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Poliamor: entre o mal e o ilegal

Opinião Pública | 22/08/2018 | | IFE CAMPINAS

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Não faz muito tempo. Na semana seguinte em que resolvi, pela via negativa, uma dúvida registrária de um casal de três pessoas (vulgo “trisal”) que pretendia atribuir eficácia a uma escritura pública de declaração da união estável em que já viviam, o advogado me interpelou: “Mas meus clientes não têm o direito de viver o afeto com o mesmo respeito assegurado aos demais casais, sem que sofram qualquer restrição em sua vontade, pelo simples fato de conviverem numa forma singular de amor?”.

Respondi que, antes de adentrar no assunto, ele entendesse melhor as noções de afeto, amor, dignidade humana e bem comum. Hoje, afeto e amor viraram sinônimos, dignidade humana serve até para justificar “direito ao aborto” e a ideia de bem comum já foi para o ralo na órbita social. E, como resultado disso, paira uma grande confusão, muitas vezes não-intencional, nos modismos em voga que, por tabela, mais cedo ou mais tarde, vão bater nas portas do direito, a fim de exigir uma tutela judicial. Em cena, o poliamor.

É uma tutela de uma realidade que demanda do direito, em termos de resposta, mais do que ele pode dar. Nosso direito não protege as uniões poligâmicas e uma escritura notarial, como aquela citada, que reconhece efeito jurídico de união estável para esse arranjo é ilegal. Pela ordem constitucional (art., 226, §3º) e civil (art.1.723), a monogamia é essencial ao reconhecimento da união estável.

O velho argumento sociologista (“Tais uniões poligâmicas já existem por aí!”) vem à tona, floreado de uma retórica hermenêutica que desconhece, como sugeri ao inconformismo do advogado, o que são o amor, o afeto, a dignidade humana e o bem comum. “Toda forma de amor”, na ótica dessa demanda temerária, desde que amparado pela “vontade de poder” dos envolvidos, deveria gozar da chancela judicial.

O pleito de reconhecimento jurídico da união poligâmica envolve muitos problemas, dos mais elementares, como a bilateralidade do direito e o bem comum, até os mais elaborados, estudados em outros ramos do saber, como a antropologia filosófica e a psicologia. Quando esses dados são escanteados, a criatividade do advogado deixa de militar em favor do brilhantismo e ruma em prol do exotismo.

O direito é uma relação que envolve um débito para com o outro: um indivíduo, um grupo ou toda a sociedade. Eis a bilateralidade já citada. Uma união monogâmica respeita essa dimensão, porque personaliza os filhos, favorece a intensidade de compromisso dos envolvidos entre si e cria sólidas condições para uma reprodução geracional.

Essa justificativa não consiste numa atenta observância de um credo religioso, mas finca suas profundas e nutridas raízes na história da humanidade e na sociologia familiar.
Quanto ao bem comum, noção tão antiga quanto a própria filosofia política, seu sentido foi substituido pelo de “interesse geral de caráter instrumental”. Em suma, a mais pura reificação do outro e a união poligâmica é o exemplo mais bem acabado disso em termos de arranjo na intimidade existencial.

Em relação à antropologia e à psicologia, a união poligâmica ignora alguns dados empíricos relevantes. No primeiro caso, num desenho conjugal com mais de duas pessoas, sempre existe a preferida para a satisfação dos desejos sexuais ou a realização de atividades em comum, como cozinhar ou viajar. Assim, todos são instrumentalizados para a saciedade do outro e o indivíduo dominante acaba por escolher um preferido entre os demais. Ao cabo, torna-se uma relação organicamente desigual.

No segundo caso, na cabeça dos indivíduos de um trisal, fica muito difícil distinguir, em seus ânimos interiores, se um modo de agir é baseado efetivamente na vontade ou fica no vai-e-vem das pulsões nascidas da libido ou do tanathos. Em outras palavras, com tanto apelo à mecânica dessas pulsões, resta saber se o indivíduo consegue compreender as motivações existenciais dessas mesmas pulsões.

A chancela judicial da união poliafetiva só presta para a normatização da iniquidade. Na realidade jurídica brasileira, não há espaço para essas uniões, ao menos enquanto o atual regime constitucional e civil permanecer em vigor, baseado na monogamia, único arranjo conjugal que respeita a antropologia, a psicologia, o direito e contribui para o verdadeiro bem comum. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE, membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 22/08/2018, Página A-2, Opinião.

Hannah Arendt: o compromisso de pensar, por Pablo González Blasco

Cinema | 19/03/2015 | | IFE CAMPINAS

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“Hannah Arendt” – Direção: Margarethe von Trotta. Barbara Sukowa, Axel Milberg, Janet McTeer, Julia Jentsch, Ulrich Noethen,. Alemanha, Luxemburgo, França. 2012. 113 min.

     Todos os comentários que me chegaram deste filme eram unânimes: cinema de primeira categoria. Direção perfeita de Margarethe Von Trotta, interpretação magistral de Bárbara Sukowa. Magistral e realista: fumando o tempo todo, como a personagem que encarna, embora o filme não chegue a mostrar os charutos que Hanna fumava em público. Os intelectuais, os filósofos e o tabaco: alguém já escreveu sobre isso, eu não me detenho nessa particularidade, até porque estou em atraso com estas linhas. Explico.

Deixei o filme em suspenso, e debrucei-me sobre um livro que repousava na minha prateleira. Quis lê-lo antes de assistir o filme, para ter uma ideia da vida e obra da pensadora alemã. Levou-me algumas semanas, mas valeu a pena.  É pouco provável que os leitores tenham a oportunidade de ler alguma das obras de Arendt antes de ver o filme. Mas seria muito útil que, ao menos, lessem o comentário que fiz a esse livro, antes de mergulhar na fita. Sem preocupação; não conto a trama do filme, até porque o aspecto em que se foca a produção é pontual: a cobertura jornalística que Hanna Arendt fez para o New Yorker do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

O filme serve a modo de aperitivo a vida da Hanna Arendt e do seu marido Heinrich Blucher, as reuniões na sua casa com a tribo de pensadores e artistas,  e até alguns flash back com Heidegger, o amante da juventude. Mas o prato forte é, sem dúvida, a vivência do julgamento do criminal nazista. Arendt foi a Jerusalém para cobrir o evento como jornalista –mais colunista do que repórter, diríamos hoje- mas o resultado foi uma verdadeira experiência filosófica, a contemplação de uma realidade que se lhe figurava com perfis diferentes aos que todos os outros conseguiam enxergar. Tudo culmina no discurso onde, diante uma plateia de universitários absolutamente seduzidos pela pensadora, dá razão da sua perspectiva, e dos seus escritos que cristalizaram na obra polêmica: “Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal”.

     A cena do discurso cativou-me. Imediatamente a inclui no meu repertório de clips cinematográficos, e a utilizei seguidamente em duas conferências que tive de dar em dois congressos médicos diferentes. O impacto no público foi notável. E as ideias que me sugeria foram se desdobrando, com rapidez, enquanto eu tentava alinhavá-las para anotá-las nestas linhas.

Independente do tempo histórico e de uma possível justificativa para os que a criticavam por entender, equivocadamente, que estaria negando o holocausto, Arendt estabelece um paradigma de capital necessidade para o momento presente. Eichmann funcionou apenas como uma desculpa – um caso extremo- de alguém que abdicou de uma das características integrantes do ser humano: o compromisso de pensar. “Não encontrei ali um ser diabólico, nem a encarnação da perversidade. Deparei-me com um funcionário, um burocrata que se adaptou ao sistema e abriu mão de pensar”. E a seguir o grande recado: “Os maiores males do mundo são causados por gente comum que deixa de refletir, que não pondera suas ações, porque interrompeu o diálogo intimo que devemos ter conosco mesmos. Desta atitude medíocre nasce o que eu denominei a banalidade do mal”.

O caso extremo do carrasco nazista que despacha pessoas para os campos de concentração como quem controle estoque de mercadorias com apurada competência, serve para ilustrar aspectos menos chocantes, mas de premente atualidade. Lá está o tema que me ocupa habitualmente –a Humanização da Medicina- motivo dos convites e das conferências apontadas. Não tanto a humanização, mas o por que nos desumanizamos.

     As palavras em inglês arrastado de Hanna Arendt funcionaram como veículo perfeito para dar o meu recado. A grande –e preocupante- questão, é que os médicos que destratam o paciente, aqueles aos que lhes falta humanismo, não são pessoas más, cruéis e insensíveis: são, simplesmente, profissionais que entraram no sistema, que fizeram o que todos fazem, que não se deram ao trabalho de pensar na sua missão, no compromisso vocacional. Veio à mente algo que me aconteceu há já muitos anos. Foi também durante uma conferência, nessa ocasião dirigida a estudantes. Quando acabei, aproximou-se de mim uma aluna –os alunos nem sempre falam diante da plateia, reservam as melhores questões para os momentos em que o professor começa a abandonar a sala- e me disse que estava em crise. Sorri, e olhei para ela convidando-a a desabafar. “Estou no quinto ano de medicina. Ontem dei plantão no pronto socorro da obstetrícia, e chegou uma mulher que tinha provocado um aborto. Estava sangrando, com dor, assustada. O residente encarou-se com ela e gritou que essas coisas há que pensá-las antes. Foi se preparar para fazer a curetagem e eu segurei a mão da paciente e disse a ela que o médico (residente) não era má pessoa, que estava cansado do plantão”. Devo ter colocado uma cara compreensiva, porque ela continuou: “Professor, eu conheço esse residente. Ele estava no quarto ano quando entrei na faculdade. Era uma pessoa ótima, alegre, animada. Hoje ele é assim….” Minha cara deve ter assumido um interrogante, porque ela disparou: “Minha angústia é …..Quando é que a gente vira bandido, professor?”.

Não lembro o que respondi àquela aluna. Talvez não respondi nada. Mas contei este fato inúmeras vezes nos meus encontros com estudantes. Hoje, se tivesse ocasião –quem sabe agora com as redes sociais onde todos ficam sabendo de tudo ela leia estas linhas- lhe diria: convide-o, em nome dessa velha amizade, para assistir o filme de Hanna Arendt. Lá veria a pensadora apaixonada explicar por que abdicamos de ser pessoas –nos desumanizamos- quando abrimos mão da característica que define o homem como tal: a capacidade de pensar. Entenderia que a incapacidade de pensar é o que permite que gente normal, medíocre, cometa as maiores atrocidades.

     Naturalmente as conclusões no nosso cenário não são tão evidentes como no caso de Eichmann. É preciso conduzir a reflexão da plateia para que se atreva a pensar que o recado é para eles, para todos nós.  Até porque abdicar da reflexão, atitude frequentíssima, costuma estar disfarçada de condutas equívocas. Falávamos das redes sociais e da aluna de quem nunca mais tive notícia. O que poderia ser um bom recurso para oferecer agora uma ajuda concreta, é também uma arma de dois gumes. É difícil que alguém que passa a vida se comunicando com metade do planeta, imagine que não dedica um minuto da sua vida a….pensar. Troca informações, “curte” notícias, compartilha fotos, tem a vida –e a intimidade- como livro aberto, em vitrine comunitária. O barulho virtual é tanto, que não há espaço para o silêncio que a reflexão requer. E quando alguém põe as manguinhas de fora e se atreve a socializar uma carga de profundidade reflexiva, é muito provável que receba um comentário irônico, ou que seja sumariamente eliminado de grupo de “amigos”, que rapidamente podem substitui-lo por outras duas dúzias de elementos que transitam no universo de mediocridade não pensante.

Eu costumava ilustrar o descaminho do médico na figura do Cavalheiro Jedi que se passa para o lado negro da força. Alguém muito bem treinado, com poderes formidáveis que por medo cai para a escuridão.  Os olhos vermelhos de Anakin Skywalker transpirando medo de perder a mulher que ama são o prenúncio da metamorfose em Darth Vader. Agora, Hanna Arendt me mostra que a questão não é tão simples, e que os bandidos nem sempre estão integrados num Império que conspira. O perigo que nos ameaça, está dentro de cada um de nós, em tênue divisão, onde a reflexão é a verdadeira fronteira. Muito bem o adverte um conhecido educador quando escreve: “O  meu problema imediato sou eu mesmo, e o pacto silencioso que estabeleço com o sistema e que permite que “o de sempre” governe a minha vida e as minha decisões” (Parker Palmer: The Courage to Teach). Cruzam-se os limites sem maldade intrínseca, num deixar-se levar, maria-vai-com-as-outras; tudo sem grandes traumas, amparados pelo sistema, enfeitado com o cintilar de bijuterias que piscam alegremente no smartphone fazendo sentir o aconchego de um mundo virtual –milhares de amigos- que compartilham e “curtem” um gregarismo medíocre que promove a banalidade do mal.

O imenso conhecimento que temos ao alcance da mão não dispensa o compromisso de pensar. Essa advertência seria a principal função dos professores universitários, ao invés de vomitar repetidamente informações que os alunos adquirem por si sós, mais rapidamente, de pijama nos respectivos domicílios. Advertir e provocar, fazer pensar: um verdadeiro desafio para os que se envolvem na educação, que não é simples treino, mas fomentar uma atitude de reflexão de por vida. Não dar peixes, ensinar a pescar, entender por que se pesca, e abrir espaço à criatividade e a novas modalidades de pesca.  As frases finais do contundente discurso de Hanna Arendt servem para fechar estas considerações: “A manifestação do ato de pensar não é simples conhecimento. Mas é a habilidade de distinguir o bem do mal, o feio do bonito. Sem pensar nos tornamos incapazes de fazer juízos morais. Espero que essa capacidade de pensar dê às pessoas a força para evitar as catástrofes nos momentos decisivos”.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2013/10/25/hanna-arendt-o-compromisso-de-pensar/

“Cool evil”: O mal bacana (por Bruce Frohnen)*

Filosofia | 03/02/2015 | | IFE CAMPINAS

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Evidentemente que Bruce Frohnen escreve sobretudo para americanos. Contudo, seu ensaio revela elementos que estão além da cultura americana, podendo ser encontrados na cultura européia dos dias de hoje e na nossa, brasileira. É o que ele chama de “cool evil”, algo como “mal bacana” ou “mal legal”, no sentido de o mal não ser tomado como mal, mas como algo bacana, interessante. Contudo, para o autor, esse “cool evil” dos dias de hoje só leva a degradação pública e privada. Abaixo, segue seu artigo traduzido.

***

“Cool evil”: O mal bacana

por Bruce Frohnen

Ouvi dizer que no mundo do wrestling profissional [N.T.: arte marcial popular nos EUA], os vilões populares são conhecidos como “calcanhares bacanas”. O wrestling profissional dificilmente encontra-se na fronteira da teoria moral ou das tendências da cultura popular. Mas a inclusão de caras maus como “bacanas/legais” em seu código moral violento é uma indicação, acredito, de quão longe chegamos na estrada que leva ao niilismo cultural. Cada vez mais os filmes e programas de televisão, sem mencionar os rappers e esportistas, parecem dispostos a lucrar com o “mau bacana”. Cada vez mais os americanos estão comprando a idéia de um niilismo pré-embalado, aparentemente revelando o sentimento de superioridade que se pode ganhar da ilusão de estar acima do bem e do mal.

Não quero dizer com isso que o vilão atraente é uma novidade. A literatura clássica está repleta de vilões que amamos ver em ação nos livros. Os atores dizem que o melhor papel em qualquer produção é o do violão, não o papel do herói adocicado. Também não quero dar a entender que os vilões, até nas décadas recentes, tem sido pouco atrativos, ou até mesmo relegados a papéis coadjuvantes. Os filmes das décadas de 60 e 70 estão cheios de anti-heróis, e os baby boomers [N.T.: geração do que nasceram na década de 50 e 60] procuravam esses filmes como cães selvagens.

Mas parece que as últimas décadas produziram uma proporção de vilões “bacanas” acima do padrão, que um número cada vez maior de filmes – e especialmente séries da TV a cabo – apresenta o mal implacável como normal e sexy, e que a tendência ao código de rua entre as pessoas famosas serviu para borrar os limites morais da grande audiência.

Quando  pediram a Ian Richardson que voltasse a fazer o papel do anti-Herói Francis Urquhart no drama cínico-policial inglês “House of Cards”, conta-se que ele recusou a proposta até chegar ao acordo de que o personagem seria assassinado. Richardson demonstrou suficiente senso moral para reconhecer que seu personagem, ainda que para ele fosse delicioso estar no seu papel, simplesmente fazia o mau parecer excessivamente atraente.  Isso se deve em parte por causa do modo como os outros personagens são caracterizados, mas nada disso é então novidade, antes é o antigo dito popular “o demônio é um homem sedutor”. A atratividade do mal também vem da crescente medida para a qual ele parece ser útil [1] na ficção contemporânea. Cada vez mais, os vilões não recebem o troco no final pelas suas más ações. A justiça poética nos roteiros, palcos e telas é agora vista como irrealista e até infantil. Em outros tempos, logicamente, isso era visto como absolutamente necessário para a preservação do senso moral da audiência, e as pessoas tinham de fato suficiente senso moral para reivindicar isso.

Infelizmente, esse senso moral parece ter morrido. Já não se percebe claramente o senso moral nas atuações de Kevin Spacey, que faz o papel do anti-herói na adaptação americana de “House of Cards” com uma satisfação malévola, e que fez carreira fazendo papéis de vilões inspiradores de alguma forma de admiração, sendo que os poucos heróis de sua carreira (como no filme “Pay it Forward” [N.R.: no Brasil, “A Corrente do Bem”]) são figuras simplórias.

Depois há a série “fantasia” “Game of Thrones”. Nesse carnaval de implacável degradação, adaptada da série igualmente repreensível de George R.R. Martin, o espectador é “tratado” com cenas de tortura, violência sexual e depravação agressiva que forma o núcleo de uma série centrada na obsessão por poder em um universo de estilo medieval.[2]

É fácil levantar uma série de causas para essa recente explosão do “mal bacana”. O declínio dos padrões morais na grande mídia, seguida da difusão da TV a cabo, associada à sua total falta de auto-regulação[3], e a competição para fazer chocar mais os espectadores para aumentar a audiência, fez da tortura coisa normal das noites de TV em casa (em programas como “Lost” e “24” [N.R.: no Brasil, “24 Horas”]) alguns anos atrás. Antes disso, a tendência entre os rappers de reproduzir o código de rua, tão bem parodiado por Chris Rock no filme “CB4”, foi amplamente difundida e por sua vez alimentou uma cultura de violência já infelizmente muito difundida nas nossas áreas urbanas. A violência rural, evidentemente, há muito é apresentada pela grande mídia, mas geralmente com a intenção clara de provocar repulsa pelo racismo e violência doméstica. Mesmo assim esses retratos perderam sua força depois que filmes ambientados em pequenas cidades (“Sons of Anarchy”, [N.R.: no Brasil, “Filhos da Anarquia”]), nos subúrbios (“Breaking Bad”, [N.R.: no Brasil, “Ruptura Total” ou “Breaking Bad: A Química do Mal”]) e mesmo no velho oeste (“Deadwood”) buscaram uma abordagem realista baseada em sangue jorrando por tudo para mostrar quão sofisticados se tornaram tanto produtores como espectadores.

Esse último desdobramento poderia ter sido previsto como uma extensão inevitável da desmoralização gradual do entretenimento. Nós passamos de “Leave it to Beaver” [da série “Veronica Mars: A Jovem Espiã”[4], com suas falsas imagens de felicidade suburbana, para comédias sexuais infantilóides como “Three’s Company” [N.R.: no Brasil, “Um é Pouco, Dois é Bom e Três é Demais”], com sua continuação previsível, “Three’s a Crowd”, uma sequência que teve pouca audiência sobre um casal em coabitação que compartilhava os aposentos com o pai da mulher. A moralidade sexual logo se tornou ultrapassada, mesmo com as críticas um tanto quanto moralistas que os grupos de pais e educadores dirigiram à violência veiculada tanto nas telas de cinema como na TV. É claro que agora o movimento do anti-herói no cinema tem sido um movimento de massas há décadas, embora talvez melhor resumido no herói de “Midnight Cowboy” [N.R.: no Brasil “Perdidos na noite”], um caipira mentecapto cujo objetivo de vida era se tornar um prostituto.

Libertinos sexuais sempre insistiram que sua forma de libertinagem traria paz e amor. Mas isso não ocorre; ao contrário, abre espaço para mais estrago em um mundo cada vez mais desordenado. A “liberação” sexual da onda [do momento] andava de mão dadas com a crescente marginalização, por parte dos meios de comunicação, de temas e figuras religiosos, assim como da moralidade. “M*A*S*H” pode ter retratado seu capelão militar como alguém ineficaz, mas o programa televisivo pelo menos reconhecia a sua existência – algo quase desconhecido dos dias de hoje.

Para onde tudo isso nos leva? Certamente não para além do bem e do mal. Antes, deixa muitas pessoas ao nosso redor enamoradas pelo mal. Isso não significa que qualquer um que veja “Breaking Bad” vá imediatamente considerar a vida de um traficante de drogas como uma forma legítima de pagar um bom tratamento médico.  Mas o “mal bacana” é uma parte ativa da degradação contínua do espaço público, que está longe de ser irrelevante para nossa vida privada e pessoal.

O moderno pensador político de Florença, Nicolau Maquiavel, foi reconhecido como o pregador do mal por ter defendido a necessidade de um príncipe que fizesse o trabalho sujo necessário para reunificar a Itália contra os bárbaros. É muito comum entre os entendidos em política de hoje dizerem que a má fama sobre Maquiavel é mera hipocrisia, já que todos na política agem como Maquiavel disse que agiriam, embora queiram parecer virtuosos. Não somente essa suposta “análise sofisticada” é factualmente incorreta – muitos homens de vida pública sacrificam seus gostos pessoais pelo bem comum e o fazem com a intenção de praticar e dar o exemplo da virtude –, mas é também perversa. O cinismo que diz “todos fazem isso” leva à auto-indulgência do vício. Nenhum filme, série de TV, ou qualquer outra forma de entretenimento pode criar uma cultura de vícios. Mas o flerte complacente e frequente com o mal pode, de fato, tornar o mal algo “bacana” na mente do grande público. O resultado será o agravamento da deterioração de uma moralidade pública já bastante debilitada.

Bruce Frohnen é contribuinte sênior no jornal on-line The Imaginative Conservative, é professor de Direito na Ohio Northern University College of Law e autor dos livros Virtue and the Promise of Conservatism: The Legacy of Burke and Tocqueville e The New Communitarians and The Crisis of Modern Liberalism e editor (junto com George Carey) do livro Community and Tradition: Conservative Perspectives on the American Experience.

Artigo publicado originalmente em 19 de setembro de 2014 no journal on-line The Imaginative Conservative, link:
http://www.theimaginativeconservative.org/2014/09/cool-evil.html.
Permissão da tradução e publicação em português neste site dada por Stephen M. Klugewicz, Ph.D., editor do journal. Para saber mais sobre este jornal, clique em The Imaginative Conservative.

Imagem extraída da publicação original, neste link.

Tradução: Marco Antonio.

Revisão e edição da tradução: João Toniolo.

 

NOTAS DA REVISÃO E EDIÇÃO DA TRADUÇÃO:

* As Notas do Tradutor estão indicadas com “N.T.” e as do revisor e editor da tradução como “N.R.” (ou numeradas).

[1] N.R.: A frase no original inglês aqui é “The attractiveness of evil also comes from the increasing extent to which it seems to ‘pay’ in contemporary fiction”. “Pay” tem o sentido de pagar, mas também de “ser útil”, entre outros. Parece que o autor joga com a multiplicidade de sentidos que esta palavra tem, pelo fato da cultura do “mal bacana” gerar dinheiro e ao mesmo tempo ser útil para o fim de ganhar dinheiro.

[2] N.R.: Como se na época medieval as coisas fossem somente assim como a série trata. A esse respeito, cf. os livros de Régine Pernoud, O Mito da Idade Média e Luzes Sobre a Idade Média.

[3] N.R.: Note que o autor fala em “auto-regulação”, que é diferente de regulação total da mídia pelo Estado.

[4] N.R.: “Leave it to Beaver” é 22º e último episódio da primeira temporada de “Veronica Mars: A Jovem Espiã”.

Levando o mal a sério

Sem Categoria | 03/12/2014 | |

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Onde estava Deus no fatídico 11 de setembro, quando as torres gêmeas desabaram sobre nossos olhos, matando um grande número de pessoas que, em sua maioria, tinham família e filhos? Por onde anda Deus, atualmente, nos conflitos no Iraque, atacada por jihadistas do tal “Estado Islâmico”, executando sumariamente a sharia a curdos e cristãos? Onde está Deus diante das inúmeras pessoas que morrem de tantas doenças incuráveis?

A existência do mal sempre foi um problema filosófico. Podemos intuir que uma grande quantidade dos males do mundo decorre do exercício da liberdade pelo homem: terrorismo, guerra, assassinato, abortos, nazismo, fascismo, comunismo, traição, abuso dos necessitados, infidelidades, transmissão de certas doenças, abuso de poder e a epidemia pátria, a corrupção política.

Mas isso não explica os males físicos, como o câncer, e as devastações provocadas por ações naturais (terremotos, tsunamis) e, muito embora o sentido da dor enriqueça a compreensão da realidade e a empatia das pessoas, parece haver sofrimentos que não acarretam a ideia do alcance de um bem maior, como a situação de crianças órfãs de pai e mãe.

O problema filosófico do mal gira em torno de dois temas principais: a liberdade humana e a existência de Deus. É evidente que um Deus onipotente, onisciente e benevolente poderia evitar tudo isso. Por que não o faz, se Ele existe? Porque Deus poderia destruir o mal, mas não sem antes destruir nossa liberdade. Essa seria uma resposta razoável sob o ângulo que aqui tratamos.

Mas se Deus não existe mesmo, então, como não conseguimos superar a antítese do bem e do mal — lutar por consolidar o primeiro e eliminar ou reduzir o segundo — a vida humana, como efeito disso, segue abandonada e só nos resta viver da “náusea da vida”, como responderam vários pensadores modernos que, “agindo como se Deus não existisse”, conduziram muitos de nós ao desespero existencial ou ao indiferentismo religioso até se concluir que o homem é, no final das contas, um grande absurdo (Camus) ou um ser para a morte (Sartre).

A solução filosófica para esse dilema, se é que há alguma puramente filosófica, necessariamente vai implicar numa tomada de postura sobre a existência de Deus. O mal é uma prova cabal da liberdade imperfeita do homem. É verdade, por outro lado, que, por si só, essa liberdade não consiste numa prova da existência de Deus. Mas temos de admitir que muitas das respostas da filosofia moderna ficam sem palavras para a liberdade, pois a admitem apenas no finito e negam ao homem a possibilidade de um juízo final.

O mal, como efeito de uma ação livre, existe desde o começo do mundo, sendo imputável à nossa natural e invencível imperfectibilidade terrena. A liberdade é capaz de fazer com que um homem aja bem ou não evite o mal. A mesma liberdade, diante da dor e da comoção que o mal nos provoca, pode até nos guiar a aliviar o mal alheio e suportar o próprio como uma purificação, tornando nosso homem mais livre, porque se remove o egoísmo que obscurece a possibilidade de abertura para o transcendente. Quanto aos males que fogem da ação humana, tudo ainda é um mistério.

A existência do mal na sociedade é um fato inevitável, que condiz com a grandeza de um Deus que, além do ser, deu ao homem o maior presente: uma liberdade para o amor. A experiência da vida faz-nos intuir que não se sustenta facilmente a inexistência de um Ser Superior e de uma vida após a morte.

Pelo contrário: apenas um bom, onipotente e providente Deus, prometendo uma vida futura, poderia ser a explicação do mal. Quem mais? O Deus do 11 de setembro, dos curdos e cristãos desterrados ou executados e dos doentes incuráveis estava e está dando sua vida na cruz para os mortos, consolando a tristeza dos enfermos e sofrendo por aqueles que utilizaram e utilizam tão terrivelmente o dom da liberdade. Com respeito à divergência, é o que penso.

■■ André Gonçalves Fernandes (coordenador do IFE Campinas)

Publicado no jornal Correio Popular, no dia 03 de setembro de 2014, página A2, Opinião

A pobreza do mal – por Theodor Dalrymple

Política e Sociologia | 15/08/2014 | | IFE CAMPINAS

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I. A única causa inquestionável da violência, tanto política como criminosa, é a decisão pessoal de a cometer. (Excluo aqueles casos raros nos quais está em jogo uma malformação neurológica ou distúrbio fisiológico). Deste modo, qualquer estudo sobre a violência que não leve em conta os estados de espírito é incompleto e, na minha opinião, seriamente insuficiente. É Hamlet sem o Príncipe.

Evidentemente, os estados de espírito têm também suas causas. Mas a procura por causas remotas ou supostamente últimas constitui freqüentemente o meio pelo qual evitamos a consideração de causas próximas, sempre inconvenientes ou desconcertantes. Tentamos esvaziar o mundo do seu conteú- do moral atribuindo tudo a forças impessoais que, naturalmente, só nós, espertos como somos, podemos remediar – logicamente, tão logo nos dêem o poder para tal.

Ironicamente, contudo, o hábito de se enxergar pessoas como exemplos de abstrações políticas ao invés de se olhar para a sua realidade concreta como indivíduos foi umas das causas mais poderosas da assustadora violência política do século passado. Matar um inimigo em virtude da raça ou classe à qual pertence é mais fácil do que matar o Sr. Smith ou o Sr. Jones. A própria extensão do massacre servia para assegurar àqueles que o cometiam de que estavam a serviço de algum propósito mais elevado, pois, caso contrário, jamais teria sido levado a cabo.

II

Meu interesse pelas causas da violência, se não foi de todo extenso em minha vida, ao menos tem sido bastante intenso. Por inúmeros anos, viajei por países fustigados pelo flagelo de guerras civis, inclusive na América Latina. Foi na América Central e do Sul que aprendi aquilo que talvez tivesse sido uma conclusão óbvia extraída dos livros de história, particularmente a da Rússia do séc. XIX, de que a violência política prolongada não é a expressão espontânea da frustração, da pobreza ou da revolta contra a injustiça, por mais gritantes que sejam, mas sim de disputas entre elites que competem entre si e entre facções ansiosas por se tornarem uma delas. Quanto à explicação das causas da revolta, muito mais importante do que as condições econômicas dos países foi a rápida expansão das universidades para além da capacidade da economia nacional de empregar os serviços dos jovens segundo o patamar a que eles julgavam ter direito com base no seu nível de educação. Revoltas violentas emergem não da miséria, mas do orgulho e da importância autoconferida, e depois frustrada.

Em nenhum outro lugar o papel das universidades no estímulo à violência foi melhor e mais catastroficamente ilustrado do que no Peru. De todos os movimentos de guerrilha latino-americanos que conheci, o Sendero Luminoso foi de longe o pior, e incomparavelmente o mais brutal. Vi certas coisas em Ayacucho, no auge da insurreição, que me convenceram de que, caso o Sendero não fosse desmantelado, o Peru se tornaria o próximo Camboja, e isso numa escala muito mais assustadora. De fato, a ambição do Sendero era levar o Ano Zero de Pol Pot ao mundo inteiro.

O Sendero não surgiu de uma revolta espontânea de camponeses oprimidos desde tempos imemoriais, como muitas vezes foi pintado, mas foi sim um filhote intelectual do professor de filosofia Abimael Guzmán (que tinha escrito sua dissertação sobre Kant), da Universidade de Ayacucho. Um maoísta insano que não hesitou em criar um culto absurdo da sua própria personalidade – vindo a ser celebrado por seus sectários como o “Presidente Gonzalo” –, Guzmán arregimentou seus primeiros recrutas entre os próprios discípulos. Era preciso um forte descolamento da realidade para que os estudantes tivessem se comportado da forma como se comportaram; coisa que foi proporcionada por uma aceitação acrítica das abstrações maoístas.

A Universidade de Ayacucho, que tinha encerrado as suas atividades no séc. XIX, foi reativada na segunda metade do séc. XX pelo governo peruano numa tentativa de estimular o desenvolvimento econômico numa região empobrecida, segundo os padrões do país. Ao invés disso, essa iniciativa provocou o terror num patamar raramente atingido em outros lugares, e uma bestialidade tão pavorosa, que até hoje tento afastar de minha memória aquelas cenas.

III

Em seguida fui para a Libéria, um país cujas frágeis infraestruturas e instituições foram completamente devastadas numa guerra civil supostamente conduzida em nome da justiça social e política, embora fosse a evidente expressão de uma vontade nua e crua de poder, bem como de enriquecimento ilícito. A história do país na década anterior fora um mergulho num caos e numa anarquia ainda maiores, no curso da qual um oitavo da população foi aniquilada, sendo cada uma das suas etapas acompanhada pela retórica dos propósitos mais elevados.

Conheci pessoalmente um dos líderes do último estágio enquanto estava na Monróvia[1]. Ele assinava como “Marechal de Campo Brigadeiro General Prince Y. Johnson”, e fui aconselhado a falar com ele pela manhã, já que pela tarde ele costumava tomar a sua arma automática e, sob influência do álcool e da maconha, sair atirando nas pessoas mais ao menos ao acaso. Johnson me disse que gostaria de se tornar, ao fim da guerra, um pregador religioso. Discorreu ainda sobre a necessidade de “eleições livres”, “justiça social” e assim por diante.

Um pouco depois, assisti a um conhecido vídeo de Prince Y. Johnson. Não foi fácil, já que na época não havia fornecimento de energia elétrica na Monróvia, uma vez que a usina fora destruída (assim como os bancos, as lojas, as escolas, a universidade e todo o resto). Todavia, consegui acesso a um dos geradores privados ainda em operação e a um projetor de vídeo. O que vi serviu para colocar em alguma espécie de contexto as aspirações e altos propósitos de Johnson.

Prince era o líder da facção que havia capturado o presidente anterior, Samuel Doe. O próprio Doe fora o líder dos soldados que haviam eliminado o seu predecessor, William Tolbert, matando-o brutalmente, bem como todos os membros do seu governo. Nos anos seguintes, Mestre Sargento Doe, com uma aparência algo manca e faminta, transformou-se no suave e gordo Dr. Samuel K. Doe (tendo-lhe sido concedido um doutorado honoris causa por uma universidade sul-coreana, como retribuição pelas concessões de direitos de exploração madeireira na floresta da Libéria – uma confirmação, se acaso fosse preciso, do grande dictum do mais tarde Marechal Mabuto Sese Seko, segundo o qual são precisos dois para que se possa falar em corrupção).

No vídeo Prince Y. Johnson – aquele da “justiça social” e das “eleições livres” – senta-se junto a uma escrivaninha enquanto bebe algumas latas de cerveja diante de Samuel Doe nu e acorrentado no chão. Entre um gole e outro, exige de Doe os números das suas contas bancárias em Londres; e quando este nega que tenha qualquer dessas contas, ele ordena ao seu assistente que tome uma faca e corte as orelhas de Doe a fim de encorajá-lo a falar.

Doe, deposto em nome da democracia e da justiça social, foi torturado até à morte por hemorragia.

Foi na Libéria que eu descobri o quão poderosa e irrestrita pode ser a revolta contra a civilização. É claro que eu tinha lido sobre essas coisas nos livros; minha mãe fora uma refugiada da Alemanha nazista. Mas não acreditamos realmente em algo até que o tenhamos visto com nossos próprios olhos; ou melhor, nada tem o mesmo impacto do que aquilo que vemos com eles.

A Libéria, antes da queda dos presidentes Tolbert e Doe era sem dúvida atrasada e primitiva em vários aspectos, mas não em todos. O hospital principal da capital, por exemplo, realizava nessa época cirurgias cardíacas com o coração exposto; um tipo de procedimento que requer uma infraestrutura altamente confiável e sofisticada. No tempo em que fui visitá-lo, entretanto, já estava completamente destruído, como todos os demais hospitais do país. Não falo de bombas ou morteiros; as estruturas estavam intactas. Delinqüentes, na verdade, tinham-no percorrido de cima a baixo, destruindo sistematicamente cada um dos equipamentos, do primeiro ao último, de modo a incapacitar seu funcionamento e eliminar qualquer possibilidade de reparo. O trabalho despendido nessa destruição foi considerável, e realizado sem nenhum outro objetivo que não fosse a própria devastação; a roda de cada uma das macas foi cuidadosamente serrada, e isso com um grau de atenção ao detalhe que teria sido absolutamente admirável caso se tratasse de uma tarefa de maior valor. E nada foi roubado: os restos de cada peça dos equipamentos foram mantidos no mesmíssimo lugar, como se fosse uma advertência dirigida a quem quer que pretendesse reavivar a instituição de que seus esforços seriam inúteis – pois o anjo da destruição retornaria.

IV

Resisti à conclusão de que essa revolta simbólica contra a civilização fosse algo peculiar ou exclusivo da África, o resultado de uma estrutura mental primitiva ou carente de sofisticação intelectual. Em primeiro lugar, jamais notei tal carência nos anos em que vivi por lá; o atraso em termos materiais nunca é um sintoma de atraso mental. E, além disso, uma leitura dos livros do jornalista francês Jean Hatzfeld sobre o genocídio na Ruanda bastaria para fazer desmoronar essa idéia.

Hatzfeld apresenta em seus livros entrevistas com grupos que sobreviveram ao genocídio e também com grupos responsáveis por ele. Posteriormente, ele os entrevistaria mais uma vez após estes últimos terem sido liberados da prisão e mandados de voltas às suas cidades lado-a-lado com seus vizinhos, aqueles que mesmos que antes tinham tentado exterminar. É difícil pensar em algo mais terrível de se narrar.

Mas os entrevistados dos livros de Hatzfeld falavam sobre o que tinham sofrido e realizado de modo eloqüente, e com uma sofisticação intelectual muito maior do que a que se espera de um cidadão médio em meu próprio país. Qualquer que tenha sido a causa do genocídio de Ruanda, não é possível se falar em incapacidade intelectual por parte dos cidadãos ou em uma simplória falta de noção do que estava em jogo em termos morais.

Um primatologista contou-me certa vez que 40% da discrepância entre países no que diz respeito ao nível de violência era atribuível a diferenças na taxa de crescimento populacional. Quanto maior o crescimento da população, maior a disseminação de violência política e criminosa. E, certamente, o crescimento populacional em Ruanda foi surpreendente: cada mulher dava à luz, em média, a nove crianças – e isso contando-se só as sobreviventes.

Todavia, esta explicação tão abstrata está muito longe de dar conta do que de fato aconteceu em Ruanda. Qualquer um que leia os livros de Hatzfeld não tem como não se espantar com a expansiva e prazenteira maldade dos criminosos, os quais, depois de um duro dia de chacina, costumavam festejar e dançar, antes de ir dormir alegremente exaustos. Eles estavam passando, literalmente, os melhores dias das suas vidas.

As barreiras civilizacionais normais tinham sido demolidas, e os preconceitos em favor do comportamento minimamente decente superado (quantas vezes não nos esquecemos de que os preconceitos, com a mesma freqüência com que nos impedem de ser civilizados, também nos mantêm civilizados). Talvez a civilização não passe mesmo de uma fachada que recobre nossa verdadeira natureza, como tantas vezes tem sido acusada; mas isso só faz dela algo mais, e não menos, essencial.

V

Após passar alguns anos vagando por guerras civis, retornei ao meu país, a Inglaterra, para exercer a medicina num hospital localizado num bairro pobre, e também na grande penitenciária que havia ao lado. O que descobriria nos próximos quinze anos alarmou-me mais do que qualquer coisa que tenha observado nos países assolados pela guerra pelos quais passei.

Até o meu retorno, tinha conservado uma visão levemente cor-de-rosa sobre meu país. O General de Gaulle começou as suas memórias com essa frase prosaica “toute ma vie, je me suis fait une certaine idée de la France” – toda a minha vida fiz uma certa idéia da França – mais especificamente uma idéia de glória e grandeza, de um país que era uma luminária para o mundo no que se refere a todas as artes da civilização. Bem, de certo modo eu fazia uma certa idéia da Inglaterra: de um país exemplar em matéria de civilidade, cujos habitantes mantinham uma visão intrinsecamente irônica da vida, o que lhes permitia agir com um louvável auto-controle. O que eu descobri foi precisamente o oposto.

Nos anos que se seguiram ao meu nascimento (ao qual não atribuo, é claro, nenhuma significância causal nessa matéria), meu país deixou de estar entre as nações mais civilizadas e livres do crime no mundo ocidental, para estar entre as mais inseguras e ameaçadas por ele. É como se, nesse intervalo, a população tivesse experimentado uma mudança radical de gestalt: o que era visto como bom era agora mau, e vice-versa. O auto-controle passou a ser visto como mera hipocrisia e (o que é muito pior) uma traição ao próprio eu. Uma visão sub-freudiana das conseqüências do controle sobre nossos desejos tinha tomado conta das pessoas. Não se acreditava mais que desejos arbitrários cresceriam a medida que fossem excitados; mas que, como um fluido num recipiente fechado, não podiam ser comprimidos, tendo de ser libertados de um modo ou de outro.

VI

Essa mudança de atitude ocorreu sem dúvida lentamente. Lembro-me, por exemplo, de um debate nos anos 70 sobre as conseqüências para o comportamento social do aumento crescente do nível de violência em programas de televisão. Os participantes dividiram-se em dois grupos principais: aqueles que acreditavam que a violência cada vez maior na televisão e no cinema seria imitada na vida real, com um correspondente crescimento da violência; e aqueles que, ao contrário, pensavam que isso teria efeitos catárticos, levando a uma queda nos níveis de violência na realidade.

De acordo com o primeiro grupo, aqueles que assistiam ininterruptamente a uma série de filmes ou programas de televisão violentos acabariam mais inclinados a cometer atos de violência. De acordo com o segundo, por sua vez, essas mesmas pessoas ficariam, pelo contrário, menos inclinadas a isso. Sua justificativa era que dentro de cada pessoa haveria um potencial fixo ou uma certa quantidade de violência concentrada, a qual tinha de ser descarregada tal qual eletricidade estática, fosse virtualmente pela imaginação, fosserealmente pelas vias de fato. Se a violência fosse descarregada pela imaginação, haveria conseqüentemente menos violência na realidade.

No debate, acabei por me alinhar instintivamente, e sem dúvida a partir de fundamentos inadequados, com a primeira escola de pensamento. Em minha época de estudante, havia visto o filme de Stanley Kubrick baseado no livro de Anthony Burgess, A laranja mecânica, e ficara horrorizado ao me deparar, fora das salas de cinema, com alguns jovens vestidos como o gratuitamente violento protagonista do filme. Não sei se esses rapazes chegaram alguma vez a cometer realmente um ato de violência, mas o simples fato de terem achado aquele personagem tão brutal uma figura atraente e digna de imitação era já algo suficientemente assustador. O bom senso sugeria naturalmente que era muito mais provável que aquela admiração gerasse a violência do que a inibisse.

Essa experiência, mesmo sendo uma evidência tão precária, inclinou-me psicologicamente a aderir à primeira (e mais cautelosa) linha de pensamento sobre o problema. Mas na verdade, até onde sei, as evidências indicam que as representações de violência na tela não levam de modo algum pessoas adultas normalmente pacíficas a se tornarem violentas. Todavia, crianças que crescem desde os primeiros anos expostas diariamente a uma boa dose destas representações ficam muito mais inclinadas – apenas estatisticamente, e não em todos os casos –  a adotarem um comportamento violento. Em sociedades no seio das quais, fosse por seu isolamento ou por qualquer outro motivo, a televisão foi introduzida em um estágio comparativamente tardio, verificou-se que os índices de violência não subiram imediatamente, mas dez anos depois; justamente no momento em que a primeira geração de crianças expostas a ela atingia a idade na qual se tornaram capazes, sem dúvida por razões biológicas, a cometer atos violentos.

Na Inglaterra, certamente as águas desse debate tornaram-se turvas em razão do problema da censura. Pois os liberais intuíram instintivamente que, caso ficasse provado que a violência nas telas acarretava de fato a violência na vida real, surgiria uma forte demanda pela censura. Diante desse risco, eles passaram a empregar um imenso esforço intelectual tentando negar as evidências que apontavam numa única direção – embora de fato estivessem longe de serem totalmente conclusivas. Esqueciam-se de que o fato de a violência nas telas efetivamente promover, segundo as estatísticas, a violência na vida real, não implica necessariamente que a censura seja a única solução; assim como do fato de que o álcool cause cirrose no fígado (com muito mais certeza do que a correlação entre as telas e a violência), não se segue que ele deva ser proibido. Poucos fins são tão desejáveis a ponto de justificarem o uso de quaisquer meios; e, do ponto de vista lógico, é perfeitamente possível aceitar que a violência nas telas leve à violência na vida real e ainda assim recusar o uso da censura, ao menos pelo poder público. Afinal de contas, os remédios se revelam com freqüência muito piores do que a doença.

VII

Uma nova versão desse debate surgiu com a retomada da psicologia evolucionista ou darwiniana. Segundo esse ponto de vista, em poucas palavras, nós, enquanto espécie, utilizamos a violência para preservar e promover a disseminação dos nossos genes. Isso explicaria, por exemplo, porque há uma tendência muito maior ao abuso e assassinato de crianças por seus padrastos ou madrastas do que pelos pais biológicos. Padrastos que assassinam seus enteados seriam como os leões que, ao se tornarem machos dominantes de seu respectivo grupo, matam os filhotes do antigo macho alfa. O novo leão não tolera – ou melhor, os seus genes não toleram – que a Dona Leoa desperdice as suas energias maternais promovendo ou disseminando os genes de outro leão em prejuízo das chances de sobrevivência e crescimento da sua própria prole. Isso valeria para os padrastos humanos em geral: eles não aceitariam que a mãe dos seus filhos biológicos atuais ou futuros se dedicasse a cuidar dos filhos de outro homem; e tampouco aceitariam gastar as suas energias com uma tarefa tão contraproducente do ponto de vista dos seus próprios genes.

É desnecessário dizer, entretanto, que tal hipótese – por mais atraente que possa ser para aqueles que, como alternativa às concepções de Marx e Freud, buscam uma explicação total e definitiva para o comportamento humano – jamais será suficiente para explicar a variação, no tempo ou no espaço, das taxas de violência homicida contra crianças. Não explica, por exemplo, porque a maioria dos pais adotivos não mata ou abusa de seus filhos não-biológicos, embora, segundo essa concepção, isso devesse ocorrer com maior freqüência do que no caso dos pais biológicos. Tampouco explica porque a relação entre padrasto e filho, antes rara na Inglaterra, tenha se tornado tão comum nas últimas décadas. Quando eu nasci, menos de 5% dos nascimentos procedia de pais não casados; agora a taxa é de 42%, e segue crescendo. É provável que pelo menos 40% das crianças britânicas de hoje passem, ao menos em algum período da infância, pela experiência de morar com um pai ou mãe solteiros, ou casados com outros parceiros (ou, evidentemente, ambos ao mesmo tempo). Certamente, hoje em dia é mais comum que crianças britânicas tenham uma televisão em seus quartos do que um pai em suas casas: com efeito, há duas vezes mais crianças britânicas (36%) que nunca desfrutam de uma refeição com outros membros da família, do que crianças que não têm um televisor em seus quartos (21%). Esses desdobramentos recentes, bem como o correlato crescimento do número de paternidades putativas (envolvendo padrastos e madrastas), dificilmente podem ser explicados pela psicologia evolucionista; a não ser que se valham do tipo de ação de retaguarda intelectual tal como a usada pelos astrônomos que queriam preservar a todo custo o sistema ptolomaico contra o desafio copernicano.

VIII

Seja como for, fiquei chocado, e bastante perturbado, com o nível de violência que descobri entre os meus pacientes na Inglaterra. Tal violência não era de modo algum uma resposta ao desespero econômico, ao menos em nenhum sentido muito óbvio ou direto, como a fome ou a falta de moradia. A carência total de meios materiais, do tipo que meu pai presenciou na zona leste de Londres durante e logo após a Segunda Guerra, já havia sido completamente erradicada na época. De fato, meus pacientes, embora relativamente pobres segundo os padrões médios da sociedade em que viviam, tinham acesso a confortos e comodidades que teriam feito Luís XIV perder o fôlego de surpresa e admiração. (Realmente não há modo melhor de avaliar o progresso material conquistado por nós do que considerar as doenças e o tratamento médico de gente como Felipe II da Espanha, Luís XIV da França e Carlos II ou George III da Inglaterra. Quase ninguém, nos dias de hoje, sofre as agonias experimentadas por esses monarcas ou as atrocidades a que foram submetidos pelos médicos da época). Mas essa era uma consolação inútil para meus pacientes, que se comparavam não a Luís XIV, mas aos seus contemporâneos ricos.

O desespero nas sociedades contemporâneas não é absolutamente um estado psicológico que possa ser explicado pelo desconforto ou pela frustração de quaisquer necessidades materiais. Há muito se sabe que nas sociedades ocidentais o suicídio é tão freqüente nas classes sociais mais altas quanto nas mais baixas. Hoje em dia, não só as classes baixas não sofrem, como outrora, carência em nível calamitoso, como também as mais altas não são minimamente afetadas por ela. Assim, nas sociedades modernas, é impossível sustentar que o desespero e a angústia estejam diretamente relacionados às circunstâncias econômicas.

Entretanto, o desespero desolador dos meus pacientes – entre os quais contavam-se tanto vítimas como autores de violência doméstica – estava fora de qualquer dúvida. Devo observar que examinei entre 10 e 15 mil casos de tentativa de suicídio, envolvendo graus variáveis no que diz respeito à vontade de morrer. A cada ano, procuravam-me mais ou menos 400 mulheres que tinham sido espancadas pelos seus parceiros, e por volta de 400 homens que tinham acabado de espancar suas parceiras. Era também consultado por um número cada vez maior de mulheres que tinham cometido atos violentos – mais de cem por ano. De fato, a violência por parte das mulheres aumentava rapidamente. É como se elas estivessem determinadas a provar que eram iguais aos homens em tudo… até na violência.

A minha amostragem do material humano inglês era, evidentemente, peculiar; mas estava longe de ser pouco numerosa. Cada paciente contava-me não só coisas sobre a sua própria vida, mas também sobre as vidas de quatro ou cinco pessoas conhecidas. Em todo esse tempo no qual trabalhei no hospital, devo ter ouvido sobre as vidas de pelo menos 5 a 10% das pessoas que viviam numa cidade de um milhão de habitantes. Uma vez que havia outros dois hospitais muito parecidos com o meu na cidade, nos quais números similares de tentativas de suicídio eram tratados, pode-se concluir razoavelmente que as histórias que me eram contadas representavam as vidas de algo em torno de 15 a 30% de sua população. E isso constituía um número mínimo, porque evidentemente nem todos os que eram tratados tinham um parente próximo ou amigo que tivesse tentado o suicídio. Em outras palavras, a violência estava de fato se alastrando amplamente.

Havia também outras razões para se supor que ela estava crescendo. O número de pessoas que tomavam overdoses tinha aumentado, enquanto a população mantinha-se mais ou menos estável; o número de homens que haviam ingerido overdoses crescera de modo particularmente rápido, tanto absoluta quanto relativamente. Quando comecei a trabalhar no hospital, mais mulheres do que homens tomavam overdoses; quando saí era o contrário.

Os homens que tomavam overdoses eram predominantemente jovens, e mais ou menos um quarto deles tinha acabado de cometer violência contra suas namoradas. É claro que a intensidade dessa violência variava, mas normalmente tratava-se de algo suficientemente assustador, fato confirmado pela natureza das histórias contadas pelas vítimas. Além disso, os jovens que cometiam violência contra suas namoradas eram também freqüentemente violentos no trato com outras pessoas: sua violência era fruto de uma propensão geral.

Não desenvolvi nenhuma espécie de tipologia formal baseada nesses atos, mais eis uma pequena amostra: estrangulamento, muitas vezes até a perda de consciência; chutes no estômago com a finalidade de provocar abortos; arrastar a mulher no chão pelos cabelos; bater a sua cabeça contra uma janela e mesmo através dela; trancafiá-la num armário por um dia inteiro; queimá-la com cigarros acesos; esmurrá-la repetidamente no rosto; ameaçar jogá-la de uma sacada situada muito alto (um homem chegou inclusive a suspender sua namorada pelos tornozelos da sacada do décimo primeiro andar).

IX

Assim, das duas uma: ou essa violência estava se tornando mais freqüente, ou era o hábito de se tomar overdoses após praticá-las que aumentava. A primeira hipótese parece mais provável. Mas porque essas pessoas tomavam overdoses depois de se comportar dessa maneira?

Haviam três razões principais para isso. A primeira, e menos freqüente, era que, depois da mulher violentada apresentar uma queixa à polícia, o seu parceiro tomava uma overdose a fim de deixar claro que ele sofria de algum desequilíbrio, psicológico ou fisiológico, coisa que ajudaria a provar sua inocência caso o inquérito chegasse à Justiça.

A segunda razão era um pedido de perdão dissimulado à mulher agredida, que ameaçava deixá-lo. Era dissimulado porque, como veremos adiante, a sua violência era deliberada, astuta, calculada e propositada. Contudo, as desculpas fingidas muitas vezes eram bem-sucedidas. Elas sempre traziam um componente de chantagem emocional: “Se você me deixar eu me mato e você jamais será capaz de se perdoar por isso”.

A terceira razão era talvez um pouco mais sutil. A maioria das pessoas desejam ter uma boa imagem de si para si mesmas. Elas aceitam implicitamente a visão de Rousseau (sem nunca ter ouvido falar em Rousseau, é claro, já que a influência intelectual é muitas vezes indireta), segundo a qual o homem nasce puro e bom, mas as influências perturbadoras do meio social acabam por pervertê-lo. Tomando uma overdose e recebendo atenção médica, o homem violento encontra os meios de se persuadir a si mesmo de que não há nada errado com ele – pois caso contrário ele não teria tomado uma overdose –, e de que ele é, na verdade, a maior vítima da sua própria conduta. Ao mesmo tempo, sendo a mente humana um instrumento complexo e contraditório, ele sabe perfeitamente bem que continuará a cometer os mesmos atos violentos já que eles servem aos seus propósitos.

Pessoas assim buscam apresentar a sua violência como uma espécie de enfermidade neurológica incontrolável, um pouco como um ataque epilético. Seriam, assim, incapazes de evitá-la: “ela simplesmente toma conta de mim”, como dizem sempre. Estranhamente, trata-se de uma idéia que a própria mulher agredida tende a abraçar de forma entusiástica. Ela prefere não acreditar que o homem a quem ama, ou que crê amar, seja de fato um perverso que age por pura maldade; que a sua imagem dele era uma mentira, e seus critérios suspeitos. Deseja continuar ao lado do homem que a espancou, desde que ele passe por um tratamento. Assim, ela joga o jogo de faz-de-conta de seu parceiro, fingindo, como ele, que tudo é decorrência inevitável de algum distúrbio clínico do qual é inocente.

Participei de conversas como a seguinte talvez milhares de vezes:

Mulher agredida: Ele precisa de ajuda, doutor.

Eu: Que tipo de ajuda?

Mulher agredida: Algo toma conta dele. Os seus olhos ficam estranhos, e é como se ele não estivesse mais lá. Ele não consegue se controlar, doutor, ele me bate… me estrangula… dá socos…

Eu: Diga-me uma coisa: por acaso ele faria isso na minha frente?

Esta única perguntinha, bastante simples e óbvia, tem muitas vezes a força de uma epifania para a mulher agredida. Como a resposta é obviamente “não”, a conclusão inescapável é que o parceiro é de fato perfeitamente capaz de se controlar e simplesmente opta por não fazê-lo. Deste modo o auto-engano da mulher acaba por se revelar repentinamente nesse diálogo. Trata-se de um momento sem dúvida desconfortável para a mulher violentada, pois, em primeiro lugar, ninguém gosta de se ver exposto às suas próprias mentiras, mas, sobretudo, porque isso transfere do médico para ela mesma o ônus da responsabilidade por tomar alguma atitude em relação ao problema, e a obriga a fazer uma escolha nua e crua entre duas alternativas, ambas inevitavelmente dolorosas: aceitar o parceiro como ele é ou simplesmente abandoná-lo. Ao mesmo tempo, a dissolução do mecanismo de auto-engano é experimentada como um alívio; é como se um fardo fosse subitamente tirado dos seus ombros, pois com algum grau de consciência é certo que no fundo sempre soube que estava contando uma mentira para si mesma. Manter um fingimento é um trabalho árduo, e para se dissimular uma mentira é necessário um grande dispêndio energia – especialmente quando se trata de mentir para si mesmo. Mas então a mulher torna-se capaz de ver o absurdo do seu auto-engano, bem como de rir dele.

X

De modo igualmente tortuoso, o agressor sabe perfeitamente bem que não se sente culpado pelo que fez, que só está fingindo a vontade de superar o seu problema, e que, na realidade, pretende continuar a se comportar exatamente como antes. Mas porque ele age assim? Quais possíveis vantagens aufere através da sua conduta violenta?

Em primeiro lugar há o amor puro e simples pela crueldade em si mesma: é prazeroso, ao menos para algumas pessoas, causar sofrimento a outras. Mas mais importante é entender a natureza do desejo sexual tal como se manifesta na Inglaterra contemporânea.

Todas as pessoas – e particularmente os homens – buscam conquistar, por um lado, uma liberdade sexual absolutamente irrestrita e, por outro, a exclusividade total da posse sexual sobre outra pessoa. Não é difícil ver como esses dois desejos completamente incompatíveis, quando disseminados massivamente por uma população (como de fato vem ocorrendo na nossa), levam à violência e a um caos incontrolável. Pois se um homem é deliberadamente um predador sexual; se, por exemplo, sua namorada atual foi “roubada” de seu melhor amigo – um padrão recorrente, diga-se de passagem –, ele naturalmente acreditará que cada um dos outros homens age do mesmo modo, e que, portanto, todos eles representam uma constante ameaça a ele e à sua masculinidade. Ele será totalmente incapaz de confiar em alguém; sequer em seus assim chamados “amigos”. Isso explica porque os infiéis incorrigíveis são também, com freqüência, ciumentos mórbidos. Explica também o motivo pelo qual tantos casos de violência doméstica começam com um homem olhando diretamente para a mulher de outro em algum bar ou casa noturna. O sujeito acredita que está sendo desafiado diante de sua mulher, a qual estaria sendo cogitada por outro como uma possível parceira sexual. O fato de que em outras circunstâncias ele se comporte exatamente do mesmo modo só faz aumentar ainda mais a sua indignação.

Nada disso importaria muito se a exclusividade da posse sexual não fosse tão importante para esses homens – mas o problema é que ela é. Eles não são sutis o suficiente para disfarçar o seus instintos predatórios, mantendo-os em segredo; o velho hábito de lançar um véu sobre eles, e de disfarçá-los como se fossem alguma outra coisa, subitamente desaparece. Uma irrupção crua leva instantaneamente à violência real.

Uma das maneiras que um homem que vive em tais ambientes tem de assegurar a exclusividade da posse sexual sobre sua mulher, ao menos até o momento em que ela o deixe definitivamente, é ameaçá-la com agressões arbitrárias e imprevisíveis. O homem que vê em todos os outros um possível predador sexual será, decerto, extremamente ciumento e possessivo; e usará a suposta inclinação à infidelidade da parte de sua mulher como um pretexto para agredi-la. Ela, que é inocente dessas acusações, emprega uma quantidade enorme de tempo e energia mental tentando provar essa inocência – o que, evidentemente, não pode ser feito, já que, para começo de conversa, no fundo ele não acredita realmente nessa culpa – e impedir a todo custo os acessos de cólera do parceiro. Sendo esses acessos completamente arbitrários, ela nada pode fazer para evitá-los: eles são exercícios de profilaxia e não de punição. Uma mulher que está constantemente preocupada com uma agressão iminente e com os meios de impedi-la é incapaz de olhar para qualquer outro homem. Pelo contrário; os seus pensamentos estão incessantemente concentrados no homem que a agride ou violenta – e é precisamente isso o que ele quer. A sua violência pode portanto ser arbitrária, mas não é, como se vê, de todo desprovida de propósito.

Antes que eu passe a considerar as razões pelas quais a exclusividade da posse sexual sobre outro tornou-se algo tão importe numa sociedade que, contraditoriamente, disseminou tão abertamente a liberdade sexual, permitam-me uma brevíssima digressão a fim de mostrar mais uma vez que, infelizmente, o homem é constituído de tal forma que o domínio sobre os outros lhe é extremamente gratificante. A partir do momento em que as barreiras e limites desmoronam, todo um mundo de prazer sádico irrompe; essa é precisamente a razão pela qual as multidões excitam tanto os seus participantes, e pela qual a conservação dessas mesmas barreiras e limites é uma missão tão fundamental para a sociedade. Um dos aspectos mais horripilantes das fotografias tiradas na prisão de Abu Ghraib era o prazer evidente saboreado pelos agressores. Mesmo que o gozo do sadismo não seja universal entre os homens, ele é suficientemente comum e arraigado para, dadas as condições propícias, disseminar o inferno sobre a Terra. Uma tese minha, embora fundada num argumento um pouco diferente, é que foi a política social liberal inglesa, difundida por muitos anos de propaganda liberal, aquilo que permitiu, numa parcela tão grande do país, o desenvolvimento e a infestação de tal inferno.

XI

Agora voltemos à questão das razões pelas quais a exclusividade da posse sexual de outrem é tão importante para tantos jovens que, paradoxalmente, não acreditam em qualquer espécie de restrição à sua própria liberdade. A resposta não tem, evidentemente, nada a ver com o amor – a não ser que seja amor ao próprio ego. O ciumento não ama o objeto do seu ciúme, mas a idéia do seu poder e da sua posse sobre ele.

Nesse ponto, vale a pena refletir sobre três características da sociedade ocidental moderna, da qual é exemplo a britânica. Em primeiro lugar, ela é altamente desigual num ambiente cultural no qual a igualdade é tida como a única base ética da sociedade, sendo de fato o critério absoluto do qual se vale para testar a legitimidade moral. Em segundo, ela é meritocrática, tanto na sua auto-imagem como no fato de que não há nenhuma barreira legal para que uma pessoa ascenda socialmente (ou desça, é claro, mas poucas pessoas se preocupam com esse corolário). Na verdade, essas barreiras legais são inclusive proibidas pelo sistema jurídico. Em terceiro e último, ela é grosseira e cruamente materialista: ou seja, tanto o sucesso como o fracasso são medidos quase que exclusivamente em função das posses materiais, ou pela capacidade de uma pessoa de adquiri-las. É por isso que entre os jovens da zona na qual eu trabalhava havia uma intensa preocupação em usar roupas de marca com logotipos visíveis, cuja posse conferia status, e cuja ausência significava inferioridade. Tive conhecimento de um caso de disputa entre jovens envolvendo o status relativo a uma marca dos tênis usados por um deles, a qual começou com insultos e terminou em assassinato. Nunca o dictum de Freud – e eu não sou freudiano – sobre o narcisismo envolvendo minúsculas diferenças manifestou-se tão clara e tragicamente.

Esses jovens tão violentos procediam de camadas sociais mais baixas do ponto de vista econômico e educacional. Eles tinham poucas chances de sucesso real por não possuírem nem as habilidades nem os talentos necessários para tanto. O seu estado psicológico era uma mistura altamente inflamável: de revolta e ressentimento, por um lado, em razão da frustração de direitos derivados do igualitarismo – o fundamento exclusivo das nossas concepções de justiça –; e, por outro, da consciência do fracasso pessoal e de inadequação, uma consciência excitada pela natureza meritocrática da sociedade. Numa sociedade meritocrática, afinal de contas, o sucesso é merecido: o corolário disso é que o fracasso é igualmente merecido. E quando a posse material é o único critério de sucesso, aqueles que têm poucas posses (ainda que algumas delas tivessem sido suficientes para deixar o Rei Sol maravilhado) são tidos por homens fracassados. Mas homens fracassados com excesso de testosterona.

Uma compensação por esse fracasso só pode ser procurada em outro lugar, em um campo diverso. O controle absoluto sobre uma mulher compensa a total ausência de controle em outras esferas das suas vidas. Um jovem pode não valer nada a partir do momento em que põe o pé fora de casa (embora tente provar aos outros com a sua jactância e o seu andar malicioso que vale alguma coisa), mas dentro do lar ele é mais poderoso do que Stalin. Pela sua violência, ele se torna, ao menos para uma pessoa, todo-poderoso.

A sua violência é genérica, entretanto, e só pode ser inibida pela presença de pessoas mais fortes, mais capazes de a exercer do que ele. Em parte, essa violência se deve também à sua educação. Numa situação de colapso social generalizado, a disciplina nunca se funda sobre princípios, sobre aquilo que em geral é tido por correto praticar. Ela depende, na verdade, do ânimo arbitrário e momentâneo de pessoas que são fisicamente mais poderosas do que o indivíduo, e do que ele é capaz de fazer em tal situação. Nessas circunstâncias, todas as relações humanas se convertem em relações de poder, como na questão de Lênin colocada em forma sintética: “Quem para quem?”; ou seja, quem faz o que para quem? E um poder desse tipo constitui um jogo de soma zero: o poder de um homem é a impotência de outro.

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A violência, portanto, não é jamais uma pura e simples reação a condições sociais adversas. Não é como a chuva, que cai tão logo se verifiquem as devidas condições climáticas. E tampouco é em si mesma um sinal de injustiça social ou de uma situação política intolerável (uma prova disso é que nem sempre as sociedades pacíficas, não-violentas e isentas de crimes são locais onde o direito e a legalidade prevalecem). A violência jamais poderá ser compreendida corretamente se não levarmos em conta as idéias que as pessoas têm sobre o que é certo; o que é justo; o que é correto; o que cada um merece; quais são as conseqüências para quem a pratica; e, acima de tudo, sobre o que é realmente importante na vida. E isso prova a verdade daquele grande dictum de Pascal: esforcemo-nos para pensar com clareza, pois isso constitui o princípio da moralidade.

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos literários do psiquiatra inglês Anthony M. Daniels. Daniels trabalhou no Zimbábue, Tanzânia, África do Sul, Kiribati, e mais tarde no east end londrino e, até aposentar-se em 2005, em um hospital e uma penitenciária situados em uma área de cortiços de Birmingham. Tem escrito regularmente em diversas publicações inglesas e americanas sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Publicou já várias coletâneas de ensaios e relatos de viagens, dentre os quais: Fool or Physician: The Memoirs of a Sceptical Doctor(1987), The Wilder Shores of Marx: Journeys in a Vanishing World (1991), If Symptoms Persist: Anecdotes from a Doctor (1994), Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass (2001), Our Culture, What’s Left of It: The Mandarins and the Masses (2005), Making Bad Decisions. About the Way we Think of Social Problems (2006), In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas (2007), Not With a Bang But a Whimper: The Politics and Culture of Decline (UK edition; 2009).

Tradução de Julio Lemos e Marcelo Consentino.


[1] Capital da Libéria.

Texto publicado na revista-livro do IFE Dicta&ContraDicta, edição nº 4.