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O refugiado mais importante da história

Opinião Pública | 28/12/2016 | | IFE CAMPINAS

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Tratando do grave problema da imigração, recentemente o Papa Francisco recordou, sobretudo aos cristãos que Jesus, Maria e José, a Sagrada Família, fugindo da perseguição de Herodes também tiveram que migrar para o Egito e foram acolhidos como estrangeiros numa terra que não lhes pertencia.

Em Roma e em toda a Itália, a ordem do pontífice é de que conventos, monastérios e instituições eclesiásticas abram suas portas para os migrantes e lhes prestem todo o auxílio necessário.

Todas essas medidas são certamente um alento para aqueles que fogem de seus países, mas são paliativas diante da problemática da questão que na verdade envolve situações muito mais delicadas. Na maior parte dos casos são vítimas do Estado Islâmico, porém não são apenas cristãos que fogem desta guerra fundamentalista, os próprios muçulmanos fogem de outros que professam a mesma fé e que adoram ao mesmo Deus que eles. Sem que o percebam reproduzem em menor escala esse mesmo fundamentalismo, como no caso de muitos dos refugiados que se recusam a receber ajuda da Cruz Vermelha pelo fato de os alimentos virem embalados em caixas com uma cruz, símbolo da instituição, mas que é vista por muitos muçulmanos como ofensa à sua fé ou símbolo de negação à mesma.

Fogem da intolerância, mas são intolerantes com aqueles que lhes estendem a mão, desejando que os ajudem enquadrando-se em sua própria fé. Cobram uma tolerância que não são capazes de dar. Ainda assim, é preciso ajudar, é preciso fazer o que for possível, pois antes de serem sírios, africanos, paquistaneses, cristãos ou muçulmanos, são seres humanos.

A Europa que ultimamente têm se aplicado tanto em apagar sua identidade cristã se vê às voltas com a imperiosa necessidade de amar o próximo como a si mesmo, tal como ensinou o Mestre a quem ela nega. Parecem já não saber bem o que fazer. Desaprenderam a fazer aquilo que fazia parte de sua identidade: a caridade. A confusão dos líderes europeus em decidir o quê e como fazer para ajudar, reflete em certo sentido, a indecisão e confusão dos próprios europeus de modo geral.

Resolver problemas teoricamente sempre é fácil, ainda mais para quem pensa e escreve. Difícil mesmo é conviver com a dificuldade nua e crua, porém não é necessário ser muito versado em política internacional para entender que o problema deve ser enfrentado em sua raiz, ou seja, os conflitos ideológico-religiosos de que estas populações são vítimas. Só se pode falar em solução para essa situação através de uma intervenção militar seguida da criação de estruturas institucionais, sociais e econômicas que promovam o progresso dessas regiões. O ideal é que permaneçam na terra que lhes pertence ajudados pelas grandes potências mundiais.

Concretamente, a situação parece ser outra, as grandes potências parecem dar de ombros a essa situação como que a dizer “que se entendam ou que se matem entre si”. Em nome de nossa própria humanidade, não temos o direito de nos furtar a esse problema… E pensar que num passado recente nossa ex-presidente afirmou que é necessário “dialogar” com terroristas islâmicos só nos pode conduzir à conclusão de que os lunáticos que sonham com a “pátria grande” de matriz socialista na América e os fratricidas do Estado Islâmico buscam o poder pelas mesmas vias e com objetivos bastante alinhados, embora a atuação prática seja um pouco diferente na aparência. Lamentável! Mas o problema é ainda mais profundo: o mesmo Cristo que refugiou-se no Egito fugindo de Herodes, segue fugindo durante a história daqueles que o perseguem ao perseguirem e matarem seus semelhantes, segue fugindo como os cristãos de Alepo que só puderam celebrar o Natal em sua catedral toda destruída após cinco anos de exílio, segue sendo perseguido nos membros de seu corpo místico, a Igreja, segue sofrendo em cada homem que sofre.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

A história esquecida da pós-modernidade (por Rein Staal)

Filosofia | 30/04/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em fevereiro de 1943, no Sportpalast de Berlim, diante de milhares de leais membros do partido nazista, Josef Goebbels fez apelo à “guerra total”. A guerra total veio, e poucos anos depois o Sportpalast era parte das ruínas fumegantes do movimento nacional-socialista.

Martin Heidegger, um dos ex-membros mais famosos do movimento, disse que  “a verdade e a grandeza internas” da visão nazista “consistiam no encontro do homem moderno com a tecnologia global”. Ao observar os destroços desse encontro que ficaram depois da guerra, o escritor alemão Romano Guardini viu neles também o corolário e o colapso do projeto damodernidade. Os anseios que inspiraram os fundadores do pensamento moderno – a conquista da natureza por meio da ciência e, em última análise, a conquista da natureza humana por meio da ciência e conseqüentemente a emancipação do poder com relação a qualquer limite moral – foram concretizados de uma maneira que ultrapassou mesmo os sonhos mais loucos. E esse sucesso transformou-se em cinzas antes de poder ter sido desfrutado.

Guardini sentiu-se compelido a escrever o seu clássico trabalho O fim dos tempos modernos e o seu complemento Poder e responsabilidade. A essência da modernidade, afirmava, repousa no “divórcio entre poder e pessoa”. Depois de séculos de reducionismo e espoliação, a pessoalidade foi reduzida à mera subjetividade, à delgada afirmação de valores sem ancoragem ou horizonte. O poder lançou sua sombra sobre o homem por meio de instituições impessoais e processos que seguiam a sua própria lógica desalmada. “Não há ser que não tenha um mestre”, e o poder demoníaco preencheu o vácuo deixado pelo eclipse da responsabilidade pessoal. Uma vez dissipado o capital moral do cristianismo, restou aos modernos pouco que gastar.

Ultimamente, diante das nossas próprias ruínas, temos visto por toda a parte um raciocínio aparentemente similar: o pensamento moderno percorreu o seu caminho, deixando para trás apenas um ceticismo penetrante acerca de toda a visão significativa da natureza e do destino humanos. Tanto o pós-modernismo acadêmico como o popular estabelecem um tabu contra o exame da realidade última das coisas, justificando-se com um relativismo tão leviano que faria Protágoras corar. E, no entanto, Guardini viu que a verdadeira lição corre no sentido contrário: apenas um entendimento cristão pode dar sentido à condição humana pós-moderna.

Noutras palavras, a crise da modernidade foi atingida bem antes dos modismos acadêmicos do nosso tempo. O pós-modernismo que domina a atmosfera intelectual hoje é um fenômeno secundário, algo derivado e não verdadeiramente radical. Guardini viu isso e foi além: fez um apelo a uma nova antropologia filosófica, que pudesse retomar o entendimento cristão da pessoa como agente participativo numa realidade compartilhada e também como um locus de responsabilidade.

Havia outros pensadores trabalhando na mesma seara. Esse renascimento teísta, esse pós-modernismo primevo brotou das reflexões de um grupo de pensadores europeus que encontraram a resposta para a crise da modernidade no patrimônio espiritual do Ocidente. Nenhum deles viu as patologias da modernidade como a expressão final ou real do significado do Ocidente. Pelo contrário, afirmaram que o fim da modernidade revela a realidade radical da liberdade e dignidade humanas. Viram também que o embate entre o reducionismo naturalista moderno e o subjetivismo pós-moderno é uma briga de família prenunciada pelo eclipse da pessoa.

A maior parte desses pensadores eram figuras marginais no seu tempo. Poucos tinham atuação política e nenhum deles demonstrava simpatia pelo nacional-socialismo ou pelo comunismo soviético. Todos – com a ambígua exceção de José Ortega y Gasset – eram teístas. Alguns deles estavam a meio caminho entre o judaísmo e o cristianismo e quase todos tinham consciência da sua dívida para com uma visão cristã da natureza humana e do destino.

Assim, por exemplo, no outono de 1940, na Paris ocupada pelos alemães, Henri Bergson, já idoso e adoentado, ficou horas em pé sob uma chuva gelada à espera da estrela amarela que seria o seu estigma na nova Europa. Um dos poucos filósofos a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, Bergson recusou a proteção do governo Vichy e escolheu abraçar o destino do seu povo. Ele viria a falecer dentro de poucos meses, mas não sem antes renunciar, em meio a protestos, a todos os seus postos e glórias, num passo profundo para alguém que antes tinha sido professor de filosofia numa das maiores universidades da Europa. Não quis converter-se totalmente ao cristianismo, convencido de que a sua cruz na Europa nazista era morrer judeu.

Num francês primoroso, valendo-se de imagens penetrantes e intuições que desafiavam os sistemas e as definições da filosofia técnica, Bergson ofereceu uma crítica contínua ao que nomeou “razão eleática” da modernidade, por causa da cidade natal dos antigos metafísicos gregos Parmênides e Zenão: o desejo de explicar tudo por meio de categorias intelectuais pré-formadas que não deixam espaço para as experiências humanas – a liberdade, a memória, o amor, o drama e a comédia – que resistem à razão fria e impessoal.

A sua última grande obra, As duas fontes da moral e da religião, publicada em 1932, propunha que toda sociedade, tal como toda alma, podia estar “fechada” ou “aberta” à experiência da transcendência pela qual os seres humanos são capazes de romper os ciclos e processos naturais. Essa abertura, concluía Bergson, só podia fundamentar-se, em última análise, num entendimento cristão da pessoa e da fraternidade universal. E foi para expressar tal fraternidade que ele escolheu morrer usando a estrela amarela.

Mais ou menos na mesma época, um tipo simples que vivia uma vida simples nos Alpes suíços chegou a uma conclusão similar à de Bergson, mas ainda mais radical, revestida de uma linguagem mais poética. Em 1934, uma obra memorável intitulada A fuga de Deus foi publicada por Max Picard, um judeu que mais tarde se converteria ao cristianismo.

Picard viu o Ocidente secular e moderno como um sistema de amnésia espiritual que se autoperpetua: histericamente ocupado sem realizar nada, cheio de comunicação mas falto de diálogo, cheio de brilho e sons altos mas ao mesmo tempo sem sentido e mudo. O amor, a amizade e a lealdade existem apenas como fragmentos no mundo em fuga de Deus: retalhos evanescentes de experiências que vêm e vão. Eis o porquê de as palavras, nos tempos modernos, se terem tornado meros sinais, sem conexão com a pessoa que as pronuncia: “sussurros e sinais substituem as palavras no mundo da fuga… Se dois navios desejam comunicar-se, pequenas bandeiras são içadas numa corda; assim também as palavras tremulam nas frases. Quando dois homens falam um com o outro usando sinais em vez de palavras, a distância entre eles é tão grande quanto a distância entre dois navios: há todo um oceano entre eles, o oceano da fuga”.

A desconstrução impessoal supõe a reconstrução pessoal. As palavras dispersas e fragmentadas devem ser reunidas em oração e enviadas a Deus, pois “apenas diante dEle que é eterno e completo em Si mesmo os mortos e fragmentados podem tornar-se um todo novamente”. Apenas num mundo constituído pela fé num Deus pessoal as relações entre as pessoas humanas desenvolvem consistência e integridade.

Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Picard publicou Hitler em nós mesmos, em que diagnosticava aquilo que Hannah Arendt viria a caracterizar como a “banalidade do mal”. Picard detém-se na figura do nazista cumpridor que, no contexto da sua ocupação profissional como atendente, seria capaz de atravessar a rua correndo para devolver uma moeda a alguém que a tivesse esquecido no balcão de sua loja, mas que seria capaz, noutras circunstâncias, de levar a cabo com a mesma facilidade uma ordem de homicídio em massa. E Picard vai mais longe: vê o nazismo como a expressão última e demoníaca da fragmentação humana, da redução da pessoa a uma entidade aleijada e fechada, apenas capaz de relacionar-se com os outros quando os manipula como objetos.

Enquanto Picard viveu e escreveu na sua montanha na Suíça, os cafés e salões de Paris eram o ponto nevrálgico da história intelectual do século XX, enriquecidos por montes de pensadores émigrés – principalmente russos na década de 1920 e judeus de toda a Europa na década de 1930. Um dos maiores dentre eles foi um judeu russo chamado Lev Shestov, cujos últimos escritos falavam de “cavaleiros da fé” como São Paulo e Martinho Lutero. Shestov está entre os mais ferrenhos críticos do racionalismo nas letras do século XX. Exilado da Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques, via a Primeira Guerra Mundial e as penúrias do país natal como uma lição acerca da loucura do orgulho humano, especialmente a pretensão intelectual de que a razão humana por si só pode organizar e controlar toda a realidade.

Shestov anunciava a necessidade, nas suas palavras, de uma “filosofia bíblica”, que renunciaria à busca filosófica pela explicação da razão necessária das coisas e, em vez disso, poria ênfase na liberdade humana que deriva da liberdade ilimitada de Deus. A filosofia começa não no maravilhamento, mas no desespero, na noite do silêncio e no deserto da solidão. Shestov tomou o Salmo 130 como ponto de partida: “Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração… Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra”.

O último livro de Shestov chama-se Atenas e Jerusalém, em que o autor contrasta o templo da razão auto-suficiente com a cidade da justiça e mede forças com todos os filósofos, de Heráclito a Husserl. Voluntariamente cego para a possível síntese entre razão e revelação, Shestov falou em voz profética a um mundo em que a vida intelectual foi consistentemente desarraigada das suas fundações espirituais. O seu pesadelo de um mundo moldado pelo racionalismo foi descrito por seu amigo Nicolai Berdiaev como “um universo arredondado em que não há mais individualidade, risco ou criação nova”.

Para pensadores mais jovens como Walter Benjamin, Leo Strauss e Alexandre Kojève, Shestov foi a alternativa teísta mais sólida em meio às correntes atéias dominantes. Benjamin escreveu para Gerhard Scholem acerca do poder do fideísmo de Shestov. Strauss viria a escrever mais tarde um livro sutil em que inverteria o título da obra final de Shestov e Kojève tornar-se-ia um teórico e ativista daquilo que descreveria como “o estado universal e homogêneo”. É possível que a visão de Strauss sobre a história da filosofia política, bem como a sua visão de uma ordem tecno-burocrática universal no fim da História, tenham surgido em parte como uma reação à filosofia bíblica e personalista de Shestov.

Outra voz proeminente da Paris do entre-guerras foi Gabriel Marcel, que passou gradualmente do racionalismo neo-hegeliano à Igreja Católica e estabeleceu-se como um grande filósofo cristão. Em relativa obscuridade (ele não publicou nada sequer remotamente sistemático até a década de 1940), Marcel esboçou os grandes temas da filosofia teísta pós-moderna. A condição humana, pensava, deve ser entendida nos termos de uma participação que transcende a antítese entre sujeito e objeto que infestava a filosofia moderna. Cada existência humana participa de uma realidade marcada pela tensão entre sujeito e objeto: isolemos um deles e estaremos excluindo o outro. E então só restará uma abstração, que é um indivíduo solipsista ou um objeto impessoal.

A existência humana é essa tensão realmente vivida; podemos distinguir o sujeito do objeto, mas não podemos concebê-los isoladamente. Os seres humanos não têm outra natureza que não seja viver uma condição. A sua natureza e a sua liberdade são inextricáveis. Embora seja freqüentemente rotulado como o fundador do existencialismo, Marcel é melhor entendido como alguém que construiu a sua filosofia sobre uma compreensão cristã da pessoa como um “ser encarnado”, que não é nem tem um corpo, mas que é inconcebível fora da sua misteriosa relação com um corpo.

Como o grande filósofo judeu amigo de Shestov, Martin Buber, Marcel acreditava que a realidade pessoal recebe a sua expressão mais clara quando um ser dirige-se a outro usando o vocativo, a segunda pessoa. A primeira pessoa, o eu, pode ser apenas uma máscara para sensações e impulsos transitórios, ao passo que identificar as pessoas como ele,ela ou eles é começar a transformá-las em objetos. A condição de presença mútua, a segunda pessoa, o tu ou o vós, é o pressuposto de qualquer relação marcadamente pessoal: amor, amizade, fraternidade, cidadania e louvor. Deus é o Tu absoluto, que é uma presença pessoal, ainda quando escondida, e que nunca pode ser para nós um simples objeto, ou seja, um ídolo.

Todas as teorias que afirmam explicar a causalidade da ação humana acabam por ser uma abstração pessoal da razão de quem as pensa. Eis a mais pura verdade acerca dos diferentes tipos de relativismo e reducionismo, que ostentam uma espécie de “exceção garantida por contrato” que lhes confere um status epistemológico que é negado aos outros. “Mistério”, para Marcel, denota essas experiências que desafiam qualquer explicação baseada na razão instrumental ou causalidade natural. Nesse sentido, sobressaem as realidades da identidade pessoal e da ação humana, inclusive o pensamento.

Também o espanhol Miguel de Unamuno, que passou parte da década de 1920 exilado em Paris, escreveu uma obra memorável às vésperas da Primeira Guerra Mundial: Do sentimento trágico da vida. Nela, como Shestov, faz um apelo por uma filosofia que venha das profundezas do abismo. Na sua crítica à civilização secularista contemporânea, Unamuno comparou o típico intelectual moderno a um parasita intestinal que nega a existência da visão e da audição porque sobrevive sem ambos. Por séculos, os modernos desfrutaram das compensações da liberdade e da dignidade enquanto propunham teorias que as excluíam. Numa formulação particularmente elegante e perigosa ao mesmo tempo, Unamuno escreveu (jogando com a semelhança entre os verbos espanhóis creer e crear) que os homens criam Deus quando crêem num Deus pessoal, um Deus que por sua vez já os criou.

O outro grande pensador espanhol da época, José Ortega y Gasset, proclamou, à sua maneira mais leve e jocosa, a morte daquilo que chamava de “tradição moderna” – as tentações gêmeas do pensamento moderno: o relativismo e o racionalismo. Ortega viu que os sistemas racionalistas predominantes no pensamento moderno eram tirânicos, que mascaravam a ambição de subordinar a contingência e a espontaneidade da vida à lógica da teoria. Ortega y Gasset também identificou o  relativismo como “teoria suicida”, hipócrita e inconsistente em si mesma. A sensibilidade moderna é “desconfiança e desprezo por qualquer coisa espontânea e imediata; entusiasmo por todas as construções da razão”.

A fim de superar as teorias modernas intelectualmente falidas, Ortega propôs uma doutrina que chamou por vezes de “razão vital”. A verdade do relativismo é que cada pessoa é dona de um ponto de vista único; a verdade do racionalismo é que tais pontos de vista miram uma realidade suprapessoal. Embora use um vocabulário distinto, Ortega elaborou uma teoria da participação similar à de Marcel. No epílogo da Idade Moderna, o Ocidente precisa aprender a reconhecer as raízes da patologia da modernidade tardia, escrita em toda a fisionomia assustada do século XX.

Há uma série de razões pelas quais esses pensadores não são mais discutidos hoje. Apesar de alguns deles terem se conhecido, não formaram uma escola organizada de pensamento. Embora alguns tenham sido professores universitários, escreveram em sua maioria como intelectuais públicos, não como acadêmicos profissionais. A maior parte deles dominava com maestria a prosa em sua língua, o que suscitava suspeita entre os acadêmicos profissionais. Poucos eram ativistas políticos. Nenhum deles aderiu ao comunismo ou ao nazismo.

Além do mais, todos esses pensadores – novamente com a possível exceção de Ortega -acreditavam em Deus. O seu pensamento foi sendo formado nas décadas que culminaram com a Segunda Guerra e cristalizou-se logo após o seu fim. Os traços mais críticos do retrato que fizeram da modernidade e da pós-modernidade talvez tenham sido melhor capturados pelo psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz Viktor Frankl, que escreveu que a sua geração pode conhecer a existência humana como algo que abrangia tanto o ser que inventou as câmaras de gás como aquele que entrou naquelas câmaras de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael”.

Na tentativa de uma explicação, Frankl diagnosticou as patologias siamesas da “objetivação da existência” e da “subjetivação do logos”. A primeira descreve a redução do homem a um joguete das forças impessoais e que não é conhecido como um tu. A segunda descreve a redução do sentido à subjetividade humana. O racionalismo e o relativismo, como notou Ortega, são um duplo aspecto do pensamento impessoal a conspirar em favor do esfacelamento da identidade pessoal e da erosão da responsabilidade pessoal.

É neste contexto que podemos apreciar toda a força do alerta feito por Guardini, de que o homem moderno defronta o chamado de dominar o poder. Esses pensadores, de uma maneira ou de outra, contemplavam a existência humana como uma forma de participação. O trabalho deles reflete, em certo sentido, o que hoje chamaríamos de sensibilidade pós-moderna, mas que está fundamentada numa antropologia filosófica inconcebível fora de uma compreensão cristã da pessoa.

O pensamento impessoal empala a mente ou num dos dois chifres do dilema esboçado acima – no caso do pensador realmente rigoroso – ou em ambos simultaneamente, o que é mais provável.

O fim da modernidade não marcou uma guinada do racionalismo iluminista em direção à subjetividade pós-moderna. A própria modernidade pôs o homem face a face com tudo aquilo que estava em jogo na oposição entre pessoal e impessoal. O que foi desacreditado não foi a razão, mas a hybris dos grandes sistemas impessoais, seja o reducionismo naturalista do cientificismo moderno, seja o ilusionismo dialético que as ideologias modernas operam na mente.

A intuição central dessa renascença teísta – desse pós-modernismo primevo – é a irredutibilidade da pessoa. As patologias da vida moderna, desde a atrocidade da guerra total até a banalidade da burocracia, trouxeram à luz a demanda de uma existência pessoal. Esses escritores teístas viam a condição humana como um universo aberto constituído de individualidade, risco e novas criações. O fim da modernidade escancarou a realidade radical da liberdade e dignidade humanas entre as tentativas, práticas e teóricas, de aniquilá-las.

O aviso de Guardini de que não há um ser sem um mestre captura o caráter dual da Imago Dei que está no cerne do mistério da identidade pessoal. Como seres encarnados e arraigados na nossa própria natureza, somos responsáveis por honrar essa natureza em todas as nossas obras. A história do mundo moderno termina com uma nota que não é de cinismo nem de resignação, mas de esperança e responsabilidade.

Copyright © 2008 First Things (dezembro de 2008).

 Rein Staal é professor de Ciências Políticas no William Jewell College.

Tradução de Grace Guimarães Mosquera, bacharel em Lingüística pela FFLCH-USP.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Jun/2009. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/a-historia-esquecida-da-pos-modernidade/

“O cristianismo é uma invenção de cérebros doentes”, por Francisco Escorsim

Opinião Pública | 11/12/2014 | | IFE CAMPINAS

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Terrível, mas já não surpreende. Deu nos jornais: foram recolhidas cartilhas que seriam homofóbicas e foram distribuídas aos professores da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Segundo a denúncia feita pelo grupo de pesquisa Ilè Obà Òyó, do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e acatada pelo Ministério Público carioca e pela Secretaria de Estado da Educação, a cartilha intitulada Chaves para a Bioética conteria “conteúdo discriminatório (homofóbico e machista)”. Terrível, não?

Versões da cartilha estão disponíveis na internet, em várias línguas. Fui lê-las, não resisti. Encontrei a versão portuguesa, que dizem ser quase idêntica à brasileira, salvo a parte sobre teorias de gênero, que foi acrescentada e pode ser lida na versão americana. Foi organizada pela Fundação Jerôme Lejeune, sendo que 2 milhões de exemplares foram distribuídos no Brasil durante a Jornada Mundial da Juventude de 2013, no Rio. Tem cerca de 80 páginas, com nove capítulos tratando de temas como aborto, eutanásia e teorias de gênero. Em todos, lê-se, primeiro, informações de caráter científico. Depois, vêm as implicações e dilemas éticos abordados de um ponto de vista mais filosófico que religioso. No fim, na versão brasileira, vem um quadro com “O que diz a Igreja”.

Voltei a ler o noticiário, pois fiquei confuso. Afinal, o que seria o tal conteúdo discriminatório? Não se diz, só se acusa. E, além de censurar as cartilhas, o Ministério Público ainda determinou realização de campanhas de esclarecimento sobre a necessidade de respeito a todos os modelos familiares e orientações sexuais para “neutralizar qualquer conteúdo eminentemente religioso nas cartilhas (em especial a fim de repudiar o conteúdo descrito como ‘Teoria do gênero’)”.

Desrespeito a certos modelos familiares e orientações sexuais? Mas, já na introdução do manual, escrita pelo presidente da fundação responsável pela cartilha, lê-se: “Em contrapartida, nunca devemos julgar as pessoas que não fizeram as mesmas escolhas”. Isso é desrespeito? Se é assim, então é a mera defesa do modelo familiar cristão que é inaceitável, “desrespeitosa”, “discriminatória”. Logo, assegura-se o respeito a todos os modelos familiares, menos o cristão; afinal, é preciso “neutralizar qualquer conteúdo eminentemente religioso nas cartilhas”. Quem está discriminando mesmo?

E quanto às teorias de gênero, tratadas com especial apreço pelo Ministério Público, são incontroversas? É proibido ser contra tais teorias? Tornaram-se lei? Não – tanto que, recentemente, o Congresso Nacional retirou do projeto de lei do Plano Nacional de Educação a referência a essas teorias, justamente por serem muito controversas. Por que, então, tratá-las como se fossem dogmas indiscutíveis, censurando quem delas discorde e impedindo o debate no sistema de ensino?

Eis a intolerância dos tolerantes. A realidade é que, na diversidade tão louvada do “politicamente correto” imperante, o cristianismo não se inclui, não pode nem mesmo ter voz. Isso iria contra os “direitos humanos”, pelo visto. Quão distantes estamos, então, de afirmações como a famosa frase que aqui serve de título? Ah, o leitor não sabe quem a disse? Hitler. Pois é. Terrível, não?

Francisco Escorsim, advogado e professor, é coordenador do Instituto de Formação e Educação – IFE Curitiba.

Fontehttp://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1517165&tit=O-cristianismo-e-uma-invencao-de-cerebros-doentes

The end of the modern world (resenha)

Sem Categoria | 03/12/2014 | |

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Sem título

 

 

The End of The Modern World

Intercollegiate Studies Institute (ISI Books), New York, 2008, 220 págs., US$ 13,62

Translated from the original “Das Ende der Neuzeit. Ein Versuch zur Orientierung” by Joseph Theman and Herbert Burke

 

 

 

Esta nova edição da famosa obra de Guardini, datada de 1956, O fim do mundo moderno (1956), é, na verdade, a soma de dois livros em um. A primeira parte, intitulada A procura por orientação, é uma vasta apreciação da história da cultura, concretamente, do Cristianismo, trazida para a realidade de nossos dias, terminando com uma densa questão sobre nosso futuro. A segunda parte, subintitulada Poder e Responsabilidade, começa por sugerir uma resposta a esta questão, delineando um esboço rudimentar do que “o novo arquiteto humano” do (nosso) novo mundo deve parecer.

Muito da análise de Guardini, agora com quase sessenta anos de idade, é profética. Nós agora estamos numa posição histórica de decidir se as esperanças por ele expressadas têm algum potencial para serem realizadas em nossos dias e se o seu novo homem pode ser encontrado em algum lugar.

Na primeira parte, Guardini dá uma análise teológica do suceder das culturas desde a Idade Média até os Tempos Modernos, tendo a Idade Média como um cume.  A questão central de cada época é a questão central frente ao indivíduo: é aquela de proferida por Cristo, “Quem vós dizeis que eu sou?”. A questão é tão antiga quanto o próprio homem ou quanto a escolha catastrófica de Adão e Eva, os quais, movendo seus olhos para longe de Deus e para dentro deles mesmos, procuraram ser iguais a Ele.

A Idade Média foi caracterizada por um movimento cultural próprio, longe da visão de mundo clássica (inerente aos gregos) e radicalmente voltada para uma visão centrada na fé: “Nesta fé, o mundo nasceu de novo, mas não nasceu da mitologia nem da filosofia. Os vínculos míticos que ligavam o homem ao universo foram destruídos. Na história, raiou uma nova liberdade para o espírito humano.

Desvinculado agora do mundo, o homem estaria apto, pela primeira vez, a encarar todas as coisas a partir de uma nova perspectiva, de um ponto privilegiado que não dependia nem da superioridade intelectual nem da cultura. Assim, estava forjada uma transfiguração do ser totalmente impossível para o velho mundo pagão.”.

Assim, a Idade Média, diferenciada de uma cultura clássica que era definitivamente incapaz de transcendência (no sentido cristão da palavra), foi um ponto alto da história. Guardini discute este ápice do Cristianismo em termos de várias sínteses que compilam este tempo irrepetível. A Suma de Teologia, de São Tomás de Aquino, foi um exemplo notável entre aquelas várias sínteses, mas não foi a única.

O período posterior que Guardini delineia é separado da cultura medieval por uma extensa fissura. Com o século XIV, uma perceptível Sturm und Drang (do alemão, chuvas e trovões, uma forte turbulência existencial, no sentido proposto pelo autor) entra em cena. Guardini assinala um certo “anseio germânico em abarcar a totalidade do ser”, o qual ele então identifica com o “dirigir-se para a transcendência” que veio a ser historicamente associado a Göethe.

Segundo a visão de Guardini, Göethe personifica o movimento do Romantismo, cuja primeira característica é uma mudança de foco: o homem, não Deus, é agora o centro da cultura. O Zeitgeist – ou espírito do tempo – do Romantismo equivale a nada mais do que o desejo humano primordial de onipotência divina: é um prelúdio para um Götterdämmerung ou crepúsculo.

“Para o novo homem da Idade Moderna, as insuspeitadas regiões deste mundo seriam um desafio a ser encontrado e conquistado. Dentro de si, ele ouvia o chamado à aventura sobre o que parecia uma terra sem fim, para tornar-se o seu dono. Mas o diabo tem suas regras e, como um Prometeu, faz o homem perder seu lugar na ordem criacional: “Angústia, violência, ganância, rebelião contra a ordem – mais imperiosos do que nunca – estes primitivos impulsos incitaram a alma humana…”.

Começamos a encontrar de frente todas estas familiaríssimas feições do nosso próprio tempo e suas raízes se inserem na história (de certa forma) recente: a era moderna (com nossa era pós-moderna) não foi nem a era de Deus nem a do homem, mas da máquina. Guardini nota que o referente à pessoa é um dom que o homem descobre quando ele se antepõe a Deus; nosso desenvolvimento longe de Deus tem dado lugar ao homem moderno, que não é humano, e à uma natureza moderna, que não é natural.

Alienação e ansiedade existencial (angústia niilista) marcaram a visão de mundo da primeira metade do Século XX, ao menos tão longe quanto a inteligência podia conceber. E, na análise de Guardini, o mais horrendo cume destas forças culturais (e psicológicas) foi a Segunda Grande Guerra Mundial. A história tem mostrado que o profundo sentido do homem (e de sua própria humanidade) deteriorou-se e o homem moderno está suscetível à escravização do poder bem mais do que os seus ancestrais. O homem está incapaz de dar conta de seu próprio progresso e ele é agora estranho a si mesmo, exatamente como a criação que ele habita não mais harmoniza com ele. O que – se algo – podemos fazer?

A resposta a esta questão, ou melhor, abordagem de Guardini para uma resposta preliminar, vem na segunda metade do trabalho aqui resenhado. Ele observa que nossos espíritos estão doentes e que nosso mal é um mal religioso. Mas ele diz: “Exatamente neste ponto, a esperança emerge, a qual não pode ser facilmente definida. Pois, numa coisa sua forma é puramente religiosa: ela expressa que Deus é maior do que todos os processos históricos; que estão em Suas Mãos, portanto em Sua Graça…”.

Guardini então postula que uma verdadeira metanóia (conversão) é obrigatória. Mas deve ser uma conversão apropriada à situação na qual nos encontramos. “O que, então, deve parecer, o novo arquiteto humano deste mundo emergente?”. “(Ele) terá que redescobrir que o poder está no autocontrole; que o sofrimento aceito interiormente transforma o sofrimento; e todo aquele crescimento existencial depende do sacrifício livremente oferecido.”.

A mais descritiva é, talvez, a seguinte passagem: “O novo homem estaria apto para ver através das ilusões que imperam no meio científico e no desenvolvimento tecnológico: a decepção por trás da idolatria da cultura “liberal”, por trás das utopias totalitárias, do pessimismo tragicista; por trás do misticismo moderno e do mundo hermafrodita da psicanálise. Ele verá e saberá por si mesmo (que) a realidade não é tão simples assim!”.

Guardini prescreve para o nosso mal (pós) moderno a única verdade e a derradeira cura que o espírito pode experimentar, seja ele o espírito do homem ou o espírito da era. Ele chama por um retorno a Cristo em profunda humildade e fé, ainda que nós carreguemos conosco a pesada bagagem de nosso passado cultural. Guardini finalmente nos implora a responder à questão de Nosso Senhor (“Quem vós dizeis que eu sou?”) com a réplica de São Pedro: “Tu és O Cristo, O Filho do Deus Vivo.”.

Escrito há tempos, Guardini sugere como devemos nos conduzir nesta importante tarefa de redescobrir nosso destino religioso e que carismas serão exigidos de nossa liderança. Hoje, podemos ler a análise de Guardini à luz da liderança oferecida por alguém que nunca cessou de nos implorar a sermos sinais de contradição em meio à loucura do nosso tempo: João Paulo II.

O papa polonês certamente encontrou os requisitos esboçados acima, porque ele, em vida, soube, como poucos, personificar a condição de que “o sofrimento interiormente aceito transforma o sofrimento”. E, na encíclica Veritatis Splendor, por exemplo, ele propõe uma correta relação para a verdade das coisas. Mas, já passados alguns anos, estaríamos ainda abertos à oitiva dos ecos daquele documento pastoral?

Cristianismo Primitivo e Paideia Grega (resenha)

Sem Categoria | 02/12/2014 | |

image_pdfimage_print

cristianismo-primitivo-e-paideia-gregaNa presente resenha da obra Cristianismo Primitivo e Paideia Grega, em que se pode exprimir o profundo conhecimento de sua autora acerca da obra do helenista Werner Jaeger, destila-se, em linhas gerais, no seio do cristianismo nascente, a essência da grande análise histórica da paideia de Jaeger, mas que, em razão de sua morte, não foi possível levar adiante, restando a obra resenhada como o primeiro esboço de um projeto originariamente ambicioso.

Nem por isso cuida-se de uma obra incompleta: Jaeger possuía um especial talento para esclarecer sem simplificar, salvar os limites de uma exegese técnica e resumir o essencial, de tal forma que o produto final se apresentasse de maneira viva e plena ao leitor. Seus profundos conhecimentos lhe permitiram tratar, com tais atributos, o intrincado problema da tentativa de fusão entre a paideia grega e a paideia cristã primitiva.

Assim, ele propõe que, sem a expansão da cultura grega por intermédio das conquistas de Alexandre Magno, resultaria impossível o advento do cristianismo como religião universal, a par da importância da helenização do mundo antigo para o trabalho apostólico dos primeiros cristãos e sem se esquecer da controvérsia entre pagãos e cristãos (séculos II e III), que culminou com a síntese entre pensamento grego e cristão, feita pelos padres gregos do século IV: Basílio de Cesareia, Gregório Nazianzeno e Gregório de Nisa entre outros.

 

Cristianismo Primitivo e Paideia Grega [1]

Gilda Naécia Maciel de Barros – Faculdade de Educação da USP

Fonte: http://www.hottopos.com/vdletras2/gilda.htm

Early Christianity and Greek Paideia é o título de uma obra do grande helenista Werner Jaeger, pulicada em 1961 e organizada a partir de conferências realizadas pelo autor na Universidade de Harvard em 1960. [2]

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Foto de Jaeger com sua autografia.

A exemplo de seu trabalho anterior, Paideia, Jaeger planejava elaborar uma obra de fôlego, que abrangesse o vasto processo histórico pelo qual a cristandade foi helenizada e cristianizada a civilização grega, obra da qual o livro em exame anteciparia os lineamentos gerais.

A morte impediu-o de realizar este projeto, o que sempre se há de lastimar, mas a agudeza do pensador salvou para nós, no Early Christianity and Greek Paideia, o essencial deste encontro histórico, de amplas consequências, entre a cultura grega e a religião cristã.

Na linha do historiador alemão Johann Gustav Droysen, para o qual o cristianismo surge do helenismo e dele toma as direções mais notáveis de seu primeiro desenvolvimento, Jaeger considera de importância decisiva para a afirmação do cristianismo como religião universal o processo de três séculos de expansão da cultura grega desencadeado pelas conquistas de Alexandre. Realmente, em torno da Bíblia irá organizar-se uma civilização com feições próprias, mas em razão de uma dialética vital entre o kerygma cristão, cujo maior esforço será ultrapassar os limites da Judeia, e esta cultura de muitos séculos e largas dimensões geográficas, a cultura grega.

Neste encontro histórico, a língua grega, falada em todas as sinagogas das cidades do Mediterrâneo, é fator decisivo. Ela põe ao alcance do judeu helenizado e do gentio a doutrina cristã, cuja forma literária, nesta tarefa de conversão, é muitas vezes grega. Descrevendo o desenvolvimento histórico da religião cristã durante os primeiros séculos, Jaeger o vê como um processo contínuo de tradução das fontes hebraicas com o objetivo de oferecer ao mundo uma compreensão cada vez mais adequada de seu conteúdo.

Este processo teria se iniciado com os evangelistas, cujas interpretações doutrinárias se faziam conforme as categorias da Lei e os Profetas, dentro da tradição messiânica de Israel. A partir daí se daria o encontro da cultura clássica com o Cristianismo em proporções sempre mais amplas, o que já se pode ver na carta de São Clemente Romano aos Coríntios, da última década do século III d.C. Nela, o bispo de Roma procura justificar pela razão as exortações morais dirigidas à igreja que já ao apóstolo Paulo oferecera motivos de preocupação.

Nesta carta, conforme procura mostrar Jaeger, pode perceber-se uma teoria filosófica grega interpretada em sentido cristão, bem como um método novo que, posteriormente, no século IV, os Padres da Igreja, combinando a autoridade da Bíblia e a razão, aplicariam em suas argumentações. No século II da graça do Senhor, a rápida expansão do Cristianismo, antecipando as grandes controvérsias entre cristãos e pagãos do século seguinte, leva as elites intelectuais do mundo greco-romano, postas em contato mais direto com a doutrina cristã, a lhe oporem uma primeira reação. Nesta época o Cristianismo, considerado a filosofia dos bárbaros, é severamente julgado pela mentalidade pagã com as categorias da cultura clássica. Canibalismo, ateísmo, subversão política, eis as principais acusações, a que os Padres da Igreja procuraram responder apologeticamente, aproveitando as circunstâncias para tornar simpático à causa de Cristo o público pagão. Entre este as reações mais negativas vêm ligadas a homens de cultura formados na tradição clássica, entre os quais se citam Tácito, Marco Aurélio, Galeno e Celso. Criticam-se no Cristianismo os seus fundamentos, a ausência do pensamento crítico e o apoio integral na fé.

Já entre os pensadores cristãos da mesma época podem perceber-se duas orientações opostas. Uma, representada por Justino e Atenágoras, na linha de Fílon, procura absorver a tradição grega na doutrina cristã. Quer mesmo aplicar ao cristianismo algumas categorias espirituais da cultura grega e reconhece nela certos paralelismos com a doutrina cristã. A outra, de feições claramente anti-helênicas, defendida por Taciano, o assírio, e Tertuliano, o africano, denuncia e condena a helenização do cristianismo. Tertuliano, em particular, separa razão e fé, e repete a idéia de um paralelo entre cristianismo e helenismo em termos filosóficos.

Com o século seguinte aumenta a necessidade de maior adaptação das interpretações dos evangelhos ao povo de fala grega, principalmente nas suas camadas mais altas. Isto vai exigir um esforço intelectual em nível mais profundo, do qual Alexandria passa a constituir-se em centro principal. Aí, então, com os trabalhos de Clemente e Orígenes, pode falar-se numa teologia cristã.

Sopesando o contacto criador do cristianismo com a tradição grega, Jaeger o vê como um desafio. Desafio de uma religião que reivindicava para si a posse da verdade, lançado à única cultura intelectual do mundo que tentara ser universal e o conseguira. Nestes termos, o cristianismo teria buscado na tradição grega a segurança de sua própria universalidade.

Isto não nos deve levar à conclusão precipitada de que a doutrina de Cristo adquiriu proporções mundiais em razão exclusiva do apoio intelectual que lhe ofereceu o helenismo. Estamos diante de uma questão complexa e da maior importância que, examinada em dimensões mais amplas, põe em julgamento a força espiritual do cristianismo, seu poder de conversão e os motivos que levaram o mundo helenístico, preso pelas raízes à cultura grega, a deixar-se por ele seduzir e a adotá-lo.

Nem nos parece que este ponto crucial tenha escapado a Jaeger. De fato, embora não se tenha manifestado com largueza sobre o assunto, o que talvez pretendesse fazer depois, o genial helenista nos adverte contra o erro de ver-se a helenização do pensamento cristão como um processo unilateral, sem relação alguma com as necessidades internas da civilização grega da época. A antiga religião dos deuses olímpicos, após a dissolução da polis, deixara um vazio de tal natureza que as correntes filosóficas mais significativas do mundo greco-romano foram levadas a preencher com a maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não racional.

Quando aparece o cristianismo, torna-se conveniente e, por que não dizer, necessário à mentalidade pagã examinar esta fé que reune adeptos tão fiéis, avança por todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos.

Pois bem, esta tarefa de tradução cada vez mais eficiente da doutrina de Cristo, exposta agora também às camadas mais altas e mais cultas do meio pagão, exige da parte de seus defensores um trabalho cada vez mais elaborado, de homens eruditos e comportamento ascético. Constrói-se então uma interpretação da Bíblia em nível mais elevado, para satisfazer um público exigente, da razão mais crítica. Dão-se então os primeiros passos na elaboração do que se costuma chamar de filosofia cristã.

Estamos no século III a. C. E, no início desta trajetória, colocam-se as figuras de Clemente de Alexandria e Orígenes. A originalidade nestes dois homens, adverte Jaeger, constitui-se em se servirem da especulação filosófica para sustentar uma religião positiva fundada na revelação divina, alheia, em suas origens a uma investigação humana independente acerca da verdade.

Em outros termos, o processo de assimilação da tradição clássica pelo cristianismo pôde desenvolver-se com maior elasticidade a partir do momento em que, no meio cristão, homens intelectualmente formados na cultura grega passaram a reconhecer a capacidade religiosa da filosofia. Ora, esta atitude claramente assumida no século III por Clemente e Orígenes, entre outros, tinha a seu favor todo o esforço anterior de Fílon, que procurara mostrar como a fé hebraica podia ser exposta em termos da filosofia grega e justificada racionalmente. Isto sem considerar-se o trabalho dos estóicos no sentido de uma interpretação alegórica dos mitos antigos e, em particular, da teologia de Homero.

Com estes precedentes, o encontro do helenismo com o cristianismo em nível erudito adquire em Clemente e Orígenes uma importância da mais alta significação. Além de representar uma tentativa clara de fundamentação filosófica das verdades da fé, inaugura uma distinção entre o simples crente e o teólogo, entre aquele que tem apenas pistis e alcança uma interpretação literal, quando muito histórica, da doutrina, e aquele que conhece o verdadeiro significado dos livros sagrados e entende certos exemplos bíblicos metaforicamente, como exemplos de grandes verdades metafísicas ou éticas.

Nestes termos, apenas um tratamento erudito, fundado na tradição intelectual grega, pode levar o fiel à gnosis, em relação à qual a filosofia guarda a posição de propaideia. Descansando sobre a distinção já estabelecida pela cultura clássica entre um tipo esotérico de saber, que traduz a verdade (aletheia) e outro, exotérico, que é a mera aparência (doxa), a teologia cristã procura firmar-se como representante da verdadeira gnosis.

E esta se consubstancia nos seus mistérios, opostos aos da religião pagã, inteiramente falsos, mas que já a partir do séuclo IV a. C., por oferecerem uma relação mais pessoal com a divindade, passaram a ocupar no coração do homem helenístico o vazio deixado pela fé olímpica. Desenvolve-se então todo um trabalho de exegese da doutrina cristã, voltado para a discussão da autentica natureza divina, daquilo que lhe é próprio (theoprepés), numa linha de preocupação que Jaeger filia a Xenófanes de Cólofon, do século VI a. C.

E, nesta tarefa de fixar e fundamentar os princípios vitais do Cristianismo, de superar-lhe o aparente caráter mitológico, não basta elevar Cristo à dignidade de pedagogo da humanidade, mas é preciso também cuidar para que orientações espúrias como o gnosticismo, o maniqueísmo e o mitraísmo não venham a comprometer a universalidade do kerygma cristão ou a representar-lhe um Ersatz fatal. Trabalha-se então em várias frentes, mas o maior problema é enfrentar o ideal de cultura grega como um todo e neste confronto solidificar a liderança espiritual da doutrina cristã.

Deste encontro histórico o resultado será uma teologia cristã que não pode ocultar sua dívida com a erudição clássica. Prega-se uma nova paideia que tem em Cristo seu ponto vital e ao mesmo tempo preparam-se os andaimes de uma nova civilização, a civilização cristã. Esta tarefa é retomada pelos padres capadócios na segunda metade do século IV d. C. Todavia, como assinala Jaeger, não basta agora afirmar o cristianismo como a paideia verdadeira e única, nos termos de Clemente de Alexandria, mas é preciso enfrentar o momento de restauração pagã da época, dentro do qual os valores da paideia grega se vão converter em religião e artigos de fé.

As circunstâncias exigem que o cristianismo, para defender a pretensão de verdade e universalidade, assuma a liderança intelectual, e que seus adeptos mais qualificados mostrem o poder formador da doutrina de Cristo. São Basílio de Cesareia, São Gregório de Nisa, entre outros, devem produzir obras de alto nível, que possam conquistar intelectualmente as elites espirituais do paganismo, em suas reações agressivas à nova fé. Repensam-se as relações entre o cristianismo e a herança grega em nível mais profundo, esta última vista com simpatia e estima da parte de alguns autores cristãos.

Há um renascimento da cultura clássica, que levou Jaeger a falar num neoclassicismo cristão, onde o cristianismo se declara herdeiro de tudo o que seja digno de sobreviver na tradição grega. Quer no ocidente latino, com Santo Agostinho, ou no oriente grego, com a cultura dos padres capadócios, a sabedoria clássica, pela retórica ou pela filosofia, se conjuga com a sabedoria da sinagoga e é posta a seu serviço. É neste contexto que se constrói uma verdadeira literatura cristã, muitas vezes livremente alimentada na tradição grega, como ocorre em São Gregório Nazianzeno.

Embora os capadócios ataquem o helenismo em suas debilidades (atitude que em São Gregório de Nisa, além de reforçar a importância do dogma, de distanciar-se de uma interpretação intectualista, ressalta o valor dos costumes veneráveis – liturgia e mistérios), há o interesse de se fazer do helenismo um instrumento da fé. Efetivamente, se, na escola cristã nascente, um São Basílio mostra-se simpático à introdução da antiga poesia grega como meio de educação superior, o próprio São Gregório de Nisa é um classicista de estilo.

Nesta luta com a herança clássica, adverte Jaeger, os pensadores do oriente grego e os do ocidente latino põem o arquétipo grego a seu serviço, não para lhe preservar o matiz exato, mas para, em torno dele, cristalizar as idéias de sua própria época. Entre estes pensadores, Jaeger faz sobressair a figura de São Gregório de Nisa, em sua opinião, o homem capaz de ver todos os aspectos da paideia grega e que, na busca de um modelo de formação humana, mostra-se à altura das maiores exigências da filosofia pedagógica grega.

Numa inspiração platonizante, dentro da qual a filosofia, em última análise, se resolve numa assimilação de Deus, São Gregório de Nisa traduz a paideia cristã numa deificatio, num processo de elevação espiritual que reintegra o homem da queda, criado à imagem e semelhança de Deus, no divino. A partir daqui, o padre capadócio desenvolve uma teoria dos graus do caminho místico da theognosis, que encontra nos Salmos e nas Epístolas de São Paulo o seu maior comprovante.

De fato, a Bíblia, todo unitário inspirado pelo Espírito Santo, interpretada em diversos níveis, ocupa na educação cristã o mesmo lugar que a filosofia na educação grega. Literatura paidêutica de primeira ordem, oferece o paradigma pelo qual o crente deve moldar-se. Neste sentido, a formação do homem, a morphosis, idéia-chave na educação helênica, se constitui numa metamorphosis, numa radical mudança interior do homem caído, cada vez mais conforme ao modelo divino.

Dentro das linhas teóricas da nova fé, a idéia de morphosis completa-se com a de graça. De fato, o esforço humano para a salvação é ineficaz sem a synenergeia, a cooperação divina. Por seus próprios recursos o homem que, em São Gregório de Nisa, ainda numa inspiração platônica, por natureza tende para o bem e, se comete o mal, fá-lo apenas por ignorância, jamais conseguirá a regeneração e o gozo do estado edênico.

Neste processo de salvação, a crença numa vida futura, onde o castigo é catarse da alma, faz-se indispensável, ainda que o próprio São Gregório não pense em punição eterna. Por trás da idéia de salvação individual, coloca-se a de um plano mais amplo de apocatástasis, tomada a Orígenes, que leva a uma restauração final da obra divina originária.

Visto na essência, o trabalho de Jaeger estuda o humanismo cristão em suas origens, quando ainda é necessário sistematizar as verdades da fé, dar-lhe uma fundamentação teórica, a partir daquela mensagem viva ligada à figura de Cristo. Jaeger mostra também como essa tarefa foi executada a partir do confronto entre o cristanismo e o helenismo e em função dele.

O kerygma cristão deve impor-se espiritualmente num mundo afeiçoado à tradição grega, e pôde universalizar-se a partir do momento em que, confrontando-se com ela, embora fiel à sua inspiração original, a pôs a seu serviço. Ao concluir seu livro, chamando a atenção para importância de toda a tradição literária do oriente bizantino, que tem nas obras dos padres gregos a parte mais seleta, Jaeger levanta o problema da extensão de sua influência no pensamento renascentista, italiano e europeu.

Nesta linha de preocupação, Jaeger lembra também nosso débito para com este antigo humanismo cristão, sem o qual pouco teria sobrevivido da literatura e da cultura clássicas. E, deste ângulo, o autor vê seu trabalho não como o último capítulo da história do ideal da paideia no mundo da antiguidade grega, mas também como o prólogo da história de suas transformações latinas e medievais.

 

NOTAS

 [1] Artigo publicado por primeira vez em 21/9/1975 em “O Estado de S. Paulo” e a autora assinava Gilda Naécia Simões.

[2] Nesta obra, embora se refira também aos pensadores do Ocidente Latino, Jaeger limita-se a examinar em pormenor os pensadores da tradição grega.