma espiritualidade bem especifica que se baseava em ritos orientais mas ainda mantinha laços com Roma[ii]. A Igreja Católica Grega surgiu pela União de Brest em 1596, quando a Ucrânia ainda estava sob o governo polonês, e tais laços dos católicos orientais com o Ocidente devem ser levados em conta na análise das relações étnicas entre ucranianos e russos.

No presente, os ortodoxos do Patriarcado de Kiev constituem cerca de 50,4% da população da Ucrânia, seguido daqueles fiéis ao Patriarcado de Moscou, com 26,1%. Os católicos gregos vêm em seguida com 8%, enquanto outros ortodoxos, católicos latinos, protestantes e judeus compõem 7.2%, 2.2%, 2.2% e 0.6%, respectivamente[iii].

Embora fiéis de outras religiões têm tido uma posição ativa nos recentes eventos que vêm definindo o cenário político na Ucrânia, ortodoxos e católicos somam mais de 90% da população do país e suas tradições históricas marcam a herança nacional de modo particular.

O Patriarcado de Kiev foi formado após um cisma com o Patriarcado de Moscou, seguindo a queda da União Soviética e a independência da Ucrânia. Reivindicando mais autonomia para a Igreja de Kiev, o Patriarca Filaret Denysenko, até então responsável pelo Patriarcado Russo na Ucrânia, afastou-se de seus pares e buscou implantar uma Igreja em linhas nacionais com o apoio do presidente Leonid Kravchuk, acima mencionado. O Patriarcado de Moscou não reconheceu tal separação e a Igreja Ortodoxa Ucraniana é até hoje considerada um órgão autocéfalo e ilegítimo de acordo com o direito canônico da Comunhão Ortodoxa.

Por sua vez, a presença dos católicos gregos, especialmente na Ucrânia ocidental, tem sido de maior importância para o entendimento de padrões sociais de comportamento político no país. Durante o período comunista, a Igreja Greco-Católica foi proibida nos territórios da URSS, enquanto seus membros eram perseguidos pelos líderes soviéticos. Após a Guerra Fria, a Igreja católica na Ucrânia experenciou um reavivamento religioso, que vai bem além do aspecto meramente espiritual. Agindo como um centro de disseminação intelectual em associação com instituições europeias nos arredores de Lviv, seu clero teve uma especial participação nos protestos que marcaram a Revolução Laranja, bem como da recente comoção chamada de “Revolução Euromaidan”. Como pontuou o Arcebispo Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica ucraniana, seus proponentes não eram “nacionalistas radicais” mas sim defensores de uma Ucrânia “livre, democrática e Europeia”[iv].

É importante sublinhar que os conflitos entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e o Patriarcado de Moscou tem sido um fator decisivo na aliança da primeira com a Igreja Greco-Católica no que diz respeito à promoção dos valores nacionais contra a influência do Kremlin. Com efeito, o clero de Kiev tem rejeitado o conceito de “Russkiy Mir” (Mundo Russo), avançado pela Igreja de Moscou como uma visão teológica de um universalismo eclesiástico centrado no mito de uma civilização eslava sob a liderança da Rússia, da qual Ucrânia e Belarus seriam parte. Contra essa ideia, a Igreja de Kiev vem favorecendo uma concepção de cultura encarnada, na qual a imersão nas línguas e costumes locais são elementos essenciais do desenvolvimento da santidade. Como expressa o teólogo ortodoxo Dr. J. Buciora: embora a realidade contextual dos santos são sempre apresentadas em um prisma de transfiguração, esta “pressupõe sofrimentos, dores, lutas, e imagens de uma situação particular”[v]. É neste sentido que a vida dos santos Ucranianos torna-se inspiração para os féis e veículo de transformação.

De modo semelhante, a identificação dos greco-católicos com o legado da Igreja de Kiev propicia uma teologia enraizada nas tradições ucranianas e na experiência do passado. De acordo com o Bispo Borys Gudziak, antigo reitor da Universidade Católica de Lviv (a qual os ucranianos costumam referir-se como a única Universidade Católica do antigo mundo soviético), o objetivo da instituição é construir uma “nova síntese social, intelectual e teológica” do legado dos mártires ucranianos – o que John L. Allen classificou como uma teologia “nascida das catacumbas”[vi].

Embora, como veremos, os ortodoxos ficaram divididos com relação a um projeto político social nos primeiros anos da República, as tendências autônomas do Patriarcado de Kiev, especialmente na atual conjuntura política nacional, tem contribuído para unir Católicos e Ortodoxos na luta pela democracia. Como afirmou o Reverendo Cyril Hovorum, antigo responsável pelo Departamento de Relações Externas na Igreja Ortodoxa Ucraniana:

“Maidan, além de um importante evento civil, parece ter sido um importante evento religioso… Havia orações senso executadas todos dias de manhã e de noite. Foi um fenômeno religioso além de ter sido um fenômeno político e social, e também foi um evento ecumênico porque a revolução Maidan realmente uniu muitas Igrejas, muitos líderes que antes nunca tinham se comunicado uns com os outros”[vii].

 

O voto católico e ortodoxo nas eleições parlamentares de 2007

Dito isto, é valido analisar como Católicos e Ortodoxos tem se comportado politicamente com relação às disputas entre as coalisões pró-europeias e pro-russas. Como as informações sobre o atual cenário sócio-político ainda são escassas no país, tomo como ponto de referência os dados sobre votos para a coalizão laranja (liderada por Yuliya Tymoshenko e Viktor Yushchenko) e azul (liderada por Viktor Yanukovych pelo Partido das Regiões). Minha fonte é a pesquisa publicada pela Associação de Dados Arquivísticos de Religião, sob título de “International Social Survey Programme 2008: Religion III”[viii].

Tendo em conta os dados apresentados, eu combinei a variável relacionada à confissão religiosa e produzi dummies, isto é, novas variáveis na qual o valor 0 corresponde a um não-seguidor e 1 representa um seguidor. O mesmo foi feito com relação aos votos para a coalizão laranja e azul, com 0 para “não votou” e 1 para “votou”[ix]. A partir dos resultados obtidos pelos cálculos de software, eu executei uma regressão logística[x] para calcular a probabilidade estatística de um voto católico ou ortodoxo para as duas coalizões, que eu chamei pró-europeia (Pro-EUR) e pro-russa (Pro-RUS).

Como se observa, enquanto os votos de ortodoxos dão resultados próximos a 50% para cada coalizão, sem atingir o requisito mínimo de 95% de significância estatística[xi], os católicos favorecem massivamente os partidos associados à coalizão laranja, embora figurem em menor número na pesquisa (137 para 1270).

 

Regressão: Católico (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Católico              2.717***

(0.435)

Constante          -0.449***

(0.071)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.3896937

P[y=1|x=1] = 0.9062514[xii]

 

Por essa amostra, percebe-se a probabilidade de um voto pro-EUR sobe de aproximadamente 39% para 90% para o caso de o indivíduo ser católico. Este resultado é estatisticamente significante ao nível de 99% (p < 0.01).

Para ortodoxos, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (x = 1) – Voto EUR (y = 1)

=============================================

Ortodoxo           0.08487

(0.140)

Constante         -0.35004***

(0.112)

———————————————

Observações               898

Log Prob                    -577.532

Akaike Inf. Crit.          1,159.063

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.41337

P[y=1|x=1] = 0.43409[xiii]

 

Como se percebe, a probabilidade de um voto pro-EUR para ortodoxos é de 43%, e sobe apenas 2 pontos com relação a um voto de um não ortodoxo. Como se tratam de dummies e não há outras variáveis, o resultado para votos Pro-RUS é o inverso: aproximadamente 58% para não ortodoxos e 56% para ortodoxos.  De todo modo, como não há indicador de significância para a variável ortodoxo, isso quer dizer que a análise não atingiu o mínimo de 95% requerido, o que implica que a pesquisa não encontrou um padrão significativo no voto ortodoxo, impossibilitando uma apreciação acurada da margem de erro.

De todo modo, como religião é uma categoria que se sobrepõe a outros elementos a influenciar no resultado, pode-se adicionar variáveis de controle[xiv], visando um cálculo mais preciso do impacto da religião para o voto por meio da exclusão de outras variáveis. Uma delas é a região, pois se sabe que os ucranianos na parte ocidental do país tendem a votar em partidos ligados à UE, enquanto no Oriente os laços com o vizinho oriental são mais fortes, dada a concentração de cidadãos de fala russa naquelas regiões. Outra variável a ser controlada, é a visão política (esquerda ou direita), pois ao isolarmos seu efeito, pode-se verificar se a preferência partidária teve um papel fundamental no resultado ou se a religião é mesmo o principal fator a influenciar o voto. Por último, a renda pode ter um papel decisivo, pois sabe-se que o sistema oligárquico produzido pelas estruturas políticas ucranianas favorece as elites ligadas ao governo Russo. Como para todas as outras categorias, eu converti esse elemento em uma variável dummy, na qual cidadãos ganhando mais de 3200 UAH figuram como 1, e os outros como 0.

Para votos Pro-EUR, eu controlei para regiões de fala ucraniana (ocidente) e visão política de direita, enquanto para votos Pro-Russia eu controlei para regiões de fala Russa (oriente) e posicionamento de esquerda, visto que a maioria dos partidos da coalizão azul endossam uma identidade comunista e soviética. Com esse procedimento, obtemos o seguinte quadro:

 

Regressão: Católico (X=1) – Voto EUR (Y=1) + controles

=============================================

Católico              1.556***

(0.511)

Ocidente             2.376***

(0.182)

Direita                15.065

(538.018)

Renda 1              -0.507

(0.754)

Constante          -1.477***

(0.126)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -377.739

Akaike Inf. Crit.           765.477

=============================================

Nota:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.4107

P[y=1|x=1] = 0.7675[xv]

 

Como vemos, mesmo depois de controlar para região, visão política e renda, a probabilidade de um voto católico para a aliança laranja é de aproximadamente 77%, mais de 35% de diferença para não católicos (41,07%), e o resultado ainda é significativo a 99%.

Para ortodoxos e voto pro-Rússia, temos:

 

Regressão: Ortodoxo (X=1) – Voto pro-RUS (Y=1)  + controles

=============================================

Ortodoxo            0.269

(0.197)

Oriente               2.383***

(0.189)

Esquerda           17.171

(443.815)

Renda 1             0.415

(0.759)

Constante         -18.181

(443.816)

———————————————

Observações               756

Log Prob                    -358.342

Akaike Inf. Crit.          726.684

=============================================

Note:             *p<0.1; **p<0.05; ***p<0.01

 

P[y=1|x=0] = 0.1521

P[y=1|x=1] = 0.190149[xvi]

 

A probabilidade de um voto ortodoxo para um partido pro-Rússia sobe de aproximadamente 15% para 19% em relação a não ortodoxos, quando executamos o teste com as variáveis de controle. Há um decréscimo de aproximadamente 25% com relação à probabilidade de um voto Pro-RUS para ortodoxos quando não se controla para as outras variáveis (de 56,59% para 19%). Para católicos, o decréscimo é de aproximadamente 14% (de 90,62% para 76,75%), o que indica que a religião tem maior impacto no voto para católicos que para ortodoxos. Isso se percebe também pelo fato de que a região e outras variáveis têm maior peso na escolha de um partido pro-RUS, o que pode ser verificado pelo nível de significância de Oriente (99%) nessa regressão, sendo os outros elementos estatisticamente insignificantes.

Ainda assim, é possível perceber que a renda 1 (acima de 3200 UAH) influi positivamente para o voto pro-RUS e negativamente para o voto pro-EUR. O posicionamento político, por sua vez, é praticamente insignificante, dado o alto valor do erro padrão nas duas amostras (538.018 e 443.815), o que impossibilita uma generalização precisa a partir das respostas à pesquisa.

Considerações finais

A partir dessa análise, pode-se concluir que os católicos tenderam a votar massivamente para os partidos da aliança laranja nas eleições de 2007. Para os ortodoxos, porém, o teste mostra resultados ambivalentes, o que pode estar relacionado à própria indefinição cultural na qual a Ucrânia se insere, estando na fronteira entre a Europa e o mundo Russo. As variações na escolha do voto para os cidadãos ucranianos converge com a política de neutralidade endossada pelo clero da Igreja de Kiev nos anos que antecederam a revolução Maidan. Apoiada pela classe política ucraniana na época em que ainda era próxima aos aliados do Oriente, ela permaneceu distante da Europa, ainda que separada da Rússia. Os greco-católicos, pelo contrário, tendo construído sua identidade sobre os laços culturais com a Polônia e a Lituânia, o que também lhe valeu a perseguição sofrida durante o período soviético, vem sendo bem mais assertivos em seu posicionamento político. Como reconheceu o Reverendo Cyril Hovorun: “os greco-católicos, ou Católicos de rito Oriental leais a Roma, foram os que primeira e mais ativamente apoiaram os protestos”[xvii].

Em termos gerais, isso significa que os católicos na Ucrânia, ainda que constituindo uma minoria, têm demostrado um claro comprometimento com uma concepção democrata e cristã de governo, assinalando o impacto dos valores articulados pelas visões religiosas na percepção identitária e na escolha individual –  que adquire claramente um caráter comunitário. Por outro lado, os ortodoxos mostraram mais moderação em suas visões políticas, refletindo as condições culturais da sociedade ucraniana como um ponto de equilíbrio entre o Oriente e o Ocidente.

Apesar disso, a recente tomada da Crimeia e a atual crise no leste da Ucrânia são fatores que tendem a mudar esse cenário, já que a escalada da violência tem levado cada vez mais o clero ortodoxo e membros de outras religiões a apoiarem o movimento de democratização em termos patrióticos. Ademais, a interferência do Patriarcado de Moscou, com suas declarações contra o novo governo ucraniano e seus aliados, incluindo os Greco-Católicos e os Ortodoxos de Kiev, mais do que nunca tem sido interpretado no país como uma tentativa de deslegitimar não somente a autonomia e especificidade da Igreja de Kiev, mas também a soberania política do país, com uma visão pan-eslávica fundada no universalismo russo. Como Andrew Sorokowski sublinha:

Para Moscou, a própria ideia de uma Ucrânia é uma traição da unidade eslava oriental, enquanto a união que resultou na Igreja Greco-Católica é uma traição da solidariedade ortodoxa. A premissa de fundo é que Moscou é o árbitro e garantidor de ambas – como a capital tanto de uma única Igreja Russa como de um único “Mundo Russo”.

A Ucrânia, e sua Igreja Greco-Católica, desafia essa concepção. A Ucrânia como nação pressupõe o pluralismo étnico, cultural e nacional, em um mundo onde a unidade é fortalecida, não ameaçada, pela diversidade[xviii].                

Em meio aos protestos do Patriarca de Kiev[xix] contra o apoio do clero russo aos rebeldes no leste, e dada a queda substancial no suporte à liderança do Kremlin após sua intervenção militar no país[xx], é possível prever que o particularismo eclesiástico da Ucrânia deverá se desenvolver de modo a fortalecer seu ideário nacional, unindo católicos e ortodoxos e fazendo jus aos tradicionais laços entre religião e sociedade nesse país. Para as nações ocidentais, a visão dessa aliança pode servir de inspiração para lembrar aos europeus que o vigor da crença pode dar um novo alento à democracia, a fim de que não se perca na frieza de um legalismo burocrático desvinculado de suas raízes.

 

[i] Pawel Wolowski. Ukrainian politics after the Orange Revolution – how far from democratic consolidation? In: Sabine Fischer (ed.) Ukraine: quo vadis?. Chaillot Paper, n. 108. Feb, 2008. Disponível em: <http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp108.pdf>.

[ii] Anne Applebaum. Between East and West. Pan Macmillan Australia Pty,  1995.

[iii] Cf. http://www.scu.edu/ethics-center/world-affairs/politics/By_Countries_Regions/Ukraine.cfm

[iv] John L. Allen Jr. A Church with verve is at risk in Ukraine. Crux, 13 Sep, 2014. Disponível em: <http://www.cruxnow.com/church/2014/09/13/a-church-with-verve-is-at-risk-in-ukraine/>.

[v] Fr. Dr. J. Buciora. The Moscow Patriarchate’s Utopian Vision Of Russian Civilization. Risu, 2011. Disponível em:http://risu.org.ua/en/index/studios/studies_of_religions/41614/.

[vi] John L. Allen Jr. For the future of new evangelization, look to Ukraine. NCR online, 22 Oct. 2012. Disponível em:  <http://ncronline.org/blogs/ncr-today/future-new-evangelization-look-ukraine>.

[vii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>

[viii] International Social Survey Programme 2008: Religion III. Association of Religion Data Archives. Dados disponíveis em: <http://www.thearda.com/Archive/Files/Descriptions/ISSP08.asp>. Todos os dados quantitativos presentes neste artigo resultam da manipulação das variáveis e da tabulação feita pelo autor, a partir do banco de dados original, por meio do uso do Software “R”.

[ix] Eu classifiquei os votos em Pro-EUR (Europa) e Pro-RUS (Russia), a partir das respostas fornecidas pelos entrevistados acerca de seu voto nas eleições parlamentares de 2007, tendo em conta os partidos mencionados na pesquisa, a saber: Pro-EUR [Bloco de Yuliya Tymoshenko (ByuT)/União Toda Ucrânia Terra Pátria, Nossa Ucrânia/Defesa Popular/Movimento dos Povos da Ucrânia, Bloco Lytvyn/Partido Popular, União Toda Ucrânia pela Liberdade]; Pro-Rússia [Partido das Regiões, Partido Comunista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, Partido Socialista Progressista da Ucrânia].

[x] Regressões são utilizadas em análises estatísticas quando se quer identificar uma função que possibilite ao pesquisador encontrar o resultado de uma variável dependente (Y), dado o valor/posição da variável independente (X) em um gráfico. Uma linha de regressão pode ser estabelecida no mesmo gráfico a partir da média dos resultados em Y dado os valores de X. Geralmente essa função é descrita como Y = β0 + β1X, em que β0 é o ponto onde Y intercepta X (constante) e β1 é a proporção na qual Y varia em função de X. Quando a variável dependente (Y) tem um valor binário (com os resultados variando somente entre 0 e 1), utilizamos a regressão logística (log), pois como não existem valores intermediários, a linha de regressão só pode representar a probabilidade de um resultado 0 e 1. A fórmula para este tipo de caso é P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*)), em que Y* é o valor de Y em uma regressão comum (Y = β0 + β1X).

[xi] Em análises estatísticas, o valor p determina o grau de significância para a amostra, a partir de um cálculo que indica se os padrões encontrados são realmente representativos da população em geral ou se os resultados são devido ao acaso. Em ciências sociais, 95% (p < 0.05) é o valor comumente aceito para se determinar a significância de uma análise. Em termos gerais, ele indica que caso a pesquisa fosse repetida infinitas vezes, em 95% dos casos o mesmo resultado seria encontrado.

[xii]   y* = -0.4486 + 2.7173X

y* [y=1|x=0] =  -0.4486

y* [y=1|x=1] = 2.2687

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (4486*))

P[y=1|x=0] = 0.3896937

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-2.2687*))

P[y=1|x=1] = 0.9062514

 

[xiii]   y* =  -0.35004 + 0.08487X

y* [y=1|x=0] =  -0.35004

y* [y=1|x=1] = -0.26517

 

P[y=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.35004))

P[y=1|x=0] = 0.41337

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (0.26517))

P[y=1|x=1] = 0.43409

 

[xiv] Variáveis de controle são utilizadas em regressões quando outros elementos, que não a principal variável independente, podem impactar no resultado da variável dependente, dificultando uma análise precisa da influência de cada um desses elementos, pois aparecem muitas vezes sobrepostos à principal variável independente. Por exemplo, ao se analisar o impacto da aquisição de um grau universitário para o valor do salário, o pesquisador pode ter que controlar para outras variáveis como “pro-ativismo”, pois esse elemento pode influir tanto na aquisição do grau quanto no desempenho laboral, que por sua vez impacta no salário. A fórmula para regressões com variáveis de controle é: Y =  β0 + β1X + β2A + β3B + … … BnZ. Em regressão logística: Y =  β0 + β1X + β2(meanA) + β3(meanB) + … … Bn(meanZn), em que mean é o termo usado para “média”, ou seja, o valor médio de uma variável em uma dada amostra (no caso de dummies, algo entre 0 e 1).

[xv]   y* = -1.4767 + 1.5557X + 2.3757*0.4621 + 15.0655*0.02079002 – 0.5068*0,5825

y* = -0.360888 + 1.5557X

 

y* [y=1|x=0] =  -0.360888

y* [y=1|x=1] = 1.1948

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (0.360888*))

P[y=1|x=0] = 0.4107

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-1.1948*))

P[y=1|x=1] = 0.7675

 

[xvi]  y* = -18.1808 + 0.2690X + 2.3832*0.5378193 + 17.1705*0.8700624 + 0.4148*0,5825

y* = -1.718042 + 0.2690X

 

y* [y=1|x=0] =  -1.718042

y* [y=1|x=1] = -1.449042

 

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=0] = 1 / ( 1 + exp (1.718042*))

P[y=1|x=0] = 0.1521

 

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (-y*))

P[y=1|x=1] = 1 / ( 1 + exp (1.449042*))

P[y=1|x=1] = 0.190149

 

[xvii] Sophia Kishkovsky. Ukrainian crisis may split Russian Orthodox church. Religion News Service, 2014. Disponível em:  <http://www.religionnews.com/2014/03/14/ukrainian-crisis-may-split-russian-orthodox-church/>.

[xviii] Sorokowski,  Andrew. Russia and the Uniates. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/expert_thought/authors_columns/asorokowski_column/57958/>.

[xix] Em junho de 2014, o Patriarca Filaret enviou uma carta ao Patrirca Kirill em Moscou, em nome da Igreja Ortodoxa Ucraniana, na qual urgia o mesmo a conversar com Vladimir Putin pedindo a este para interromper a intervenção militar em terras ucranianas. Filaret criticou veementemente o Patriarca de Moscou por não reconhecer a soberania da Ucrânia e apoiar a política russa em nome da concepção de Mundo Russo (Russky Mir). Ver Filaret. Letter to Patriarch Kirill of Moscow. Risu, 2014. Disponível em: <http://risu.org.ua/en/index/all_news/community/religion_and_policy/56778/>.

[xx] Dados da organização Gallup mostram uma queda de cerca de 90% no apoio à uma concepção russa de governo para antes e depois da crise, com um maior impacto nas regiões do leste da Ucrânia. Ver Julie Ray and Neli Esipova,Ukrainian Approval of Russia’s Leadership Dives Almost 90%. Gallup 2014. Disponível em: <http://www.gallup.com/poll/180110/ukrainian-approval-russia-leadership-dives-almost.aspx>.

 

Tarcísio Amorim é Doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Texto publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta em 01/04/2015.  Disponível no link: http://www.dicta.com.br/ventos-do-leste-a-participacao-de-catolicos-e-ortodoxos-na-politica-ucraniana/

Um cruel sarcasmo

Sem Categoria | 22/12/2014 | |

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Numa roda de conversa entre amigos, um deles, cujas ideias políticas o alçam à condição muito peculiar de um dos últimos representantes ativos das experiências totalitárias passadas, disse que a democracia brasileira, de tão corrompida, deveria ser liquidada pela força massiva do voto em branco. A democracia está em crise então?

Aqui, paira uma confusão bem típica dos dias atuais: confundir o mecanismo com a essência. Quando o sujeito fala de democracia, muitas vezes, fala de, implicitamente, igualdade, justiça, liberdade, solidariedade, bem comum e outros valores tão caros para as sociedades ocidentais. Sem dúvida, estes bens morais asseguram a perenidade de uma democracia e, por assim dizer, quando fomentados num ambiente democrático, reforçam-na, numa espécie de círculo virtuoso.

Quando tais bens morais escasseiam ou são jogados para o escanteio social, o principal mecanismo democrático – o princípio majoritário – é capaz de, democraticamente, conduzir uma democracia à liquidação de si mesma, como na Alemanha de Weimar.

Se o problema, para esse meu amigo com pendores nostálgicos totalitários, é a corrupção endêmica nas estruturas governamentais, logo, não é a democracia que precisa ser revista, mas a qualidade dos valores que hoje a sustentam, o que demanda algum tempo, sem prejuízo da defenestração dos ocupantes dos cargos políticos que são coniventes com esse quadro moral pouco animador, o que pode e deve ser feito imediatamente, sobretudo se estivermos no meio de um período eleitoral.

Aliás, essa capacidade de expulsar, da arena legislativa ou executiva, os políticos e os partidos que confundem o público com o privado ou o partidário é um dos mais grandiosos atributos da mecânica processual democrática: punem-se os maus políticos e premiam-se os bons, sem a necessidade de qualquer recurso às revoluções “gloriosas”, medidas autoritárias ou golpes sanguinários. Por isso, convém sempre manter um estado constante de crítica à classe política e, para o caso de políticos que desfilem na passarela de crimes cometidos contra o erário público, uma certa desconfiança generalizada, mormente se, mesmo condenados judicialmente, seu partido sequer cogitou de expulsá-los da sigla.

Mas voltemos ao problema da corrupção endêmica, que produz o pior efeito que pode acontecer para uma sociedade democrática: a “coisa pública” deixa de ser pública para pertencer ao domínio de uns tantos poucos, sejam empreiteiros, carreiristas de cargos públicos ou mesmo companheiros de partido. A máxima de Lord Acton – o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente – é muito repetida e com razão.

A busca da perfeição moral na órbita democrática moderna tende a ser uma tarefa possível, se comparada com uma órbita totalitária, que já é a corrupção em si mesma. Mas não é fácil, pois o jogo democrático trabalha com duas cartas, a do poder político e a do poder econômico que, como toda carta, tem duas faces: a face nominal e a face real. Quando a face real está corrompida em ambas as cartas, o jogo democrático leva um truco da corrupção endêmica.

Um bom começo de saída desse quadro desolador está em abrir os olhos para os limites e os reducionismos do relativismo moral, o mal de fundo dessa corrupção endêmica que, no frigir dos ovos, confunde os limites da retidão no trato da coisa pública e proporciona, como efeito, o cinismo mais impune. E, antes de abrir os olhos, no próximo domingo, convém usar bem as mãos na urna, demitindo, sem contestação, novos ou os mesmos projetos políticos que pretendem fazer do governo do povo, pelo povo e para o povo um cruel sarcasmo social. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação e coordenador do IFE Campinas, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.

Reflexões de ressaca eleitoral

Sem Categoria | 05/12/2014 | |

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Durante as eleições, ouvi, sobretudo dos mais eleitores mais inflamados ideologicamente, questionamentos sobre a lisura deste último processo eleitoral. Não estou falando sobre as notícias de fraude nas urnas, as quais devem ser analisadas, mormente se acompanhadas de fortes indícios de manipulação numérica de votos, em favor do aprimoramento da votação eletrônica, que veio para ficar.

Estou me referindo às hesitações levantadas sobre a lisura institucional do TSE, o qual, por intermédio de seu ilustre presidente, teria agido com o escancarado propósito de favorecer o principal partido da situação em seus votos e decisões administrativas. Em bom português, segundo o miolo mole da trupe dos desconfiados, seus fundamentos jurídicos seriam uma espécie de roupa nova do rei. No fundo, o tal propósito sempre esteve nu e à vista de todos.

Já tive oportunidade de dizer num debate nas redes sociais que eu e a maioria dos juízes brasileiros não temos nada a dever ao currículo do ilustre presidente. Não fomos reprovados duas vezes no concurso, temos livros escritos, títulos acadêmicos e não temos uma longa folha de serviços advocatícios prestados para esse ou aquele partido.

Pode se questionar o mérito de suas decisões ao longo do processo eleitoral, como o fiz várias vezes. Mas não dá para dizer que ele fez isso para favorecer deliberadamente o partido já citado, porque, felizmente, nosso Poder Judiciário, como um todo, goza de um grau muito bom de indepedência e transparência, embora isso possa e deva ser melhorado, segundo o último relatório global de Davos (http://www3.weforum.org/docs/WEF_GlobalCompetitivenessReport_2013-14.pdf).

Segundo as conclusões do estudo, que considera o grau de independência segundo a maior ou menor ingerência de governos, empresas e órgãos não-governamentais nas decisões judiciais de todas as instâncias, sobretudo as inferiores, ocupamos a 55ª posição mundial de 198 países avaliados, com a nota 3,9 de um total de 7. A Nova Zelândia encabeça a lista com o grau 6,7. Na América Latina, estamos em quarto lugar, atrás do Uruguai (5,4), Chile (5,3) e Costa Rica (4,8). No que diz respeito à transparência judicial, o relatório afirma que “o Brasil é o país de maior transparência judicial da América Latina e, provavelmente, do mundo”.

Estamos bem ranqueados e temos um bom caminho a percorrer rumo às primeiras posições. E podemos, porque não tenho a menor dúvida: dos três poderes instituídos, o Poder Judiciário é composto, no geral, pelos quadros mais éticos e preocupados com os destinos da coisa pública brasileira. Mas o relatório obriga-me também, por assim dizer, a sacar umas ideias aprisionadas que pedem para ser libertadas como duas sugestões.

Primeira: na próxima eleição, quando uma corte eleitoral decidir desse ou daquele jeito, não nos coloquem na mesma “cloaca maxima” dos outros dois poderes, como se quiséssemos o protagonismo de um procedimento democrático que pertence legítima e exclusivamente a uma só pessoa, o eleitor. Questionem, à vontade, o teor da decisão, mas não a pessoa do magistrado que decidiu, como se a caneta dele estivesse comprometida com a parcialidade. Segunda: não nos esquadrinhem com a régua de medição chavista que, aliás, no dito ranking, contemplou a Venezuela na última posição mundial (nota 1,1).

Por fim, depois desse desabafo, fico lisonjeado pela expressiva votação recebida para a cadeira 30 da Academia Campinense de Letras. É com grande alegria e responsabilidade que ocupo um lugar neste tradicional e prestigiado recinto do pensamento desta cidade. Será mais um espaço, além da graduação, do grupo de pesquisa e deste conceituado jornal, em que poderei exercer um fecundo e cortês debate intelectual, sempre com espírito juvenil e de aprendiz, motivo pelo qual agradeço nossa Academia por ter incorrido em inobjetividade caridosa na apreciação de meus méritos. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/SP, da ADFAS e da UJUCASP, coordenador do IFE Campinas e titular da cadeira 30 da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

O fiel da balança

Sem Categoria | 01/12/2014 | |

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Já faz algum tempo que existe um certo consenso acerca da importância de um Estado democrático, sobretudo no velho e bom mundo ocidental, onde muitos parecem estar entediados desse valor, a ponto de se bandearem para as hostes do bando terrorista que está impondo a sharia a bala e fogo literalmente do outro lado do mundo. Lamento a má escolha feita, porque as instituições democráticas são a consagração histórica da dignidade da pessoa humana.

Contudo, por outro lado, há aqueles que endeusam o Estado – os exemplos estão diariamente nos jornais – e entendem que ele deve apresentar-se como a própria vox Dei ao pretender representar a vox populi e, assim, o Estado transforma-se numa espécie de bezerro de ouro, sobretudo na visão jacobina de democracia, em que o Estado personifica a “vontade geral” de Rousseau, sem que haja um tribunal de apelação. Nesse ponto de vista, é evidente que a sociedade assume uma posição posterior e inferior ao Estado.

Churchill dizia que a democracia é o pior de todos os regimes, excetuados todos os outros. A sabedoria de tal afirmação está no fato de que a política democrática não é a resposta última para os fins últimos do homem. Entretanto, ela é muito superior às outras formas de política, porque respeita a dignidade humana, protege os direitos do homem, promove um ethos de paz, possibilita o controle e a substituição dos governantes e zela pela justiça social.

Além disso, a democracia está aberta ao futuro e oferece um grande espaço para o exercício da responsabilidade pessoal e a busca do bem comum. De fato, são tantos bens que a democracia proporciona, que resulta difícil ter algum pendor para os outros regimes, embora haja muitos que estão apenas esperando a democracia enfraquecer para mostrar sua verdadeira máscara. Porque sabem que uma democracia, tal como hoje é vista, fundada apenas no procedimentalismo e no primado do princípio da maioria é uma democracia incapaz de sustentar os pressupostos morais e valorativos em que a mesma democracia busca erguer-se e, principalmente, sustentar-se. Seria como um castelo assentado na areia: na primeira intempérie mais forte, não resiste e desmorona.

Essa visão é um perigo a longo prazo, pois a democracia corre o risco de se tornar numa espécie de ante-sala de novos ensaios autoritaristas ou totalitaristas, “os outros regimes” a que Churchill referiu-se, e é provocada pelo relativismo ético reinante, compreendido por muitos como o fiel, na balança social, da tolerância, do respeito recíproco entre as pessoas e da adesão às decisões majoritárias, o que seria impossível se prevalecessem alguns absolutos morais, mais propensos, segundo essa ótica, ao descalabro democrático.

É inegável que, ao longo da história, foram cometidos muitos abusos em nome dos absolutos morais e que existe o risco real de que uns tantos, ainda hoje e apesar daqueles abusos, queiram impor uma opinião como se fosse um absoluto moral. Mas isso não é suficiente para prescindir dos absolutos morais, até porque muitos balaios de gato foram levados a cabo por aqueles que rejeitam qualquer ideia de absolutos morais: crimes não menos graves e negações radicais da liberdade e da humanidade foram cometidos e ainda se cometem em nome do relativismo ético.

Quando os absolutos morais deixam de nortear a ação social, as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder político ou econômico e a democracia, oca desses valores, converte-se num arremedo de si mesma. Mas não é só. Quando não se aceitam alguns absolutos morais, a lei passa a ser a substituta desses absolutos e o “aprovado democraticamente” transforma-se em critério prático para a atuação dos cidadãos, como se a democracia, em si mesma, fosse “o absoluto moral” definitivo. A democracia não é o outro nome do absoluto moral nem a panacéia da imoralidade: ela é um ordenamento e, como tal, um instrumento e não um fim “autorreferente” (Luhmann).

Sabemos que a democracia moderna surgiu como reação aos excessos absolutistas, em defesa dos direitos do homem e de um rol de valores que derivam da própria verdade do ser humano, isto é, a democracia moderna foi sendo forjada em prol de certos absolutos morais, em muito superiores à vontade arbitrária ou legislada de alguns homens sobre os outros. Horkheimer já nos recordava que “o mundo, que é relativo, pressupõe, segundo seu sentido, um absoluto”. Compete a nós a tarefa de discernir os absolutos morais e, depois, reconhecê-los como o verdadeiro fiel da balança democrática. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, mestre em filosofia e história da educação, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito, membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP e da Associação de Direito da Família e das Sucessões (ADFAS) e coordenador do IFE CAMPINAS (agfernandes@tjsp.jus.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 1 de Outubro de 2014, Página A2 – Opinião.