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[resenha de livro] “1914, El año que cambió la historia”, de Antonio López Vega (por Pablo G. Blasco)

História | 15/04/2016 | | IFE CAMPINAS

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1914-el-ano-que-cambió-la-historia-189x300Recebi o exemplar autografado das mãos do autor. Somos amigos faz anos e veio ao Brasil para dar umas conferências num congresso de Humanidades Médicas que estávamos organizando. Construir o médico humanista implica ajudar a inseri-lo na realidade social onde se movimenta, facilitar o entendimento do mundo. Dai a importância do tema, amplo, que este livro aborda e que também foi pauta das conferências comentadas.

Não é propriamente um livro de história. É um passeio, quase um trailer de cinema,  pela história contemporânea –a modernidade- com ênfase no século XX, e um grande zoom em 1914 de onde o autor realiza elegantes flashback e projeções para o futuro. Um livro original  centrado no tema que Lopez Vega domina, e sobre o qual leciona na Universidade de Madrid.

Cada um dos doze capítulos se corresponde com os meses do ano. Arranca de um fato concreto em cada mês do ano 1914, e sobre ele desenvolve a temática e o corpo do livro. O resultado é um banho de cultura, ou melhor, um índice para adentrar-nos nos diversos temas. Como já disse um trailer de cinema que te provoca e te incita a saber mais.

Temos na ouverture, a mudança de percepção, com Einstein e Freud, minando os valores absolutos, com a relatividade científica e novos paradigmas morais.  Agudizam-se os desentendimentos entre Igrejas e Estados, entre a fé e a razão. Os valores clássicos –aquilo que racionalmente vemos- se questiona e surge o existencialismo e o racio-vitalismo, como modo de lidar com as incertezas.

Seguem-se os intelectuais, palavra que passou de ser um adjetivo a constituir-se em substantivo, personalizou-se. Os intelectuais surgem como voz pública, convertendo-se num referencial da vida coletiva e social. No dizer de Ortega –santo da devoção do autor- os intelectuais saíram da apatia política à praça publica.

A entrada das mulheres na vida pública, tanto como profissionais como na conquista do direito ao voto. Um premio Nobel duplo para Marie Curie; o premio Nobel da paz para Bertha von Suttner, que foi por um breve período secretária de Alfred Nobel. Ela foi quem inspirou ao descobridor da dinamite, para promover a fundação que outorgaria os prêmios que levam seu nome, como um modo de compensar a riqueza que amealhou às custas do seu invento destrutivo.

A primeira guerra mundial, onde se pratica um novo modo de fazer a guerra: os lideres nos gabinetes –Londres, Paris, Berlim- enquanto os oficiais e soldados permanecem no campo de batalha sem terem ideia clara de “a quantas está a guerra e as batalhas”. A emergência da super potencia americana (do canal do Panamá às entradas nas duas guerras) e o contraponto soviético com a Guerra Fria.

Comenta-se em outros capítulos a experimentação artística, abrindo infinidade de vias à criatividade individual;  os nacionalismos como elemento desestabilizador dos sistemas políticos, as massas e o movimento operário e sindical, aspirando a uma maior justiça social. Um mundo conectado e globalizado, a guerra total com o assassinato em massa de civis, a a queda do euro centrismo e a emergência de um mundo além da realidade europeia.

No capítulo final oferece um belo resumo do amplo espectro do livro que é, insisto, apenas um índice da história do século XX.  Depois de ler o livro, o efeito é previsível: o desejo de adentrar-se com calma em cada um dos temas sugeridos, de conhecer mais, para entender o mundo que nos rodeia. Um mundo de pós modernidade e, em palavras extraídas das conferências do autor, de trans humanismo. Um desafio que nos toca viver. Cumpre preparar-se à altura.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

LIVRO
Autor: Antonio López Vega.
Título: 1914, El año que cambió la historia.
Publicação/ano: Madrid: Taurus, 2014.
Páginas: 239 págs.

Publicado originalmente no site do autor em 26/01/2016, link: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/01/26/antonio-lopez-vega-1914-el-ano-que-cambio-la-historia/#more-2575> Acesso em 15 de Abril de 2016.

Por que finados?

Opinião Pública | 12/11/2015 | | IFE CAMPINAS

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Finados

 

No dia de finados acordei cedo e fui honrar os meus mortos. Fiz como fez meu pai antes de mim e meu avô antes dele, num desses ricos costumes que recebemos por tradição e que enchem nossa vida de significado. Uma reverência, um respeito por algo sagrado, que o tempo cuidou de esculpir e lapidar, um tesouro que, intuímos, jamais descobriríamos sozinhos. Obra de uma civilização inteira, o dia de finados.

Talvez, por isso, tenha me incomodado o comentário de um dos administradores do cemitério da cidade. Não tanto pelo conteúdo que, infelizmente, não surpreende. Mas pela irreverência com que constatou uma mudança de costume nos últimos anos, com a diminuição do número de visitantes ao local nesta data, dizendo que muitos aproveitam para viajar. Ele mesmo, pelo tom que falava, parecia lamentar ser obrigado a trabalhar em pleno feriado.

É evidente que há algo de muito errado quando negligenciamos nossos mortos para passar um final de semana na praia. A devoção aos que partiram desta vida no dia de finados é uma tradição cristã, mas encontra raízes ancestrais. Não há nenhuma grande civilização que não tenha rendido homenagens e respeito aos seus entes falecidos. Trata-se de um costume arraigado na própria natureza humana, uma necessidade de responder à perplexidade diante da morte. Quem homenageia seus mortos no solo sagrado de um cemitério, revive o luto e a saudade, torna presente o que aparentemente se ausenta e rogando pela alma dos seus, também prepara sua própria alma para o dia que virá cedo ou tarde.

Certamente existem inúmeras razões prosaicas para alguém deixar de prestar uma justa homenagem aos seus falecidos: medo de cemitérios, dificuldades com o luto, problemas de locomoção, preguiça, e nenhum de nós está totalmente livre delas.  É verdade que se estas razões se tornassem um hábito social, este costume poderia cair em desuso. Mas seria um processo lento e gradual e, sendo de fato uma tradição importante, haveria tempo de interrompê-lo antes que se perdesse definitivamente. Situação muito diferente é quando o desrespeito se dá não por desleixo, mas por convicção.

A razão mais clara para alguém violar o costume de finados com convicção é o ateísmo. Mas há outras variantes mais sutis da descrença na vida após a morte, como, por exemplo, considerar este costume como antiquado e pequeno-burguês e abandoná-lo por razões revolucionárias, em nome do progresso. Ou, ainda, rejeitá-lo por ser prejudicial aos negócios e incompatível com a dinâmica do mercado e com o ritmo da vida moderna.

Mas não é preciso ser esse tipo de ateu para desprezar com convicção o feriado de finados. Existe uma forma de ateísmo mais grosseira e, por isso mesmo, mais comum, que podemos chamar de ateísmo prático. É ele que inspira pensamentos como: “eu posso homenagear meus defuntos em casa”, “não sou obrigado a fazer neste dia”, “a maioria enfeita os túmulos para que os outros vejam”, “cemitérios são lugares sujos que proliferam pragas”, “eu tenho coisas mais interessantes para fazer”, “estou sem tempo para este tipo de coisa”… Ele reside em uma questão de incoerência e coloca uma pessoa na trilha dos convictos, mesmo que ela não esteja totalmente convicta disto, pois “quem não vive como pensa, acaba pensando como vive”.

É preciso uma boa dose de ingenuidade para imaginar que razões prosaicas explicam todo o fenômeno percebido pelo administrador do cemitério. O enfraquecimento de tradições importantes e o rompimento da nossa ligação com o legado de vivências de nossos antepassados é sinal de decadência cultural, à semelhança do que ocorreu também com outros povos. Quando se perdem certos referenciais, nossa própria identidade resta ameaçada e corremos o risco de perecer.

Felizmente, quando cheguei pela manhã diante do portão do cemitério com estas reflexões tive uma grata surpresa. Talvez, de fato, não havia tantas pessoas como há alguns anos, quando não se podia sequer caminhar nas vielas entre os túmulos sem esbarrar em alguém. Mas o lugar estava cheio de gente. E com o sentimento misturado de saudade pelos meus falecidos, recebi uma resposta àquela constatação irreverente. Pois enquanto houver quem cumpra o ritual de finados, ainda que restem poucos, haverá esperança, pois de algum modo estará protegida a sabedoria que nos livra da barbárie. Enquanto houver um homem que a carregue consigo, pronto para entregá-la à próxima geração, muito mais do que uma singela devoção, estará viva toda uma civilização.

 

João Marcelo Sarkis, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), analista jurídico do Ministério Público de São Paulo, gestor do núcleo de Direito do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 10/11/2015, Página A-2, Opinião

“Estado da Arte”: As Epopeias Greco-Romanas

Literatura | 26/10/2015 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 19 de março de 2015

As Epopeias Greco-Romas

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Segundo Werner Jaeger “nenhum outro povo criou para si mesmo formas de espírito comparáveis àquelas da literatura grega. Dela nos vem a tragédia, a comédia, o tratado filosófico, o diálogo, o tratado científico sistemático, a história crítica, a biografia, a oratória jurídica e panegírica, a descrição de viagens e as memórias, as coleções de cartas, as confissões e os ensaios”. Mas no princípio, como a raiz de todos os frutos, estava Homero. Ninguém justificou tão completamente a expressão de Hölderlin de que “o que permanece é obra dos poetas”. Ironicamente – ou talvez consequentemente – do próprio poeta, não permaneceu virtualmente nada. Como se a vida desse homem tivesse se consumido por completo nas suas criaturas, dele, malgrado os esforços épicos dos historiadores modernos, seguimos não sabendo sequer se foi um homem ou dois ou uma multidão, ou até – por que não? – uma mulher. Mas não há campo da criação humana que não tenha sido inspirado pelo sopro de seu espírito demiúrgico. Da religião à filosofia, da literatura às artes plásticas, do drama à música, ano após ano, século após século, milênio após milênio, dia após dia, seus deuses e heróis continuam a morrer e a renascer para dar vida a essa “segunda natureza” que chamamos Cultura. Talvez por isso o poeta Charles Péguy pudesse soar tão convincente ao dizer que “nesta manhã Homero ainda é novo e nada pode ser mais velho que o jornal de hoje”.

Um gênero capaz de acolher todos os gêneros – um microcosmo capaz de registrar o mundo que foi, de espelhar o mundo que é, e de pressagiar o mundo que será –, a epopeia jamais deixou de expandir seu império aos confins do universo humano, de ressuscitar as glórias do passado, de penetrar os segredos mais escondidos do nosso coração. E se Homero foi o “educador de toda a Grécia” e a Grécia é a “educadora da humanidade”, aquele que foi, talvez, o maior de seus legatários, o romano Virgílio, estaria destinado a conduzir Dante, e com ele todo o imaginário cristão, do fundo do Inferno às portas do Paraíso. A seu respeito T.S. Eliot diria, com devoção filial porém realista, que foi “o pai do Ocidente”.


 Convidados

– Christian Werner: livre-docente de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo e tradutor de Homero e Hesíodo.

– Fernando Rodrigues: professor doutor de Línguas Clássicas na Universidade de São Paulo e tradutor da Argonáuticade Apolônio.

– Marcos Martinho: professor do programa de pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo e autor de Os Mitos Gregos e a Música.


 Referências

  • Paideia. A formação do homem grego (Paidia. Die formung des Griechischen Menschen) de Werner Jaeger (Martins Fontes).
  • História da Literatura Grega de Albin Lesky (Fundação Calouste Gulbenkian).
  • “Virgílio e o mundo Cristão” em De poesia e poetas (“Virgil and the Christian World, On Poetry and Poets) de T.S. Eliot (Brasiliense).
  • Virgile. Poéte, artiste et penseur de A.M. Guillemin (Albin Michel).
  • A Guide to Hellenistic Literature de K. Gutzwiller (Wiley-Blackwell).
  • Os Mitos Gregos e a Música de Marcos Martinho (Editora Ática).
  • “A Literatura grega” e o “O Mundo romano” na História da Literatura Ocidental, Volume 1, de Otto Maria Carpeaux (Edições do Senado Federal).
  • Gêneros Poéticos na Grécia Antiga, Vários Autores (Humanitas).
  • Vergil. Vater des Abendlandes de Theodor Haecker (Gebundene Ausgabe).
  • Cambridge Companion to Homer e The Cambridge Companion do Virgil, Vários Autores (Cambridge University Press).
  • O Mundo de Ulisses (The World of Odysseus) de M.I. Finley (Presença).
  • The Best of the Argonauts de J. J. Clauss (University of California Press)
  • The Heroic Age de H. Munro Chadwick em https://archive.org/details/heroicage00chad.
  • Virgile de Jacques Perret (Éditions du Seuil).
  • Herrlichkeit: Eine theologische, Asthetik. Band III, 1: Im Raum der Metaphysic. Alterium de Hans Urs von Balthasar (Johannes Verlag).
  • The Argonautica of Apollonius. Literary Studies de R. L. Hunter (Cambridge University Press).
  • L’Iliade ou Le Poème de la Force de Simone Weil.
  • Virgil and his meaning to the World Today de John William Mackail.
  • Lectures on Greek Poetry de John William Mackail.

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Jukebox

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/as-epopeias-greco-romanas/

“Estado da Arte”: Existencialismo

Filosofia | 03/09/2015 | | IFE CAMPINAS

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O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 04 de novembro de 2014.

Existencialismo

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“A partir de hoje e daqui por diante um novo épico começou na história mundial, e pode-se dizer que no momento estamos em seu início”. O psicólogo e filósofo O.F. Bollnow falava por muitos ao aplicar essas célebres palavras de Goethe sobre a batalha de Valmy a Ser e Tempo de Martin Heidegger. Com seu vocabulário singular e um estilo que oscila entre o êxtase e a exasperação, o livro mesmerizaria o pavilhão acadêmico no período entre-guerras, ao denunciar toda a metafísica ocidental, de Platão em diante, como um “grande esquecimento”, articulando pela primeira vez os temas de fundo do movimento filosófico que estava destinado a ser o mais impactante de todos no imaginário cultural do século XX. Catalisado pelos instintos publicistas de intelectuais franceses como Gabriel Marcel, Merleau-Ponty e sobretudo Jean-Paul Sartre, em pouquíssimo tempo o existencialismo extrapolaria o universo filosófico, tanto no campo teórico, quanto no prático e no estético, provocando reverberações decisivas para a psicoterapia, a teologia, as ciências sociais e as artes e letras em geral; e, hoje, não há pessoa no mundo que não tenha, ao menos uma vez na vida, enfrentado “angústias existenciais”.

Como definir um fenômeno tão difuso e dinâmico? De fato, pode-se mesmo dar um passo atrás e questionar: teria realmente existido algo como uma “escola existencialista”? O próprio Heidegger recusava explicitamente a denominação, bem como Albert Camus, Karl Jaspers e tantos outros tradicionalmente indexados como existencialistas. Para o crítico literário Otto Maria Carpeaux, o existencialismo foi, a um só tempo, “uma filosofia, uma literatura, e um clima de opinião”. Seria então possível distinguir, paradoxalmente, a “essência” do existencialismo?


Convidados

– Juliano Garcia Pessanha, escritor, ensaísta, autor da trilogia Sabedoria do Nunca, Ignorância do Sempre e Certeza do Agora e de Instabilidade Perpétua, e doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo com tese sobre Peter Sloterdijk e Martin Heidegger.

– Vicente de Arruda Sampaio, tradutor, editor e professor de filosofia, e doutorando pela Universidade Estadual de Campinas, com tese sobre Martin Heidegger e o pensamento pré-platônico.

– Valter José Maria Filho, professor e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo, com a tese O Conceito de Razão na Época de sua Efetuação.


Referências

  • As Filosofias da Existência (La Philosophie de l’Existence) de Jean Wahl (Europa-América).
  • O Existencialismo e Outros Mitos de Nosso Tempo de Alceu de Amoroso Lima (Agir).
  • Introdução ao Existencialismo (Introduzione all’Esistenzialismo) de Nicola Abbagnano (Martins Editora).
  • “Existentialism” em In our time – BBC 4 (http://www.bbc.co.uk/programmes/p00547h8).
  • “Esistenzialismo”, “Heidegger”, “Sartre”, “Camus” e outros na Enciclopedia Filosofica Bompiani.
  • Studi sull’esistenzialismo de Luigi Pareyson (Ugo Mursia).
  • “Existentialism” e outros na Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/).
  • Existentialism de D. Cooper (Blackwell).
  • Existentialism from Dostoevsky to Sartre de Walter Kaufmann (Meridian Books).
  • Introduction aux Existentialismes de Emmanuel Mounier (http://classiques.uqac.ca/classiques/Mounier_Emmanuel/intro_aux_existentialismes/intro_aux_existentialismes.html).

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Ariel Henrique e Julian Ludwig

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/existencialismo/

Considerações sobre o atentado em Paris: cultura ocidental e extremismo (por Cesar A. Ranquetat Jr.)

Política e Sociologia | 06/07/2015 | | IFE CAMPINAS

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Em 7 de janeiro o mundo assistiu com um misto de perplexidade e revolta as imagens do atentado ocorrido em Paris contra os cartunistas e jornalistas do semanário Charlie Hebdo. Três homens armados – vinculados a grupos extremistas islâmicos – foram os autores do massacre.  O pretexto absurdo para a ação jihadista foi de que este jornal havia publicado charges em tom de zombaria com a figura mais importante da religião muçulmana o profeta Maomé. Ato bárbaro, covarde e, sob todos os aspectos, injustificável que ilustra de maneira cabal o caráter doentio do fanatismo e do extremismo político e religioso.

Este nefando acontecimento, contudo, enseja uma reflexão sobre o tema da liberdade de expressão e dos destinos da cultura ocidental. Para muitos analistas apressados estaríamos diante de um confronto entre os valores sacrossantos do laicismo, da democracia e das liberdades ocidentais contra a selvageria e o primitivismo religioso islâmico. Embate entre a ilustrada e racionalista cultura francesa e a retrógada e arcaica cultura oriental muçulmana.  Sinto frustrá-los, mas a questão não é tão simples assim.

Em primeiro lugar, os jihadistas não representam a totalidade da tradicional e milenar civilização oriental islâmica, mas uma facção “moderna”, minoritária e belicosa do islã que, equivocadamente, instrumentaliza a religião para fins políticos. Por outro lado, a cultura liberal e iluminista francesa é apenas uma expressão secularizada, particular, e, ainda, muito recente da denominada civilização ocidental. Cultura iluminista e laicista que, cabe destacar, em seus primórdios fora marcada pelo seu ódio medular e irracional ao cristianismo. Em síntese, o Ocidente não é apenas o iluminismo francês.

Além disso, importa lembrar que o semanário Charlie Hebdo não apenas escarneceu – através de desenhos de gosto duvidoso – da imagem do profeta Maomé, mas sucessivas vezes zombou de maneira irresponsável dos símbolos mais caros às tradições cristãs e judaicas. Blasfemar e ultrajar imagens religiosas são também atitudes condenáveis e, ademais, sacrílegas. Há um inegável laivo de barbarismo e mesmo de satanismo em blasfemar contra o divino.

Ao contrário do que pensam os porta-vozes da cultura ilustrada, a liberdade de expressão não é um valor absoluto e um direito ilimitado. A liberdade infrene acaba por descambar em libertinagem e licenciosidade. Uma liberdade vazia, sem conteúdo, irresponsável e autodestrutiva, aliás, vigora hoje na sociedade ocidental moderna.

Os corifeus do anarquismo pós-moderno e do “socialismo libertário” defendem ardorosamente e inescrupulosamente a bandeira de uma falsa liberdade que destrói os pilares da civilização ocidental, de acordo com a penetrante observação do diplomata e cientista político Mário Vieira de Mello:

 A liberdade – que está sendo carregada como o pavilhão, a bandeira, o símbolo essencial da civilização contemporânea – não é a verdadeira liberdade. Em nome desse falso símbolo se criticam, se rejeitam, se desmerecem valores que são legítimos representantes da substância cultural do Ocidente.

Reina soberanamente uma concepção radical e anárquica da liberdade, uma liberdade espúria e destrutiva para ofender, mentir, perverter, vilipendiar, blasfemar, atiçar ódios e paixões ignóbeis. Liberdade bastarda que não tem direção nem medida, hostil a qualquer vínculo e compromisso moral e alérgica a todo tipo de norma e ordem. O homem moderno parece ter esquecido a lição elementar de que a liberdade deve estar orientada pela verdade, conforme assevera o teólogo Joseph Ratzinger: “[…] a liberdade está associada a uma medida, a medida da realidade, que é a verdade. A liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas uma paródia demoníaca”.

Não tenho dúvidas, os desenhos satíricos e ofensivos do semanário francês, assim como o fundo ideológico anarquista e progressista radical que alimenta este periódico, são uma expressão e um sintoma doentio da própria corrosão interna e da dissolução moral que assola a civilização europeia contemporânea.

Por sua vez, o laicismo, a licenciosidade e o relativismo moral hoje dominantes no ocidente moderno não são barreiras protetoras contra o avanço do fundamentalismo islâmico; pelo contrário. A cultura ocidental moderna desvinculada de suas raízes morais e religiosas tradicionais torna-se uma presa fácil para qualquer tipo de radicalismo e extremismo, pois encontra-se espiritualmente vazia e privada de fundamentos superiores e sólidos. Segundo a arguta colocação do filósofo Rob Riemen

[…] a ameaça que o fundamentalismo islâmico representa para a nossa sociedade é muito menor do que a crise inerente à sociedade de massas – a crise moral, a trivialidade e o embrutecimento crescente que minam a nossa sociedade. Esta crise da civilização representa a verdadeira ameaça aos nossos valores fundamentais, esses valores que devemos proteger e salvaguardar para possamos continuar a ser uma sociedade civilizada.

Como afirma o escritor espanhol Juan Manuel de Prada, uma cultura que renega suas tradições espirituais está pronta para ser conquistada e dominada por bárbaros. A verdadeira civilização ocidental, a autêntica e grandiosa cultura europeia não se encontra bem representada no Charlie Hebdo. Devemos procurá-la em outras fontes, instituições, símbolos, convicções, normas e valores.

 

Cesar A. Ranquetat Jr é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor universitário

Publicado originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta.