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O que é autoridade espiritual?

Opinião Pública | 04/07/2018 | | IFE CAMPINAS

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No início de 2018 fui convidado por uma editora a revisar a primeira tradução brasileira do famoso Index Librorum Prohibitorum, editado pela Igreja Católica em 1564, obra que costuma ser citada ao grande público (especialmente aos alunos de colégios por professores de história que nunca o leram) como uma das grandes manchas na história da humanidade, um verdadeiro atentado contra a liberdade de expressão e de consciência. Depois de ser bombardeado durante anos com esse tipo de ideia, apliquei-me ao trabalho com curiosidade, para ver se aquilo que eu tinha ouvido era verdade.

Logo de partida fui surpreendido por duas coisas: a justificativa do Index escrita pelo Papa Pio IV não continha nada do que hoje se costuma chamar de “discurso de ódio”, sendo antes um exemplo de afetuosa preocupação com o saúde espiritual do povo. Entenda-se: numa época em que livros eram raros e — para um leitor individual — não era possível verificar se as informações neles contidas eram verdadeiras, cabia à única instituição composta por homens de grande cultura fazer uma triagem dos livros que circulavam, dizendo ao povo claramente o que poderia ser lido e o que deveria ser evitado.

Minha segunda surpresa foi a própria lista das obras cuja leitura era proibida: a maioria esmagadora dos títulos são aquilo que hoje podemos chamar de “sensacionalistas” e praticamente todos tratavam de religião. Coisas como Alquimia do Purgatório, Aparição Noturna de Francisco, Da Terrível Ruína dos Habitantes de Jerusalém, Bula do Diabo, Sonho Pressagiador de Esdras acerca dos destinos da monarquia romana. Ora, quem quer que tenha estudado um pouco de história sabe que o povo europeu do final da idade média e do renascimento era extremamente impressionável e que levava as emoções a níveis muito intensos (para uma melhor compreensão do digo, recomendo a leitura do primeiro capítulo da obra clássica de Johan Huizinga, O Outono da Idade Média). Pode-se, pois, imaginar os efeitos devastadores de ordem não só espiritual, mas também social, que a leitura de obras como as que foram proibidas teria causado.

Pois bem, se o estudo da história tem alguma serventia, ela não reside no fomento de saudosismos de uma época em que “as coisas eram melhores”, mas antes na colocação em evidência das possibilidades humanas e das consequências — boas ou más — que determinadas escolhas acarretaram aos homens. Levando isso em conta, podemos afirmar que a publicação e aplicação do Index foi um ato de autoridade espiritual, coisa que — contrariamente ao que dizem os atuais cientistas políticos — não se deve confundir com autoritarismo ou com imposição violenta. Com efeito, esta última consiste num simples ato de força pelo qual um grupo se impõe sobre o conjunto da sociedade, ao passo que a autoridade espiritual não tem origem na força bruta das armas, mas na contemplação da verdade e no empenho de ensiná-la a todos. Trata-se da ação de um professor amoroso, não de um policial violento.

Em nosso contexto atual, padecemos males gravíssimos em função da quase ausência de verdadeiras autoridades espirituais, pessoas que possam dizer ao público — com conhecimento de causa — quais livros devem ser lidos e quais devem ser evitados; quais programas de televisão podem ser vistos e quais devem ser evitados. Quando isto não é feito, o resultado é que a maioria da população acaba imersa na desordem mental e, assim, se torna presa fácil para qualquer tipo de charlatão que saiba manipular emoções, sejam eles políticos, publicitários ou falsos pastores. Pior: quando não se identifica claramente alguém que possa ensinar com autoridade o que é certo e o que é errado, cada pessoa acaba julgando de modo cego, de acordo com seus caprichos e paixões, o que é melhor e o que é pior. O resultado é este que estamos vendo: somos uma das nações mais ignorantes e assassinas do mundo.

Fabio Florence (florenceunicamp@gmail.com) é tradutor, professor de filosofia e membro do IFE Campinas

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 04/07/2018, Página A-2, Opinião.

O refugiado mais importante da história

Opinião Pública | 28/12/2016 | | IFE CAMPINAS

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Tratando do grave problema da imigração, recentemente o Papa Francisco recordou, sobretudo aos cristãos que Jesus, Maria e José, a Sagrada Família, fugindo da perseguição de Herodes também tiveram que migrar para o Egito e foram acolhidos como estrangeiros numa terra que não lhes pertencia.

Em Roma e em toda a Itália, a ordem do pontífice é de que conventos, monastérios e instituições eclesiásticas abram suas portas para os migrantes e lhes prestem todo o auxílio necessário.

Todas essas medidas são certamente um alento para aqueles que fogem de seus países, mas são paliativas diante da problemática da questão que na verdade envolve situações muito mais delicadas. Na maior parte dos casos são vítimas do Estado Islâmico, porém não são apenas cristãos que fogem desta guerra fundamentalista, os próprios muçulmanos fogem de outros que professam a mesma fé e que adoram ao mesmo Deus que eles. Sem que o percebam reproduzem em menor escala esse mesmo fundamentalismo, como no caso de muitos dos refugiados que se recusam a receber ajuda da Cruz Vermelha pelo fato de os alimentos virem embalados em caixas com uma cruz, símbolo da instituição, mas que é vista por muitos muçulmanos como ofensa à sua fé ou símbolo de negação à mesma.

Fogem da intolerância, mas são intolerantes com aqueles que lhes estendem a mão, desejando que os ajudem enquadrando-se em sua própria fé. Cobram uma tolerância que não são capazes de dar. Ainda assim, é preciso ajudar, é preciso fazer o que for possível, pois antes de serem sírios, africanos, paquistaneses, cristãos ou muçulmanos, são seres humanos.

A Europa que ultimamente têm se aplicado tanto em apagar sua identidade cristã se vê às voltas com a imperiosa necessidade de amar o próximo como a si mesmo, tal como ensinou o Mestre a quem ela nega. Parecem já não saber bem o que fazer. Desaprenderam a fazer aquilo que fazia parte de sua identidade: a caridade. A confusão dos líderes europeus em decidir o quê e como fazer para ajudar, reflete em certo sentido, a indecisão e confusão dos próprios europeus de modo geral.

Resolver problemas teoricamente sempre é fácil, ainda mais para quem pensa e escreve. Difícil mesmo é conviver com a dificuldade nua e crua, porém não é necessário ser muito versado em política internacional para entender que o problema deve ser enfrentado em sua raiz, ou seja, os conflitos ideológico-religiosos de que estas populações são vítimas. Só se pode falar em solução para essa situação através de uma intervenção militar seguida da criação de estruturas institucionais, sociais e econômicas que promovam o progresso dessas regiões. O ideal é que permaneçam na terra que lhes pertence ajudados pelas grandes potências mundiais.

Concretamente, a situação parece ser outra, as grandes potências parecem dar de ombros a essa situação como que a dizer “que se entendam ou que se matem entre si”. Em nome de nossa própria humanidade, não temos o direito de nos furtar a esse problema… E pensar que num passado recente nossa ex-presidente afirmou que é necessário “dialogar” com terroristas islâmicos só nos pode conduzir à conclusão de que os lunáticos que sonham com a “pátria grande” de matriz socialista na América e os fratricidas do Estado Islâmico buscam o poder pelas mesmas vias e com objetivos bastante alinhados, embora a atuação prática seja um pouco diferente na aparência. Lamentável! Mas o problema é ainda mais profundo: o mesmo Cristo que refugiou-se no Egito fugindo de Herodes, segue fugindo durante a história daqueles que o perseguem ao perseguirem e matarem seus semelhantes, segue fugindo como os cristãos de Alepo que só puderam celebrar o Natal em sua catedral toda destruída após cinco anos de exílio, segue sendo perseguido nos membros de seu corpo místico, a Igreja, segue sofrendo em cada homem que sofre.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).