“Cool evil”: O mal bacana (por Bruce Frohnen)*


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Evidentemente que Bruce Frohnen escreve sobretudo para americanos. Contudo, seu ensaio revela elementos que estão além da cultura americana, podendo ser encontrados na cultura européia dos dias de hoje e na nossa, brasileira. É o que ele chama de “cool evil”, algo como “mal bacana” ou “mal legal”, no sentido de o mal não ser tomado como mal, mas como algo bacana, interessante. Contudo, para o autor, esse “cool evil” dos dias de hoje só leva a degradação pública e privada. Abaixo, segue seu artigo traduzido.

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“Cool evil”: O mal bacana

por Bruce Frohnen

Ouvi dizer que no mundo do wrestling profissional [N.T.: arte marcial popular nos EUA], os vilões populares são conhecidos como “calcanhares bacanas”. O wrestling profissional dificilmente encontra-se na fronteira da teoria moral ou das tendências da cultura popular. Mas a inclusão de caras maus como “bacanas/legais” em seu código moral violento é uma indicação, acredito, de quão longe chegamos na estrada que leva ao niilismo cultural. Cada vez mais os filmes e programas de televisão, sem mencionar os rappers e esportistas, parecem dispostos a lucrar com o “mau bacana”. Cada vez mais os americanos estão comprando a idéia de um niilismo pré-embalado, aparentemente revelando o sentimento de superioridade que se pode ganhar da ilusão de estar acima do bem e do mal.

Não quero dizer com isso que o vilão atraente é uma novidade. A literatura clássica está repleta de vilões que amamos ver em ação nos livros. Os atores dizem que o melhor papel em qualquer produção é o do violão, não o papel do herói adocicado. Também não quero dar a entender que os vilões, até nas décadas recentes, tem sido pouco atrativos, ou até mesmo relegados a papéis coadjuvantes. Os filmes das décadas de 60 e 70 estão cheios de anti-heróis, e os baby boomers [N.T.: geração do que nasceram na década de 50 e 60] procuravam esses filmes como cães selvagens.

Mas parece que as últimas décadas produziram uma proporção de vilões “bacanas” acima do padrão, que um número cada vez maior de filmes – e especialmente séries da TV a cabo – apresenta o mal implacável como normal e sexy, e que a tendência ao código de rua entre as pessoas famosas serviu para borrar os limites morais da grande audiência.

Quando  pediram a Ian Richardson que voltasse a fazer o papel do anti-Herói Francis Urquhart no drama cínico-policial inglês “House of Cards”, conta-se que ele recusou a proposta até chegar ao acordo de que o personagem seria assassinado. Richardson demonstrou suficiente senso moral para reconhecer que seu personagem, ainda que para ele fosse delicioso estar no seu papel, simplesmente fazia o mau parecer excessivamente atraente.  Isso se deve em parte por causa do modo como os outros personagens são caracterizados, mas nada disso é então novidade, antes é o antigo dito popular “o demônio é um homem sedutor”. A atratividade do mal também vem da crescente medida para a qual ele parece ser útil [1] na ficção contemporânea. Cada vez mais, os vilões não recebem o troco no final pelas suas más ações. A justiça poética nos roteiros, palcos e telas é agora vista como irrealista e até infantil. Em outros tempos, logicamente, isso era visto como absolutamente necessário para a preservação do senso moral da audiência, e as pessoas tinham de fato suficiente senso moral para reivindicar isso.

Infelizmente, esse senso moral parece ter morrido. Já não se percebe claramente o senso moral nas atuações de Kevin Spacey, que faz o papel do anti-herói na adaptação americana de “House of Cards” com uma satisfação malévola, e que fez carreira fazendo papéis de vilões inspiradores de alguma forma de admiração, sendo que os poucos heróis de sua carreira (como no filme “Pay it Forward” [N.R.: no Brasil, “A Corrente do Bem”]) são figuras simplórias.

Depois há a série “fantasia” “Game of Thrones”. Nesse carnaval de implacável degradação, adaptada da série igualmente repreensível de George R.R. Martin, o espectador é “tratado” com cenas de tortura, violência sexual e depravação agressiva que forma o núcleo de uma série centrada na obsessão por poder em um universo de estilo medieval.[2]

É fácil levantar uma série de causas para essa recente explosão do “mal bacana”. O declínio dos padrões morais na grande mídia, seguida da difusão da TV a cabo, associada à sua total falta de auto-regulação[3], e a competição para fazer chocar mais os espectadores para aumentar a audiência, fez da tortura coisa normal das noites de TV em casa (em programas como “Lost” e “24” [N.R.: no Brasil, “24 Horas”]) alguns anos atrás. Antes disso, a tendência entre os rappers de reproduzir o código de rua, tão bem parodiado por Chris Rock no filme “CB4”, foi amplamente difundida e por sua vez alimentou uma cultura de violência já infelizmente muito difundida nas nossas áreas urbanas. A violência rural, evidentemente, há muito é apresentada pela grande mídia, mas geralmente com a intenção clara de provocar repulsa pelo racismo e violência doméstica. Mesmo assim esses retratos perderam sua força depois que filmes ambientados em pequenas cidades (“Sons of Anarchy”, [N.R.: no Brasil, “Filhos da Anarquia”]), nos subúrbios (“Breaking Bad”, [N.R.: no Brasil, “Ruptura Total” ou “Breaking Bad: A Química do Mal”]) e mesmo no velho oeste (“Deadwood”) buscaram uma abordagem realista baseada em sangue jorrando por tudo para mostrar quão sofisticados se tornaram tanto produtores como espectadores.

Esse último desdobramento poderia ter sido previsto como uma extensão inevitável da desmoralização gradual do entretenimento. Nós passamos de “Leave it to Beaver” [da série “Veronica Mars: A Jovem Espiã”[4], com suas falsas imagens de felicidade suburbana, para comédias sexuais infantilóides como “Three’s Company” [N.R.: no Brasil, “Um é Pouco, Dois é Bom e Três é Demais”], com sua continuação previsível, “Three’s a Crowd”, uma sequência que teve pouca audiência sobre um casal em coabitação que compartilhava os aposentos com o pai da mulher. A moralidade sexual logo se tornou ultrapassada, mesmo com as críticas um tanto quanto moralistas que os grupos de pais e educadores dirigiram à violência veiculada tanto nas telas de cinema como na TV. É claro que agora o movimento do anti-herói no cinema tem sido um movimento de massas há décadas, embora talvez melhor resumido no herói de “Midnight Cowboy” [N.R.: no Brasil “Perdidos na noite”], um caipira mentecapto cujo objetivo de vida era se tornar um prostituto.

Libertinos sexuais sempre insistiram que sua forma de libertinagem traria paz e amor. Mas isso não ocorre; ao contrário, abre espaço para mais estrago em um mundo cada vez mais desordenado. A “liberação” sexual da onda [do momento] andava de mão dadas com a crescente marginalização, por parte dos meios de comunicação, de temas e figuras religiosos, assim como da moralidade. “M*A*S*H” pode ter retratado seu capelão militar como alguém ineficaz, mas o programa televisivo pelo menos reconhecia a sua existência – algo quase desconhecido dos dias de hoje.

Para onde tudo isso nos leva? Certamente não para além do bem e do mal. Antes, deixa muitas pessoas ao nosso redor enamoradas pelo mal. Isso não significa que qualquer um que veja “Breaking Bad” vá imediatamente considerar a vida de um traficante de drogas como uma forma legítima de pagar um bom tratamento médico.  Mas o “mal bacana” é uma parte ativa da degradação contínua do espaço público, que está longe de ser irrelevante para nossa vida privada e pessoal.

O moderno pensador político de Florença, Nicolau Maquiavel, foi reconhecido como o pregador do mal por ter defendido a necessidade de um príncipe que fizesse o trabalho sujo necessário para reunificar a Itália contra os bárbaros. É muito comum entre os entendidos em política de hoje dizerem que a má fama sobre Maquiavel é mera hipocrisia, já que todos na política agem como Maquiavel disse que agiriam, embora queiram parecer virtuosos. Não somente essa suposta “análise sofisticada” é factualmente incorreta – muitos homens de vida pública sacrificam seus gostos pessoais pelo bem comum e o fazem com a intenção de praticar e dar o exemplo da virtude –, mas é também perversa. O cinismo que diz “todos fazem isso” leva à auto-indulgência do vício. Nenhum filme, série de TV, ou qualquer outra forma de entretenimento pode criar uma cultura de vícios. Mas o flerte complacente e frequente com o mal pode, de fato, tornar o mal algo “bacana” na mente do grande público. O resultado será o agravamento da deterioração de uma moralidade pública já bastante debilitada.

Bruce Frohnen é contribuinte sênior no jornal on-line The Imaginative Conservative, é professor de Direito na Ohio Northern University College of Law e autor dos livros Virtue and the Promise of Conservatism: The Legacy of Burke and Tocqueville e The New Communitarians and The Crisis of Modern Liberalism e editor (junto com George Carey) do livro Community and Tradition: Conservative Perspectives on the American Experience.

Artigo publicado originalmente em 19 de setembro de 2014 no journal on-line The Imaginative Conservative, link:
http://www.theimaginativeconservative.org/2014/09/cool-evil.html.
Permissão da tradução e publicação em português neste site dada por Stephen M. Klugewicz, Ph.D., editor do journal. Para saber mais sobre este jornal, clique em The Imaginative Conservative.

Imagem extraída da publicação original, neste link.

Tradução: Marco Antonio.

Revisão e edição da tradução: João Toniolo.

 

NOTAS DA REVISÃO E EDIÇÃO DA TRADUÇÃO:

* As Notas do Tradutor estão indicadas com “N.T.” e as do revisor e editor da tradução como “N.R.” (ou numeradas).

[1] N.R.: A frase no original inglês aqui é “The attractiveness of evil also comes from the increasing extent to which it seems to ‘pay’ in contemporary fiction”. “Pay” tem o sentido de pagar, mas também de “ser útil”, entre outros. Parece que o autor joga com a multiplicidade de sentidos que esta palavra tem, pelo fato da cultura do “mal bacana” gerar dinheiro e ao mesmo tempo ser útil para o fim de ganhar dinheiro.

[2] N.R.: Como se na época medieval as coisas fossem somente assim como a série trata. A esse respeito, cf. os livros de Régine Pernoud, O Mito da Idade Média e Luzes Sobre a Idade Média.

[3] N.R.: Note que o autor fala em “auto-regulação”, que é diferente de regulação total da mídia pelo Estado.

[4] N.R.: “Leave it to Beaver” é 22º e último episódio da primeira temporada de “Veronica Mars: A Jovem Espiã”.