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O refugiado mais importante da história

Opinião Pública | 28/12/2016 | | IFE CAMPINAS

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Tratando do grave problema da imigração, recentemente o Papa Francisco recordou, sobretudo aos cristãos que Jesus, Maria e José, a Sagrada Família, fugindo da perseguição de Herodes também tiveram que migrar para o Egito e foram acolhidos como estrangeiros numa terra que não lhes pertencia.

Em Roma e em toda a Itália, a ordem do pontífice é de que conventos, monastérios e instituições eclesiásticas abram suas portas para os migrantes e lhes prestem todo o auxílio necessário.

Todas essas medidas são certamente um alento para aqueles que fogem de seus países, mas são paliativas diante da problemática da questão que na verdade envolve situações muito mais delicadas. Na maior parte dos casos são vítimas do Estado Islâmico, porém não são apenas cristãos que fogem desta guerra fundamentalista, os próprios muçulmanos fogem de outros que professam a mesma fé e que adoram ao mesmo Deus que eles. Sem que o percebam reproduzem em menor escala esse mesmo fundamentalismo, como no caso de muitos dos refugiados que se recusam a receber ajuda da Cruz Vermelha pelo fato de os alimentos virem embalados em caixas com uma cruz, símbolo da instituição, mas que é vista por muitos muçulmanos como ofensa à sua fé ou símbolo de negação à mesma.

Fogem da intolerância, mas são intolerantes com aqueles que lhes estendem a mão, desejando que os ajudem enquadrando-se em sua própria fé. Cobram uma tolerância que não são capazes de dar. Ainda assim, é preciso ajudar, é preciso fazer o que for possível, pois antes de serem sírios, africanos, paquistaneses, cristãos ou muçulmanos, são seres humanos.

A Europa que ultimamente têm se aplicado tanto em apagar sua identidade cristã se vê às voltas com a imperiosa necessidade de amar o próximo como a si mesmo, tal como ensinou o Mestre a quem ela nega. Parecem já não saber bem o que fazer. Desaprenderam a fazer aquilo que fazia parte de sua identidade: a caridade. A confusão dos líderes europeus em decidir o quê e como fazer para ajudar, reflete em certo sentido, a indecisão e confusão dos próprios europeus de modo geral.

Resolver problemas teoricamente sempre é fácil, ainda mais para quem pensa e escreve. Difícil mesmo é conviver com a dificuldade nua e crua, porém não é necessário ser muito versado em política internacional para entender que o problema deve ser enfrentado em sua raiz, ou seja, os conflitos ideológico-religiosos de que estas populações são vítimas. Só se pode falar em solução para essa situação através de uma intervenção militar seguida da criação de estruturas institucionais, sociais e econômicas que promovam o progresso dessas regiões. O ideal é que permaneçam na terra que lhes pertence ajudados pelas grandes potências mundiais.

Concretamente, a situação parece ser outra, as grandes potências parecem dar de ombros a essa situação como que a dizer “que se entendam ou que se matem entre si”. Em nome de nossa própria humanidade, não temos o direito de nos furtar a esse problema… E pensar que num passado recente nossa ex-presidente afirmou que é necessário “dialogar” com terroristas islâmicos só nos pode conduzir à conclusão de que os lunáticos que sonham com a “pátria grande” de matriz socialista na América e os fratricidas do Estado Islâmico buscam o poder pelas mesmas vias e com objetivos bastante alinhados, embora a atuação prática seja um pouco diferente na aparência. Lamentável! Mas o problema é ainda mais profundo: o mesmo Cristo que refugiou-se no Egito fugindo de Herodes, segue fugindo durante a história daqueles que o perseguem ao perseguirem e matarem seus semelhantes, segue fugindo como os cristãos de Alepo que só puderam celebrar o Natal em sua catedral toda destruída após cinco anos de exílio, segue sendo perseguido nos membros de seu corpo místico, a Igreja, segue sofrendo em cada homem que sofre.

L. Raphael Tonon é professor de História, Filosofia e Ensino Religioso, gestor do Núcleo de Teologia do IFE Campinas (raphaeltonon@ife.org.br).

[resenha de livro] Dominique Lapierre: “Muito além do amor” (por Pablo G. Blasco)

Literatura | 16/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Dominique Lapierre: “Muito além do amor”. Salamandra. São Paulo. 1991. 376 pgs.

muito além do amorA tertúlia literária mensal brinda-me oportunidades sonhadas, e quase nunca realizadas por falta de tempo: reler os livros que me impactaram anos atrás. E fazê-lo de modo enriquecedor: poder compartilhar a leitura –não na impessoalidade das redes sociais- mas ao vivo, em animada conversa, pipocar de lembranças e reflexões em voz alta

Passaram-se quase 25 anos desde a leitura deste livro. Naquela altura, eu, médico jovem, acompanhei o surgimento da epidemia da AIDS, a impotência dos médicos, o tabu e a palavra que ninguém queria pronunciar. Foi também naquela época, quando um colega, também médico jovem, veio adoecer e faleceu pouco depois, de algo que ninguém queria comentar. Estive visitando-o e mostrou-se agradecido. Foi o meu residente quando eu estava nos últimos anos da faculdade. Conversamos, sorriu, mas nenhum de nós teve coragem de enveredar por temas clínicos, nem muito menos falar do mal que lhe acometia. Lembro que tinha um irmão padre, da mesma ordem religiosa que toma conta da Basílica de Aparecida. Foi ele quem o cuidou até o final e quem celebrou a Missa de sétimo dia, à qual estive presente.  Nessa época eu não tinha lido ainda o livro de Lapierre. Pouco depois, quando caiu na minha mão, fiz as conexões em todos os planos: no âmbito médico e também nos âmbito dos cuidados, entendendo de modo plástico o que o livro descreve maravilhosamente. A importância do conforto com que é preciso assistir aos doentes que padeciam desse mal.

Quando agora releio o livro, faço-o a grande velocidade, pois a melodia resulta-me conhecida. Uma toada que tinha ouvido, que permaneceu na memória. Lembrava, sem dúvida, da perplexidade médica diante de pacientes com o sistema imunitário destruído, algo que começa de maneira episódica e se transforma em epidemia. Lembrava também da gana investigadora de americanos e de franceses, num mano a mano; e das disputas entre Luc Montaigner e Robert Gallo, por ver quem seria o primeiro a isolar o causante da tragédia. Pesquisa, esforços, iniciativa, e risco da própria vida: alguns em busca da fama, outros de peito aberto para o bem da humanidade.

Mas não era esse o tema principal que ressoava na minha memória. Não foi isso o que mais me impactou, e sim os atores aparentemente coadjuvantes que fizeram toda a diferença neste história entranhável. O amor que está além da tragédia. Lembrava da Madre Teresa e das suas freiras. Da garota rejeitada pela própria família por ter sido atingida pela lepra o que piorava sua já diminuída condição de pária.  A filha de um coveiro do Ganges, ou melhor, de um cremador porque os cadáveres se queimam por lá;  daquela menina frágil que se transforma no ponto de apoio para gerenciar a primeira casa para cuidar de aidéticos em Nova York. O prefeito, judeu, tinha sido claro: ou enviam as freiras da Madre Teresa, ou eu não entro nessa empreitada. Lembrava também dos “casamentos espirituais”, onde se associavam os doentes crônicos incuráveis com as freiras, a quem apoiam com a seu oração e oferecendo seus sofrimentos.

O livro é uma magnífica descrição no melhor estilo jornalístico. Lapierre abre cada capitulo com uma manchete de jornal, e por isso atrai, espicaça a leitura, torna-a agradável e imparável. A ira de Deus, A metamorfose do guerrilheiro, Enigma no quarto 516, Um laboratório de amor às margens do Ganges, A última viagem do comandante da Air France, As autopsias da Bela Marta, Retrovírus num Boeing, Uma lua de mel que começa mal, Um lar para agonizantes no meio dos arranha-céus. E por aí afora. São chamados que estimulam a leitura, seguindo a regra básica do bom jornalismo: o recado tem de ser dado no primeiro parágrafo da notícia; se for no título, melhor ainda. A leitura é ágil, devoram-se os capítulos, nos deparamos com títulos sugestivos; e por trás de cada personagem, em elegante retrospectiva, a história de cada um, sua biografia O livro toca porque não é apenas uma crónica jornalística de fatos científicos, mas um mosaico de histórias de vida, contadas em estilo ameno, a modo de crônicas.

No fim, as palavras que dão título ao livro. Proferidas por um doente judeu aidético nos dias finais quando, após tentativas de suicídio, as freiras da madre Teresa o recolhem uma vez mais, sem cansar-se, com aquele sorriso permanente que parece quase um voto suplementar na ordem das irmãs da Caridade. “Todos vocês estão muito além do amor”.

Histórias de vida, heroísmo, alegria no meio da catástrofe, cuidados, carinho. Enfim, esse amor que Lapierre canta  com uma voz que, 25 anos após a publicação do livro continua sendo atual. E impactante. “O pouco que fazemos, e o muito que nos queixamos”. Uma boa frase, dessas que alguém soltou com encantadora espontaneidade na tertúlia literária, e  que sintetiza a impressão que tive quando li o livro da primeira vez. E que agora ressurgiu, com colorido novo, e apontando  outras responsabilidades. Os livros nos mudam, se refletimos, se nos deixamos cuidar por eles. Como os doentes que, revoltados, encontravam o conforto quando se perdoavam a eles mesmos e se deixavam cuidar pelas mãos amorosas das freirinhas.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/03/28/dominique-lapierre-muito-alem-do-amor/#more-2629